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Quando refletimos sobre a Natureza em geral, ou sobre a histéria da humanidade, ou sobre nossa propria ‘atividade intelectual, vemos em primeiro lugar a imagem de um incessante emaranhado de relagbes e reagbes, de ermutagdes e combinagdes, nas quais nada permanece ‘o-qué, onde € como era, mas nas quais tudo se move, toma forma e passa. Vemos portanto em primeiro plano @ imagem de um todo, com suas partes ainda mais ou ‘menos mantidas ao fundo; observamos os movimentos, as transigdes, as conexdes, em vez das coisas que se mover € combinam e estdo ligadas. Esta concepeio do mundo Primitivo, naif, porém intrinsecamente correta, & a mesma dda filosofia grega antiga, e foi formulada pela primeira vez com clareca por Heréclito: do & e nio 6, porque tudo é fluido, esté constantemente mudando, constante- ‘mente tomando forma e passando. Friedrich Engels UL ML. W. vi vu. vu. INDICE A DIALETICA DO SEXO FEMINISMO AMERICANO FREUDISMO: UM FEMINISMO DESVIRTUADO ABAIXO A INFANCIA RACISCO: 0 SEXISMO DA FAMILIA DO HOMEM ‘0 AMOR A CULTURA DO ROMANCE. CULTURA (MASCULINA) DIALETICA SEXUAL DA HISTORIA DA CULTURA © FEMINISMO NA ERA DA ECOLOGIA CONCLUSAO: A REVOLUGAO DEFINITIVA, Ww 28 58 87 1s 147 169 181 197 221 233 I. A DIALETICA DO SEXO As classes sexuais sto tio enraizadas, que se tor- nam invisiveis, A existéncia dessas classes ‘pode parecer ‘uma desigualdade superficial, facilmente soluciondvel com algumas reformas, ou talvez com a integracio plena das mulheres na forga de trabalho. Mas a reagio do homem, da mulher ¢ da crianga comum — “O qué? Ora, nio se pode mudar isto! Voc’ deve estar loucol” — esti mais proxima da verdade. Falamos de algumas coisas tio pro- fundas quanto esta, Essa reagio instintiva € honesta, pois, mesmo quando 0 ignoram, as feministas falam de uma ‘mudanga na condi¢ao biol6gica bésica. O fato de que uma mudanga tio profunda no possa se ajustar em ca- tegorias tradicionais de pensamento, p.e., 0 “politico”, ‘corre no porque essas categorias ndo se usem, mas por- que nao so suficientemente amplas: um feminismo ra cal as perpassa, Se houvesse um outro termo mais abran- gente, do que revoluedo, n6s 0 usariamos. “Até que fosse atingido um certo nivel de evolucdo € que a tecnologia chegasse a sofisticago atual, questio- nar condigdes biol6gicas bésicas era loucura. Por que deveria uma mulher trocar seu precioso lugar no curral, por uma uta sangrenta e sem esperanca? Entretanto, pela primeira vez em alguns paises, as pré-condigdes para ‘8 revolugo feminista existem — na verdade, a situagio ccomega a exigir essa revolucio. uw ‘As primeiras mulheres estéo conseguindo escapar a0 massacre, e, inseyuras e vacilantes, comegam a. des- cobrir-se umas is outras. Seu primeiro passo & uma obser- vvago cuidadosa, em conjunto, para ressensibilizar uma conscigncia partida. Isto penoso. No importa quantos niveis de conscigncia sejam atingidas, 0 problema sempre se aprofunda, Ele se acha em todo iugat. A divisio Yin ¢ Yang peneira toda a cultura, a historia, a economia, © propria natureza; as vers6es ocidentais modernas da discriminagio sexual integram apenas o substrato. mais superficial © recente. Intensifiear assim nossa. sensbili- dade em relagio ao sexismo traz problemas muito piores do que os que a nova conscitneia do racismo’ trouxe Para os militares negros. As feminists tém que questionar fio s6 toda a cultura oeidental, como a prépria organiza- fo da’ cultura, e, mais; até a propria oreanizagto da na- tureza. Muitas mulheres desistem, desesperadas. Se & ne- cessério ir tio longe, elas preferem desconhecer 0 assunt. Outras continuam fortalecendo e expandindo o movimento, sua dolorosa sensbiidade em relacio & opresséo da mu Ther existe com um tinico propésito: eliminé-la Finalmente Contuis, antes que possamos asi para mudar a si- tuasio, precisamos saber como ela suraiv evoluiv,e atra- vvés de que insttuigdes ela opera hoje. Citando Engels: “[Devemos] examinar a sucesséo dos fatos, a partir dos qusis 0 antagonismo brotou, de modo a descobrir. nas condigdes assim eriadas, os meios de pér fim 0 conflito.” Para a revolucio feminista, precisamos de-uma anélise da dindmica da guerra dos sexos tio completa quanto ara a revolugdo econémica foi a andlise de Marx © Engels sobre 0 antagonismo das classes. Mais complete 2inda, Porque Tidamos com um problema mais amplo; com uma ‘opressio que remonia além da histéria eseria, até © proprio reino animal. ‘Ao criat esta andlise, podemos recorter ltico de Marx e Engels, mas nfo a suas opi as mulheres — eles néo sabiam quase nada sobre a con- digdo das mulheres enquanto classe oprimida, reconhe- cendo-a somente quando isso’ coincidia'com aeconomia, 12 Marx e Engels superaram seus precursores socialis- tas, porque desenvolveram um método de anélise 20 mes- mo tempo dialética © materialista. Os primeiros a com- preender a Hist6ria disleticamente, viram 0 mundo como lum processo, como um fluxo natural de acio ¢ reacio, de elementos opostos, porém insepardveis © interpene- trantes. Por terem sido capazes de perceber a Historia mais como um filme do que como fotos instantineas, tentaram evitar cair na visa0 “metafisica” estagnada, que aprisionou tantas outras grandes mentes. Até mesmo este tipo de andlise pode ser um produto da divisio sexual, ‘como discutiremos no Capitulo 9, Combinaram esta vis ‘so da interago dinimica das forcas hist6ricas com uma visio materialista, ie., tentaram pela primeira vez dar uma base real A mudanga hist6rica e cultural, tragar 0 desenvolvimento das classes econSmicas, a partir de cau- ‘sas orginicas, Compreendendo integralmente os meca- nismos da Histéria, esperavam mostrar ao homem como dominé-la, (s pensadores socialistas anteriores a Marx ¢ Engels, ‘como Fourier, Owen ¢ Bebel, nfo foram capazes de fazer ‘mais do que interpretar moralmente as desigualdades so- ciais existentes, postulando um mundo ideal, onde os pri vilégios de classe e a exploracio nao deveriam existi, sim- pplesmente gragas a boa vontade, do mesmo modo como as primeiras pensadoras feministas postularam um mundo ‘onde o privilégio do homem ea exploragio nfo deveriam cexistir, simplesmente gracas & boa vontade. Em ambos os casos — por nio terem os pensadores primitivos com- preendido realmente como a injustica social tinha evo- Iuido, mantido a si mesma, ou poderia ser eliminada — suas idéias cairam num vazio cultural, ut6pico. Marx ¢ Engels, por outro Indo, tentaram um ‘enfoque cientifico dda Histéria, Trouxeram @ conflito das classes as suas ori {gens econémicas reais, projetando uma solucéo econd- mica, baseada em pré-condicbes econdmnicas j existentes: 1 tomada dos meios de produco pelo proletariado levaria ‘4 um comunismo, onde 0 governo se retrairia, no pre~ cisando mais reprimir a classe baixa em beneficio da classe mais alta, Na sociedade sem classe, os interes: 13 Mas a doutrina do materialismo hist6rico, por mais que tenha representado um avango significative em rela- ho a anilise histériea anterior, nfo f resposta com- pleta, como os fatos posteriores o confirmaram. Porque, apesar de Marx e Engels fundamentarem sua teoria na realidade, era ela apenas uma realidade parcial. Esta é a definigio estritamente econdmica do materialismo hist6- “O materialismo histérico € aquela visio do curso da Historia que busca a causa diltime e a grande energia movel Se todos 0s fatos histéricos no desenvolvimento econdmico da sociedade, nas mudangas dos modos de produgto e troca, na conseqiente divisio da sociedade em classes distintas,e nas Tutas entre essas classes.” (Grifos da autora) Mais adiante, ele afirm: “.-.que toda a histéria do. passado, com excesio dos Agios primitvos, fois histria de Tutas de classes; que estas classes confltantes da sociedade sio sempre os resultados dos, ‘modos de produgio e troca—numa palavra, das condiSes ‘econémicas de sun época; que a estrutura econdmica da socie- ade sempre fornece a base real, exclusivamente a parti da gual podemos formular tanto a’ explicaglo.iltima de toda 4 superestrutura das instituig6es politcas e juridicas, quanto 8 das idéias religiosas,filoséficas e demais idéias de um pe- odo histérico dado.” (Grifos da autora). Seria um erro tentar explicar a opressio das mulhe- Fes, a partir desta interpretacdo estritamente econdmica, A andlise de classes 6 um belo instrumento de trabalho, ‘mas é limitada. Apesar de correta num sentido linear, ela no se aprofunda o suficiente, Hé todo um substrate se- xual da dialética historica que Engels algumas vezes per eebe obscuramente. Mas, por ver a sexualidade somente através de um filtro econdmico, reduzindo tudo a ‘sto, rio € capaz de avalié-la por si mesma. 14 on oe entre o homem ¢ a mulher estabeleceu-se para fins de re- Ee ee Mc rhc xno «io ost ee ees ne Mas Engels deu crédito demais oo reconheci soe oan ete eae aus orto msn crs Vee NUT psn 260, (NT) | 1, A correlagio que cle estabelece aa Orisem da Familia, da Propriedade. Private e do Estado entce 0 inerdesenvolvimesto ‘desees dois sistemas ‘mma escala de tempo deve ser intexpretada ‘como se segue MATRIARCADO 5 PATRIARCADD————> 6 ergo gen I 15 dos preconceitos de Marx com relagfio as mulheres (um reconceito cultural partihado por Freud, bem como Por todos os homens de cultura), perigoso, se tentarmos forgar o feminismo a entrar numa’ estrutura marxista orto- doxa — congelando em dogmas o que eram apenas insights incidentais de Marx ¢ Engels sobre as classes se- xuais. Em vez disso, precisamos ampliar © materialismo hiist6rico para incluir o que é estritamente marxista, do ‘mesmo modo como a fisica da relatividade nfo invalidou a fisica newoniana, apenas tragou um circulo a sua volta, limitando sua apiicagdo — por comparagéo apenas — ‘a uma esfera menor. Pois um diggnéstico econdmico que remonta a propriedade dos meios de produgao, ¢ até dos meios de reproducio, nao explica tudo. Existe um nivel da realidade que no deriva diretamente da economi ‘A suposigio de que, antes de ser econémica, a real dade & psicossexual, 6 geralmente acusada de aist6rica pelos que aceitam uma visio materialista dialética da His- {6ria, porque ela parece nos situar antes do ponto em que ‘Marx comegou: tateando através de um nevoeito de hipé= teses ut6picas, de sistemas filoséficos que podem ser cer tos ou errados (niio hé como dizer), sistemas que expli- cam desenvolvimentos histéricos coneretos por categorias @ priori de pensamento. O materialismo histérico, a0 con- trio, tentou explicar o “conhecer” pelo “ser”, © nao vice-versa, Mas existe uma terceira alternativa ainda nfo ten- tada; podemos desenvolver uma visio materialista da His- ‘ria, baseada no proprio sexo. ‘AS primeiras te6ricas feministas foram, para uma visio materialista do sexo, 0 que Fourier, Bebel e Owen foram para uma visio materilista das classes. De modo eral, a teoria feminista tem sido tio inadequada quanto 8 primciras tentativas feministas de corrigit 0 sexismo. Era de esperar que isso ocorresse. O problema é to vasto que, na primeira tentativa, s6 a superficie poderia set examinada, descrevendo-se ‘apenas as desigualdades ‘mai aritantes. Simone de Beauvoir foi a nica que chegou perto de uma andlise definitiva — que talvez a tenha realizado, Sua penetrante obra O Segmdo ts Sexo — que 16 ‘apareceu recentemente, no inicio da década de cinglenta, ara um mundo convencido de que o feminismo estava ‘morto — pela primeira vez tentou assentar o feminismo fem bases hist6ricas. De todas as tedricas feministas, Simo- ne de Beauvoir & a mais completa e abrangente, ao relacio- nar o feminismo com as melhores idéias da nossa cultura. Pode ser que esta virtude também seja seu tinico defeito. Ela € quase que sofisticada demais, culta de- mais. Onde isto se torna uma deficiéncia — 0 que certa- ‘mente € ainda discutivel — & na sua interpretagio rigida- ‘mente existencialista do feminismo (perguntamo-nos 0 quanto Sartre teve que ver com isso). E fazemos isso em vista do fato de que todos os sistemas culturais, incli- sive existencialismo, sdo eles proprios determinados pelo dualismo sexual. Diz ela: 0 homem nunca pensa sobre si mesmo sem pensar no ‘Outro; ele vé 0 mundo sob o signo da dualidade, que ndo é, em primeira instincia, de cardter sexual. Mas, sendo diferente ‘do homem, que se constrdi como Mesmo, & certamente A ca. tegoria do’ Ontro que a mulher pertenee; © Outro inclu a mulher. (Grifos da autora.) Talvez ela tenha ido Jonge demais. Por que postular como explicagio final 0 conceito bésico hegeliano da alte- ridade, © entio cuidadosamente documentar as. circuns- tncias biol6gicas e histGricas que empurraram a classe das “mulheres” em tal categoria, sem levar em conta uma ossibilidade muito mais simples e mais provével, ou seja, gue © dualismo biésico brotava do proprio sexo? Nao. é Nevessério postular categorias a prior! do pensamento ¢ da existéncia — como alteridade, transcendéncia, imanéncia — nas quais a Histéria passa entio a ser moldada. Marx © Engels descobriram que essas préprias categorias filo- s6ficas originavam-se da Historia, ‘Antes de admit essas categorias, tentemos primeiro desenvolver uma andlise, na qual a propria biologi 8 prociagio — se encontra na base do dualismo. A su- osigio imediata do leigo, de que a divisio desigual dos sexos é “natural”, pode ser bem fundada, Nés ndo pre- cisamos, de imediato, enxergar além disso, Ao contrério, Ww das classes econémicas, as classes sexuais brotaram dire- tamente de uma realidade biol6gica: os homens e as mu- “heres foram criados diferentes, e no igualmente privile- giados. Contudo, como Simone de Beauvoir salientou, essa diferenga propriamente dita nao necessitou do mesmo de- senvolvinento de um sistema de classes — a dominagio de um grupo por outro — de que necessitaram as funcoes reprodutoras dessas diferencas. A familia biol6gica 6 um poder de distribuicio inerentemente desigual. A necess dade do poder que leva ao desenvolvimento de classes ori gina-se da formaco psicossexual de cada individuo, de acordo com este desequilfbrio basico, e nio, como Freud, Norman O, Brown e outros postularam — mais uma vez se excedendo — de um conflito irredutivel da Vida contra a Morte, de Eros versus Ténatos. ‘A janilia bioldgica — a unidade bisica de repto- dugio homem/mulher/crianga, em qualquer forma de ‘arganizago social — se caracteriza por estes fatos, se ‘no imutéveis, pelo menos fundamentais: 1) que as mulheres, através de toda a Hist6ria, ‘antes do advento do controle da natalidade, estavam a ‘mere constante de sua biologia — menstruagio, meno- pausa, © “males femininos”, de continuos partos dolorosos, amamentagio ¢ euidado com as eriancas, todos 0s quais fizeram-nas dependentes dos homens. (seja irmin, pai, ‘marido, amante, ou cla, goverue, comunidade em getal) ara a’ sobrevivéncia fisica. 2) que os filhos do homem exigem um tempo ainda maior para crescer do que os dos animais, sendo portanto indefesos e, pelo menos por um pequeno periodo, de- pendentes dos adultos para a sobrevivéncia fisica. 3) que a interdependéncia bésica mée/filho existiu de alguma forma em todas as sociedades, passadas ou presentes, © consegiientemente moldou a psicologia de toda mulher madura e de toda crianga. 4) que a diferenga natural da reprodugdo entre os sexos levou diretamente A primeira divisio de trabalho aseada no sexo, que esti nas origens de toda divisio posterior em classes econémicas e culturais © possivel- mente se encontra ainda na raiz de todas as castas (dis 18 criminagio buscada no sexo e outras caacterens bio- logicamente determinadas, como a raga, « Wade, ete), Estas contingécisbiligies da fama humane no podem ser entendas como soimasanropotgins, Gua {uer um que observe os animals cnzand,reproduindose e euidando de seus hoes tr ifeuldads'om acer 8 linha da “rltvdade cultura Pores fo imports ants tribos se possum encontrar na Oceania ny quale 2° conexdo. do pst com feria sea desconhecde io importa quentos matiineridos, uantey cues 6 inversio do papel sexual, de homens isgumindo afazret domeéstces, ou de" does do part enpatcasy fate que Provam soment uma cols a surpsendentefexfiidade a natureza humana, Mass natura humana € adapted @ralguma eos, re, determina, sim por suas fond Goes ambient! fama olga sue nds deserve. tos exist em todos os. lates ataves dos tempos, Mesmo not mtriarenos. onde a feridade da ‘mulher éeltuada eo papel do pai é dsconheido ou sem impor tina, embora tales nao o pa geneico, existe sae al gum dependéncia da mulher dn eriange com elas 20 fomem. E,apesar de ser verdade que o nicl familiar & ‘ena um desenvolvimento rece, ® gl, como fee rel mostrar, apenas intense, os canton paicoleicos Gs fama biotin, spesar de ser verdade us: atevea da Histria houve milan varias nesta fafa bilo, st coming gue desc exstiom em ods ce Fando distor pricoseroas espectfias ‘na personal dade humana. as 2 Mas, admiir que o desequlfrio sexual do poder esté baseado biolopcamente nfo signifies perder nossa Cause, Nés no somor mais animals ha mute tempo, © Reino da Netoeza nfo tina absoltamen, Como @ prépria Simone de Beauvoir “A teoria do materiatismo histérico revelow algumes ver- dlades importantes. A humanidade néo é uma espéeie animal, é uma realidade histriea. A sociedade humana é uma anti- physis—no sentido de que ela & contra a natureza; ela nfo se submete passivamente & presenga da natureza, mes antes 19 ‘assume o controle da natureza em seu préprio beneficio. Essa usurpago nfo € uma operacdo interna, subjetiva; ela 6 reali- zada objetivamente na pritica.” Assim, o “natural” no é necessariamente um valor “humaano" A humanidade comecou a superar a natureza. ‘Néo_podemos mais jusifcar a\conservacéo do sistema discriminatério de classes sexuais, sob o pretexto de que se originow na natureza, Parece que, exclusivamente por causas pragmiticas, nos precisamos, na verdade, nos des- fazer dele (ver 0 Capitulo 10). ‘Q_problema se torna politico, exigindo mais do que ‘uma anise hist6rica abrangente, pois nos damos conta de ue, apesar do homem ser cada vez mais capaz de liber- tar-se das condigoes bioldgicas que eriaram a tirania dele sobre as mulheres ¢ eriangas, ele tem poucas razbes para renunciar a essa titania, Como Engels diz, no contexto da revolugio econdmica: “0 que se encontra na base da divisio de classes & a lei da divisio do trabalho.” [Note-se que esta prépria divisio criginou-se de uma divisio biolégica bésiea] “Mas isto nfo impede a classe dominante, uma vez predominando, de con- solidar 0 poder, & custa da classe trabalhadora, de transfor- lideraniga social numa intensificada exploragio. das Apeser de o sistema de classes sexuais ter-se origi nado em condig&es biolégicas bésicas, isto mio garante ‘que, uma vez tendo sido varridas as bases biol6gicas de sua opressio, as mulheres sero livres. Ao contrario, a nova tecnologia, especialmente © controle da fertilidade, pode ser usada’contra elas, para reforcar o sistema de exploracao estabelecido. ‘De modo que, assim como para assegurar a elimina- so das classes econdmicas, € preciso a revolta da classe baixa (o proletariado) e, numa ditadura temporéria, a tomada dos meios de producfo, assim também, le seus préprios compos, bem como do controle femining daLfertidade humana, incluindo tanto @ nova tecnologia quanto todas as instituigdes sociais da nutrigfo da edu- cagio das criancas. E, assim como a meta final da revo- lugo socialista ndo era apenas a eliminacio do privilégio da classe econdmica, mas também da prépria distingdo da classe econdmica, assim também a_meta final da re- volucdo feminista deve ser, ao contrario da meta do pri- tmeiro movimento feminist; nio_apenas-a elimiaago’ JO rivilgio do-homem, mas também da propria dstngdo se xual: as diferencas genitais nfo mais significariam cul- turalmente, (Uma volta a uma pansexualidade livre — a “perversio polimorfa” de Freud — provavelmente substi- tuiria a hetero, a homo ¢ a bissexualidade.) A reprodu- fo da espécie por um sexo em beneficio dos dois seria Substituida pela reproducio artificial (ou pelo menos por ‘uma opgio entre as espécies): a forma do nascimento das criancas seria idéntica para o homem e a mulher, ou eto, encarando-se de um outro ponto de vista, ambos se sentiriam independentes em relaco a0 nascimento: a dependéncia que a crianca tem da me (e vice-versa) da- ria lugar a uma dependéncia muito reduzida de um pe- queno erupo mais genérico, e qualauer vestigio de infe- Fioridade com relacio aos adultos referente as forea fisica seria compensado culturalmente. A divisio do trabalho acabaria junto com a eliminacdo total do trabalho (ciber- nética). A tirania da familia biol6gica seria quebrada. E, com isto, a psicologia do poder. Como Engels ret- vindicou para a revolugio rigorosamente socialist ““A existéncia nio simplesmente dessa ou daquela classe ‘dominante, mas de qualquer classe dominante,terd se tornado lum anacronismo obsoleto.” © fato de o socialismo nunca ter chegado 20 ponto de realizar esse objetivo declarado nio 6 conseqiiéncia de ré-condigdes econdmicas ndo realizadas ou falhas, mas também de que a propria andlise marxista i cla nio pesquisou suficientemente fundo as raizes psicos- sexuais das classes. Marx estava ciente de alguma coisa a profunda do que ele conhecia quando observou que a familia continha dentro de si mesma em miniatura todos 0s antagonismos que mais tarde se desenvolvem em larga escala dentro da sociedade ¢ do estado. Porque, a niio ser que a revolugio transtorne a organizacio social bé- sica € a famflia biol6gica — o germe da exploragéo nunca ser aniquilado, Precisamos de uma revolugio sexual mais ampla do-que sevolugio soeulsia == que incon — ‘para_verdadciramente- erradicar_todos_os sistemas de ON Tentamos conduzir a anilise de classe um passo & frente, na diregio de suas raizes na divisio. biolbgica dos sex0s. Nao dispensamos o$ insights dos sociaistas; 0 contrat, o feminismo radical amplia suas andlises, dando as uma base sinda mais profenda em condgbes obe- fivas, explicando com isso muitas das suas questoes inso= Tiveig Como Tundamento de nossa propria andlise, deve- Ios expandir a definigio do. materilismo histrico de Engels. A seguir a definigdo jé citada amteriormente, rees- crita de modo a inclu a divi bioldgica dos sexos, em Fangio da reprodusio, que se encontra na ordem’ das classes: “0 materialismo histérico é aquela visio do curso da Histéria que busca a causa ditima e a grande energia mével de todos os fatos histricos na dialética do sexo: a divisio dda sociedade em duas clases biol6gicas distinta, em funcio {da procriagho, e as Tutas dessas classes entre si; nas mudan- ‘gas dos modos de casamento, reprodugio e educagio das Criancas; no desenvolvimento anélogo de outras classes [eastas] fisicamente diferenciadas; © na primeira divisio do trabalho hhaseada no sexo, que se desenvolveu no sistema econémico e classes." A seguir, a superestrutura cultural, bem como a econdmica, que nao se reportam apenas as classes. (eco némicas), mas sim a toda a problemética do sexo: “Toda a histéria do passado [observe-se que agora pode ‘mos eliminar “com excegao dos estigios primitives") foi a his- ‘éria de futas de classes. Essas classes conflitantes da socie- 2 dade sio sempre o produto de modos de organizagio da uni- ‘dade da familia bioldgica, em funcio da reprodugio da es- Pécie, bem como dos modos de producio e troca de bens € fervigos estritamente econdmicos. A organizagio sexual Te produtora da sociedade sempre fornece a base real, exch vamente a partir da qual podemos formular a explicagio sl. ima de toda a superestrutura das insituigSes econdmicas, jutidicas e demas idéias de um periodo histérico dado.” E agora a visio de Engels dos resultados da aplicagio de um enfoque materialista Histéria fica mais realista: “A esfera total das condigées de vida que rodeiam 0 hhomem e que até agora o regeram passa para o dominio © 0 controle do homem, que pela primeira vez se toma 0 ver- adeito e consciente Senhor da Naturezs, dono de sua prd- pria organizagio social.” Nos capitulos seguintes analisaremos esta definigio do ‘materialismo histérico, examinando as insttuigBes culturais que mantém ¢ reforcam a familia biol6gica (especialmente sua manifestagio atual, a familia nuclear) seu resultado, a psicologia do poder, um chauvinismo agressive, hoje desenvolvido a ponto de nos destruir. Integraremos isto com uma andlise feminista do freudismo: porque pre- conesito cultural de Freud, tanto quanto o de Marx e Engels, no invalida inteiramente sua percepcio, Na ver- dade, Freud teve insights de valor até maior do que os dos teéricos socialistas, pela construgdo de um novo ma- terialismo dialético, baseado no sexo. Tentaremos, ent, correlacionar o melhor de Engels a Marx (0 enfoque ma terialista histérico) com o melhor de Freud (a compreen- so do interior do homem e da mulher e do que os forma) para chegar a uma solucio ao mesmo tempo politica ¢ ‘Pessoal, baseada contudo em condigées reais. Veremos que Freud observou corretamente a dinimica da psicologia, no seu contexto social imediato, mas, pelo fato da estrutura fundamental desse contexto social ser bésica para toda a humanidade — em diferentes graus — ela aparentava ser ‘nada menos do que uma condicio existencial absoluta, que seria insensato questionar. Ela forgou Freud © muitos 23 de seus seguidores a postular construtos a priori, como 0 Desejo de Morte, para explicar as origens desse impulsos psicol6gicos universas. Isto, por sua vez, tomnou as doen- gas da humanidade irredutiveis e incuriveis — motivo pelo qual a solugdo por ele proposta (a terapia psicana tica), uma contradigéo em termos, foi tio pobre, com- parada com o resto de seu trabalho, e um fracasso tio fetumbante na pritica — levando os que tiham alguma sensibilidade socal e politica a rejitar ndo s6 sua solugko terapéatica, como também suas descobertas mais pro- fundas 24 II. FEMINISMO AMERICANO Na visio radical feminista, 0 novo feminismo nio representa somente o reviver de um movimento politico sétio pela igualdade social. Ele é o segundo fluxo da re- ‘volugao mais importante havida na Histéria. Seu objetivo: 4 derrocada do mais antiquado © mais rigido dos siste- mas de classe/casta ja existentes, o sistema de classes ba- seado no sexo — um sistema consolidado ao Tongo de mihares de anos, que emprestou aos papéis arquetipicos de macho e fémea uma legitimidade imerecida e uma per- ‘manéncia aparente, Nessa perspectiva, o pioneito movi- mento feminista ocidental representou apenas a primeira investida violenta, os ridiculos cingiienta anos que 0 suce- deram representando apenas a primeira contra-ofensiva © infcio de uma longa luta pela libertago das opres- sivas estruturas de poder estabelecidas pela natureza e reforgadas pelo homem. Sob essa Iuz, lancemos um olhar ara/o feminismo americano. 1. © Movimento pelos Direitos Femininos na América Apesar de sempre ter havido mulheres rebeldes na Hist6ria,’ nunca antes tinham existido as condiges que 1. Por exemplo: as feticeras devem ser vistas meramente como tulheres envolvdss numa revolts polidea independente, Durante 25 possibilitariam as mulheres destruir seus papéis opressivos cficazmente, A capacidade de reprodugio da mulher era lima necessidade urgente para a sociedade — e, mesmo {que nio o fosse, ndo se dispunha de meios eficazes de Controle da natalidade, Assim, até a Revolugio Indus- {rial a revolta feminista estava fadada a permanecer no plano pessoal. a ‘A vindoura revolugdo feminista da era tecnolégica foi premunciada pelas idéias e os escritos de mulheres iso- Tadas, membros das elites intelectuais de sua época: na Inglaterra, Mary Wollstonecraft e Mary Shelley; na Amé- rica, Margaret Fuller; na Franca, as Bluestockings.* Mas estas mulheres estavam além de ‘seu tempo. Elas tiveram muita dificuldade em ver suas idéias accitas até por seus préprios circulos avancados, que did pelas massas de ho- ‘mens e mulheres de sua época, que mal tinham absor- vido 0 primeiro choque causado pela Revolucéo Indus- trial, Em meados do século dezenove, contudo, com a in- dustrializagio em plena atividade, um movimento femi- nista maduro estava em andamento. Sempre forte nos EUA — onde tinha se fundado pouco antes da Revo- lugdo Industrial, e conseqientemente sua hist6ria ou tra- digdo eram comparativamente pequena — o feminismo foi aticado pela luta abolicionista e pelos ideais latentes da propria Revolugio Americana. (A declaraglo proferida ‘na primeira convengao nacional pelos direitos das mulhe- tes, realizada em Seneca Falls no ano de 1848, foi mol- dada na Declaragio da Independéncia.) ( primitive Movimento pelos Direitos das Mutheres ‘Americanas? foi radical. No século dezenove, o fato de as ‘mulheres atacarem a Familia, a Tgreja (ver Woman's Bible, de Elizabeth Cady Stanton), e 0 Estado (lei) represen- ois séculos indmeras mulheres foram queimadas em fonueiras pela Igreia — pols a religfo era a politica daquele petiodo. + xpress cologuat para se refer is mulheres intlectais, (NT) 12, American Woman's Rights Movement, dagui em diante abre- indo por W.R-M. 26 tava para elas atacar os préprios fundamentos da socie- dade vtoriana na qual elas viviam — o equivalente a ata car as prOprias,distingbes sexuais em nossa época, Os fundamentos teéricos do primitivo W.RM. se originaram nas idéias mais radicais da época, sobretudo as dos aboli- Soke Gra prepaar elanga para vide tla loge gue ne Seca bate acral qe cat, tegen ee Seid como um sao, ou Gomo'am Shea a Persecva ala, Log gue ponte «ciate ara Se frada na comunidad, e todo of nich Nia Brinueds, jams, ou Toupas specs, nom alas pane Indes 56 pan congas Oe ope erm oid ffupes de todas at aise’ Avetnses pancho aa fesividads da comunkade ada Ss Case Car ss Ibidades epesiinnds) conteam 9 aprendino Fara em guer ue env misresudo, quaigus ase fone isan ode"O sistema de aprendidd att abate fas Dar tenga pte oa pois do séulo XIV, om 0 desenvolvimento da ‘burguesia e da ciéncia empirica, essa situa jouer avevoliefentanente, Oconto de inne densa ‘esse como um aceso da famila mote, Earn Siled ‘om vostro poss dexrevet or Caio es inna (pox, o fants fe bob, um cote aus lng fot ead ‘eapeimete pate digas Se cate O"Satantie” tomowse mods rants 0 se SO 93 (Desde entio, ele se expandiu numa arte e num modo de vida, Existem todos os tipos de requintes modernos ‘nessa linguagem infantilesca. Algumas pessoas nunca pas- sam sem ela, e & usada especialmente com as namora- das, que sio tratadas como criangas crescidas.) Os brin- {quedos para crianga no apareceram antes de 1600, ¢ ‘mesmo essa época nio eram usados além da idade de ‘rés ou quatro anos. Os primeiros bringuedos eram ape~ ‘nas réplicas, do tamanho das criangas, dos objetos dos adultos: 0 cavalinho-de-pau substituiu 0 cavalo real que fa erianga era muito pequena para montar. Mas, ao fim do séeulo XVI, encontramos a introdugio de jogos e3- peciais para eriangas. (Na verdade, eles significavam ape- hnas uma divisio: certos jogos, anteriormente partilhados por criangas © adultos, foram cedidos pelos adultos as fiangas e a classe baixa, enguanto que outros jogos fo- ram acolhidos, a partir de entio pelos adultos, para seu 1us0 exclusivo, tornando-se o$ “jogos de saléo” dos adul- tos das classes altas.) ‘Assim, durante o século XVII, a infaincia, como lum conceit novo © da moda, estava “por dentro”. Ariés ‘mostra como a iconografia também reflete a mudanca, ppor exemplo, com 0 crescimento gradativo das glorific das pinturas'da relacio mie/filho, como O Infante nos Bragos de Maria, ou, mais tarde, nos séculos XV e XVI, com as pinturas de interiores e de cenas de familia, in luindo até retratos individualizados de criangas, © da parafernilia da infincia. Rousseau, entre outros, desen- volveu uma ideologia da “infincia”. Grande importincia foi conferida & pureza e A “inocEncia” das criangas. AS pessoas comegaram a se preocupar com a exposigao das criangas ao vicio, O “respeito” pelas criangas, assim como pelas mulheres, desconhecido antes do século XVI, quando elas eram ainda parte da sociedade em geral, tornou-se necessério, agora que elas formavam um grupo ‘oprimido bem definido, Seu isolamento © segregacio ti- ‘nham-se instalado. A ‘nova familia burguesa, centrada ‘na crianga, impOs uma supervisio constante sobre ela; toda a independéncia anterior foi abolida. 94. O significado dessas mudancas 6 itutrado pela his- téria da indumeotésia das eriangas, A roupa era um modo de simbotizar a classe‘e a prosperidade socal ¢ continua sendo, sobretudo para as mulheres. O temor Bie hoje existente, sobretado na Europa, de’ qualquer propredade ‘n0'vestr deve-e, emt primeio ugat, 2 limpropriedads de “disolvr as classes soiis™, Ey ‘os tempos em que as roupas eram caras © 4 produsio em série desconhecda, essa fongao do vestr era nda maior, Pelo fato de os tajes desereverom to vivdamente. as diapardades de sexo e classe, a histéia da moda para criangas nos fornece chaves valiosas sobre’ o que etava scontecendo com ss Os primeros tras especiis para criangas aperece- ram no fim do século XVE, data importante na forme #0 do conesto de infénca, Incalmente, os trajes de Gslangas eram modelados de acordo com os tees a 05 dos adultos, 8 mancira da clase bain que também ‘esti as roupas twadas da arstocracin, Tats realsmos imbolizavam a. crecentoexclisto das_criangas ¢-o Proletriado da vide publica contemportnca, Ants. da Revolugéo. Francesa, quando foram intodusides eal especiis de marinhivo, que mais tarde passaram adi fetenciar a clase baixa,encontramos a misma indumen- tira difundida ene meninos das classes. altas Tso 6 importante, porque lusra bem nitdamente que as erin gas da clase ata constitufam uma clase baixa, dent dessa classe, Essa difeenciag@o. do vestuitio funciona Para intensificar a sepregagio e deixa‘laro gue a cise tingSes de clase fo também corroboradas per um cos. tume dos séculos XVII e XVII, inexpicgel em outres cireustincas: deveriam ser usadas dus fitas Lrg, pelo ‘enino © pela ‘mening, presas A roupa, sobre” cada combro, ¢ estendidas até at costs. Essts fits aparen: temente no tnham outra fungao seo serie de ind cagdes de indumentiia da infncia ‘A roupa do menino, mais do que as outas,revela a conexio do sexo ¢ da infincia com a classe econdmi, ca, Um garoto passava aproximadamente por trés esté- 95 ‘sios. O menino passava das tiras-de-pano* para vestes femininas; mais ov menos na ade de cinco anos mix lava para uma roupa com alguns elementos da rou do homem adult, ek, 0 earn; e, tnament, mais velho, passava a usar todos os emblemas militares. ‘A roupa vestida pelo menino mais velho, na época de Las XVI, era, ao mesmo tempo, antiquada (gola da Renascenca), da classe baixa (calgas de marinheiro), © masculamente militar (jaqueta e botdes). O vestuério tornou-se uma outra forma de iniciagio @ masculinidade, com a crianga, em termos modemos, comegando a avan- sar na diregéo das “calgas compridas”. Esses estigios de iniciagio & masculinidade, refle- tidos na histéria da indumentéria infantil, esto clara- ‘mente ligados ao Complexo de Edipo, como eu 0 expus tno capitulo anterior. Os meninos comecavam a vida na classe baixa das mulheres, Vestidos como mulheres, nao se distinguiam absolutamente das meninas. Ambos, nesse ‘momento, se identificavam com a mie, a fémea; ambos brincavam de boneca. Aproximadamente na idade de cinco anos, sio feitas tentativas para afastar o menino dda. mie, para encorajé-o, lentamente, passo_a passo, tar o pai, p. ex., com a gola mascutina. Esse € 0 pe~ do transit6rio do Complexo de Edipo. Finalmente, 0 menino é recompensado por libertar-se do feminino, e por transferie suas identifi através de ‘um traje especial “adulto”, seus emblemas militares cons- tituem uma promessa do futuro e pleno poder masculino adulto, ‘Que dizer dos trajes das meninas? Eis um fato sur- preendente: 0 conceito de infancia néo se aplicava as ‘mulheres. A menina passava das tiras-de-pano para 0 vestido feminino adulto. Ela néo ia a escola, que, como veremos, era a insttuisio que estruturava a infancia. Na ‘dade de nove a dez anos, agia, iteralmente, como uma “mocinha”; sua atividade nao diferia da das mulheres adultas. Logo que atingia a puberdade, aos dez ou doze + Usados para enrolar os bebis. (NT) 96 anos, ela se casava com um homem muito mais vetho do que ela. O sistema de classes, na base do conecito de cia, fice exposio: as meninas ¢ 0s meninos da. classe roletaria, ambos, nao tinham que ser discriminados por Tadumentdcias cafacteristicas, pois em seus papéis adul- tos eles seriam subservientes aos homens da. classe alta; info era necesséria nenhuma iniciagio & Tiberdade. As ‘meninas nio tinham razo para passar por mudangas de itajes, quando nfo havia nada em diregio a que elas rescerem, As mulheres adultas estavam ainda noma clas- fe baixa, em relagio aos homens. As ctiangas da classe operdria, e isso mesmo até & época atual, eram livres de Ses de indumentiia, pois seus modelos adultos também eram “eriangas” em relagio & classe dominante Embora o: meninos das classes média ¢ alta. comparti- Thassem temporariamente do siatus das mulheres © da classe operitia, gradativamente emergiam dessas classes submissas; as mulheres © os meninos da classe baixa per- maneciam ai, Néo € tampouco por coinciéncia que a efeminizagéo das roupas dos meninos foi abotida na mes- mma época em que as feministas excitaram a opinifo pi- blica, no sentido de acabar com as roupas opressivas das mulheres, Ambos os estilos de indumentéria estavam in- teiramente ligados & submissio das classes e 2 inferiori- dade dos papéis femininos. O pequeno Lord Fauntleroy foi-se junto com as anéguas. (Entretanto, meu préprio pai se lembra do seu primeiro dia de calgas compridas f até hoje, em alguns paises curopeus, esses costumes de Iniciagdo no vest ainda séo praticados.) odemos também compreender a base de classes do conceito emergente de infincia no sistema de educaglo aque o acompanhou, Se a infincia fosse apenas um con- Gcito abstrato, entéo a escola moderna seria a institu Gio encarregada de estabelecéla na_realidade. Novos Conceitos sobre o cielo vital se organizam, em nossa so- tiedade, em tomo de instituigdes; p. ex, a adolescéncia, ‘uma construcio do século XX, foi estabelecida para fa cilitar o reerutamento para o servigo militar.) A educa- ‘fo da escola modema foi, na verdade, a artculagio do 7 ‘novo conceito de infaincia. O ensino foi redefinido. Nao sendo mais confiado ao clero e aos letrados, ele se am- ppliou largamente, para tomar-se 0 instrumento normal de iniciagao social — na evolugdo da inffincia até a maio- ridade mascutina. (Aqueles aos quais a verdadeira ma- turidade nunca era solictada, p.ex., as mogas e rapazes da classe operdria, ndo freqllentaram a escola durante varios s6culos.*) Contrariamente & opiniao popular, o desenvolvimento da escola moderna teve pouca conexio com a cultura tradicional da Idade Média, bem como com o desenvolvi- ‘mento das artes liberais e das humanidades na Renascenga. (De fato, os humanistas da Renascenca foram notados pela incluséo, em suas fileiras, de muitas criangas precoces € ‘mulheres doutas; deram’énfase ao desenvolvimento do individuo, qualquer que fosse a sua idade ou sexo.) Se- gundo Ariés, os historiadores da literatura exageram a importincia ‘da tradigio humanista na estruturagio de rnossas escolas. Os verdadeiros criadores e inovadores fo- am os moralistas e pedagogos do século XVII, os jesu- tas, os oratorianos e os jansenistas, Esses homens estive- ram & frente da ctiacdo de ambos 0s conceitos de infancia © sua institucionalizagao, e do conceito moderno de edu- 2._ Vestsios destes costumes permanecem até em nossos_pré- piios dak. Os earotos de classe operiria tendem ase tornar’co- Inerciantes, mecinicos, ou equivalentes modernos disso, em. Yer ‘de so eovolverem num boollarnin, pars eles indi 180 6 um Femanecons de pose em que a8 cians da cae fegulam um sstema de aprendizado, ao. passo que a8 etianvas 4a classe média tinham comegado a frelentar a escola moderna (Mo € por acato tampouco que tantor grandes artistas da, Ree sascenga. foram garotes da classe balsa, treinados nas. offcinas dos “mestres":) Podemos também encontrar remanescentes dss histria no. nosso.exéreito.atual, onde. estfo. concentrados os fextremos ‘da ‘sociedade de classe, Deum Indo, jovens Pistas" da classe opera, edo outro, oficiais ‘da. classe ala, cadetes militares da arstocacia “pols a arstocacia. tanto ‘Quanto o'proletariado tardaram em adolat estrturn. fami 20 ensino pabiico da burguesa * Pronincin da clase baiza para psleea Bookearin, que sgiticn Stor lass CE) oe 98 cago, Foram os primeiros patronos da fragilidade e da “Sinocéncia” da infancia; colocaram a infan tal, do mesmo modo como a feminilidade tinh ‘num pedestal; pregaram a segregacdo das criancas do ‘mundo adulto. A “disciplina” era a linha mestra da edu- casio moderna, afinal muito mais importante do que a comunicagtio do saber ou da informagdo. Pois, para eles, a disciplina era um instrumento de’ progresso moral € espiritual, adequada menos por sua eficiéncia em ditigit grupos grandes no trabalho em comum do que por seu valor intrinseco moral ¢ ascético. ‘Assim, a fungdo da escola tomou-se a “educagio das ctiancas”, acrescida da disciplinadora “psicologia. infan- iI", Arids cita Regulations for Boarders at Port-Royal, ‘um precursor de nossos manuais de treinamento para pro- fessores: “Deve ser mantida uma vigilineia cerrada sobre as crian- fas, € elas nunca devem ser deixadas sozinhas em lugar ne- ‘Shum, eneontrem-se mau ou bem de sade ... essa supervisio constante deveri ser exercida imperceptiveimente e com uma certa confanga calewada para fazé-las pensar que n6s as ama ‘mos, e que estamos com elas somente para desfrutar de sua companhia. Isso as faré amar sua superviséo, em vez de te- ‘mé-la.” (Grifo da autora) Essa passagem, escrita em 1612, j4 manifesta o tom afetado da moderna psicologia infantil, e a distancia pe- culiar entre adultos e criangas, naquela época esbocada, ‘mas hoje completamente inconsciente. A nova educacio segregava, efetivamente, as crian- as do mundo adulto, por periodos de tempo cada vez maiores. Mas essa segregagdo da crianca do mundo adulto —€ 0 severo processo de iniciagdo exigia que se efetuasse 2 transigio para a vida adulta — indicava um desrespeito crescente, uma subestimacao sistemética das capacidades da erianga, A precocidade, to comum na Tdade Média, ¢ ainda durante algum tempo depois, reduziu-se quase a zero 99 em nossa época." Hoje, por exemplo, a proeza de Mozart, de ser uma crianga compositora, € quase inacreditével. Na sua propria época, ele nio era tio fora do comum. “Maitas ctiangas tocavam e compunham misica seriamente nessa época, e também se envolviam em muitas outras atividades “adultas”. Nossas aulas de piano de hoje no so de modo algum compardveis aquelas. Na verdade, slo apenas indicagoes da opressio infantil — do mesmo modo como os tradicionais“dotes femininos”, como 0 bor- dado, eram atividades superticiais — dizendo-nos apenas da submissio da crianga a0s caprichos dos adultos. E ¢ sig- nilficativo 0 fato de que esses “talentos” sejam em geral mais cultivados nas meninas do que nos meninos; quando 0s meninos estudam piano, na maioria das vezes, 6 por- ‘que so excepcionalmente dotados, ou porque seus pais so apreciadores de misi Ariés cita Heroard, em Journal sur L’Enjance et La Jeunesse de Louis XII, 0 relato detalhado dos anos de infineia do Delfim, esctito por seu médico. Conta como © Delfim tocava violino e cantava na idade de dezessete ‘meses. Contudo, 0 Delfim no era um génio, mais tarde comprovando néo ser, certamente, mais inteligente do que qualquer membro da aristocracia, E tocar violino néo era tudo 0 que ele fazia, O registro da vida infantil do Del- fim, nascido em 1601 — de inteligéncia média apenas — imostra-nos como subestimamos a capacidade das crian- ss, Descobrimos que, na mesma idade em que. tocava Violino também jogava mall, o equivalente do golte para 0s adultos daquela época, bem como tenis; jogava jogos de estratégia militar. Respectivamente aos trés ¢ quatro anos, aprendeu a ler ¢ a escrever. Aos cinco e seis, embora ainda brincasse com bonecas (!), praticava arco'e flecha, jogava cartas e xadrez (aos seis anos) com os adultos, ¢€ jogava muitos outros jogos adultos. Logo que comegou a falar, juntava-se como um igual aos adultos, em todas 3._ No meio judeu ortodoxo, no qual eu cress, considerado an- ‘r6alc0 pelas pessoas’ de fore, muitos meninos ainda ioiciam Um fstudo sir antes dos cinco’ anos de Wade, e-em coneequéncia ‘so comuns os prodigios talmiiicos, 100 1s suas atividades (tais como eram), dangando profissio- nnalmente, atuando € participando em todas as diversoes. ‘Aos sete anos o Delfim comegou a usar roupas de homens. adultos, as bonecas Ihe foram tiradas, e iniciou-se sua edu- cago, sob a orientacio de tutores homens; comegou a ca~ sar, a andar a cavalo, a atirar ¢ a jogar. Mas Arits diz: “Devemos ter cuidado para niio exagerar {a importincia de seus sete anos). Apesar de ter parado de tocar, ou de ter parado de brinear com suas bonecas, 0 Delfim continuou le- vvando a mesma vida de antes... Antes dos sete anos, bonccas © bringuedos alemies; depois dos sete, cacadas, equitagio, esgrima e possivelmente teatro; a mudanca foi quase imper- ceptivel nessa longa sucessio de passatempos que a crianga ccompartilhow com os adultos.” © que me parece mais evidente nessa descrigéo é que antes do advento da familia nuclear e da edvcagso moderna, a infincia era o minimo possivel distinta da vida aduita, A erianga aprendia diretamente com os adul- tos ao seu redor, emergindo, logo que fosse capaz, na sociedade adults. Cerca dos sete anos, havia alguma dife- io de papéis sexuais — isto tinha que comeyar nalgum momento, dado o patriarcado em vigor, mas ainda nio era complicado pela posigio das eriancas’como uma classe. inferior. Até entéo, hevia uma distingéo. apenas entre homens e mulheres, © ainda nao entre criangas © adultos. Num outro século, esta situagio comegou a mu- dar, assim como a opressio das mulheres e das exiangas se catrelagou cada vez mas. Sumariando, com o inicio da familia nuclear, cen- trada na crianga, tomou-se necessiria uma instituigo para estruturar a’ “infancia’, que mantivesse as criangas Sob a jurisdigdo dos pais, tanto quanto fosse possivel ‘As escolas se multiplicaram, substtuindo a erudigho © 0 aprendizado prético por uma educagio teorética, cuja fangdo era “disciplinar” as criangas, em ver de comunt- car 0 saber, para o proprio beneficio delas. Desse modo, rio é surpreendente que a educagdo modema retarde 0 desenvolvimento, em vez de accleré-lo, Ao afasta as erian- ‘gas do mundo adulto — os adultos, no fim das contas, so 101 meramente eviangas em tamanho maior, com uma expe- rigncia do mundo —e ao submetélas’arificialmente a uma proporcdo na qual cada adulto vale por vinte crian- 88, Como poderia ter sido diferente'o resultado final de tim nivelamento do grupo a uma inteligincia mediana (mediocre)? Como se iso nio bastasse, depois do século XVIIT howve uma rigida sepacagio e esting de idades (series escolares"). As criangas no eram mais capazes de aprender nem com eciangas mais vehas e mais infor- ‘madas. Estavam limitadas, na maior parte de suas horas ativas,a1um grupo bem defnido da mesma idade,*e,além disso, a um eurrieulo dado "de bandeja". Essa graduasio rigida aumentou o nimero de niveis necessérios para & iniciagto na vida adults, e tornou difiell para uma erianga disigit sus prOprios passos. Sua motivagio para 0 estudo passou a se caracterizar por set disgida para fora, © por {ima consciéncia de aprovagio, assasinas certeiras da Ori= ginalidade, As eriangas, anteriormente visas simplesmente Como pessoas mais novas — do mesmo modo como hoje vemos um fedelho meio crescido em termos de sia ma Turidade futura — agora exam uma classe bem defini, com suas proprias dvises intemas, incenivando & com: petiglo: “0 garoto mais alto do quarteitéo", “0 garoto Inaisinttigente da escola", ete. AS criangas das a pensar em termos hierérquicos, todos avaliados pelo supremo "Quando eu crecer. ..” Assim, 0 crescimento da escola refletia 0 mundo exterior, que estava se tornando cada vez mais segregado, de acordo com a idade ea classe da. pessoa. Concluindo: © desenvolvimento da familia modema significou o desdobramento de uma sociedade ampla e in- tegrada em unidades pequenas, centradas em si mesmas. 4. Into 6 levado a extremos nas escolaspiblices contemport- Deas, onde iangas perfetamente.preparadas par 0 ensino slo Fecusadas durante um ano inte porgue sua dala de nase ‘mento ett Uns pouvos dias antes de uma data arbirira, 102 Dentro. dessas unidades conjugais, a erianga tomou-se entio importante, pois ela era 0 produto dessa unidade, a razao de sua subsisténcia. Tornou-se conveniente man- télas em casa durante © méximo de tempo possivel, ¢ amarré-las psicol6gica, finaneeira e emocionalmente) & tunidade familiar até 0” tempo em que estivessem prontas para eriar uma nova unidade familiar. Para esse propésito ctiada a Era da Infancia. Mais tarde, foram acres- centadas extens6es, como a adolescéncia, ou, em termos americans do séeulo XX, 08 teenagers, a “juventude uni- Verstétia, 0s “adultos jovens”. O conceto de infincia prescrevia’ que as criangas eram uma espécie diferente 4a dos adultos ndo apenas na idade, mas também nas suas caracteristicas. Uma ideologia foi desenvolvida para provar isso: foram escritos tratados fantasiosos sobre a {noeéncia das criangas e sua proximidade de Deus (* hos"), conseqilentemente levando a erenga de que eram assexuadas, sendo a atividade sexual infantil vista como ‘uma aberracio — tudo em contraste violento com 0 pe- iodo precedente, quando as eriangas eram expostas 30s fatos da vida, desde o inicio. Pois qualquer admissao da sexualidade infantil teria acelerado a transi¢ao para a vida adulta, e isso, na época, tinha que ser retardado a todo custo, © desenvolvimento de roupas especiis cedo ext- gerou as diferengasfiscas entre as criangas © 0s adults, f-aN6 entre estas ¢ as criangas mais velhas. As criangas no jogavam mais os mesmos jogos dos adultos, nem ps ticipavam de. suas festividedes (hoje, normalmente as ctiangas nfo. freqlientam jantares elegantes), mas. Thes fram consagrados jogos especiais e arteatos préprios (oringuedos).O edntar hstérias, antigamente uma arte comunitéria, foi relegado as criancas, levando, em nossa propria época, & eriagao de uma literatura infantil espe- effi, Os adultos falavam com as criangas numa lingua- gem especial, e nunca se langavam numa conversa séria 5. Ver Arts, op. lt, Capitulo V, “From Immodesty to Tano- ‘ence’, para uma descrigo detahida desta exposigio, baseada fas experincias “sexuais do Delfim, como esti registrado no HeroardTownal. 103 na presenga delas (“Nao na frente das ctiangas!"). Os “'oneshbitos” de shjigdo eram insitfdos em casa (*As eriangas deveriam set vistas e nfo ouvidas”) Mas nada disso teria atuado 0 sentido de fazer efeivamente das erianeas uma claste oprimida, se una insiuiglo especial no tvese sido criada para dar conta do recado comple- tamente: a escola moderna, ’A ideologia da escola cra a ideologia da infnci la funcionava a patir do pressuposto de que as erangas preciavam de “dsciplingy de que eram seres especias, que tinham de ser tratados de um modo especial (psico- Togia infant, edueagdo infant, ete), © que, para faci ar iss, elas deveiam ser enctrraladas num lugar espe- al com seus semelhants, e som umn grupo de dade 0 ‘mais que ponivelrestrto& sua propria idade, A escola fl 2 instiuigdo que estruturou a infdncia, segrezando eft ‘amente as erangas do revi socedade, eesti retar dando. sen desenvolvimento para a. maturidade seu ‘desenvolvimento de hablidads.especilizada, das quais a sociedade precsava, Em conseglencia, elas permane- Ceram economicamente dependents por fesiodos de tem po cada ver maiores Deste modo, os Iagos fans pet Ianeceram intactos CChamei a alengSo para o fato de que existe uma relagio’profunda entre as hierarguias da familia. eas Glastes ccondmicas, Engels observou que, dentro da fa- mila, o-marido € o bargoés, ©1a mufher © a5 clangas Soo proletaiad, Forain observadas smilaidades entre as clang efoda a classe opertia ou outros grupos opr tio, fits estados para mostrar que sls compertivam da mesma psicologia. Vimos como o desenvolvimento das roupas_proletrias foi paralsio. 10” das roupas. infantis, Como os jogos deixados pelos adults da clase alta foram fogsdor pelas criangas © pelos “eaipiras™. Dizi. de fmbor que gostavam de trabalhar “com as mos”, con trariamente fs allascerebragSes do homem adult, abate 60s acima deles. Foishes lembrado ambos que tinharn a sorte de serem poupados das preocupagées da responsa- bildade adulta—e ambos 0 desclavam de qualquer jello. As felagbes com a classe dominante, em ambos os 104 ‘casos, tinham um qué de medo, de suspeita, disfargados sob uma leve capa de sedugio'(o adorivel balbucio, 0 irar-de-olhos, ¢ o pisa-mansinho). mito da infancia encontra um paralelo ainda maior no mito da feminilidade. Tanto as mulheres quanto as criancas foram consideradas assexuadas ¢, portanto, “mais puras” do que o homem, Seu status inferior fol ‘mal disfarcado sob um certo “respeito” requintado. Nao se discutiam assuntos sérios, nem se faziam injérias na frente das mulheres e das criangas. Elas eram rebaixadas ‘abertamente; isto era feito 3s suas costas. (Quanto a0 double standard,* relativo aos xingamentos: Um homem pode xingar 0 mundo, porque cabe a cle xingar — mas ‘© mesmo xingamento na boca de uma mulher ou de um ‘menor, ie. um “homem” incompleto a quem 0 mundo ainda ‘flo ‘pertence, € considerado presuncoso, e, conse Gqlientemente, uma impropriedade, ou pior.) Ambas fo- ram discriminadas com roupas ornamentadas ¢ nio-fun- cionais, e Ihes foram atribuidas tarefas especiais (respec- tivamente, 0 servigo doméstico eo dever escolar). Ambas foram consideradas mentalmente deficientes (“O que voc’ pode esperar de uma mulher?” “Ele € muito pequeno para entender!”). O pedestal de adoracZo no qual ambas foram colocadas tomou dificil para que respirassem. Cada interagdo com 0 mundo adulto tormou-se para as crian- gas um dangar conforme a misica. Aprenderam a usar de sua infancia para obter o que queriam indiretamente (“Ela festé tendo um outro acesso de raival”), assim como as mulheres aprenderam a usar de sua feminilidade (“L& vem ela, chorando de novo!”). Todas as incursGes no mundo adulto tornaram-se terriveis expedigOes pela so- brevivéncia. A diferenga entre 0 comportamento natural das criangas, dentro de seu grupo, © seu comportamento afetado ¢/ou timido diante dos ‘adultos confirma isso. ‘Analogamente, as mulheres agem de um modo diferente entre si, do que diante dos homens. Em cada caso, uma diferenga fisica foi ampliada culturalmente, com a ajuda + Ver NAT. A plian 260, (NT) 105 y 0 a 9 < de trex espe, educa, Mbios e avidades, aque cas Pipe nee etal souogen opera ae Stree aeamo star, um proce de ergo que perme ume esreotpecio Hal, ©. invites paces Frnimente eum espe derete doen oman, com seu proprio conjunto de leis ¢ comportamentos pe- State, (ie rek omeemied eh eee: yond ass enna ade ae eg ina ‘A pa contemporincn te eve cade apna. As cana aio Stanhope" as fre ao hamades “gaia, “rbot, rece an tS Gatcutcopa aa €' acess fees eer oma emo core Tits tor homer open, nando ne dane god carter garnhtoy Tbe) gave, vendor marae Sect da dade mut marae epetnete Com ona conoayo stu pecs, Peale open fe clan da moteres e das crane et ead a facies do "ongasadisbor Simo mai fel lato que tevear © ope: pate cia posefespontes eueacs tigre Mole eaetnarnea'cu quanto spam’ ean feels bate ieee de tas eos iar fla do Bee? Qu mule em peo de aa quando um se: SIRT grea Ts a ee ee cone to B finda hojet” com “Estaria melhor se no 0 vissel”, ele ‘ftosnardé: “O que mordeu essa puta hoje?”, ou pior. Fre- r 8 = mente nnfo_sorriem_em_resposta, como deveriam.. “Mulher de merda! Eu nio te foderia, nem se voce se eigragasse pro ‘meu lado!” ... Ou: “Pirralhinho nojento! Se eu fosse seu pai, eu te surrava até vocé ficar roxo!”. jo surpreendente, Contudo, esses homens acham que a_mu- Iher e a erianga devem ser censuradas por nao serem “cor- " Porque & incémodo para eles saber que a mulher, ‘ou a érianea, ou o negro, ou o operdrio resmungam} os ‘grupos oprimidos devem também aparentar gostar de sua ‘opressio — sorrindo, sem graca, embora sintam um infer- 106 no por dentro, © sorriso é 0 equivalente a0 pisa-man- sinho da crianga/muther; ele indica a aquiescéncia da vitima ao seu proprio opressor. (Em meu proprio caso, tive que treinar para me libertar desse sorriso hip6crita, ‘que € como um tique nervoso em toda adolescente. E isso ‘quer dizer que eu sorria raramente, pois, na verdade, eu tinha muito menos razSes para sorrir. Minha Iuta “ut6- pica” pelo movimento de libertacio das mulheres: uma ‘campanha de boicote ao sorriso, & qual todas as mulheres indonando seus sortsos monte exaltaria uma sotedade, na qual 0 cariho em orl sera mals desaprovado; em geral, as tiieas d= Rronsrages. deaf. que wma cringe rectbe hoje sto tsar demonsragbesfingidas, que ela pode sinda co Gerar methor dovque nada.]) Moitos homens nfo. conse fem compeeder query stim fens 280 wo ‘int como um privépio. Serd-que les i pensaram que 2 pessoa real por ts daguele animal neném ou mult fee ptr ao se azariad, ¢ eM Mes 2 Eis saguele momento? tmaginen « propria conser ‘Seng Rata, se sla estanho se aproximasse ele fun, de um modo semethant, acompanhando ses pasts, Sussorrandofatando como trian, sem respeito Por Mua fissfo, ou sua “masculinidade”. Em sumas ao or membrot de classe opettia © dos srypos minortios sagem como enangas”, € porgue a= Entangas de todas as clases odo uma clase balay ss como as mulheres sempre o foram, A ascendo da familia fuclear moderna, com sev scesbrio a “inflnci” etre 0s lagosette os grupos ainda economicamente depen enter, estendendo e fetorando o que tna sido apenas tia breve dependénci, staves Gos meios habitus © desenvolvimento. de uma. ideoloia.espetfiea, de um silo de vida: proprio, linguagem, roupes, manciriamo, ten E, com samen» o cuagre du depradenci ian: fia escravidao das mulheres 4 matennidade também foi 107 ampliada até seus limites. As mulheres ¢ as eriangas en- contram-se hoje no mesmo barco furado, Suas opressbes comecaram a se reforgar, uma a outra, A’mistica das gl6- rias do parto, da grandeza da cristividade “natural” fe minina, acrescentou-se agora uma nova mistica sobre as lérias da propria infancia e da “criatividade” da educagtio das criancas. (“Pois bem querida, 0 que poderia ser ‘mais criative do que eriar uma crianca?”) Hoje as pes- soas esqueceram o que a Hist6ria tinha provado: que “criar” uma erianca é o equivalente a retardar seu de- senvolvimento. O melhor modo de criar uma erianga é DEIXA-LA EM PAZ. 2. Nossa Epoca: 0 Mito é Exagerado ‘Vimos como a crescente privatizacto da vida familiar trouxe ainda mais opresso aos seus dependentes, as Theres ¢ as erianeas. Os mitos correlacionados da femini- Tidade e da infincia foram os instrumentos dessa opressao.. ‘Na Era Vitoriana eles alcancaram proporgGes tio épicas gue as mulheres finalmente se rebelaram — sua rebelifo afetou perifericamente a infaincia. Mas a rebelifo foi des- truida antes que ela pudesse climinar esses mitos. Eles icaram subterrineos, até reaparecerem numa versio mais sidiosa, complicada pelo consumo de massa. Pois, de fato, nada tinha mudado. No Capitulo 2 descrevi como a emancipacio das mulheres foi sutilmente sabotada. A mesma coisa ocorreu com a opressio coroléria da “in fancia”. ‘A pseudo-emancipacio das criancas equipars-se per- feitamente 4 pseudo-emancipacio das mulheres. Embora tenhamos abolido todos os sinais superficiais de opressio — as roupas diferenciadas © pesadas, a palmatéria do mestre-escola — nfo hé dvida de que o mito da infan- cia prospera em proporgdes épicas, no estilo do século XX, Indistrias completas so construfdas para a fabrica- ‘clo’ de brinquedos. especiais, jogos, alimentacio para frianga, café da manhi infantil, livros © hist6rias em 108 ‘quadrinhos infantis, balas atraentes para as criangas, etc. ‘Analistas de mercado estudam psicologia infantil ‘para ‘descobrit produtos que atraiam as criangas de varias id des, Existe uma propaganda, um cinema e uma indistria de TV construfdos s6 para elas, com sua prépria literatura especial, programas e comerciais, e até conselhos de cen- sura para decidir exatamente quais os produtos cultu- rais adequados ao seu consumo. Hé uma proliferagio in- findavel de livros e revistas instruindo o Ieigo na requin~ tada arte de educar as criancas (Parent's Magazine, do Dr. Spock*). Hé especialistas em_psicologia infantil, em métodos de educagao infantil, pediatras, e todos os ramos especiais de saber que se desenvolveram recentemente para estudar esse animal peculiar. A educagio obrigatéria floresce e hoje est difundida o suficiente para formar ‘uma inevitével rede de socializacéo (lavagem cerebral), dda qual nem os préprios ricos conseguem escapar total~ mente, Passaram os dias de Huckleberry Finn. Hoje, os que fingem ser doentes para escapar ao trabalho, ou que se desligam, tém que gastar todo o tempo para afastar 0 enxame de especialistas que os observam, os programas governamentais em proliferagio, os assistentes-sociais no seu encalgo. ‘Observemos mais de perto a forma modema que essa ideologia da infincia assume. Visualmente, ela € to ro- busta, loura e sorridente, quanto um antincio da Kodak. Come 6 © caso da exploracdo das mulheres como um objeto (ready-made), como uma classe consumidora, exis- tem muitas indGstrias ansiosas por beneficiar-se da vul- nerabilidade fisica das crianeas (p.ex, a Aspirina St. Jo- seph, para eriangas). Mas, ainda mais do que sua satide, a palavra-chave para a compreensfo da inflincia modema é felicidade. S6 se € crianca uma vez na vida. As criangas deve set personificagées vivas da felicidade (as criangas ‘mal-humoradas, ou entediadas, ow criangas-problema sfio ‘amente entipatizadas; elas fazem do mito uma mentira). B dever de todos os pais propiciar aos filhos Do wtnero Pais ¢ Phos baste (N-T.) 109 uma infancia memordvel (balangos, piscinas infléveis, bbrinquedos ¢ jogos, passeios em acampamentos, festas de aniversério, etc.). Essa 6 a Idade de Ouro, que & erian- ga relembrars quando erescer para tornarse um robd como o pai. Assim, todo pai tenta dar ao filho tudo 0 que the faltou naquela que deveria ter sido a mais espléndida fase da prépria vida, O culto da inffincia como Tdade de Ouro é tdo forte que todas as outras épocas da vida sho avalidadas em fungio do grau com que se assemelham a la num culto nacional da juventude. Os “mais velhos” fazem papel de bobo com sua apologética invejosa (“EB claro que eu tenho o dobro da sua idade, meu caro, mas. ..”), Hé uma crenca geral de que o progresso se fez Porque, pelo menos em nossa época, as criancas foram libertas da pesada mfo-de-obra infantil, e de muitas outras cexploragdes tradicionais das geragdes do pasado. De falo, existe ainda a lamentacio invejosa de que as crian- ‘gas esto despertando uma atencio excessiva. Flas sio ‘mimadas. (0 “Quando eu ponde 20 “Este mundo é das mulheres. . © mais importante baluarte desse mito da feticidade a constante e rigida segregacio das criangas do resto da sociedade. O exagero de seus tracos distintivos fez delas, como tinha sido planejado, quase que uma outra raga Nossos parques fornecem a metafora perfeita de nossa so- lade etariamente segregada. Um playground especial para os Tenros Intocéveis, as mies ¢ as eriancinhas (ra- ramente encontramos outras pessoas ali, como se isso fosse um tabu), um estidio de atletismo ou uma piscina ara criangas, um recanto aprazivel para casais jovens e estudantes, © uma area de bancos para as pessoas ido- sas. Essa segregacio etéria continua através de toda a vida de cada individuo moderno, As pessoas passam a ter ‘muito pouco contato com as criangas, logo que tenham ultrapassado a propria infincia. E, mesmo dentro da propria infaincia, existem segregacbes etirias rigidas, de ‘modo que uma crianca mais velha ficaré embaragada por ser vista com uma crianga mais nova. (“D8 0 fora! Por ‘que no brinca com gente da tua idade?") Durante a vida escolar, e em nosso século ela dura muito mais tem- 110 po, uma crianea convive com outras de apenas um ou dois anos de diferenca de idade. As pr6prias escolas refle~ tem essas graduagdes cada vez mais rigidas: pré-priméria, etc., caracterizadas por um sistema complexo de promo- ‘sées e “formaturas”, Ultimamente, sio comuns até for- ‘maturas em escolas maternais e/ou em jardins-de-inffncia. ‘Assim, na época em que uma crianca fica madura para a reprodugao, ela no mantém nenhum contato com (0s que estio fora de seu restrito grupo etério adulto, € certamente nenhum com as criangas. Por causa do culto que a rodeia, ela praticamente no se lembra nem da pPrOpria infancia, chegando até a bloqued-1a completamen- te, Mesmo quando crianca, ela pode ter tentado amoldar- se a0 mito, pensando que’ todas as outras criangas eram mais felizes; mais tarde, j& adolescente, pode ter-se en- ‘tregado a satisfagdes desesperadas, atirando-se a “praze- 33", no espftito do “S6 se é jovem uma vez na vida” — quando, na verdade, a adolescéncia é horrivel de ser atra- vessada, (Mas a verdadeira juventude no tem con: da idade — “a juventude € desperdigada pela prépria ju- ventude” e € caracterizada pela espontaneidade verda- deira, justamente pela auséncia dessa artificialidade. O armazenamento de uma felicidade que se perdeu é uma idgia que s6 0s mais velhos poderiam ter criado.) Uma tal auséneia de contato com a realidade da inféncia arrasta todo adulto jovem para o mesmo tipo de sentimentalismo em tomo das criangas que ele proprio provavelmente desdenhou quando era pequeno. E assim por diante, num circulo vicioso. Os adultos jovens sonham em ter seus proprios filhos, numa tentativa desesperada de preencher © vazio causado pela interrupcio artificial da juventude. Mas isso $6 dura até 0 momento em que eles se envol- ‘yem com problemas de gravidez ¢ fraldas, babés e pro- blemas escolares, predilegées ¢ brigas. Entio, por um curto periodo, so obrigados a compreender que as crian- 28 sfo tio humanas quanto o resto da gente. Assim, falemos sobre o que a infincia realmente 6, fe no sobre o que ela é na mente dos adultos. F claro que 0 mito da felicidade infantil floresce amplamente, ‘ndo porque satisfaca as necessidades das criangas, mas ul Porque satisfaz as necessidades dos adultos. Numa cul- tura de pessoas alienadas, a crenga de que todo mundo tem, pelo menos, um bom perfodo na vida, live de preo- cupagdes e de trabalho, difiilmente morre. E, obviamen- te, no se pode vontar com isso na velhics. Logo, uma pessoa ja deve ter passado por ele. Este é 0 motivo da nuvem ‘de sentimentalismo que eavolve toda discussio sobre a infancia © as eriangas. Todo mundo alimenta al- ‘gum sonho secreto em seu proprio interesse, ‘Assim, a segregagio ainda funciona a todo vapor, para reforcar a opressio das criangas, como uma classe. Em que s¢ constitui essa opressio no século XX? Dependéncia Econdmica e Fisica, A diferenca fisis natural entre as criancas e os adultos — sua maior fragil dade, seu tamanho menor — € reforcada, em vez de set compensada, pela nossa cultura atual. As criangas ainda sfo “menorés” perante a lei, sem direitos civis, uma pro- priedade de um cfrculo de pais arbitrdrios. (Mesmo que hiaja criancas que tenham “bons” pais, existem no mundo tanto pessoas “ruins” quanto “boas”, e € bem mais pro- vivel que as pessoas “ruins” cuidem das criangas.) O niimero de surras e de mortes infantis a cada ano teste- munha que as criancas meramente infelizes tém sorte. Ela poderia ser pior, $6 recentemente os médicos houve- ram por bem denunciar essas ocorréncias de tal modo fas criangas estavam A merc8 de seus pais. Contudo, as ciangas que nao tém pais se encontram ainda em situagio pior (assim como as mulheres solteiras, as mulheres sem 2 protegio de um marido, esto ainda em pior situa- ‘Gio do que as mulheres casidas), Nao ha lugar para elas, a nfo sero crfanato, uma espécie de depésito de ferro velho para os indesejados. Mas a opressio das criangas est enraizada, mais do que tudo, na dependéncia econdmica. Qualquer um que ja tenha ‘observado uma crianga tentando persuadir sua mie a Ihe dar dinheiro, sabe que a dependéncia econd- mica é a base da vergonha da ctianga. (Parentes que 42 Bo dinheiro, em geral, slo mais queridos. Mas assegu- ram-se de que 0 dinheiro seja dado diretamente 2 crian- gal) Embora ela possa ndo estar passando fome (nem isso acontecetia, se as criancas tivessem seu préprio em- rego; as criangas negras, que engraxam sapatos, pedem esmolas, ¢ cultivam varias negociatas, e os garotos brancos da classe operdria que vendem jomnais so invejados em sua vizinhanga), ela é dependente, para a sua sobrevi- véncia, de um apadrinhamento, e isso & um estado ruim experimentar, Essa extrema dependéncia nfo vale o seu sustento, E nessa dea que descobrimos um dos eixos do mito ‘moderno. Expalhou-se que a infincia experimenta gran- de progresso, trazendo-se imediatamente & meméria ima- gens dickensianas da crianga pobre, Iigubre, lutando numa mina de carvio, Contudo, mostramos, na breve his- t6ria da infancia apresentada no inicio do capitulo, que as criangas da classe média e da classe alta nfo trabalha- vam no comego da Era Industrial, e sim ficavam abriga- das, em seguranga, nalgumas escolas magantes, estudando Homero ¢ gramética latina. As criancas da classe baixa, € verdade, nao eram consideradas nem 'um pouco mais pri- vilegiadas’ do que os pais, partilhando as torturas desu- ‘manas a que todos os membros de sua classe tinham que se submeter. De modo que, na mesma época em que havia Emma Bovarys e Little Lord Fauntleroys ociosos, tam- bém havia mulheres destruindo suas vidas e os pulmées fem fabricas primitivas de tecidos, e criangas perambu- Tando e mendigando. Essa diferenca entre as vidas das criangas de diferentes classes econdmicas persistiu até os is do direito a0 voto feminino, e até a nossa propria €poca. AAs criangas que eram propriedade da classe mé- dia, em fungéo da reproducfo, sofreram uma pressfio pior do que a nossa. O mesmo aconteceu com as mulhe- res. Mas elas, para compensar isto, tinham uma proterdo econdmica. As criangas da classe Baixa eram exploradas, nnio particularmente como criangas, mas de um modo geral, como classe. O mito da infancia era extravagante demais para ser desperdigado com elas. Aqui, novamente ‘vemos ilustrado com preciséo o grau de arbitrariedade do 13 mito da infincia, eriado expressamente para atender as nevessidades da estrutura da familia da classe média Sim, vocés dirio, mas certamente teria sido melhor ppara as eriangas da classe operdria que clas, também, tivessem podido viver protegidas por esse mito. Pelo ‘menos, teriam poupado a vida. De modo que elas pode- riam esvair a vida espiritual nalguma sala de aula ow eseritério? A questdo € ret6rica, como a pergunta sobre se 0 sofrimento dos negros na América € legitimo, por- que seriam considerados ricos em outro pais. Softimento @ sofrimento. Nao, precisamos pensar em termos mais amplos aqui, Por exemplo, em primeiro lugar, porque seus pais eram explorados: o que qualquer pessoa faz numa mina de carvio? Devemos protestar, néo pelo fato de as criangas serem exploradas como os adultos, mas pelo fato de que os adultos sejam explorados desse jeito. Precisa- ‘mos comegar a falar, néo em poupar as eriancas, durante alguns anos, dos horrores da vida adulta, mas em eliminar cesses horrores. Numa sociedade sem explorasio, as erian- ‘625, poderéo ser parecidas com os adultos (sem nenhu- ma exploragio implicita), e os adultos poderio ser como as criangas (sem nenhuma exploragio implcita). A es- cravidio privilegiada (patronato), que as mulheres ¢ as criangas suportam, niio 6 liberdade. Pois, a_autodeter- ‘minagdo é a base de toda liberdade, e a dependéncia est fia origet de toda desigualdade, ~ Repressio Sexual. Freud descreve a satisfagio primi- tiva da crianga: a satisfago do bebé no seio matemno, que cle entdo tenta recuperar durante o resto da vida; como, por causa da protecio adulta, a erianca é mais indepen Gente do “prinefpio de realidade”, ¢ Ihe & permitido brin- car (atividade realizada pelo prazer dela propria, no para obter qualguer outro fim); como, sexualmente, a ‘rianga é polimorfamente pervertida, e somente mais tarde € dirgida e reprimida, para tormar-se pronta para 0 pra- er genital adulto. Freud também mostrou que as origens da neurose adulta se fundavam no proprio processo da intincia. Em- bora a crianga prototipica possa ter a capacidade de ex- perimentar um prazer puro, isso nfo significa que ela 4 ‘possa satistazé-1o completamente, Seria mais correto dizer ‘que, embora seja propensa, por natureza, ao prazer, n0 momento em que se torna socializada (reprimida), ela perde essa inclinagio. E isso comeca exaiamente neste momento. © “principio de realidade” nao se restringe aos adul- tos. Ele se introduz na vida infantil, quase que automati. camente, em sua pequena escala propria, Portanto, en- quanto esse principio de realidade existr, a nogo de Poupar as criancas seus desgostos seré uma farsa, Na melhor das hip6teses, ela pode sofrer um processo repres- sivo retardado. Porém, mais freqiientemente, a repressi0 acontece, em todos os nfveis, logo que a crianga possa lidar com ela. Néo 6 como se ja tivesse havido um pe- rfodo abengoado, no qual a “realidade” era dispensada, Pois na verdade a repressio comeca logo que ela nasce. ‘As bem conhecidas refeicies cronometradas pelo rel6- to slo apenas um exempio extremo. Antes dos dezoitos ‘meses, afirma Robert Stoller, se estabelece a diferenciagio sexual bésica e, como vimos, esse processo, em si mes- ‘mo, requer a inibigio do impulso sexual dirigido & mic. Assim, desde o inicio, € negada a liberdade de acio & sua cualidade polimorfamente pervertida. (Mesmo hoje, com aexisténcia de uma campanha para reconhecer a mastur- bbacdo como normal, vérias eriancas sio impedidas de brincar com seu proprio corpo, desde a Epoca em que ainda estio no berco.) A crianca & instruida a deixar de mamar e a ir ao banheiro o mais cedo possivel — duas coisas trauméticas, nos termos da crianga. A repressio aumenta, O amor matemo, que, idealmente, representa a satistagio perfeita (“incondicional”), € explorado, & ‘maneira do amor paterno: para melhor dirigir a crianga para a conduta socialmente aprovada. E, finalmente, 6 exigida_uma identificacko ativa com o pai. (Nos lares conde nao ha pai, a identificago pode ocorrer um pouco tais tarde, quando a crianga’comeca a freqilentar a es- cola.) Daf até a puberdade a crianga deve ter uma vida assexuada — ou dissimulada — sem sequer admitir qu ‘quer necessidades sexuais. Essa assexualidade forcada gera uma frustragdo, que € responsével pela extrema rebeldia us © agressividade — ou, numa outra alternativa, a docili- dade anémica — que, geralmente, torna as criangas tio irvitantes & sua volta, Repressdo Familiar. Nao precisamos nos aprofundar ras sutis pressbes psicol6gi que pense na propria familia. E, se isso nfo for suficiente, se por acaso vocé é hoje aquele um-entre-um-milhdo {que esté realmente convencido de que tem uma “familia feliz”, leia alguma das obras de R. D. Laing, particula ‘mente a Politica da Familia, a tespeito do Jogo das Fa milias Felizes. (“Quanto mais uniformemente elas fun- 2 cionam, mais dificeis sio elas de estudar.”) Laing revela f dinimica interna da famfia, explicando sua invisibil dade para o membro normal da famtli “Uma coisa, geralmente, 6 clara para um estranho: exis: tem, planejadas,resist2nclas familiares a descoberta do que 5} extf se passando, e hi estratagemas complicados para manter todas as pessoas ignorantes, ¢ na ignorincia de que sfo igno- rantes. A verdade tem que ser afastads, para que se sustente tuma imagem da familia... Uma vez que essa fantasia existe apenas na medida em que ela esté ‘dentro’ de todo mundo ‘que participa dela, qualquer um que. abandone, destruiré a © [Mfamlia”existente dentro de qualquer outra pessoa.” [ is algumas criancinhas falando sobre si mesmas. De novo, citamos Rei “Ouvi falar de um menino que, até quase os quatro anos, pensava que seu nome era ‘Calese'” “Um menino presenciou uma briga pais, e ouviu sua mie ameagar seu pai com 0 ‘ia seguinte, quando voltor vara casa, depois da escola, ele ‘perguntou 4 mle: “Voc8 jé se divorciou?” Mais tarde, iem- ‘rouse que ficara muito desapontado, porque ela nfo se tinha divorciado.” "Um menino de nove anos foi interrogado pelo pai, du rante a visita que este The fez num acampamento, se tinha fentido saudade de casa, e 0 garoto respondeu: ‘Nao.’ O ps tent, perguntou se os guttos meninos tinham sentido sau Gade de casa. 'S6 alguns’, respondeu 0 garoto, ‘aqueles que ‘tém eachorro em casa.” 116 © que é divertido nessas anedotas, se 6 que elas so divertidas, é a franqueza das criangas, incapazes de com- reender, ou accitar 0 inferno masoquista de tudo isso. Repressio Educacional. & na escola que a repressio € cimentada. Quaisquer ilusGes remanescentes de. liber- dade so, hoje, rapidamente afastadas. Toda atividade sexual ou expansio fisica sfio barradas. Aqui se realiza © primeiro jogo altamente supervisionado, © prazer na- tural das criangas em brincar é, ent&o, incorporado, para melhor socializé-las (reprimi-las). (“Larry fez a melhor pintura de dedos! Que menino habilidoso! Sua mée fica 14 orgulhosa de vocé!”) Em algumas escolas liberais, 0 tempo todo, & verdade, professores gabaritados tentam descobrir temas e atividades que interessem verdadeira- ‘mente as criangas. (E mais fécil manter a sala em ordem, desse jeito.) Mas, como vimos, a estrutura repressiva da rOpria sala de aula, que € segregada, garante que qual- quer interesse natural em aprender, finalmente, acabe atendendo aos interesses essencialmente disciplinados da escola. Os jovens professores, que entram no sistema, idea- fistas a respeito de seu trabalho, logo se indispdem con- tra ele; alguns desistem desesperados. Se tivessem esque- cido que a escola foi uma prisio para eles, se lembrariam novamente de tudo, E, cedo, sfo obtigados a compreen- dder que, embora haja’ prisbes liberais e prises nflo tho liberais, por definicdo, todas elas so pris6es. A crian- sa 6 obrigada a freqiienté-las; a prova disso, & que nunca vio & escola espontaneamente. (“Fim das aulas, Fim das aulas, Pra casa os bobocas vio voltando, Chega de lépis, Chega de livros, Chega de professores implicando.”*) E, embora educadores esclarecedores tenham projetado sis- temas completos de atividades di interessantes, para atrair ¢ seduzir a crianga a accitar a escola, esses sistemas munca conseguem obter éxito total- mente, pois uma escola que existisse somente para atender curiosidade das criancas, entendida nos seus proprios termos, e que fosse dirigida por elas proprias, seria uma No original: “Seboo!'s out, School's out, Teachers let the fois out, [Nomore pencis, No mote books, No mate teachers diy Took (NT) 17 contradiclio em seus prOprios termos — como vimos, a escola moderna, em sua definicdo estrutural, existe para implantar a repressao. A ctianga despende a maior parte de suas horas pro- dutivas nessa estrutura coercitiva, ou fazendo deveres para ela, O curto tempo que Ihe resta, em geral, 6 absorvido pelos afazeres © obrigagées familiares. Ela’é forcada a assistir a discusses familiares infinddveis, ou, em algu- ‘mas familias “liberais”, a assistir a “conselhos familiares”. Existem parentes para’ os quais ela deve sorrir, ¢, geral- mente, missas a que ela deve assistir (todas essas horas, gastas de mé vontade, com preces, pelas eriangas). No curto tempo restante, pelo menos em nossa classe média moderna, ela 6 “supervisionada”, bloqueando-se 0 desen- volvimento de sua inicativa e de sua criatividade, Sua escolha de materiais lidicos esté determinada (brinquedos © josos); sua drea de brincadeira esté definida (gindsios, parques, playgrounds, campings). Geralmente, fica limi tada, na sua escolha dos compankeiros de jogos, as crian- gas da mesma classe econémica, ¢, nos subsrbios, aos colegas de escola, ou aos flhos dos amigos de seus pais. Entra para um niimero de grupos maior do que poderia dar conta (escoteiros, lobinhos, bandeirantes, fadinha acampamentos, clubes extra-escolares, e esportes). Sele cionam a cultura para cla, Na TV, fregientemente, s6 The € permitido assistir aos programas infantis (Papai Sabe-Tudo), ¢ & proibida de assistir aos filmes. (bons) para adultos, Seus livros e sua literatura, geralmente, so firados de listas despastadas. (Grandes Homens e'Mu- Iheres Americanas. Cronicas de Babe Ruth. Lassie. i eriancas que tém a minima oportunidade de escapar desse pesadelo supervisionado — apesar de serem cada vez em menor niimero — sfo as criangas dos guetos e das classes operérias, onde a concepcio medie- val de comunidade aberta — morando na rua — ainda permanece. Isto 6, historicamente, como vimos: muitos desses processos da infincia chegaram tarde nas classes bbaixas, e nunca se firmaram realmente nelas. As crian- gas da classe baixa tendem a proceder de grandes f milias nucleares, formadas de pessoas de idades muito diferentes. Mas, mesmo quando isso nfo acontece, ge- ralmente hé meio-irmios e meio-irmas, primos, sobrinhas, sobrinhos, ou tias, num meio de parentes em constante mudanga. As crianeas, individualmente, sfo muito pouco observadas, e menos ‘ainda supervisionadas; geralmente, podem andar bem longe de casa, ou brincar nas ruas, durante horas. E, na rua, se por’acaso a familia é pe- 4quena, existem centenas de garotos, muitos dos quais jé tém seus préprios grupos sociais (gangs*) formados. Elas geralmente ndo ganham brinquedos, o que significa que ‘eriam seus pr6prios brinquedos. (Vi garotos dos guetos fazerem escorregas engenhosos de papelio, e colocé-los. fem casas velhas sem degraus; vi outros fazerem cart nhos-de-mio e roldanas, com pneus velhos, cordas e ct xotes. Nenhuma erianca'da classe média faz isso. Ela nfo precisa. Mas, em conseqiiéncia, ela logo perde a engenho- sidade.) Elas exploram as regies bem longe de seus pe- 4quenos quarteirdes, e, muito mais que seus companheitos dda classe média, travam relagdes com os adultos, num ‘mesmo nivel. Nas aulas sio rebeldes e indisciplinadas, como, de fato, deveriam ser — pois a sala de aula é um local que faria qualquer pessoa um pouco liberal sus- peitar dela. Existe um desrespeito persistente pela escola na classe baixa, pois afinal ela é na sua origem, um fenmeno da classe média, ‘Sexualmente também as criangas dos guetos so ‘mais livres, Um rapaz me disse que nfo conseguia se lem- bbrar de uma idade em que tivesse tido relagio sexual com outras garotas, sem isso ser uma coisa natural; todos tinham. Aqueles que ensinam nas escolas das favelas observaram ser impossivel refrear a sexualidade das crian- seas. E uma coisa rotineira; as eriangas gostam, e & muito melhor do que uma aula’ sobre a Grande Democracia Americana, ou sobre a contribuigio dos hebreus, com a revelacdo de Um Deus Unico (por que revelar um 362), «As agnes constuem os, ics srupos de cranes de hoje anti fides. Oo tong soa eum modo nmetsSd0r poe bos ser po fice, (OT 9 ‘ou sobre o café ou a borracha, como as exportagdes mais importantes do Brasil. Assim, elas fazem amor nas escadas. E faltam & aula no dia seguinte, Se, na Amé- rica moderna, a infincia livre existe nalgum estégio, i se dé na classe baixa, onde 0 mito € menos expandido. Por que, entio, elas “se tornam” piores em situa- gio do que as criangas da classe média? Talvez isso seja nem at mulheres Idem revistas Pretty ry P Binero de Play Boy para homosexuals, (NT) am 2) A Privatizagtio Sexual das Mutheres, © erotismo 6 apenas © camada mais elevada do romantismo, que re- forga a inferioridade feminina. Assim como acontece em qualquer classe baixa, a conscigncia de prupo deve set amorteciéa_para_impodit seus membros de se-revolar. ‘esse caso, por ser sexual a caracterstca distintiva da exploragdo das mulheres como classe, deve-se-descobrit Simei eipecl de tomdsayloconseetes de gue todas sfo_consideradas sexualmente iguais.(“bocetées”). Ouan- eT ee ee cits dentre esse grupo indistnto,j6 que, como vimos, ele con serva um lugar especial na sua mente para “A Onica”, fracas 8 unio fntima dela com ele. Mas, em geral, ele nfo consegue ver diferengas entre as gatinhas (louras, more nas, ruivas).* E ele gosta que seja assim. (“Um balaneo lar. um risinho no seu falar, & DISSO QUE EU ) Quando um homem acredita que todas as mulheres so iguais, mas quer impeditas de pensar iss0, (0 que cle faz? Conserva suas convicedes préprias e finge, para apaziguar as suspeitas da mulher, que o que ela tem fem comum com as outras € exatamente 0 que a faz rente, Assim, a sexvalidade dela finalmente se toma sind nimo da sua individuatidade. A_privatzacto_ sexual da ther & 0 processo pelo qual az mulheres ficam_cegat ara sua gencralidade como wma classe que as.torna invi- sfveis como individuos aos olhos masculinos, Nao & estra- ho que, como parte das soas fungdes na Casa Branca, a Primeira Dama tenha que fiear ao lado do Presidente em va, como disereto eseravo negro? ©. processo & insidioso. Quando um homem diz: “Eu adoro louras!, todas as secretirias nas redondezas se aprumam nas cadeira; elas 0. tomam pessoalmente, porgue foram privtizadas sexualmente. A loura que cada tuma traz em si se sente pestoalmente Hisonjeada, porque aprendemos a medit nosso valor pelos atributosfslcos 4. Quanto aos seus outros esportes", diz um antncio publictéio fecente sobre 0 herdi do futebol Toe Namath, “ale prefere as Taras 172 que nos diferenciam das outras mulheres. Nio se lem- tra mais que qualquer atributo fsico que se possa men- ar € compartilhado Por muitas outras, que esses sio ftributos acidentais, que nfo sfo uma criagdo sua, que Sua sexualidade € compartthada pela metade da humani- Gade, Entretanto, num reconhesimento autotico de sua individuaidade, sua lourice seri amada, mas de um modo diferente a muther sera amada primeiro como uma totali- dade insubstituvel, © ento sua lourice seré amada como juma das caractersticas dessa totalidade. © aparato da privatizacéo sexual 6 tfo sofisticado que pode ser que sejam precisos muitos anos para detec- ‘sto esclarece virios tragos enigmiticos da psico- Topi feminina, que assumem as seguintes formas ‘Malheres que slo Tisonjeadas por seu sex0, i, “Ti= rem 0 chapéu para n mocinhal” ‘Matheres que sio chamadas de quetida, dogura, can- dora, gatinha, ‘anjo, rainha, priacesa, boneca, mulher, ‘quando esto vestdas de um modo habitual e impessoal Mulheres que sfo seeretamente isonjeadas por terem sido beliseadas na bunda em Roma (Elas fariam melhor fem contar o ndmero de vezes que as bundas de outras Imutheres foram belscadas.) (© prazet da provocagio (manter os homens um estado de tesfo constante é tido como um simbolo de Valor e atratvidade pessoal). (0 fenémeno “varat”, (Mulheres, cujos canais de es- cape legftimos de expressio de sua invidualidade sf ne~ gatos, “expressamese” fisieamente, como no “Eu quero Yer alguma coisa ‘diferente’.”) "Essas so apenas slgumas das reagSes ao process0 de,pvatacgo sual -a conan de eraade com. fndividualidade. 0 provesso € tio. eficar que a maiorie das mulheres acabou por acreditar seriamente que o mun- do necessita de suas contribuicies_sexuais espectticas pars Seaaate Ce ocha que sua wota € feta de 010") Mas as cangées de amor ainda continuariam a ser escri= tas sem elas. ‘As mulheres podem ser iludidas, mas-os homens so totalmente conscientes disso como uma técnica de mani- 173 lagio vilida. E por isso que tomam 0 maior euidado ara evitar falar sobre as mulheres na frente delas (“nfo na frente de uma dima”) — isto revelaria seu jogo. E {eaumdtieo_para uma. mulher ouvir por acas ume oi ‘efea entre homens. Assim, todo exte tempo, ela fol apre: ciada_como “iraseiro”, “carne”, “boceta” ou “material”, fervir de “um _pedago de, “essa vaca”, ou “essa HOE Ba Se euatinde tor ache aioe oe ee Scmoceent ates cue nay € melee de ea ier, mas completamente indiferencifvel, sobrevém nfo s6 como_um_choque, mas também como" uma. aniquilacao, (ail Mat ale: ¢ meno mai ens on ae ema tulher tem que se defrontar com sun privatizacto sexual € numa briga de amor, quando a verdade é revelada Entio, o homem pode tomar-se menos euidadoso © admt- tir que a dinica coisa pela qual ele realmente semore gos- tou dela foram seus peitos (“Duas balas de canhio”) ou suas pernas (“Que coxinhas!”), ¢ ele pode encontrar isso em outro lugar, se precisa, Assim, a privatizacéo sexual estereotipa as mulheres. Estimula os homens a verem as mutheres como “boneeas” diferencindas exclusivamente por atributos supertciais nfo da mesma raca deles — e isto cega es mulheres para sua exploragio sexual como classe, impedindo-as de se unirem contra isto, e, assim, segregando efetivamente_ as ddaas classes. Um ser conferido a uma individualidade falsa. so impedidas de desenvolverem uma individvalidade forte, que’ Thes permitira libertar-se desse ardil. Se a existéncia 6 € admi- tida em sua generalidade, por que dar-se ao trabalho de desenvolver a personalidade real? & muito menos contro- vertido alegts i athe" se taslome attache dee em gilt a “gatinha” se transforme em “bagulho”, e des- cubra_aue ‘ao. € mais “inimitavel”. C15 60° 2 3) Qldeal de Beleza, Toda sociedade promoveu um cero Ber ea ae, oe ost Qual seja 174 exe ide ta, toto io: fa, Os ideais, por definiglo, so moldados em qualidades Bag Por cata, na Ameica, Pitbeses, ov 0 ideal erica da oura Voluptuose, sto rmoldados partir de qualidades verdadeiramente rara. Poucas americanas so de origem francesa, a mioria ndo parece, nem nunca pareceré francesa. Morenas voluptuo- Sas podem descorar o cabelo (como fez Marilyn Monroe, 2 rainha da sexuslidade), mas as louras ndo podem a ientar suas curvas 8 vontade — e a maioria dels, anglo- saxd, simplesmente ndo tem essa conformado. Se ¢ quan- a ‘de mélodos arificias, a maioria conseRue merge deo da toma eal; 0 weal mua See ingivel, como pode i ‘A exclusividade do ideal de belcza serve uma fun: poliica_clara,.Alguém.— na_maioria_mulheres.— ge fore Efcria diputando, porque, como vos Pe rc ee através da aparéncia — atributos definidos como ve , fnio por amor & detentora deles, mas por causa de sua you menor aprosimagio de‘um pao exer. ‘e comament poo Tlomossexuars, em Beral misoginos.da.pior.espécic), aLG que nconcee? As mulbies, em 1039 aso presam ‘em compriniest-n0_aanaiaho dé aaa, for tapnds fiullando_ 0 coxpo com deta. BiO- Gramak de Beleza, roupas e maquiagem, qualquer coisa cee mtaren + Satsa-sonkata do principe jofonin- a -a.garoia sonhada do principe jofo-nin- zuém, Mas elas nio tém.escolha, Se nfo. omseguee.amol ‘Gorse, osastigos slo enormes, Sua_legitimidade social woe Pegs mulheres tornamese cada ver mais pare” cin Ma Somes tomps, eevee gue As pe ww sem si individualidade, através 3s spastci tea_ Ae ‘Sim, elas ficam _osclando, tentando, ao. mesmo_ tempo, xpressar sua semelhanca ¢ sua singulardade, As exigen- Gis da Prvatizagdo Sexual contradizem as exigencias do Ideal de Beleza, provocando a intensa neurose feminina, fem tomo da aperéacia pessoal. 1s Mas, mesmo ¢sse_conflito_tem_uma funsio_poliica impoftante, Quando as mulheres comegam a ficar cada Yez_mais_parecidas, diferentes apenas pelo grau em que elas_se_distinguem de um papel ideal, elas podem ser ‘ais facilmente estereotipadas como classe. Elas se pare- em, pensam similarmente, e, pior ainda, s80 tio burras, ‘gue aereditam nfo serem parecidas. Estes sio alguns dos principais componentes do apa- ato cultural do romantismo, que, com o enfraquecimento das Timitagoes “naturais” das mulheres, faz a opresséo sexual continuar intensa. Os usos politicos do romantis- ‘mo, durante séculos, tornaram-se cada vez mais comple- xos. Funcionando sutil ou espalhafatosamente, em todos 6s niveis culturais, o romantismo esté hoje — nessa época de maior ameaga’ ao papel de poder masculino — am- pliado por novas técnicas de comunicagio, tio penetran- tes que os homens acabam presos na propria rede. Como essa ampliagao atua? Com a retratagio cultural dos menores detalhes da existéncia (p.ex., desodorizagio debaixo dos bragos), a dlistincia entre a experigncia e as percepgdes que cada um tem disso fica aumentada por uma ampla rede interpreta- tiva, Se nossa experiéncia direta contradiz a interpretagao dela dada por essa rede cultural, a experiéncia deve ser negada. Este processo, naturalmente, nio se aplica s6 as ‘mulheres, A penetrago da imagem alterou tao. profunda- ‘mente nossas relagdes conosco mesmos, que até os ho- ‘mens se tomam objetos — quando mais ndo seja, obje~ tos erdticos. As imagens se tornam extensoes do indivi- ‘duo; torna-se dificil distinguir a pessoa real de sua tltima imagem, ainda que, na verdade, 0 Substrato Real da Pessoa ‘no tenha evaporado completamente. Arnie, o garoto que sentava atrés de voc8 na sexta série, fuchi- cando o nariz e contando piadas, aquele que tinha um calombo no ombro esquerdo, estd perdido sob as camadas sucessivas de imagens adotadas: o Palhago do Gindsio, 0 Rebelde da Universidade, James Bond, 0 Namorado de 176 Vero de Salem, e assim por diante, cada imagem atin- sindo novos grais de solsieaglo, até que « propia pee Soa ndo stiba mais quem ela é Alem 'do mie ee lida com of outros, através dessa imagem-extensao Co Rapaz. Simbolo encontra 2 Namorada-Sinbolo ¢ consume umn Romance-Simbolo). Mesmo que uma mulher conseguisse chezar 20 que est por bai dessa inrincade imagem ds fachada —e iso levaria meses, até anos de um relecfona. mento doforoso, quase terapéutico —~ ela nfo eneont: fia gratidio por ‘er (dolorosamente) smado 0: homem Por aquilo que ele 6, e sim repulsa Horror da part dle Por tho desmascarado. Em vez disso, 0 que ee quer € 4 Garota-Peps-Cola, para sorir amaveimente pata"seu Zé Johnny Walker dinte da lreita de um albergue Mas, embora essa feificagdo afee igualmente tanto os homens quanto as mulheres, no-caso destas ela € Intensamente complicada peas foray de cxpovesio se: ual_que eu desrevA mulher nfo € apents uma fae gem, cli € uma Imagem com Ser Appeal, A estreolie g40 das mulheres se amplia. Agora néo ha mais a descul- igporincia. Toda miher-€ consante e explicit mente informada de como “aperfcigoar” o que a naty- reza Ihe deu, de onde comprar os produtos para conseguir isso, oa como contar as Salinas unca.deveria ter ingerido. A competigio se toma frenética, porque todo rund, agora, esl asetdp no mesmo credo Obien a_atnal.torna-se_difundido (“As louras m felizes. ..”). "Eo erotismo se toma erotomania, Estimulado 20 mite, ele atingia um nivel epidémico, nunca igualado na Histéia, Em toda capa de revista, tea de cinema canal de TV, aninclo de met, seios balougantes, pemas, cos. tas, coxas. Os homens andam nas Tuas nua eta de constante ekciagao. sexual, Mesmo coma. mor, das intengoes, € diflell concenirarse.nalguma outa, cols, Esse bombardeamento dos sentdos, por sua ver, leva a [provocagio sexual ainda mais longe: os meios normals & excitagao perderam todo o efeito, As roupas se tornam. amas provocantes: as bainhas sobem, of satis. 30 aban onados. Os mateias transprenteetornamae some, 17 @ & Bs “Mas, em toda essa barragem de estimulos ersticos, 08 pr6~ prios homens raramente sio retratados como objetos er6- ticos. O erotismo feminino, tanto quanto o masculino, toy asso ONGa ver mais divisido para as mulheres, ima das contradigées internas desse sistema de pro- paganda altamente eficaz é expor, aos homens tanto quan {o as mulheres, 0 processo de estereotipagio a que as mulheres sio submetidas. Embora a intengio fosse fami- liarizar as mulheres com seu papel feminino, os homens que ligam a TV também acabam recebendo mensagens controlar 0 peso, usar cilios postigos, © ceras de fasvoalho (Serd que ela’usa... ow nfo usa?). Essa contra~ Gorente de prowocades sexs ¢ de reel. de os » Sioromeletons suficiente para fazer qualquer homem iar as mulheres, se jf nfo_odea. det Shim, extant do romantsmo atavés dos media smodernos ampliou enormemente seus efeitos. Se-antes.@ ‘cultura mantinha a supremacia masculina através do Ero; ismo, da Privatizacao Sexual, e do Ideal de Beleza, hoje sulturais_sio_postos em prt de_um, aque eficar em excesso. Os media slo culpados je “sobrecarrega”, A reabilitagio do movimento femi- ‘nino neste momento da Histéria pode ser que se deva tum tiro saido pela culatra, a uma contradigio intema de nosso moderno sistema cultural de doutrinacio. Pois, rna sua expansio da doutrinacdo sexual, os media revel ram, inconscientemente, a deterioracao da “feminilidade”. ‘Coneluindo, quero acrescentar uma observacio sobre rotincira gem ao menos esta cently O caso éexatamente este, Por que too 0 priser 8 etek {ago foram concenrados, rigid para va alia ester tay dificitde-echar da experincia humana, todo'o resto aowse peer? Quando exgine aang do ir smo, nba qusremoy dace ea erctagio Toa mas ie SE a alate a gue fe wulenie bane ee Sole ae Suto por toda a exiato de neaeh wae 179 VIII. CULTURA (MASCULINA) A representagto do mundo, assim como o préprio. mundo, € tarefa dos homens; eles 0 descrevem segundo seu ponto de vista particular’ que confundem com a ver- dade absoluia.” (Simone de Beauvoir) A telagio das mulheres coma cultura tem sido ini- seta, Examinamos como a atual organizagio fisica dos ‘dois sex0s prescreve que a maioria das mulheres gaste us enegia.emosiona_com_os-homens, 20 passo que os iomens devem “sublimar” sua energia no trabalho. Desse modo, 0 amor feminino torna-se combustvel para a mé- 4quina cultural. (Sem mencionar as Grandes Tdgias nasci- das ditetamente das discussBes de boudoir matinas.) ‘Além de prover seu suporte emocional, as mulhe- res sustentaram uma outra relagdo indireta com a cultura, muito importante. A Musa era feminina. Os homens de cultura foram deformados emocionalmente pelo processo de sublimagio, Converteram a vida em arte; conseqilente- ‘mente, nfo poderiam vivé-la. Mas as mulheres, e 08 ho- mens que foram excluidos da cultura, mantiveram-se em contato direto com sua experiéncia — serviram de matéria- prima a arte. (© fato de as mulheres terem sido essenciais para o conteddo da cultura € confirmado por um exemplo tirado 181 da hist6ria da arte. Os homens sio estimulados erotic mente pelo sexo oposto; a pintura era masculina; logo, (© nu tornou-se um nu feminino. Onde a arte do nu mi cclino atingiu altos niveis, seja no trabalho de um artista individual, p.ex., Miguel Angelo, seja em todo um pe~ iodo artistico, como o da Grécia cléssica, os homens ‘eram homossexu (0 tema da arte, quando ele existe, 6 hoje ainda mais amplamente inspirado pelas mulheres. Tmaginem a elimi- nnagio dos personagens femininos nos filmes populares © nas novelas, mesmo no trabalho de diretores “intelec- tuais” — Antonioni, Bergman, ou Godard; néo restard muito, Porque, nos iltimos séculos, particularmente na cultura popular — talvez ligado & posicio problemitica das mulheres na sociedade — as mulheres tém sido 0 principal tema da arte. De fato, correndo os olhos pelos antincios publicitétios até de uma producZo cultural men- sal, acreditaremos que as mulheres correspondem a tudo que 4 se pensou sobre elas. ‘Mas, que dizer das mulheres que contribufram dire- tamente para a cultura? Nao so muitas. E, nos casos em que algumas, isoladas, participaram da cultura masculina, tiveram que fazé-lo em termos masculinos. E isso se prova. Porque tinham que competir como homens, num jogo masculino — embora ainda compelidas a se testa- rem em seus papéis femininos antigos, um papel em de- sacordo com as prOprias ambicOes — nao 6 surpreendente ue elas raramente sejam tio habeis quanto os homens no jogo da cultura. E nfo se trata de uma questo de ser tio compe- tente, trata-se, também, de uma questio de ser auténtico. \Vimos, no contexto do amor, como as mulheres modemas imitaram a psicologia masculina, confundindo-a com a satide, e, com isso, acabaram ainda em pior situagio que (08 préprios homens, Elas nfo estavam sendo verdadeiras, rem nas suas préprias doencas. E existem ainda camadas muito mais complexas nessa questio de autenticidade. ‘As mulheres ndo tém meios de chegar a um conhecimento do que é sua experigncia, ou mesmo de que ela € dife- rente da experiéncia masculina, A cultura, o instrumento 182 das € da objetivagio de_ no: acaque posamos ar som alse essa de reconceitos masculinos, que as mulheres quage nunca tém ‘bm changs-de verse cilfuralmente, araves dos Dros ‘ns De meno qu, iaiment, os as de sua experi: iceta, que entram em confine com-a cllura (mas ulina) predominante, $80 negados @ ry Assim, por serem as méximas culturais ditadas pelos homens, mostrando somente 0 ponto de vista masculino —e agora tendo-se eriado uma superbarreira — as mu Theres sio impedidas de realizar uma imagem auténtica de sua realidade. Por que, por exemplo, as mulheres se excitam com uma pornostalia de corpos femininos? Na sua experigneia normal de mudez feminina, digamos num vestiio de gindsio, a visio de outras mulheres nuas po- deria ser interessante (embora, provavelmente, s6 na me- ida em que clas se avaliom segundo os padrdes masculi- nos), mas nio diretamente erética. A. distorcéo cultural a séxualidade explica também como a sexualidade femi- nina se entrelaga com o narcisismo. Quando se relacionam com os homens, em vez de fazer amor diretamente com eles, as mulheres fazem vicariamente amor consigo mes- amas, As vezes, essa barreira cultural entre o homem/st- jeito e a mulher/objeto dissensibiliza as mulheres para as formas masculinas, afetando-as num tal grav, que elas no chegam a sentie orgasmo.! Hii outros exemplos de distorsées na visio feminina de uma cultura exclusivamente masculina, Voltemos, mais uma vez, & historia da pintura figurativa. Vimos como, na tradi¢io do mu, as inclinagbes heterossexuais masculi- nas deram énfase & mulher, em vez do homem, como sendo a forma mais estética e mais bela, Essa predilegio de 1. A Incapacidade feminina de enfocar a fantasia sexual mot- ‘tou ser'a principal causa da frigiez feminina. Masters e Joan Son, Albert Ellis, outros ressalaram a importincia do. “enfo- (que sexual” co ensinar as mulheres frigdas a senirem ‘orgasm. Hilan O'Hare, no Jornal Internacional de Serologa, observa. que fase problema pode manifesarse em prande ereala Porgue mio Ing um correlativo feminino em nossa sociedade para’ os inume- ivels estimulantes ‘da necessdade sexual masclina, 183 az « rot fant" tuma das duas formas sobre a outra, € baseada, é claro, numa sexualidade que em si mesma € artificial, criada culturalmente. Mas, ao menos poderiamos esperar que 0 Preconceito oposto prevalecesse na visio das mulheres pintoras, ainda envolvidas com a tradi¢ao do nu. Este nfo €o caso, Em qualquer escola de arte no pais vemos salas de aula cheias de mosas trabalhando diligentemente com ‘modelos femininos, aceitando que 0 modelo masculino é, de algum modo, menos estético, na melhor das hipéteses, talvez original, e, certamente, nunca questionando por ‘que 0 modelo '‘masculino veste uma sunga, enquanto que ‘0 modelo feminino nao sonharia em aparecer nem de tanga, Novamente, olhando para os trabalhos das pintoras cclebres ligadas’& escola impressionista do século XIX, Berthe Morisot e Mary Casatt, espantamo-nos com sua Preocupagio obsessiva com assuntos tradicionalmente fe- ‘mininos: ‘mulheres, criancas, nus femininos, interiores, etc. Isso € parcialmente explicado por condigdes politicas da época. As mulheres pintoras j4 eram felizes de thes ser consentido pintar qualquer coisa, que diré modelos ‘masculinos. E, no entanto, € mais ‘do que isso. Essas, mulheres, com toda sua arte majestosa e sua habilidade composicional, permaneceram pintoras_menores, porque tinham “abandonado” uma série de tradigGes e uma visio de mundo inautéatica para elas. Trabalharam dentro dos ites do que tinha sido definido como feminino pela radigio masculina. Viram as mulheres, através de olhos ‘masculinos, pintaram uma idéia masculina da mulher. E levaram isso a um extremo, porque estavam querendo su- pperar os homens em seu proprio jogo. Deixaram-se se- ‘duzir pela linha (da graciosidade). E dai a falsidade que corrompe seus ‘rabslhos, tornando-os “feminis sentimentais, delicados. Seria necessério uma r al para assem. a_produzit uma. arte rs Pois a mulher que participa na Cultura (masculina) deve produzir e ser classificada se~ gundo padres de uma tradigo de cuja feitura ela nfo participou — e, certamente, no hd lugar nessa tradigio 184 para uma visio feminina, mesmo que ela possa descobrit © que ela foi. Nesses casos em_ gue uma mulher, cansada de perder no jogo masculine, tentou participar na cultura de-um modo" feminine, ea Tar Tebatada + Tncompreeh- ida, © ch is C e insinuar que é habil, re indicr a *serelade” © ie Talver eh verdade que uma apreenagfo a6 do Indo femining das colses "= que (ade constr un Tonge Protea © ecomspto, et vr do rms ao uaa sluts agit ona ps Seles Nae Soe Saas pelea pectonn, to et ke ae Soe wecteehn & toe ean thle aa ede dpe vas muetins predominante sobre ts coun go (qos nla 6 tama ple eotads dade hoe eat como “seta petinents © portant Many Macariy, om sev tro" Grupo. seh de fata, wan tere pio toque Norman Mice cr © Sonne sano? Of estan'ea aver destevends ea ead ee eee ee Baabtinen Calan ago comeguem sions? ‘Que ov homens eas multercs endo. sntonizados com disvatet cents catrals gus de fs ea aa scullinds ticioants Seats Pak to bees © Pear [fens — shies od eae ees Som sae tb: oie do hades ms quadcchen, Ds expen Si eon qo re peur mew no the un Colegio ierlnente flag do tameabo duos guar te ov de han em uadshos, Mas, enbra ee Soureur ithes omy sas eae wnaaes coger fe goukhalea sks us heonanews du sds ap hier goad lero era inieanens diene do ie. ie tetera tis Speradess como oh guadenhos de uct Tr Clivntatl) co Sopectlomeny para vies he fs como “0 Coun Pemalonga Fweete tad Sy Sant, “lan 's leg’, s tier at bie goes [sont an ms aatanie mo mononpet sk de Gee 185 Ss Embora esses “cSmicos” icrtassem minha sensibi- lidade mais estética, eu os leria, na falta de outra alterna- tiva. Mas, se eu tivesse tido uma mesada tio grande © uma superviséo tio. pequena dos. pais, teria me saciado com uma colegdo de quadrinhos de amor “pesada”. (Li- grimas. Ob, Tod, ndo fale a Sue sobre nés, ela morreral), tum ocasional True Confessions e, para um “leve” des” canso, Archie and Veronica. Ou as variagbes ocasional- mente mais imaginativas dos quadrinhos dos -meninos, como O Homem-de-Borracha (Super-Homem com um brago de borracha, que poderia se estender em volta dos quarteirbes), ow ‘Tio Patinhas (Eu adorava sua extra- Vagancia egofsta, Outras mulheres [desprendidas} con- fessaram a mesma paixio de mocidade). Mais provavel- mente até, eu nio teria investido em revistas de quadri- nos de modo algum. Contos de fada, muito menos realis- tas, eram uma “Viagem” melhor. ‘Meu ismdo achava que o gosto das m “hat, eu achava que ele era um grande bobalhio, Quem estava certo? Os dois. Mas ele venceu (ele tinha a biblioteca). "Essa divisio continua a operar em niveis culturais mais elevados. Eu tive que me forgar para ler Mailer, Heller, Donleavy, ¢ outros, pelas mesmas razSes pelat quais ‘nfo poderia suportar a biblioteca de meu irmio. Para mim, eles pareciam apenas versées complexas (res- pectivamente) do Super-Homem, Tra-ta-to-d, e das Aven- turas do Pernalonga. Mas, apenar da biblioteca “mas- " continuar a me repelit, no processo de desenvolvi- mento do “bom-gosto” (segindo. padrOes masculinos), também perdi meu. amor pela biblioteca “feminina”. Na verdade, desenvolvi uma averséo; e — tenho vergonha de ‘admitr {sso — preferia longe ser apanhada com Hemin- way do que com Virginia Woolf na mi: Para ilustrar essa dicotomia cultural em termos mai objetivos mio precisamos atacar os mais dbvios tigre de papel (todos os sentidos implicitos), que consciente- mente apresentam uma realidade “masculina” — a saber, Hemingway, Mailer, Heller, Miller, Donleavy, © 0 res: tante, A nova Escola da Virilidade ng literatura do sé- 186 lo. XX 6, el propria uma resposta diet, na_verdade Itural_masculina 2 Spas m_grupo_de ‘Rotman masculine — Vidas, In, SPitstos brigoes”caluialmente exclados,esmutranto-se, ara salvar sua masculinidade, E, apenas de ganharem ae ito, esses artistas eserovem sobre a experiéncia ‘masculina nfo mais perceptivelmente do que Doris Lessing, Sylvia Path e Anais Nin escreveram sobre a experiencia feminina, De fato, eles sio culpados de uma mistfcagéo dia sua experiéneis, que torna falsos seus escrtos. Em vez disso, examinaremos um preconceito mais traigosiro (porque menos dbvio) dos esertores masculinos que honestamente tentaram descrever todo o spectro da experiéncia masculina/feminina — Bellow, Malamud, Updike, Roth, ete, — mas que falharam porque, em geral, sem se dar conta, descreveram esse todo a partir ‘de um Angulo (masculino) limitado. Examinemos brevemente uma histéria de Herbert Gold, um escritor que nio é “masculino” nem no estilo, nem a temitica, Ele escreve sobre coisas que dizem res- peito & mulheres, ie, relagdes de prferéncia masculinas/ femininas, casamentos, divércios, aventuras. Nessa his- toria, "What's Become of Your Creature?”, ele descreve © romance entre um problemético professor de-univer- Sidade, jovem, e sua aluna loura, boémia. ‘A imagem que fazemos de Lenka Kuwaia, a partic dia visto do personagem masculino, é apenas senstal, ainda ‘que sensiiva nesses termos. A histéria comega: “Uma mulher. Alegre, bela e sombria, ao mesmo tempo ccom sinais de dogura e de crueldade. Quando cle procurou por cigarros na escrivaninha dela, havia uma pilha de calci- thas de seda, enlagadas como flores, entontecendo-o com ‘alegria da primavera. Quando ela vestin uma delas, subita- ‘mente dilatando a mindscula pétala de roupa em dois botGes ‘pares, era como se 0 s0l tivesse forgado uma flor @ um deli- feado florescer de piscoa. Ob, ele precisava dela, amava ‘e-assim, em reapeito aos dois, deixem-nos contar a verdade, tio direta como a verdade surge.” 187 ‘Mas, a verdade que nés obtemos “direta como a ver- dade surge” & apenas a sua visio da verdade. “Hd wm momento na vida de todo homem em que ele rndo consegue fazer nada. Este era o momento da vida de Frank Curtiss. 0 desespero com a esposa tinha sucumbido a tum profundo prazer com uma bela moga. Ele até sentiase ‘melhor em casa. As coisas esfriavam e se acalmavam. Seu trabalho ia melhor. Mal precisava dormir, e nio sofria de sua febre normal, que sentia na primavera ém que conhecera Lenka Sem resfriados, sem olhos vermelhos. Respiragio expandida, visio agucada, Curou-se da habitual dor de ea- bea, causada pelo cansago, com 0 toque da mio dela, com sua acothida quando ele chegava sorrindo, mostrando-the os lentes, através da jancla.” Mas a verdade dela deve ter sido completamente diferente, uma verdade da qual no ha tragos na histé- ria, até 0 dia em que (inesperadamente) Lenka escreve uma longa carta para a mulher dele. O casamento fracasa- do, que se tinha tornado mais estavel desde que Frank iniciara sua aventura com Lenka, é destruido para sempre: “Lenka deixou Nova Torque sem vé-o, depois que rece- bbeu seu telefonema angustiado: “Por qué? Por qué? Por que voot teve que fazer isso assim, Lenka? Voce no consegue perceber como isso destr6i tudo entre nés, até 0 passado?” “EU no me interesso por recordagées. O que acabou iio significa nada. Acabou. Vocé nio queria senio rastejar fa minha janela umas duas vezes na semana. "Mas, escrever para ela daquele jeito—0 que signifi- ‘Voc® se interessou muito mais por uma puta sem graga do que por mim. $6 porque voc8 tinha um filho. "Por qué? Por qué” Ela bateu o telefone. Ele deu de ombros. As mulheres estavam cortando suas ligagSes em todo lugar do mundo. Estava confuso.” fis Sentindo-se traido ¢ enganado, Frank desnorteada- ‘mente trata as feridas. Durante todo o resto da hist6 sentimos-Ihe a perplexidade, Nao compreende o que a le 188 vou a fazer aquilo, nlo “compreende as mulheres”. Afinal, termina admitindo nela “grandes tragos de crueldade” assim como de dougura. Mas a “crueldade” de Lenka 6 0 resultado direto da incapacidade dele de vé-la como algo além de “uma pe- 4quena” (alegre, bonita, ow sombria), ¢ em vez disso vé-la talvez como um ser humano complexo, com interesses pessouis diferentas dos seus. Contudo, devido & autenti- cidade da narrativa dos incidentes © dos didlogos de Gold, ‘um leitor sensfvel (provavelmente mulher) conseguiré let ‘nas entrelinhas: Lenka foi a nica traida. Eis Frank, Poucos dias depois, em Manhattan: “Ble procurou uma pequena que comesse com ele uma rag. Morderam e sugaram seu doce suco a0 amanhecer, € finalmente beijaram-se como bons amigos, voltando-se de lado para dormir... Ele se sentia live... Jogou fora o vidro de aspirinas. A visio que tinha de si mesmo como um homem ‘carado, pesado, dspero, um bifalo cansado, deprimido, amor- ddagado, dew Tugar a uma outra imagem —ele era magro, ‘seu estado era bom, ele era um égil bor-vivant. Quando sua primeira esposa casou-se de novo, seu iiltimo vestgio de culpa ‘desapareceu. Livre, livre. Jogava ténis duas vezes por semana ‘com uma francesa que pronunciava ‘Te-ns” Agora um solteirio alegre, Frank um dia, impulsiva ‘mente, telefona para Lenka: ‘Mas, depois de tere dito quanto tempo tinha estado Nova Torgue, ela disse que no estava interessada em “Eu guardei um rancor, yoo pode entender isso’, disse cle, “Bu ainda acho que vocé estava errada, mas Ihe sou farato de alguma forma. Acabou sendo melhor “E acabou’, disse ela.” Mais tarde, encontrou-se com ela, vendo-a acabada por drogas, prostituindo-se com um miisico negro: “Bla deve ter inventado uma mentira absurda (para cconvidé-lo a subir em seu quarto), mas reconheceu um brilho 139 de contentamento na face dele, ¢ em seus vinte e cinco anos dde hoje cla 46 tinha aprendido um meio de responder a0 julgamento dos homens. Inclinow-se para ele, no seu rosto ‘uma mistura de timidez e pavor, um melo-sorriso de flerte, ‘um movimento feline, estudado e insinuante, na direglo dele, seus olhos cheios de lgrimas quando os fechou, as légrimas balangando em suas pestanas umedecidas, escorrendo.pelas ochechas. ‘Frank’, disse ela hesitando. “Eu me esquect por ‘um longo tempo, eu nio sei, a8 coisas ficaram dificeis, eu pen sei que voo$ estivesse muito irritado... Mas eu tenho’ me lembrado... & porque... Perdoe. “Ele envolveu-a nos bragos, apertou-a, porém mais con- fuso do que amoroto ou terno .." “Endo pensou nas cartas sobre as quais ela tinha acaba- {do de mentit, e, subitamente, quando ela volvia a cabeca, 4querendo ser'beijada, sua fantasia mais intensa era esta’ Ela era suja. Seu medo irrefreével, deixava-o confuso— iusto, doenga, compaixfo seereta, lama e desforra. Sem sa- ber 0 que ele'proprio temia, pensou apenas: sujeira, sujeira {eia, sueira grossa, mordidas, feridas. Por nko poder supor- lar as lamentagées dela, pensou: dlusdo, asticia, doenca!” "Afastou-s, antes que os Iibios dela 0 tocassem; as unas ela arranharam seus bragos, rasgando-the a pele. Fugit, ‘ouvindo 0s solugos dela a porta aberta, enquanto tropegava ‘pelos degraus contaminados da escada, descendo até encon- tear o ar livre da rua.” Final; Frank acaricia a esposa recentemente gri- vida, indagando-se_ o-que-teria-acontecido-a-Lenka. Essa ndo é uma hist6ria masculina no tema, nem no “estilo” — ha suficente descriglo de emogées para enver- gonhar qualquer escritor masculino. Mas ainda € uma historia “masculina”, em virtude de sua peculiar imita- {0 de wisto: ela. nto compreende.as-mulheres, A. sen- Sualidade e a beleca de Lenka séo determinadas pelo quanto Frank € capaz de compreendé-las. Os motivos los quais ela escreveu para a esposa dele, sua tecusa em vé-lo, sua tentativa de seduglo, descritas com tanto 6dio culpado — Frank nao consegue lidar com eles, exa- tamente como acontece na vida real com os homens (“Por ‘do Poder suportar as lamentacées dela, pensou: Tlusio, 190. asticia, e doengal”). C ma mulher além do nivel dle-sun boleza era dem cle ‘para_ele,.As_mulheres_sio iulgadas s6-nos iermos dele, ou em termos,do_que clas trazér, seja_beleza e alegria, seja sofrimento o tristezs isquer_que_sejam_esses.termos, ele nfo os jestionay no compreendendo que seu préprio compor- texte fot on poder i Podemo: rente sobre esse caso de amor, usando até as mesmas referéncias ¢ os mesmos didlogos, s6 que dessa vez esrita por Lenka. Seu comportamento entio nfo pareceria mais inracional, mas inteiramente compreensivel, o personagem masculino, a0 contriio, se mostaria superficial. Talvez, de fato, pudéssemos terminar com algo além de umn pre- conceito sexual oposto. Poderiamos perceber uns trés ‘quartos do quatro (ie, Frank & supericial porque € incapaz de assumir suas émogdes), visto que as mulheres, ‘em geal, em funglo de uma opressio prolongada, apren- sderam a’ ser mais avangadas em psicologia masculina do ‘que vice-versa. Mas isto raraments ocorreu em literatura, Porque a maioria das Lenkas foi destruida pelo uso abuso delas em nio escrever as prépras histrias coeren- temente, ‘Assim, a diferenga entre a aproximagdo “masculina” € a aproximacio “feminina” da arte nfo é, como alguns Pensam, simplesmente uma diferenga de “est tamento de um mesmo tema (pessoal, emocional, desci- tivo versus vigoroso, econémico, enérgico, fro, objetivo), fas ua dfetenga no proprio tema. O sistema. de apis semuais_divide_a"experiéncia_ humana Os homens eas Seat ae isan tates de wnhdade E a cultura reflete isso. Somente alguns artistas superaram essa divs em seu trabalho. E nos perguntamos se o: homossexuais estio certos em suas reivindicagSes. Mas, se nfo o fizeram atr™- vés da expressio fisica, entdo de’algum outro modo os maiores artistas se tornaram mentalmente andréginos. No séoulo XX, por exemplo, escritores da envergadura de Proust, Joyce, Kafka fizeram-no seja identificando-e fis camente com a mulher (Proust), seja imaginariamente, 191 atravessando A vontade os limites entre esses_mundos Goyee), ou fetirando-se mum mundo imagindtio rare afetado pela dicotomia (Kafica). Mas, ndo 36 maior parte dos artistas néo superou a divs, a de ume Uli ats E, que dizer das mulheres artistas? Vimos que $6 nos dltimos séculos foi concedido as mulheres participar —e apenas em bases individuais e em termos masculinos = da construgio da cultura, E, mesmo assim, sua visio tomou-se inauténtica. Foi-thes negado 0 uso do espelho cultural. Existem varias razses negativas, pelas quais as mu- Theres ingressaram na arte. A a sempre originou o diletantismo feminino, p.ex, a “jovem dama” vitoriana ‘com seu talento, ou a arte das gucixas japonesas. Pois, além de servir de simbolo a0 luxo masculino, a erescente ciosidade das mulheres, sob um industralismo avangado, presenta um problema pritico: a insatisfagio_feminina m que ser diminua, para impedie as mulheres de explo- @oe ete ae ies core “Sando na arte como um refgio. As mulheres, ainda hoje, so excluidas dos centros vitais de mana; e arte é uma das dltimas ocupegdes autodeter- ‘minadas restantes — geralmente feita na’ solidgo. Mas, nese sentido, so como uma Pequena Burguesa tentando ‘abrir uma fabrica na era das Corporagées Capitalistas. Pois, ultimamente, a maior percentagem de mulheres za arte pode nos dizer mais sobre a situagio da arte do {que sobre a situago das mulheres. Devemos nos sent animados pelo fato de as mulheres assumirem uma condi ‘¢io que breve serf dispensada? (Do mesmo modo como hoventa € cinco por cento de negros nos Correios no é sinal de integracio; a0 contrério, os indesejados esto sen- do empurrados para as posigées menos desejdveis: Agora, entre e bico calado!) Que a arte nio é mais um centro Vital que atrai os melhores homens de nossa geracio pode também ser um produto da divisio masculino/feminino, 192 como tentarei mostrar no capitulo seguinte. Mas 0 entu- siasmo das mulheres e dos homossexuais com as artes pode significar, hoje, « corrida dos urubus para um corpo agonizante? Contudo, se ainda no produziu grandes mulheres artistas, a literatura feminina criou certamente uma au- digncia’feminina. Do mesmo modo como as audiéncias ‘masculinas sempre exigiram, e receberam, uma arte mas- culina que reforgasse sua visio particular da realidade, assim também a audiéncia feminina requer uma arte “fe- minina’, para reforcar a realidade feminina. Dai o nas- cimento da grosseira novela feminina no sécalo XX, que levou a love story de nossos dias, tfo presente na cultura popular ( o “dramalhao”); o comércio das revistas femini- nas; Vale das Bonecas. Estes podem ser comegos grossei- ros. Mas, de vez em quando, a realidade feminina 6 do- ‘cumentada tio claramente quanto o foi a realidade mas- cculina, como, por exemplo, na obra de Anne Sexton, Finalmente, devido a toda essa efervescéncia, talvez ‘muito breve possamos assistir & emergéncia de uma arte feminna auténica, Mas, o desenvolvimento de uma aie ntrario, ele € progressisia, U connigit_a aberracio_de_uma_cultura_sexualmente precoo- Peles SE depois de termes integrado Lua_em-nossa_ visio. de mundo € que ig Si el a gaan Teanga Scare ls i qUe-ESSA COrrupgdo assume, da seguinte maneira: 2 Contudo, a presenga das mulheres nas artes © humanidades & ainda viclosaments sustentada. pelos poucos homens Testantes, fem proporgio a inseguranga de ‘sua propria posgio, — partic ‘aularmente precéria'nas escolas tradicional, humanists, como & pinta figurativa 193 1) Ante de Protesto Masculino — A arte que cons- cientemente glorifica a realidade masculina (contratie ‘mente a se supor que ela constitua a propria realidade) & ‘apenas uma manifestagio recente. Vejo-a como uma res- posta direta & ameaca & supremacia masculina, contida no primeiro enfraquecimento dos rigidos papéis sexuais, Essa arte € reaciondria por definiclo. Recomendo um exame ‘maior de sua personalidade aos homens que acreditam ue essa arte expressa melhor o que eles vivem e sentem. 2) O Angulo Masculino — Essa arte néo consegue atingir uma visio de mundo ampla, porque nfo reconhece ‘que @ realidade masculina nio é a Realidade, mas apenas ‘uma metade da realidade. Assim, sua retratagio do sexo ‘oposto e de seu comportamento (metade da humanidade) ¢ falsa: o pr6prio artista nao compreende os motivos fet ninos. Algumas vezes, como na historia de Herbert Gold, tada por nés, os personagens femininos podem ainda se sair bem, se 0 autor tiver sido honesto, ao menos no ‘como — se nio 0 foi no porque — de seu comportamento. Um exemplo mais conhecido: o personagem Cata- rina, no filme Jules ¢ Jim, de Truffaut, 6 tirado da vida real. Existem, em toda parte, muitas dessas vamps e femmes fatales, na realidade, mulheres que recusam acei- tar sua impoténcia. Para conservar uma ilusio de igual- dade, e ganhar um poder indireto sobre os homens, Ca- tarina deve valer-se do “mistétio” (Esfinge), da impre- visibilidade (atirando-se no Sena), e da astécia (dor- ‘mindo com 0 Homem Misterioso, para manté-lo preso). ‘Quando, no fim, como todas as mulheres, ela perde até seu poder ilegitimo, seu orgulho nio admite a derrota, Ela ‘mata o homem que ousou libertar-se dela, e depois se ‘mata, Mas, mesmo aqui, numa arte tragada com esmeto, surge 0 preconceito masculino. O diretor prossegue com @ mistica da Mulher Misteriosa; nfo investiga para desco- brir o que esti por trés dela. Além do mais, ele nfio quer saber: ele a usa como uma fonte de erotismo. A imagem que fazemos de Catarina 96 aparece através de um véu. 3). Mentalidade Andrégina (Cultivada Individual- ‘mente) — Mesmo quando as limitagSes sexuais tenham 194 sido superadas pelo artista individualmente, sua arte re- vela uma realidade tornada feia por essa’ divisio. Um exemplo breve, de novo tirado do cinema: apesar dos diretores suecos serem notavelmente livres de preconcei- tos sexuais pessoais — as mulheres que eles retratam so rimeiro humanas, © depois mulheres — a retratagio que Liv Ullman faz da Nobre Esposa que acompanha fiel- ‘mente © marido em sua crescente loucura (A Hora do Lobo, de Bergman) ou que o ama em sua degeneracio moral (Vergonha, de Bergman), ou a sensibilidade con- fusa de Lena Nyman em Eu Sow Estranha (Amarela), de ‘Sjoman, sto descrigGes no de uma sexualidade liberada, ‘mas de um conflito ainda nfo resolvido entre as identi- ddades sexual ¢ humana. 4) Arte Femining — £ esta uma nova manifesta¢do, que niio deve ser confundida com a arte “masculina”, ‘mesmo que, por enquanto, ela seja culpada do mesmo reconceito, ao inverso. Pois ela pode significar o inicio de uma nova conscigncia, em vez de uma ossificagéo do antigo. Dentro da década seguinte, poderemos assistit a0 seu desenvolvimento em uma nova arte poderosa — tal- vvez surgindo em conjuncao com 0 movimento politico feminista, ou inspirado nele — que, pela primeira vez, se relacionaré com a realidade na qual as mulheres vivem, Podemos também assistir a um Criticismo feminista, dando énfase, para cortigi-las, as varias formas de precon- ceito sexual ‘que hoje corrompem a arte. Contudo, em nossa terceira categoria, que fala de uma arte culpada de s6 refletir 0 valor humano de uma realidade sexual- ‘mente dividida, deverd ser tomado muito cuidado para que © criticismo seja orientado nao para os artistas, em fungio de sua retratacgo (apurada) da realidade incomplete, mas para o absurdo dessa propria realidade, como foi revelada pela arte, Somente uma revolugto feminista pode eliminar-com- pletamente. dessas_distoreSes cul ite pura” se torne uma ilusdo — Ein Tetbo responsive, tanto pels aris amztaticn pro la até agora pelas’ mulheres quanto pela corrupsao 195 da cultura (masculina) em geral. A incorporagto da me- tade desprezada da experiéncia humana — a expeiéncia ‘no organismo cultural, para criar uma cultura eaene apenas o primeiro passo, uma precondigio, Mas, 0 proprio cisma da realidade deve ser destru‘do, para que possa haver uma verdadeira revolugto cultural, 196 IX. DIALETICA SEXUAL DA HISTORIA DA CULTURA Por enquanto, tratamos a “cultura” como sinénimo de “artes e letras, ou no seu sentido mais amplo de “humanidade”, Essa é uma confusio bastante comum. Entretanto, ela € surpreendente em seu contexto, Pois descobrimos que, embora relacionadas com a arte, ainda 4que 36 indiretamente, as_mulheres foram totalmente ¢5- cluidas de uma metade igualmente importante da cultura: acigncig. Se, 20 menos no setor das artes, conseguimos Gheontrar material sobre a relagGo das mutheres com a cultura — seja indiretamente, como influéncia, estimulo, ou tema, seja até ocasionalmente, como participantes di- relas — suficiente para preencher ao menos um capitulo, com muita dificuldade descobrimos uma relacfo das mu- Theres com a ciéncia, digna de discussio. Talvez no senti- do mais geral, nossa afirmagio de que as mulheres sko ra — mas estendemos o problema para cluir a ciéncia moderna, onde 0 método empirico, espe- cificamente, requer a exclusio da personalidade do cien- tista de sua pesquisa. A satistaco de suas necessidades emocionais através de uma mulher, nas suas horas vagas, pode tornd-lo mais estavel, e assim mais calmo no tra- balho, mas isto é forcado. 197 Porém mesmo que a relagio indireta das mulheres com a cigncia seja discutivel,€ certo que ndo existe uma relagdo direta entre elas. Terfamos que sondar, para encon- trar uma s6 mulher que tenha contribuido de um modo importante para a cultura cientfica. Além do mais, a situagio das mulheres na cigncia nfo esté melhorando. Mesmo tendo o trabalho de pesquisa passado das inteli séncias mais completas do passado para pequenos grupos de pesquisa pragmitica nas universidades, existe um n- ‘mero extraordinariamente pequeno de mulheres cientistas. Essa auséncia de mulheres em todos os niveis das disciplinas cientficas € de tal forma um lugar-comum que muita pessoas (também inteligentes) so. levadas 4 atribui-lo a alguma defcitncia (I6gica?) das préprias mulheres. Ou as proprias predilegées das mulheres pelo emocional e 0 subjetivo em vez do pritico e do racional Mas a questo nfo pode ser tratada assim tio simples. mente. E verdade que as mulheres, na ciéncia, estio em territrio alheio — mas, como esta situagio evoluiu? Por 4que exisiem discrplnas, ou ramos de pesquisa que 36 re- querem uma mente “masculina"? Por que uma mulher, ara se qualificar, precisa desenvolver uma_psicologia alheia? Quando ¢ por que a mulher foi excluida desse tipo de pensamento? Como © por que a ciéncia veio a ser definida e restrita ao “objetivo"? Proponho que no s6 as artes e as humanidades fo- ram_corrompidas pela dualidade sexual, mas t 2 Sackler cements ae Pst Que a cultura reflete essa polaridade na sua prépria orga- nizacdo. C.P. Snow foi o primeiro a observar o que se 1. Eu fiquet engaseadn com isso. num recente seminitio do Women's Liberation programado pelo departamento de ciéncas ‘de uma univesidade de alto nivel do Leste, Das cinglenta, Theres presentes, apenas uma ou duas estavam envolv pesquisa, sem fi tomava cada vez mais dbvio: uma profunda fratura na cultura — as artes liberais e as ciéncias tinham-se tor- nado incompreensiveis umas para as outras. Além disso, embora 0 homem universal da Renascenca seja muito Ia: mentado, a especializagio nfo péra de se intensificar. Esses so alguns dos modernos sintomas de uma longa doenga cultural, baseada no dualismo sexual. Exam ‘nemos a hist6ria da cultura, de acordo com esta hipétese: de que existe uma dialética do sexo subjacente a ela 1. Os Dois Modos da Historia Cultural Para efetuar nossa andlise, precisamos defini a cultu- ra do seguinte modo: a cultura é a tentativa dos. homens de realizar 0 imaginével no possivel. A conscitacia que 0 hhomem tem de si mesmo, dentro de seu meio-ambient, sistingue-o dos animaisinferiores, e transforma-o no tinico animal eapaz de fazer cultura, Bssa consciéneia, sua fa culdade mais elevada, permite ao homem projetar mental- mente estados de ser que nao existem no momento. Capaz dde construr um passado e um futuro, ele se torna uma criatura do tempo — um historiador ¢ um profete, Mais do que isso, ele pode imaginar objets ¢ estados de ser que munca existiram podem nunca chepar a exisir n0 mundo real — ele se tora um fazedor de arte. Assim, or exemplo, embora os gregos antigos nio soubessem voar, ainda assim cles poderiam imaginé-lo. O mito de Tearo foi a formulagio, na fantasia, da concepcdo dos sregos do estado de “vou” Mas 0 homem nao foi somente capaz de projetar © imagingvel na fantasia. Também aprenden a impé-lo A realidade. Acumulando conh pulé-la, cle pode moldé-la a seu gosto. Esse actimulo de habilidades para controlar o meio-ambiente, a tecnolo- ‘sia, € um outro meio de atingir o mesmo objetivo, a reali zagdo do concebivel no possivel. Assim, em nosso exem- plo, se, na era a, C, 0 homem podia voar no tapete mé- 199 Bico do mito ou da fantasia, no século XX sua tecnologia, (© aciimulo de suas habilidades priticas, tornou possivel para ele voar na realidade — ele inventou 0 avido. Outro exemplo: na lenda bfblica, os judeus, um povo agricultor desamparado durante quarenta anos no deserto, foram su- ppridos de mand por Deus, uma substincia milagrosa que poderia ser transformada ‘em alimentos de qualquer cor, textura ow sabor, O proceso moderno de nutrigéo, so- bretudo com a “revolugéo verde”, provavelmente criaré fem breve uma produgdo de alimentos totalmente artf Cais, talvez.com esses atributos do camaleo. Além disso, na Ienda antiga, o homem podia imaginar espécies mistas, P.ex., 0 centauro ou o unicéenio, ou péssaros hibridos, como um animal nascido do homem, ou uma concep¢ao jimaculada. A revolugio biolégica em curso, com seu cres- cente conhecimento do processo de reproducdo. poderia ‘agora — mesmo que somente nos estagios mais grosseiros — criar essas “monstruosidades” na realidade, Duendes © gnomos, o Golem do saber medieval judaico, 0 monstro de Mary Shelley em Frankenstein foram construgOes ima- vérias que precederam em vérios séculos 0 acume tecno- Togico correspondente. Muitas outras construcGes fantés- ticas — os fantasmas, a telepatia, a idade de Matusalém — aguardam a sua realizagio pela cigneia moderna. Essas duas ress iferentes, a idealista e a ci ‘ioe entre els A eo Sate ‘mente, somente meio século na frente da revolucio cien- tifica, ¢ agora coexiste com ela, que a esté transformando em realidade — um exemplo (inofensivo): 0 voo & Lua. As expressbes “way out”, “far out”, “spaced”,* a observa- ‘slo “6 como se fosse uma fice’ cientfica” so lingua ‘gem comum. Na resposta estética, pelo fato de ela sempre se desenvolver antecipadamente, e assim ser 0 produto * Referomse ests expresies a pessoa “viajando” ou “destgnda™ em angio do bso de drops. (NT) 200 de uma nova era, a mesma realizagio pode assumir uma forma sensacional ou fantéstica, p. ex, 0 monstro de Frankenstein, oposta, por assim dizer, as méquinas faz-tu do da General Elec: CAM (Miquinas Antropomét ficas Cibernéticas). (Um artista pode nunca chegar a saber, antecipadamente, como sua visio poderia ser arti- calada na realidade.) ‘A caltura 6, portanto, a soma ¢ a dintmica entre of dog Haley Geese dag sae oma Tata OREO Slits Hmagbes Ws contngtnlas Ja eaidade tipos stas_culturais: juzem diferentes métodos ara alcangar o mesmo fim, a ‘mento de uma imagem visual dentro de algum limite arti- ficial, digamos quarenta centimetros quadrados de tela, (quer através de imagens visuais projetadas através de sim- bolos verbais (poesia), ou com sons ordenados numa se- aligncia (mtsica), ou idéias verbais ordenadas em progres- io (teologia, filosofia) — o homem cria um mundo ideal, governado exclusivamente por uma ordem ¢ harmonia ar- tificialmente impostas por ele, uma estrutura na qual ele conscientemente relaciona cada parte estivel (e, portanto, eterna”). © grau em que ele abstrai sua criagao da rea lidade néo tem importincia, pois mesmo quando mais parece imitar, ele cria uma ilusio dirigida por seu préprio talver secreto — conjunto de leis artificiais. (Degas isse que o artista tinha que mentir para dizer a verdade.) Essa busca pelo ideal, realizada através de um meio artfi- ial, podemos chamar de Modo Estético. No segundo tipo de resposta cultural, as contingén- cias da realidade slo vencidas, no através da eriaglo de uma sealidade substitutiva, mas através do dom{nio do proprio funcionamento da realidade. As leis da natureza 2. © modo iealta, que coresponde srostiramente 20 modo de penmmento, smetatiico’, suprastéeo ¢ néo-meterlis, ‘Sonia 0 gual Marx ¢ ngs se rovollaam, 201 silo descobertas, e depois voltadas contra ela, para mol- {é-la de acorda com a concepeio do homem. Se existe lum veneno, 0 homem supe que existe um antidoto; se existe uma doenga, ele procura a cura. Todo fato da na- tureza que & compreendide pode ser usado para maid. se procedimento mais 4rdu0,,80: Bretudo. nos_primeizos.cstigios.do.conhecimento, Pois_a sia. ¢-Inrenda maquina da-naturera_pode exit: ie aad noah ee mana, p.ex., a morte, possa ser descoberta, os processos naturais de’erescimento ¢ decomposigdo devem ser cata- Togados, as leis mais simples serem relacionadas as mais complexes. Esse método cientfico (também tentado por Marx e Engels em seu enfoque materialista da Hist6ria) 2a tentativa do homem de dominar a natureza, através da compreensio total de sua meciinica. A coagio da rea- Tidade para conformé-la & concepeio ideal do homem, mediante a aplicagio da informagdo extrapolada dessa, realidade, chamaremos_de_Modo_Tecnol6s mos a cultura como # soma e a dialetica entre 08 dois modos diferentes através dos quais o homem pode resolver a tensio eriada pela flexibilidade de suas facul- dades mentais dentro das limitagSes de seu meio-ambiente dado, A correspondéncia desses dois modos culturais dife- rentes respectivamente com os dois sexos é inconfun- divel. Observemos como as poucas mulheres que criaram diretamente a cultura tenderam para as disciplinas dentro do Modo Estético. Existe uma boa razio para isto: a res- posta estética corresponde a0 comportamento “feminino”. ‘A mesma terminologia pode ser aplicada a qualquer dos ois: subjetivo, intuitivo, introvertido, fantasista, sonha- dor, relativo ao inconsciente (ao id), emocional, até tem- pperamental (histérico). Analogamente, a resposta tecno- légica é a resposta masculina: objetiva, lézica, extrover- tida, realista, relativa & mente consciente (20 ego), racio- nal, mectnica, pragmética ¢ terra-a-terra estvel. Assim, 202 a estética & a recriacdo cultural daquela metade da estri~ tura psicolégica que foi reservada as mulheres, enquanto que a resposta téenica 6 a magnificacio cultural da me- tade masculina. Assim como admitimos que a divislo biol6gica dos sexos em funcio da procriagio € a dualidade “natural” fundamental a partir da qual nasce toda a divisio de xual é também a raiz dessa divisio cultural fundamen- tal, A interago entre essas duas respostas culturais, 0 Modo Tecnolégico “masculino” ¢ 0 Modo Estético “fe- ia ainda, num outro nivel, a dialética dos sexos — bem como ‘sua superestrutura, a dialética de classes econdmicas e raciais, E assim como a fusio das distintas classes sexuais, raciais e econdmicas 6 uma pre- eondigio para a revolugio respectivamente sexual, racial ‘ou econémica, assim a fuséo da cultura estética ‘com a tecnolégica 6a precondigio para uma revolugdo cultu- ral, E assim como a meta revolucionéria das revolugdes sexual, racial ¢ econdmica é, em vez de um mero nive~ Iamenio dos desequilibrios ‘de classe, uma eliminagio total das categorias de classe, assim o resultado final de uma revolugdo cultural deve ser, nfo meramente a inte- ‘graco das duas correntes da cultura, mas a eliminacéo dde todas as categorias culturais, cultura, como. 165 Mas, antes de discutir @ revolugio cultural definitiva, ou mesmo o estado da divisio cultural na nossa época, vejamos como esse ter- ceiro nivel da dialética do sexo — a interac entre os Modos Teenolégico e Estético — operon para determi- nar o fluxo da histéria cultural. Tnicialmente, 0 conhecimento tecnolégico se acumu- lou Ientamente. Gradualmente 0 homem aprendeu a con- tuolar os aspectos mais rudes de seu meio-ambiente — descobriu a ferramenta, 0 domfnio do fogo, a roda, a fundicdo do minério para fazer armas © arados, até, fi- nalmente, 0 alfabeto — mas essas descobertas foram ‘muito poucas, em virtude de ele ainda nfo dispor de nenhum modo sistemtico de iniciaggo. Contudo, final- mente acumulou suficiente conhecimento prético para 203 construir sistemas complexos, p.ex., a medicina ou a Arquitetura, para criar insttuigbes juriicas, politicas, so ciais © econdmicas, A civilizagdo evoluiu de uma horda cagadores primitivos para uma sociedade agricola, ¢, finalmente, através de estigios progressivos, para o feu dalismo, © capitalismo eas primeiras tentativas de socialism, Mas, durante todo esse tempo, a habilidade do ho- mem de imaginar um mundo ideal esteve bem a frente de sua habilidade de crié-o, As formas culturais primé- sas das civilizagdes antigas — a reigiio © suas ramifi cagdes, a mitologia, a lenda, a arte e a magia primitivas, 4 profécia e a histéria — aconteciam no Modo Estético, Elas impuseram apenas uma ordem artificial, imagindria a um universo ainda misterioso © caético. Mesmo as teorias cientiicas primitivas eram apenas metéforas poé- ticas do que mais tarde seria realizado empiricamente. A cigncia, a filosofia e a matemética da antiguidade clés- ‘ica, precursoras da cigncia moderna, atraves de proezas imaginativas simples, operando num 'vécuo, independen- ‘es de leis materiais, anteciparam muito do’ que foi com- pprovado mais tarde. O tomo de Demécrito © a “subs- tincia” de Lucrécio prenunciaram milhées de anos antes as descobertas da ciéncia moderna, Mas elas foram rea- lizadas somente no dominio do Modo Estético, um do- minio imagindtio. Na Idade Média, a heranga judaico-crsti foi assi- milada a cultura pagi, produzindo a arte religiosa me- dieval, a metafisica de Tomas de Aquino © da Escolés- tica, Embora, simultaneamente, a cigncia érabe, um pro- duto do Perfodo Alexandrino Grego (século Ill a.C. a0 século VII dC.) estivesse acumulando informagio con- siderdvel em reas como a geografia, a astronomia, a siologia, a matemética — uma tabulaglo essencial para © empirismo posterior — havia muito pouco dislogo. A ciéncia ocidental, com sua alguimia, sua astrologia, os “humores” da medicina medieval, era ainda um estigio “pseudocientiico”, ou, em nossa definiglo, ainda opera- va de acordo com o Modo Estético, Essa cultura estéti- 204 ea medieval, formada pelas herangas clissica e cristi, calminou no Hamanismo da Renascenga. ‘AtG a Renascenga, a cultura aconteccu no Modo Estétco, porque antes dessa época a tecnologia tinha sido muito rudimentar, o corpo do conhecimento cie fico estava muito longe de ser completo. Em termos da dialética. sexual, esse longo estigio da histéria cultural corresponde ao estigio matrarcal da civilizacdo: 0 Prin- cipio Feminine — escuro, misterioso, incontrolavel reinava, exaltado pelo proprio homem’ainda em respeito a insondével Natureza. Os homens de cultura eram os Drincipais sacerdotes do culto. Até ¢ durante a Renascen- {¢4 odes os homens de cultura foram profissionais. do ‘Modo Estético idealist, portanto num certo sentido artis- tas, A Renasoenga, o apogeu do humanismo eultaral, foi a idade de ouro do Modo Estétco (feminino).. E também o inicio de seu fim. Por volta do século XVI a cultura softia uma mudanga tio profunda quanto ‘4 mudanga do matriarcado para o patriarcado, em termos 4a dialétca sexual, e eorrespondente a0 declinio do feu- dalismo na dialética de classes. Essa foi a primeira fusio a cultura estética com a teenolégica, representada na eriagio da ciéncia (empirica) moderna, Na Renascenga, a Escoléstica Aristoélica tinha-se conservado poderosa, embora jé fossem visivels a8 pri- meiras fendas na represa. Mas foi 96 depois de Francis Bacon, quem primeiro propds usar a cigncia para “esten- der mais além os limites do poder e da. grandeza do homem”, que a unio dos Modos foi consumada, Bacon © Locke transformaram. a filosofia, a tentativa de com- preender a vida, de uma especulagio abstrata desligada do, mundo real (metafisca, ética, teologia, estética, 6gi- ca) em uma descoberta das leis reais da natureza, atta- ‘és da experiéncia © da demonstracdo (ciéncia empitica), No método emptico proposto por Francs Bacon, ‘© insight © a imaginagio deveriam ser usados exclusi mente nos primeiros estégios da investigagio. Seriam con- cxbidas hipéteses experimentais pela indugio a partie dos fats, e, em seguida, as consequéncias seriam deduzidas logicamente e testadas pela consisténcia entre clas e pela 205 conformidade com os fatos elementares © com os resul- tados de experimentos ad hoc. As hipsteses s6 se toma- iam uma teoria aceita depois de terem passado por todos fs testes, e permanecerem, ao menos até prova em con- ttirio, uma teoria capaz de predizer os fendmenos num alto grau de probabilidade. ‘A visiio empirica sustentava que, registrando e tabu- lando todas as observagies e experimentos possiveis dessa maneira, a Ordem Natural automaticamente emergiria. Embora inicialmente a pergunta sobre o “porqué” fosse ‘ainda mais freqlentemente solicitada do que a pergunta sobre 0 “como”, logo que a informaco comegou a ‘acumular-se, cada descoberta somando-se & anterior para completar 0 quebra-cabeca, os especulativo, o intuitive (© imaginative gradativamente tornaram-se ‘menos valio- sos, Outrora, quando os fundamentos iniciais foram assen- tados por homens da estatura de Kepler, Galileu ¢ New- ton — pensadores ainda inspirados na tradigfo cientfi- ‘ca “estética” — centenas de téenicos anénimos puderam se deslocar para preencher os espacos vazios, 0 que Ie- vou ao inicio de uma idade de ouro da ciéncia, em nos- se propria época — ie, ao Modo Tecnol6gico, corres pondente ao que o Modo Estético tinha sido para a Renascenca. As Duas Culturas Hoje Agora, na década de 1970, estamos experimentan- do uma ruptura cientifica importante. A nova relatividade, e as teorias astrofisicas da ciéncia contem- porfinea foram jé formuladas na primeira parte deste séeulo, Agora, na tltima parte, estamos chegando, com 2 ajuda do microscépio eletrénico e de outros instrumen- tos novos, a feitos semelhantes na biologia, na bioqui- ‘mica, e em todas as ciéncias da vida. Descobertas impor- tantes so feitas anualmente por pequenas equipes de trabalho, espalhadas por todos os Estados Unidos, bem ‘como por outros paises — da magnitude do DNA em 206 genética, ou do trabalho de Urey e de Miller, no infcio da década de 50, sobre as origens da vida. Estamos per- to do dominio fotal do processo reprodutivo, ¢ houve avangos significativos na compreenstio do processo Basico da vida e da morte, A natureza do envelhecimento e do erescimento, do sono ¢ da hibernagdo, o funcionamento Guimico do’ érebro © o desenvolvimento da consciéncia €-da meméria tudo esti comerando a ser compreendi do em sua totalidade, Essa accleragdo promete continuar por talvez um outro século, nfo importa, quanto tempo cja preciso para realizar a meta do Empirismo: « com- preensio total das leis da natureza. Essa acumulagio surpreendente de conhecimentos cconcretos em apents algumas centenas de anos & 0 re- Sultado do desvio da filosofia de um Modo Tecnolézico. ‘A associago da ciéucia “pura”, a ciéncia do Modo Es- tético, com a tecnologia pura provocou um progresso na diregio da meta da tecaologia — a realizagio do con- cebivel no mundo real — maior do que tinha sido alean- ‘gado em milhdes de anos da histria anterior. (© proprio Empirismo é apenas o método, uma téo- nica mais penetrante e mais eficaz, para a realizagio da meta cultural méxima da tecnologia: a construgio do ideal no mundo real. Um de seus ditados bésicos & de que uma certa quantidade de material pode ser reunida arrumada em categorias, antes que qualquer compara a0 decisiva, anilise ou descoberta possa ser feita. Em Mista disso, os séculos de cigncia empirica ultrapassaram ‘um pouco, em termos de tempo, o periodo da construséo dos fundamentos para as rupturas de nossa pr6pria ép0- ca e do futuro, O actimulo de informagao ¢ de compreen- Siio das leis e dos processos mecfnicos da natureza (“pes- € meramente um meio para um objetivo a compreensio total da Natureza, a fim de controléla finalmente, ‘Nesse panorama do desenvolvimento e dos objetivos da histGria cultural, a meta final de Engels, citada ante- Fiormente, no contexto da revolugio politic, € outra vez gna de citasio: 207 “A esfera total das condigdes de vida que envolvem 0 hhomem, e que até agora o dirigiram, fica agora sob o dominio 0 controle do homem, que pela primeira Vez se torna o ver~ dadeiro e consciente Senhor da Natureza.” ‘A cifncia empitica representa para a cultura 0 que 1 mudanca para o patriareado foi para a dialética sexual, © 0 que o perfodo burgués é para a dialética marxista — um estégio moderno antes da revolugto, Além disso, as trés dialéticas estéo integralmente relacionadas entre tanto vertical quanto horzontalmente, A ciéncia em ica origingria da burguesia (0 periodo burgués 6 em si mesmo um estigio do periodo patriarcal) sucede a0 humanismo da aristocracia (0 Principio Feminino, 0 ma. triarcado), e, com seu desenvolvimento do método empi- rico para armazenar conhecimento legitimo (0 deseavol vimento da indéstria modema para acumular capital), finalmente acaba por expulsar a si mesma da Histér © corpo das descobertas cienificas (os novos modos produtivos), consegue finalmente superar o modo empi- (capitalista) de usé-las. E, assim como as contradig6es internas do capitalis- ‘mo se tomario necessariamente cada vez mai © mesmo deverd acontecer com as contradigées internas da cigncia empirica — como no caso do desenvolvimen- to do conhecimento puro, quando ele chega ao ponto de assumi uma vida propria, p.ex., a bomba at6mica, En- quanto © homem estiver empenhado somente com 0 mé- todos para sua realizaclo final — o registro das con s8es da natureza, a acumulagdo de conhecimento “puro” — 0 controle da natureza, que é o saber do homem, pelo fato de nfo ser completo, sera perigoso. Tao pe~ rigoso que muitos cientistas se perguntam se deveriam [por um limite em certos tipos de’ pesquisa, Mas esta so- ugh 6 iremediavelmente inadequada. A méquina do empirismo tem seu proprio momentum e, pata estes fins, esté completamente fora de controle, Podetiamos deci. Gir realmente 0 que descobrir ou nio descobrir? Isto & Por definigao, antitético ao processo empirico total acio- nado por Bacon, Muitas das mais importantes descober- 208 tas foram praticamente acidentes de laboratério, com implicagdes sociais compreendidas somente pelos cientis- tas que esbarraram com elas. Por exemplo: hé apenas cinco anos, 0 professor F. C. Steward, de Cornell, des- cobriu um’ processo chamado cloning: ao colocar uma iples célula de cenoura numa substincia mutriente ro- tativa, ele conseguiu produzir uma Iimina inteira de c&- lulas de cenoura idénticas, a partir das quais finalmente recriow a mesma cenoura. A compreensio de um proces- so andlogo referente a céiulas animais mais evoluidas, no caso de escapar ao controle — como aconteceu com as experiéncias com drogas “alucinégenas” — pod algumas implicagoes aterradoras. Ou, além disso, imagi nem a partenogénese, o parto da virgem, como 6 pra cado por um género de insetos, aplicado de fato a fer- tilidade humana, Uma outra contradieéo no interior da ciéncia empf- rica: a vistio-de-mundo mecanicista, determinista, cienti- fica “fria", que é 0 resultado dos métodos, mais do que dos objetivos finais (inerentemente nobres ¢ geralmente esquecidos) do Empirismo, a saber, a realizacio do ideal nna realidade, © proprio cientista paga um prego particularmente elevado, desumanizando-se, tomando-se pouco mais que um técnico cultural, Pois, ironicamente, para acumular apropriadamente a informagéo que leva a um conheci- ‘mento concreto ¢ amplo do universo & preciso uma men- talidade ampla integrada. Embora, no fim de tudo 03 esforgos individuais dos cientistas possam levar a domi- na¢o do meio-ambiente em beneticio da humanidade, ‘temporariamente 0 método empftico requer de seus pré~ prios praticantes que se tornem “objetivos”, “mecanicis- tas”, superpreciosos. A imagem piiblica do Dr. Jekyll vestido de branco, sem sentimentos por seus pacientes, simples porquinhos-de-india, nio totalmente falsa. No existe lugar para os sentidos no trabalho do cientista, Ele € obrigado a climiné-los ou a isolé-los, lidando ape- ‘nas com riscos ocupacionais. Na melhor das hipéteses, cle pode resolver esse problema, separando seu eu pro- fissional de seu eu pessoal, compartimentando sua emo- 209 ‘glo, Assim, embora geralmente bem versado num senti- do académico em artes — a freqlléncia disso 6, pelo me~ nos, maior do que a de artistas bem-versados em ciéncia — cientista geralmente no est em contato com suas femogées e sensagées diretas, ou, na melhor das hipéte- ses, 6 emocionalmente dividido. Sua vida “privada” ¢ sua vida “piblica” sio divididas; e, por sua personalidade ‘ndo ser integrada, ele pode ser surpreendentemente con- vencional. (“Quetida, eu descobri hoje como reproduzir pessoas no laboratério, Agora, j4 podemos sair para esquiar.”) Ele nfo sente contradigo por viver conven cionalmente, nem mesmo por ir 2 igreja, pois nunca inte~ ‘grou 0 espantoso material da cigncia modema com sua vida cotidiana, Geralmente, & preciso que sua descoberta seja usada impropriamente para alerté-lo para esta cone- xo, que esti h muito tempo sepultada em sua mente. + © -catilogo_ de. vicios_cientificns_¢ bem. conhecido: le_em_geral_duy ‘icios “mas- gulings”, Isto era de esperar. Se 0 Modo Tecnoldgico @volui do Principio Masculino, entéo deduz-se que seus praticantes desenvolveriam as deformagdes da personali- ‘dade masculina ao extremo, Mas deixemos a ciéncia por ‘um momento, querendo acelerar a revolugdo cultural, de- finitiva, para compreender 0 que, nesse meio-tempo, tinha acontecido & Cultura Estética propriamente dita. Com a filosofia, entendida no sentido cléssico mais geral — incluindo a’ ciéncia “pura” — a imperfeita cul- {ura estética tornou-se cada vez mais limitada ¢ encrava- da, reduzida as artes ¢ as humanidades, no sentido refi- nado em que n6s as conhecemos hoje. A arte (daqui em diante referente as “artes liberais”, especialmente &s artes e letras) sempre foi, na sua propria definicao, uma busca pelo ideal, separada do mundo real. Entretanto, nos seus rimérdios, ela foi a serva da religiso, articulando 0 so- ‘nho comum, objetivando “outros” mundos da fantasia co- mum, p.ex, a arte dos tdmulos egipcios, para explicar € justificar esta iltima, Assim, embora tenha-se afastado do mundo real, ela serviu a uma importante funcd0 so- cial: satisfez artificialmente aqueles desejos da sociedade que néo podiam ainda ser realizados na realidade. Em- 210 ora tenha sido patrocinada e sustentada exclusivamente pela aristocracia, a elite culta, ela nunca esteve tio des- ligada da vida quanto mais tarde se tomou. Pois a so- ciedade daqueles tempos era, para todos os fins priticos, inénimo da classe dominante, fosse ela o sacerdécio, a ‘monarquia ou a nobreza. As 'massas nunca foram con~ sideradas pela “sociedade” como parte legftima da huma- nidade, Elas eram escravas, nada mais do que animais Jhumanos, zingdos, ou servos, sem o trabalho das quais ‘a pequena elite culta jamais se teria conservado. ‘A pressio gradual exercida sobre a aristocracia pela sor isl ais asa eo de altura estétiea Vimnos.que.o capitalismo intensficon ores earacterflicas do pattarcado, por exemplo, como lear emergiu do yasto e impreciso Tar do reforgar o eafraquecio. sistema. de classes if cris ainda_m; rofundamens-do-aue-ants, © modo colar {0 por esta nova burguesia excessivamente patriaral fo ‘© Modo Tecnolégico “masculino” — objetivo, realista, ‘eonereto, de “senso comum” — em vez do afeminado, espiritual Modo Estético “romantico idealista”. A bur- guesia, buscando 0 ideal no real, cedo desenvolveu a cigncia empirica que descrevemos, Quando admitiam al- ‘guma utilidade remanescente na cultura estética, isto ocor- ria apenas na arte “realista”, oposta a arte “idealista” da antignidade cléssica, ou & afte abstrata religiosa dos pe- riodos primitivos ou medievais. Interessaram-se, durante ‘algum tempo, por uma literatura que descrevesse a rea~ lidade — melhor exemplificada pela novela do século XIX — e por uma arte de cavalete decorativa: nature- ‘zas-mortas, retratos, cenas de familia, interiores. Foram ‘construidos museus ¢ livrarias puiblicas, a0 lado dos_ve- Thos sales © galerias privadas. Mas, com sua solidifica- ‘so como uma classe segura, até principal, a burguesia ‘nfo precisou mais imitar a cultura aristocritica. Com 0 rapido desenvolvimento de sua nova ciéncia © tecnologia, (© pouco valor prético que atribuia a arte se eclipsou. Tomemos, por exemplo, o desenvolvimento cientifico da ‘méquina fotogréfica, Logo a burguesia deixou de precisar 2 dos pintores de retrato; a cémara se mostrou muito mais precisa do que os pintores ¢ novelistas, A arte “modema” foi uma represilia (épater le bourgeoisie) violenta, embora responsivel afinal pelo proprio malogro, ditigida contra estes danos; a evapora- ‘so da fungo social da arte, 0 rompimento do cordio ‘umbilical social, a reduedo das fontes antigas de patro- nato, A tradico da arte moderna, associada inicialmente a Picasso e Cézanne, e incluindo todas as principais esco- las do século XX — cubismo, construtivismo, futurismo, ismo, surrealismo, expressionismo ‘abstrato, © — nfo constitui uma expresso autén- tica da modemidade, por mais que seja uma reacio 20 realismo da burguesia. O pés-impressionismo rejeitou de- liberadamente todas as convencOes afirmadoras da reali- dade, Na verdade, 0 proceso comecou com 0 préprio impressionismo, que destruiu a ilusfo em seus valores formais. engolindo a realidade ¢ cuspindo-a de novo como arte, e finalmente levou a um purismo da “arte-pela-arte”, uma negacio total da realidade que acabou tornando-a inexpressiva, estéril e até absurda, (Os motoristas de téxi so filisteus: eles reconhecem uma sacanagem quando a ‘veem.) A deliberada violaclo, deformago e fraturamen- to da imagem, chamada arte “moderna”, nflo foi seniio uma destruigio de fdolos durante cinglienta anos, que acabou levando ao impasse cultural do presente. No século XX esgotou-se a energia e nullificou-se ‘completamente a funcfio social da arte. Bla é despejada nnas classes rricas remanescentes, constitufdas por aqueles nouveaux riches — particularmente os da América, que ainda sofriam um complexo de inferioridade cultural — ‘empenhados em provar que tinham “‘acontecido”, eviden- ciando um gosto pela cultura. Varios fatos testemunham 1a morte do humanismo estético: 0 seqilestro dos intelec- tuais em universidades-torres-de-marfim, onde, excetuat do 0 caso das cincias, seu trabalho teve muito pouca tepercussio no mundo exterior, independente do brilhat tismo de cada um (e eles nio so brilhantes, porque nfo ddispem do feed-back necessério para sé-10); 0 obscuro — em geral literalmente ininteligivel — jargo das citn- 212 clas sociniss as lteraturas de panelinhss, publicadas tx- mestralmente, com sta poesia esotrica; as galeria © mu- seus chigues’da 57th Street (no € por acaso que elas ficam ao lado da Saks Fifith Avenue ¢ de Bonwit Teller), sustentadas, na_sua_maioria, por tipos sofisticados de homens desmunhecados; também o estabeleimento cx tico vultuino, que prospera A eusta dos vestigos do que outrora foi uma cultura grande e vital. Nos séculos em que a ciéncia galgou novas atures, a arte decaiu, Seu nascimento forgado transtormou-a num e6digo secreto. Por definigéo eseapista da realidade, a arte hoje se voltou a tal ponto para si mesma, que cor- roeu seus prOprios érgfos vitsis, Tomou-se doente — com uma autecompaixio ¢ timidez neuréticas, concen- trando-se no passado (em oposigéo a orientagéo futura da cultura teenoldgica) © assim congelando-se em con- vengées academias, ortodorias das quais a “‘vanguarda” E apenas a mais recente. Sustentam-na a5 lembrangas de ras passadas, os Grandes Velhos Tempos Em Que a Beleza Ainda Florescia. Tomou-se pessimista nlista, cada vez mais hostil & sociedade em geral, os “flisteus”. E, quando a jovem ¢ arrogante Cigncia tentow cortejar a”Arfo-na sua torre — eventualmente um s6tio — de ‘mirmore, com falsas promessas de um amante cortja- dor ("Voet agora j4 pode descer, estamos tomando: 0 rmundo cada dia melhor”), a arte recusou-se, mais ve- ementemente do que nunca, a lidar com ela, muito me- ‘nos aceitou seus presentes cormuptos, reirando-se ainda ‘mais em sias fanlasias: neoclasscismo, romantismo, ex- pressionismo, surrealismo, existencialismo. © artista e o intelectual viram-se, individualmente, tanto como um membro de uma elie invsel, de uma Inveltigentsia, quanto como um “marginal”, : com quem quer que fosse julgado a esoéria da socieda- de, Em ambos 0s casos, seja fazendo o papel de Arsto- trata, ja 0 de Boémio, ele estava & margem da socie- dade’como um todo. Ser artista tinha-se tornado ‘um c2- PYicho. Sua crescents alienagdo do mundo a sua volta = "o novo mundo eriado pela ciéncia era, sobretudo em ‘cus estigos primitivs, inervelmente horivel, intensif- 213 cando a necessidade dele de fugir para o mundo ideal da arte — a falta de uma audigncia, tudo isso 0 levou ‘8 uma mistica do “génio”. Esperou-se’do Génio do Sétio — mais parecido com um Saint Simeon ascético em seu Pedestal — que criasse obras-primas num vécuo. Mas sua artéria de ligacdo com o mundo exterior tinha sido cortada, Seu trabalho, cada vez mais impossivel de ser realizado, geralmente compelia literalmente a loucura, ou a0 suicidio. Preso num canto, sem nenhum outro lugar para conde ir, 0 artista_conseguiu iniciar um acordo com 0 mundo moderno, Ele nfo serve para nada nesse mundo: semelhante a um invélido, confinado durante muito tem- Po, nflo conhece nada sobre o mundo: nem politica, nem cincia, nem sequer como viver ou amar. Até 0 momen- to, € mesmo agora, embora cada vez menos, a sublima- fo, aquela deformacio da personalidade, fora recomen- dével: era o tinico meio (se bem que indireto) de slean- sar satisfacdo. Mas 0 processo artistico quase que sobre- viveu 2 uilidade dela. Eo preco dela 6 alto. ‘As primeiras tentativas para enfrentar o mundo mo- derno foram, na sua maior parte, mal dirigidas. A Bau- hhaus, famoso exemplo, fracassou em seu objetivo de su- plantar uma irrelevante arte de cavalete (a morte desta € indicada por apenas algumas iusGes de éptica e cadei- ras com um ar de design), acabando mum hibridismo, nem arte nem cigncia, e certamente nfo a soma das duas. Seus planejadores falharam porque nfo compreenderam a cigncia nos préprios termos dela. Para eles, que enxer- gavam através do modo estético antigo, ela era mera ‘mente um novo tema rico, a ser digerido totalmente pelo sistema estético tradicional. Era como se alauém visse um computador apenas como uma série harmoniosamente corganizada de luzes ¢ sons, escavando-Ihe completamen- te a funclo propriamente dita. © experimento cienitico nfo 6 apenas harmonioso, uma estratura clezante, uma peca adicional de um quebra-cabeca abstrato, aiguma coisa a set usada na préxima colagem — embora os cientistas também vejam, a seu préprio modo, a ciéncia como essa abstragdo divorciada da vida. Ele tem um sen- 214 py tido intrinseco, real, prdprio, semelhante, embora nfo 0 resto, a “presenea, a0 “en-sof” da pintura moderna, Muitos artistas cometeram o erro de tentar anexar a citn- cia, de incorporé-la a sua prépria estrutura artistica, em vet de usé-la para expandit esta estrutura, Seria desolador o estado atual da cultura estética? Nii, Houve algumas evolugdes na arte contemporinea. Fizemos referéncia a como a tradigfo realista na pintura morreu com o aparecimento da maquina fotogritica. Esta {radigio tinha evoluido, num processo que durow séeulos, para'um nivel de ilusionismo, obtido com a pincslada, ue foi equivalente © até melhor — observe-se Bouge- reau — do que a fotografia primitiva, considerada na época apenas como um novo meio grifico, como era o caso da gravura em guaforte. O inicio danova arte do cinema se sobrepés & tradicéo realista da pintura atin- indo © climax na obra de artistas como Degas, que ‘sou uma clara em seu trabalho. Depois a arte reali ta seguiu um novo curso, Ou se tornou decadente, aca démica, desligada de qualquer mercado e sigificagio, ex, os us que subsistem nas aulas de arte © nas go- lerias de segunda categoria, ou ela foi fraturada pela imagem expressionista ou surrelista, postulando uma rea- lidade interna alternativa ou uma tealidade fantéstica, Contudo, enquanto isto, a jovem arte do cinema, basca- dda numa sintese verdadeira dos Modos Estético © Tec- nolégico (como tinha sido préprio Empirismo) tevou avante a tradigio realista fondamental, E assim como cia empirica frutificou com 0 casamento dos Princi- pios Feminino © Masculino, antes separados, assim tam- bbém aconteceu com 0 cinema. Mas, 20 contrétio de ou tros suportes estéticos do passado, ele destruin a divisio entre 0 atificial ¢ o real, entre a cultura e a propria vida, zna qual 0 Modo Estétco esta baseado. ‘Outros desenvolvimentos relacionados com isso: a exploragio de materiais arifiiais, p.ex, 0 plistico; a tentativa de confrontar a propria cultura do plistico (pop art); 0 esgotamento das categoria tradicionais de media 21s DIALETICA , REVOLUCAO TRANSICAQ META FINAL DA Histon escrira __LASSICA FENASCENGA MODERN, 3 Feliieg StL] tamed 5 caes SEXO | 9 MATRIARCADO SE |3) Slacleilats se § cAsTA BE2 oB| Slase| geeu eee ca 8 pate Seo BS | alies| 2elec| ees fea Epes of PATRIARCADO | iz: 22) Secs|8 slg se8 $8 BASEADO NA ez PS.) 8222/28 [Fol 228 oe Fo Hes | vas tam doops el ede ee 98 | ies) scles|aad be 8 pectic tonnes na unis Netigee ae ertne amen am, | Be g| Ss|eepeeae c2 § Bas eoreens rapa, a nazdo, etc. ae al [sg i 3 oie CLASSE | NOMA- |AGRICUL} CIVILIZACAO | .32 g ulatig go SB 8 /esssdzes eae nae enact geeage| heh & ocedecs rane ciasse |2agh sh] °F 2 |esbeaors wn mocsinoon | clagbe | Sueoia | 884295 S |Penshoas saan ‘rien | 4g BARA [eraeec] oRE ES RES PEAR 8 3 cae 20%, RTCA) nousraia 2 Scoudaers™ [Neate twraents. fo. rde..minsio} 283” sabe 8 CULTURA poset om. | cs, | ae ne JUSTIGA'E GOVERNO, ETC. oa al 3 gg ae 3S MODO TECNOLOGICO oft OB > 2 Zo8 seta \PRAGMATICO ee iid ES EB) 3o | 3 SBE stntoc, |@ MODOESTETICO |g CENA f]] rman | $58 g5| EF 5 EBS Habioee DEAL) ape BO foe esas anre | 3 Ra 2 ape aes woneNa 5 ARTE E MAGIA Pau. POTECA.« he we (mmédia mistos) © das distingbes entre arte e realidade happenings", “environments”). Todavia, cu acho di- fic chamar, sem reservas, de progressistas a estes silti- ‘mos desenvolvimentos. Até agora cles produziram traba- thos altamente pueris ¢ inexpressivos. O artista ainda no sabe 0 que é a realidade, e muito menos como agit nela. ‘Xicaras de papel enfileiradas numa rua, pedagos de jor- nal langados num terreno baldio, nfo importa o mimero de criticas ponderadas que esses trabalhos consigam ti rar da Art News, continuam sendo uma perda de tempo. ‘A total inutilidade dessas tentativas desajeitadas corres- ponde ao grau de esgotamento das “belas”-artes, do qual clas sfo sinais. ‘A fusfio do Modo Estético com 0 Modo Tecnolégi- co gradativamente sufocar por completo a elevada arte “pura”, © primeiro esgotamento das categorias, a rein~ corporagéo da arte com uma realidade (tecnologizada) indica que estamos agora num perfodo pré-revolucionério de transigio, no qual as trés correntes separadas, a tec- nologia (“ciéncia aplicada”), a “pesquisa pura” ¢ a mo- derna arte “pura” se funditio, junto com as rigidas ca- tegorias sexuais que elas refletem. ‘A dualidade soxual da cultura ainda causa muitas vitimas, Se até 0 cientista “puro”, p.ex., o fisico nuclear (em falar do cientista “aplicado”, p.ex., o engenheiro) sofre de uma “masculinidade” excessiva, tornando-se au- toritério, convencional, emocionalmente’ insensivel, inc paz de compreender © pr6prio trabalho dentro do que- bra-cabeca cientffico — e muito menos do cultural ou do social — o artista, em termos da divisio sexual, incor- porou todos os desequilbrios ¢ padecimentos da perso- nalidade feminina: 6 temperamental, inseguro, parandide, xualidade genital que as criangas fossem capazes de ter — provavelmente bem mais do que nés imaginamos hoje — mas pelo fato de a sexualidade nio ser mais 0 foco ddos relacionamentos, a auséncia de orgasmo nfo consti- ‘uiria um problema 'sério. Os tabus referentes & sexuali- dade entre adultos/criancas e & homossexualidade desa- pareceriam, tanto quanto as amizades ndo-sexuais (0 amor “inibido quanto ao alvo”, de Freud). Todas as relagOes fntimas incluiriam 0 relacionamento fisico, desaparecen- do de nossa estrutura psfquica 0 conceito de relaghes fi- sicas exclusivas (monogamia), bem como a imagem de lum Parceiro Ideal. Mas permanecem em conjuntura 0 tempo que levaria para essas mudancas acontecerem e as formas que clas tomariam. Os casos especificos nfo nos interessam aqui. Necessitamos apenas estabelecer as precondigdes para uma sexualidade livre. As formas que cla assumiré representariam seguramente um progresso ‘dentro do que temos agora, “natural” no seu sentido mais auténtico, Na fase de transigio, a sexualidade genital adulta a exclusividade dos cassis poderdo ter que ser manti- das dentro do household, para que a unidade posse fun- cionar trangiilamente, com um minimo da tensio interna gerada pelos atritos sexuais. f irreal querer impor teorias sobre o que se deveria passar numa psique ja fundamen- talmente organizada em torno de necessidades emocio- nis especificas. E & por isso que as tentativas individuais para eliminar a possessividade sexual so hoje sempre inauténticas. Farfamos muito melhor em nos concentrar nna mudanga das estruturas sociais que produziram essa organizagio fisica, 0 que permitiria finalmente — sendo nna nossa época — a reestruturacdo (ou devo dizer deses- truturaeZo) fundamental de nossa psicossexualidade. cima, redigi apenas um plano muito grosseiro, com vista a tornar mais clara a direcao geral de uma revolu- elo feminista, A produgio ¢ a reprodugio das espécies 274 seriam simultaneamente reorgenizadas de um modo nio- represivo. O parentesco das eriangas com uma vnidade que se dispersaria ou se recomporia tio cedo as crangas fossem fistcamente capazes de ser independentes, e que seria destinada a atender as necesidades imedistas, em verde transmis poderese privilgios (a base do cao é a heranca da propriedade adguirida através do trabalho), eliminaria a psicologia do poder, a repressio sexual ¢ a sublimagio cultura, O chauvinismo da fami Tia, o privilégio de classe baseado no nascimento, seria eliminado. Os lagos de parentesco da mie para com 0 {iho 'seriam finalmente rompidos — se de fato existe uma inveja do parto “eriativo” no homem, breve tere- ‘mos meios de criar a vide independentemente do sexo — de modo a que a gravider, hoje abertamente reconhecida como deselegante, ineicente e dolorosa, seria considers- dda apenas um arcaismo fut, exataments como as mulhe- res hoje vestem 0 branco virginal em suas ndpcias, Um Socialiimo ‘ibernético eliminaria as classes econdmices, € todas as formas de exploragio do trabalho, pela con cesséo a todas as pessoas de uma subsisténcia baseada apenas em necessidades. materiais, Thos pesados (empregos) seriam eliminados em favor da diversio (complexa), atividade feta por seu préprio va- Jor, tanto para os adultos, quanto par: i A revolta contra a familia pode 2 revolugio bem sucedida, ou 0 que era tido pelos antigos como a Idade Messianica. A dupla maldigfo lan- Gada contra a humanidade quando ela comeu a Maca ddo Conhecimento (0 conhecimento crescente. das leis do neio-ambiente indo. gerara_ciilzagéo repressiva), de aque o homem teria que trabalhar com o suor do seu rosto para viver, e de que a mulher suportaria dores ¢ o tra- batho do parto pode ser agora deseita, mediante as rea- lizagdes do homem no trabalho, Agora temos conheci- mento para criar de novo um Paso na Terra. A alter- ‘nativa para isso € o nosso préprio suicidio através desse conhecimento, a criagéo de um Inferno na Terra, seguido do perdio. 275

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