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‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 235-246, 1 sem. 1989. MAIO DE 68: 0 ADVENTO DO INDIVIDUALISMO E DA HETERONOMIA Irene de Arruda Ribeiro Cardoso * Comentfrio erftico da obra de | | Jean Luc-Ferry & Alain Renaut ~ Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contempordneo. Sdo Paulo, Ensaio, 1988. Este livro inscreve-se claramente no debate modernidade versus pés-moderni- dade (Habermas, 1983) e nas suas diversas formulagées: cultura do narcisismo (Lasch, 1983), declinio do homem publico (Sennett, 1988), 0 pés-modernismo ¢ a emergéncia de uma cultura hedonista (Bell, 1979), para ficar com os exemplos mais conhecidos. * Professora do Departamento de Sociologia - FFLCH -USP. 236 CARDOSO, Irene de Arruda Ribeiro. Maio de 68: 0 advento do individualismo e da heteronomia.Tempo Social! Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 235-246, 1.sem. 1989. Comentario erftico da obra de Jean Lue-Ferry ¢ Alain Renaut, Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contemportineo. S60 Paulo, Ensaio, 1989, Entretanto, a especificidade do livro é a da construcdo de uma andlise do Pensa- mento 68, entendido como a “filosofia francesa dos anos 68”, uma “‘constelago de obras cronologicamente préximas a Maio" e sobretudo aquelas “‘cujos autores reconhe- ceram quase sempre explicitamente um parentesco de inspiragao com 0 movimento” (p. 12). A interpretacdo construfda pelos autores propée que a filosofia francesa dos anos 68 “escolheu resolutamente 0 partido do anti-humanismo” (p. 18) (Foucault, Althusser, Derrida, Lacan, Bourdieu, Deleuze, Lyotard). Simultaneamente os autores procuram reconstruir a questio da “significagio cul- tural de Maio de 68”, partindo de uma aparente heterogeneidade entre o pensamento filoséfico de 68 e a contestagio de Maio (que longe de significar a “liquidagao da sub- jetividade”, teria exatamente se apresentado como uma “‘revolta dos individuos contra 0 sistema que os negaria enquanto tal”) (p. 55). No entanto, o que a andlise mostraré € que esta “aparente heterogeneidade” se dissolve quando a interpretagéo reconstr6i a questéo da “afirmacdo do Eu contra o sistema” a partir de uma significagao muito pre- cisa: a da afirmagao da individualidade contra a pretenso da universalidade das nor- mas, que inaugura um processo de “dissolugéo do Eu como vontade auténoma”’, ins- crito na “Idgica da heteronomia”. A morte do sujeito no advento do Individuo, en- quanto uma significagao reconstruida pela interpretagao, permitiria entio compreender em que medida o Pensamento 68 legitima filosoficamente 0 anti-humanismo ¢ a hetero- nomia, Identificar 0 posicionamento filoséfico, tedrico e metodolégico dos autores € fun- damental, no sentido de perceber de que modo a interpretagéo se inscreve no debate contemporineo no que se refere & questo humanismo/anti-humanismo, & questo do “estatuto da subjetividade” € 2 questo do “‘estatuto da razio em sua relagéo com 0 Outro”(p. 23), O livro, construido centralmente na interpretagio da filosofia dos “‘anos 68" ¢ na interpretagao da significagao cultural de Maio de 68, detém-se especial ¢ lon- gamente na andlise das “modalidades filosficas da volatizagéo da subjetividade” (Fou- cault, Derrida, Bourdieu e Lacan). Assumindo, claramente, um posicionamento te6rico € metodolégico de exaustivamente “esclarecer os debates”, “identificar posigdes”, “fazer criticas no sentido de uma delimitagao” e “‘desvelar as contradig6es"” (p. 264), 9s autores conferem pouco espaco a uma explicitagao, mais longamente trabalhada, da sua propria interpretacdo. Considerando o “‘impressionante e persistente simplismo” da critica anti-humanista construida pela filosofia francesa dos anos 68, propéem que hé ainda uma tarefa a ser realizada: a de escrever uma “histéria do sujeito”, isto é, das “representacées modernas da subjetividade”. Neste sentido, os autores comprometem- se com uma continuagao do livro onde ‘as faces plurais do sujeito, nao totalizaveis sob um conceito tinico”, pudessem ser reconstruidas numa perspectiva que, recusando a postura de uma “histéria linear” do sujeito, fizesse emergir as “variagées ¢ clivagens” daquela histéria (““do aparecimento cartesiano do cogito as desconstrugées empiristas da CARDOSO, Irene de Arruda Ribeiro. Maio de 68: 0 advento do individualismo e da heteronomia. Tempo 237 Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 235-246, 1.sem. 1989. Comentério crftico da obra de Jean Luc-Ferry ¢ Alain Renaut, Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contemporineo. So Paulo, Ensaio, 1989 idéia de substancia, da critica kantiana da psicologia racional & sua reabilitacdo analiti- ca em Schelling e Hegel”) (p. 264-5). Embora o livro (vale a pena insistir) realize uma reconstrucdo rigorosa da “‘filoso- fia dos sixties”, constr6i, 20 mesmo tempo, uma interpretacdo, no mfnimo polémica, so- bre o Pensamento 68. Este, iniciando ¢ acompanhando 0 “‘processo de desagregacao do Eu que conduz & consciéncia coo! dos anos 80"(p. 92), seria marcado ainda segundo os autores por um certo “estilo de vida filosdfica’’: 0 “‘culto do paradoxo”’, a “busca da marginalidade”, 0 ““fantasma da conspiracdo”’, 0 “destino de périas intelectuais"’ (p. 35- 1. Enfrentar esta interpretacao que se coloca num registro de objetividade que pre- tende esclarecer, identificar, delimitar e desvelar posigGes, ¢ que efetivamente pouco explicita, do mesmo modo exaustivo com que analisa 0 Pensamento 68, a sua prépria posig&o, exige uma leitura tedrica que esteja atenta aos seus pressupostos metodoldgi- 0s € filoséficos. A reconstrugdo, passo a passo, da interpretacdo construfda pelos auto- res (evidentemente que dentro dos limites de espago deste comentério), a adogéo de uma postura analitica, tém aqui a vantagem de permitir a explicitacdo das referéncias valorativas dos autores, atribufdas a filosofia e & modernidade. Concordando com os autores do livro de que o debate af posto configura o pro- blema filoséfigo do mundo contemporaneo, que est4 simultaneamente referido ao plano politico (‘‘a questo da subjetividade na democracia”’) importa ressaltar que o enfrenta- mento das questées postas pelo texto, se obviamente concernem & Filosofia, concernem também as chamadas Ciéncias Humanas (& Sociologia, & Antropologia, @ Historia, & Ciéncia Politica, 4 Psicandlise) que em maior ou menor grau, muitas vezes colocam-se defensivamente & margem daquelas questées. tipo ideal da “*Filosofia dos sixties” O primeiro passo fundamental realizado pelos autores € 0 da construcéo do “tipo ideal do pensamento 68”. A partir de uma definig’o detalhada de tipo ideal (remetida a Raymond Aron de As Etapas do Pensamento Socioldgico ¢ obviamente a Weber) ex- plicitam as suas “premissas metodolégicas”. Consideram o tipo ideal um “instrumento de pesquisa”, caracterizado por ser uma “reconstrucdo inteligivel de uma realidade histérica singular”, que “retine segundo uma escolha entre outras os aspectos essenciais, (tipicos) suscetiveis de constituir um todo inteligivel”. A pertinéncia do tipo ideal seria medida “pela sua congruéncia (pela inteligibilidade das relagdes que realizam os ele- mentos do todo) e pela possibilidade de sua comparagio com as realidades singulares 238 CARDOSO, Irene de Arruda Ribeiro. Maio de 68: 0 advento do individualismo ¢ da heteronomia. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(I): 235-246, I.sem. 1989, Comentério critico da obra de Jean Luc-Ferry ¢ Alain Renaut, Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contemporineo. Sto Paulo, Ensaio, 1989. (&s quais por definigdo ele nao corresponde jamais integralmente) para adquirir delas uma compreensao”. A construgéo do tipo ideal tem uma “funcio de delimitacao”, per- mitindo precisar 0 que os autores entendem por Pensamento 68, ou seja, “‘o pensamento que deixa que se Ihe aplique, segundo um grau de adequagéo maior ou menor (mas em todo caso, um certo grau) um tal tipo, ou, ao menos um certo mimero de elementos do tipo” (p. 25-6). E dentro desta premissa metodoldgica que sao construfdas, entdo, as “quatro ca- racteristicas essenciais do pensamento 68” 1. O tema do fim da filosofia: marcado pelo rompimento com a tradigéo filoséfica de Platéo a Hegel, corresponde a dois grandes “modelos de desconstrugao”, 0 marxis- mo (Althusser) e a genealogia nietzscheana/heideggeriana (Derrida)(p. 26 e segs.). 2. O paradigma da genealogia: que “tanto do lado do marxismo ou do freudis- mo, quanto na tradig4o nietescheana/heideggeriana constréi a convicgao de que a ativi- dade filoséfica por exceléncia dever-se-ia definir, hoje, pelo método genealégico, no sentido em que Nietzsche 0 entendia”. A questio filoséfica fundamental nao seria mais “o que & que...?”, mas sim “quem é que...?”. Ndo mais discemir sobre o “‘contetido” do discurso mas “‘interrogar-se sobre suas condig6es exteriores de produgdo”’ (p. 28 € segs.) 3. A dissolugdo da idéia de verdade: conseqiiéncia légica da genealogia nietzs- cheana, aqui a prépria idéia de verdade (ao menos em sua concepgao tradicional) & posta em questo. ““A pratica da genealogia impée, assim, a referéncia a uma outra con- cepgio de verdade que, j4 presente em Nietzsche, s6 ser verdadeiramente tematizada em Heidegger, através da definico da verdade como aletheia, como um desvelamento insepardvel de uma parte de velamento” (p. 31 € segs.). 4. A historicizagéo das categorias e o fim de toda referéncia ao universal: esta quarta e iiltima caracterfstica, com laco estreito com as anteriores, “termina a constitui- cao do tipo como inteiramente inteligfvel”. Marca esta caracterfstica a proposigéo de Foucault de que “o verdadeiro sentido hist6rico reconhece que nés vivemos sem refe- réncias, nem coordenadas originais, em mirfades de acontecimentos perdidos” (p. 33-4). A identificago do ““fundo comum suscetivel de juntar” “filosofias procedentes de orientagées to divergentes, quanto as de inspiragdo marxista de um lado, ¢ de outro a desconstruséo nietzscheana/heideggeriana/freudiana da racionalidade”, em torno de quatro caracteristicas, resultou na possibilidade de uma construgio inteligivel, a partir do tipo ideal. A inteligibilidade do Pensamento 68, assim construfda permite entdo com que 0s autores afirmem que aquele “‘fundo comum”’ seria justamente 0 do projeto de uma “critica radical da subjetividade”, da proclamagao da “morte do homem como su- jeito” (p. 38). A genealogia ~ questionando a idéia do sujeito como consciéncia (““o sujeito consciente torna-se um puro objeto”); negando a subjetividade e portanto des- truindo a “idéia mesma da humanidade como intersubjetividade”, que levaria conse- CARDOSO, Irene de Arruda Ribeiro. Maio de 68: 0 advento do individualismo e da heteronomia. Tempo 239 Social; Rey. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1); 235-246, 1.sem. 1989. Comentério critico da obra de Jean Luc-Ferry ¢ Alain Renaut. Pensamento 68: ensaio sobre 0 anti-humanismo contempordneo. Sfo Paulo, Ensaio, 1989. giientemente ao “‘desaparecimento da comunicacdo por tras das puras relagées de for- ca”; proclamando 0 “‘6dio ao universal” ~ produz 0 que hé de especffico no Pensa- mento 68, o anti-humanismo (p. 39-41). Procurando buscar a “‘génese intelectual” do Pensamento 68, os autores propdem compreender a filosofia francesa como “repeti¢ao hiperbélica da filosofia alma”. O Pensamento 68 seria “‘o resultado de uma utilizagdo mais ou menos complexa, de temas e teses emprestadas de filésofos alemes, no essencial de Marx, Nietzsche, Freud e Heidegger”. Nao simples repetiséo dos temas, mas sobretudo “radicalizagio” deles, de onde talvez. tenha nascido 0 seu anti-humanismo (p. 42). © “heideggerianismo fran- és”, 0 “marxismo francés”, 0 “nietzscheanismo francés”, 0 “freudismo francés” como expressdes daquela radicalizagio e portanto da “volatizagio da subjetividade” (p. 93), so detalhadamente analisados no livro a partir de alguns autores considerados mais ex- pressivos: Derrida (heideggerianismo francés); Bourdieu (marxismo francés); Foucault (nietzscheanismo francés) e Lacan (freudismo francés). Heterogencidade ou homogeneidade entre o Pensamento 68 e o Movimento de Maio? A grande questio posta pelos autores no que se refere & interpretacao do movi- mento de Maio de 68 parte de uma primeira constatagio de que Maio nao apareceria de in{cio como “tendo sido dominado pela busca do inumano”, como “liquidagao da sub- jetividade”, mas como “revolta dos individuos contra o sistema”. Seriam, entio, tio heterogéneos e incompatfveis, 0 Pensamento filos6fico dos sixties e a contestagéo de Maio de 687 Permanecendo no registro mais imediato do movimento de Maio, o tipo ideal do Pensamento 68 poderia ser considerado entéo ‘‘imperfeito”: estando préximo cronologicamente e por afinidade da contestagdo de Maio, a heterogeneidade entre eles questionaria a adequaco do tipo. A “aparéncia de Maio” tornava-se, ento, um “obs- téculo a interpretagao do Pensamento 68” (p. 55-6). Colocar o “problema da significagao cultural de Maio de 68” € entio uma questéo absolutamente pertinente, para Ferry ¢ Renaut. Dando-se conta da diversidade das interpretagées relativas a Maio de 68, os auto- res, de um modo andlogo ao procedimento adotado na construgao do tipo ideal do Pen samento 68, procuram buscar um “prinefpio” ou um “fio condutor” que permitisse es- truturé-la (num todo inteligivel) e entéo compreender aquela diversidade. Pondo em 240 CARDOSO, Irene de Arruda Ribeiro, Maio de 68: oadvento do indiidualisme ¢ da eteronomia Tempo i Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 1.sem. 1989. Comentfrio crftico da obra de Jean Le-Ferry'¢ Alin Reamit Pemsamento 68: coaio sobre 0 andshursanme comenprincs, S50 Paulo, Ensaio, 1989. primeiro plano a questéo da objetividade da interpretacdo, propdem a construgio de uma “l6gica das interpretagdes” (a “‘teoria dos pontos de vista ou das perspectivas”) (p. 57-8). Partindo de uma classificagao construfda por P. Bénéton ¢ J. Touchard (in: Les interprétations de la crise de mai-juin 1968, de 1970), seria entéo possfvel colocar a “questo da légica suscetivel de organizar verdadeiramente o campo interpretativo” (p. 58). Bénéton e Touchard propéem oito leituras do acontecimento: 1) Maio de 68 como compl6; 2) Maio de 68 como crise da Universidade; 3) Maio como acesso de febre ou como revolta da juventude; 4) Maio como crise de civilizagao; 5) Maio como conflito de classes de um novo tipo; 6) Maio como conflite social de tipo tradicional; 7) Maio como crise politica, devida as instituigdes da V Republica e & auséncia de uma real al- ternativa politica; 8) Maio como encadeamento de circunstancias (p. 58-62). A questo posta, ento, é a da necessidade de indicar um “fio condutor preciso” que permita uma orientagio “nos labirintos deste campo interpretativo”, para descobrir nesta diversidade, uma “Iégica’”. O fio condutor proposto — que procede de uma “‘con- sideragao simples” ~ é 0 de que o problema do intérprete, diante do movimento hist6ri- co que se apresenta como uma “subversio” ou “revolugéo”, € justamente o de saber “que alcance e estatuto atribuir ao ponto de vista dos proprios atores’”. Redimensionan- do a questo: 0 fio condutor seria a “questéo da concepgo do sujeito” — “sujeito (fi- nito) prético”; “‘sujeito (absoluto) como Sistema imanente & hist6ria”; “volatizacdo de toda subjetividade”’ (a perspectiva da desconstrugdo) (p. 62-4). A reconstrugéo desta “I6gica’” do campo interpretativo permite entio aos autores entender que “‘os problemas colocados pelas interpretagdes de Maio deveriam aparecer como estranhamente homogéneos aquilo que constitui a questio intelectual (do Pensa- mento 68) em jogo no acontecimento: o processo do sujeito” (p. 63-4). A reconstrugao da “Idgica”’ do campo interpretativo permite ainda reduzir, a partir do fio condutor (a questio da concepgao do sujeito) a diversidade labirintica anterior a trés posturas interpretativas relativas a Maio de 68: 1) O ponto de vista dos atores — a revolta da liberdade (sujeito prético) contra a opress4o do Estado (Sartre, Castoriadis, Morin); 2) Maio como pseudo-revolugao, ou mudanga na continuidade ~ duas anélises de inspiragao distintas, marxista e tocqueviliana, onde a crise de maio aparece como etapa do desenvolvimento do individualismo burgués, efeito do sistema capitalista (R. Debray e G. Lipovetsky); 3) © acontecimento de Maio ~ “a iniciativa ¢ iniciagao/inau- guragdo absoluta, puro comego: a revoluc&o surge propriamente do nada, deste ‘lugar nenhum’ resistente a todas as explicagdes que, armadas do princfpio da razio, buscam uma origem”’ (Lefort) (p. 81-2). CARDOSO, Irene de Arruda Ribeiro. Maio de 68: 0 advento do individualismo ¢ da heteronomia. Tempo 241 Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, I(1): 235-246, l.sem. 1989. Comentirio erftico da obra de Jean Luc-Ferry ¢ Alain Renaut, Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contemporineo. S80 Paulo, Ensaio, 1989 Maio de 68: a morte do sujeito, o advento do individualismo e da heteronomia Metodologicamente coerente com a interpretagéo construfda até este momento ~ a construcdo (aroniana e weberiana) do tipo ideal do Pensamento 68 cujo trago caracte~ ristico era o da “critica radical da subjetividade”’, a construgao de uma “I6gica do cam- po interpretativo” cujo fio condutor era o da “‘concepgio do sujeito” — os autores fi- nalmente propéem o “principio do pluralismo interpretativo” que reencontram em R. Aron, como “uma efetivagao concreta da metodologia weberiana”’ (p. 85). pluralismo interpretativo — permitindo a construgio de uma “hipstese” entre outras, de “um elemento explicativo entre uma diversidade de outros possiveis” ~ pou- pa & interpretacdo os “excessos redutores que sdo inerentes ao dogmatismo”. Possibili- ta, ainda, “‘colocar a énfase, antes sobre certo nivel de interpretacdo do que sobre outro, sendo que a escotha de um destes niveis constitui uma abstragdo metédica em relago a0 modo em que se encontram estreitamente imbricados na realidade hist6rica concreta”” (p. 89). E justamente em R. Aron (La Révolution Introuvable, publicado em 1968) que os autores descobrem, “integrada a outras explicagées”, uma importante relacéo entre 0 clima intelectual de 68, a crise de Maio e o que deveriam ser suas conseqiiéncias “tidas desde ento como previsiveis”. “A intelligentsia dos anos 60, escreve Aron, tinha por deus ndo mais o Sartre do pés-guerra, mas uma mistura de Lévi-Strauss, Foucault, Al- thusser e Lacan” (p. 87). Dois efeitos foram produzidos a partir desta constelagao: 1) ela favoreceu nos meios parisienses a férmula segunda a qual “nao hé fatos”, “tudo se equivale”, “nao hé normas que se devam impor ao jogo do desejo”; 2) hd apenas um passo da “dissolugio das nommas” ao “‘neo-niilismo”; a “recusa de uma ordem sem vislumbre de outra ordem altemativa”, seria “wna das causas da decomposicéo de Maio” (p. 88) Relacionar a crise de 1968 como “critica das normas” com o trabalho critico rea lizado em relagio & normatividade pela filosofia francesa, significa nio uma relacdo de causa € efeito, mas sim que 0 Pensamento 68 integra-se num conjunto significante que ele ilumina, sendo por ele iluminado, quanto ao seu aleance, Deste modo, consideram 08 autores, que “desde o verao de 1968 era percebido, no horizonte do que viria a ser a ‘revolucao perdida’, a desercio do politico, a volta & esfera privada, o prestigio do indi- vidualismo hedonista” (p. 88). A partir da metodologia construida, “‘nada mais profbe” aos autores, “privilegiar metodicamente uma leitura norteada pelo problema do individualismo”. A “Iégica do individualismo” transformada em “fio condutor para a reflexdo do historiador de 68”, ndo é mais a “infra-estrutura oni-explicativa”’. Ela define ~ na sua “coexisténcia possi- vel e necesséria com outras aproximagées” — o “Angulo de leitura especffica””, de uma 242 CARDOSO, Irene de Arruda Ribeiro. Maio de 68: 0 advento do individualismo ¢ da heteronomia. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 235-246, l.sem. 1989. Comentirio crftico da obra de Jean Luc-Ferry ¢ Alain Renaut. Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contemporinco. Séo Paulo, Ensaio, 1989. interrogagéo construida a partir de um “"inico ponto de vista”: 0 da “‘histéria intelectual e cultural recente de Maio de 1968” (p. 89). ‘Assumindo 0 “Angulo de leitura” ou 0 “fio condutor” da “I6gica do individualis- mo”, nenhuma heterogeneidade resta entre o Pensamento 68 e o Movimento de Maio. “Num certo sentido”, Maio teria sido uma “revolta dos sujeitos contra as nor- mas”, mas numa significagao muito precisa: o da “afirmagdo da individualidade contra a pretensio das nommas & universalidade” e a da inauguragéo de um ‘“processo que tem por horizonte previsfvel a dissolucdo do Eu como vontade aut6noma, ou seja, a destrii- do da idéia classica do sujeito” (p. 89-90). O Eu do narcisismo contemporineo obede~ cendo “Idgica da heteronomia” produziria, ainda, um outro efeito: o da “‘transforma- cdo da intersubjetividade”, que nao mais seria “‘um reconhecimento recfproco das liber- dades”, fundada na vontade auténoma dos sujeitos, mas uma mera ‘“contemplacao hu- moristica do outro, como um ‘gadget cémico’ ” (p. 91). © “sujeito mome no advento do individuo”. Deste ponto de vista, “o papel de- sempenhado pelas diversas figuras do pensamento 68 torna-se compreensfvel: da psica- nélise lacanizada as derivagées nietzscheano-marxistas, © pensamento 68 legitima filo- soficamente a heteronomia em nome da qual o Eu fluidificado se esvazia de toda subs- tancia. Criticando como ‘metafisico” ou como ‘ideol6gico’ 0 projeto de dominio ¢ de verdade sobre si mesmo” (a nogdo tradicional de subjetividade), (...) ‘‘os sixties filoso- fantes iniciaram e acompanharam 0 processo de desagregacio do Eu, que conduz & consciéncia cool e desenvolta dos anos 80” (p. 91-2). O humanismo: o retorno do sujeito como vontade auténoma e da inter-subje- tividade como didlogo entre consciéncias (espago pablico) A reconstrugéo metodolégica do livro realizada com o objetivo de identificar 0 posicionamento filos6fico € tedrico dos autores ¢ simultaneamente perceber de que mo- do a interpretagdo construfda se inscreve no debate contemporaneo sobre a modernida- de, permite evidenciar algumas questdes centrais. As premissas metodolégicas adotadas pelos autores na construgao do tipo ideal do Pensamento 68, na construcao de uma Iégica do campo interpretativo (no que se refere a0 Movimento de Maio) e na construgéo do que definem como principio do pluralismo interpretativo, tm um pressuposto comum que precisa ser explicitado (explicitagao esta ndo realizada pelos autores). Ao assumir estas premissas (a partir de R. Aron de We- ber) os autores no explicitam, até as ultimas conseqiiéncias, o recurso interpretativo adotado. A questo weberiana da “relacdo com os valores” ¢ a questo do estatuto do sujeito e da intersubjetividade permitem conduzir a anélise na diregao da clucidagdo da- quele pressuposto comum. CARDOSO, Irene Ribeiro de Arruda. © anti-humanismo em maio/68. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, 243 S. Paulo, 1(1): 235-246, 1.sem. 1989. Comentfrio crftico da obra de Jean Luc Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contemporiineo. So Paulo, Et A quesiéo da relagdo com os valores: 0 tipo ideal enquanto instrumento de pes- quisa (dimensio explicitada) € antes de tudo o recurso “‘indispensdvel para a formula- 40 dos problemas” de que esta tratard. A construcdo dos problemas, que “‘exprimem 05 interesses dos pesquisadores” remete aos “pressupostos valorativos da atribuigao de um caréter significativo ao campo do real selecionado” para andlise: a construcZo do ti- po est subordinada & importancia significativa que os tracos dos eventos (...) selecio- nados para compé-lo, assumem para pesquisador em termos de suas conseqiéncias” (dimensao no explicitada). ““Tomado em sua acepgao plena o tipo , portanto, a ex- presséo metodoldgica da orientacdo do interesse dos cientistas que 0 constroem e apli- cam” (Cohn, 1979, p. 95-6). A questéo do estatuto do sujeito e da intersubjetividade. tanto a noco de sujeito como a de intersubjetividade esto presentes na concepgao we- beriana. O objetivo fundamental da compreensio, categoria fundamental para a inter- pretagdo de Weber, é sempre 0 de compreender o sentido de uma ago social ou de uma relacdo social. Em ambos os casos a sede efetiva do sentido é o sujeito/agente. No li- mite, a possibilidade m4xima da compreensio do sentido, seja da ago ou da relagdo esté construfda a partir da concepgao da autonomia do sujeito, fundada na racionalidade (embora em Weber as agées dos sujeitos possam muitas vezes ter conseqiiéncias que questionem a prdpria autonomia).. A questio da relagdo com os valores ¢ 0 estatuto do sujeito na perspectiva webe- riana (pressupostos apenas implicitos na interpretagdo dos autores) permitem a constru- cdo da interpretacdo do livro, dentro dos objetivos propostos. O humanismo: valor central da filosofia e da cultura contempordnea, néo pode pa- ra Ferry ¢ Renaut, ser confundido com a metafisica nem com a ideologia burguesa. Se 1ndo se pode hoje “‘retornar aos valores da filosofia das Luzes”, é impossfvel nao se re- ferir a eles ¢ fazer (como o faz 0 Pensamento 68) “idbula rasa desta tradigéo” (p. 22). “Para que humanismo no seja destrufdo ao mesmo tempo em que a metafisica € des- construfda [numa discussio com Heidegger] é preciso que seja levada em consideracao a significagdo desta abertura constitutiva da ek-sistencia (...) A ek-sistencia como abertura parece somente ter sentido se pudermos pensé-la enquanto autonomia: a idéia de humanidade apenas surge como tal, se a abertura pode ser pensada a partir deste ho- rizonte de autonomia que lhe confere seu sentido e sua representabilidade” (p. 243). A construgéo do tipo ideal do Pensamento 68, enquanto anti-humanista esta fundada nos pressupostos valorativos dos pesquisadores, cujo traco significativo, atribuido a cultura, a filosofia e portanto & modernidade, é justamente 0 da autonomia dos sujeitos. A questéo do sujeito: considerada como “fio condutor’” para a construcao da légi- ca do campo interpretativo de Maio de 68 ~ questéo central na perspectiva weberiana, sem a qual a possibilidade mesma da compreensao néo poderia sequer ser posta — esté do 244 CARDOSO, Irene de Arruda Ribeiro. Maio de 68: o advento do individualismo ¢ da heteronomia. Tempo Social: Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 235-246, I.sem. 1989. Comentério erftico da obra de Jean. Luc-Ferry ¢ Alain Renaut. Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contemportneo. S80 Paulo, Ensaio, 1989. mesmo modo {uudada nos pressupostos valorativos dos pesquisadores. A morte do su- jeito, entendida como o advento do individualismo e da heteronomia enquanto caracte- risticas do tipo ideal do Pensamento 68 e do Movimento de Maio, configura-se, aqui também, como uma construgo cuja referéncia valorativa (construfda a partir da moder- nidade) & a do sujeito como vontade aut6noma. No anti-humanismo na filosofia da desconstrucao, 0 “homem como dimensio de autonomia desaparece” (p. 242). Contra- riamente ao anti-humanismo, consideram os autores nio ser absolutamente necessério “retirar da idéia ou do ideal, isto é, da prépria Idéia de autonomia todo sentido e toda fungao” (p. 244), A questo da intersubjetividade: como “‘reconhecimento recfproco de liberdades”’, fundada na “‘vontade auténoma dos sujeitos”, do mesmo modo configura-se como pres- suposto valorativo dos autores, atribufdo & modernidade. O tipo ideal do Pensamento 68 e do Movimento de Maio construfdo enquanto uma “transformagao da intersubjetivida- de” (contemplago humorfstica do outro), marcada pela “‘destruigéo do Eu como cons- ciéncia voluntéria” € pelo “6dio” universalidade das normas configura uma clara re- feréncia a valores: a de um “espago comunicativo”, enquanto ““espaco ptiblico” (Ha- bermas) fundado nos valores da res publica, possibilidade tinica de um “verdadeiro didlogo entre consciéncias suscetiveis de pensar suas diferencas sobre o fundamento da identidade” (p. 148-9). Se 0 “‘consenso” é “‘livremente consentido”’ 0 que teria de “tao temerfirio?” Se ndo se procura “obté-lo pela livre discussao” o que restaria senao a possibilidade da “‘violéncia?” (p. 264). Esta indagago (posta pelos autores visando es- pecialmente Foucault e Lyotard) e que podemos formular como questo central, permite inscrever a interpretagdo construida pelo livro, no que se refere 4 modemnidade, no re- gistro aberto por Habermas (0 da ‘‘agdo comunicativa”, que supde a autonomia) e no limite no registro de um retomo a Kant (0 “uso piblico da razio" ¢ a capacidade do “homem de servir-se de seu préprio entendimento”).(Ver Torres F®, 1987). A interpretacdo construfda por Ferry ¢ Renaut, embora rigorosa, é polémica por- que assume em alguns momentos um discutfvel tom desqualificador em relagdo ao que chamam “filosofia da desconstrugao”. Do Pensamento 68 A consciéncia “‘cool’’ dos anos 80, € o anti-humanismo que se abre & “barbérie”, enquanto regressio que substitui “o ideal de uma natureza submissa a uma vontade (ideal modeno] por um ideal pré- modemo de uma natureza d qual a vontade é submetida” (referéncia 4 Kant) (p. 262). Sair do registro da mera polémica e trazer para 0 primeiro plano 0 posicionamento dos autores, no que se refere a modernidade, pareceu-me um caminho mais estimulante para © debate contemporineo. anti-humanismo e a heteronomia como tracos caracteristicos do Pensamento 68, segundo Ferry e Renaut, construidos segundo uma referéncia valorativa atribuida & mo- demidade — 0 sujeito como vontade aut6noma e a intersubjetividade como reconheci- CARDOSO, Irene de Arruda Ribeiro. Maio de 68: 0 advento do individualismo e da heteronomia. Tempo 245 Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 235-246, 1.sem. 1989. Comentirio erftico da obra de Jean Luc-Ferry ¢ Alain Renaut. Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contempordineo, Séo Paulo, Ensaio, 1989. mento recfproco de liberdades fundada na vontade auténoma do sujeito - esto remeti- dos a tradigio filoséfica clssica do sujeito auténomo. Contudo, os autores, com rel va facilidade, designam como heteronomia perspectivas filosGficas distintas que, a0 romperem com a idéia classica de sujeito, procuram problematizar a questo do sujeito € da autonomia a partir de outros pressupostos. Designar como legitimadoras da heteronomia as perspectivas que problematizam fas questées da soberania do sujeito ¢ as das filosofias da identidade ¢ da contradigao - sem falar da jungéo de autores to distintos no “‘fundo comum” do Pensamento 68 ~ nos leva a relativizar a seriedade filos6fica dos autores que resvala para a retérica da ideologia (embora mantendo 0 tom da objetividade, jé apontado, na construgo do tipo ideal do Pensamento 68). Tentar inserir & forga a idéia cléssica de autonomia do sujeito na perspectiva hei- deggeriana da ek-sistencia e designar como heteronomia a idéia de autonomia tematiza- da de modos distintos pelo conjunto dos autores analisados — que péem a questo da relago inconsciente/consciente para refletir sobre a idéia mesma de sujeito e a possibi- lidade de autonomia, enquanto negagdo do discurso do Outro (Lacan ¢ mesmo Casto- riadis, 1982, p. 122-129), ou que repde a questio do sujeito enquanto dominio de si, por si, enkrateia, independentemente de uma Lei moral (Foucault, 1984, p. 61-62), para ficar com alguns exemplos — termina por obscurecer as questées da modernidade a par- tir de uma postura que acaba se revelando como dogmética. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BELL, Daniel. Les contradictions culturelles du capitalise. Trad. M. Matignon. Paris, P.U-F.. 1979. CASTORIADIS, Comelius. A instituicdo imagindria da sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982. COHN, Gabriel. Critica ¢ resignagao: fundamentos da sociologia de Max Weber. Sio Paulo, T.A. Queiroz, 1979. FOUCAULT, Michel. Historia da sexualidade Il. O uso dos prazeres. Rio de Janeiro, Graal, 1984, HABERMAS, Jiirgen. Modernidade versus p6s-modernidade. Arte em Revista, S30 Paulo, 7, ano 5, ago. 1983. LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro, Imago, 1983. 246 CARDOSO, Irene de Arruda Ribeiro. Maio de 68: 0 advento do individualismo e da heteronomia.Tem po Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, I(1): 235-246, L.sem. 1989, Comentirio erftico da obra de Jean Luc-Ferry ¢ Alnin Renaut, Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contemporineo. Si0 Paulo, Ensaio, 1989. SENNETT, Richard. © declinio do homem piblico: as tiranias da intimidade. So Paulo, Cia. das Letras, 1988. TORRES F®, Rubens Rodrigues. Respondendo a nerpunta: quem a ilustracéo? In: Ensaios de filosofia ilustrada. S80 Paulo, Brasiliense, 1987. p. 84-101.

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