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EDITORA DA UFPB
Diretora IZABEL FRANÇA DE LIMA
Supervisão de Editoração ALMIR CORREIA DE VASCONCELLOS JUNIOR
Supervisão de Produção JOSÉ AUGUSTO DOS SANTOS FILHO
Letramento Literário e
Formação do Leitor
DESAFIOS E PERSPECTIVAS DO PROFLETRAS
João Pessoa
2015
Direitos autorais 2015 - Editora da UFPB
Efetuado o Depósito Legal na Biblioteca Nacional, conforme a Lei nº 10.994, de 14 de
dezembro de 2004.
Projeto Gráfico
Catalogação na fonte:
Biblioteca Central da Universidade Federal da Paraíba
CDU: 801
Editora filiada à:
Os organizadores
Sumário
7
Literatura Afro-brasileira e/ou Negro-brasileira na sala de aula:
leituras do texto literário........................................................... 69
Literaturas afro-brasileira e/ou negro-brasileira: conceitos e
discussões...................................................................................69
Literatura negro-brasileira: o reconhecimento da autoria negra.......83
Referências....................................................................................92
A literatura indígena no contexto escolar: algumas considerações.97
A problemática do ensino de literatura indígena..............................97
Literatura indígena, indigenista ou indianista?................................98
A literatura indígena.................................................................... 107
A literatura indígena na escola...................................................... 113
Referências.................................................................................. 115
Sobre os Autores.......................................................................... 121
8
A leitura literária ainda por vir: uma experiência
na docência do PROFLETRAS
João Carlos Biella
9
e no implícito, por Wolfgang Iser (1996), experienciar a linguagem da
literatura.
No projeto de ensino de leitura, as escolas devem contar com
uma biblioteca eficiente, com um bom e diverso acervo, profissional
para organizá-la. É algo raro, mas desejável. O professor poderá tê-la
como um dos espaços de leitura e diálogo, juntamente com o espaço-
tempo da sala de aula. Saber da existência de políticas públicas, como
o Plano Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), é recomendável
para se expandir a circulação e recepção de livros literários.
O objeto centralizador do ensino de leitura literária no ensino
fundamental é o livro didático ou a apostila. Nada mais desapontador
para um encontro de natureza estética do que o fragmento das leituras
propostas por eles. Para a realização de um letramento literário adequado,
nesse caso, o professor poderá propor atividades nas quais a literatura
não seja mero objeto de ensino mas a possibilidade de alargamento de
seus horizontes de expectativas, de sensibilidade estética e de respostas
e perguntas (im)possíveis. A leitura de livros de ficção e de poema não
deve ser articulada ao centralismo redutor dos livros didáticos.
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2º Alternativas teóricas e metodológicas para o ensino de literatura;
3º O universo digital e o ensino de literatura;
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tempo escolar e da escola que queremos para a literatura. São leituras
fundamentais os Parâmetros e as Orientações Curriculares que, já há
um bom tempo, sugerem atividades de leitura literária. Para a efetivação
do processo de letramento, notamos a importância da biblioteca e de
políticas públicas como, por exemplo, o Plano Nacional Biblioteca
da Escola (PNBE).
Quanto ao 2º eixo temático - alternativas teóricas e metodológicas
para o ensino de literatura-, a sugestão é a de realizar atividades de
leitura que promovam a interação do leitor com o texto literário, proposta
claramente filiada às teorias recepcionistas, especialmente nas lacunas,
negações e espaços em brancos observados por Wolfgang Iser. Para
tanto, os alunos-licenciandos foram convidados a ler o “Método
Recepcional”, de Bordini e Aguiar (1988) e também a escrita poética
de Bartolomeu Campos de Queirós, para quem a figura do leitor, no
processo de leitura literária, é fundamental para a sua própria criação:
12
fundamental, e a expandida, direcionada ao médio. Três perspectivas
compõem as sequências: as técnicas da oficina, do andaime e do portfólio.
Como o foco é o ensino fundamental, detenho-me na sequência básica,
cujas etapas são a motivação, introdução, leitura e interpretação. Obra
importante por materializar um instrumental metodológico para a
leitura efetiva no tempo-espaço da aula. Não se trata de um manual de
aplicação, mas de uma possibilidade instrumental para ler literatura,
atentando principalmente no acompanhamento do professor na mediação
da compreensão de sentidos. É importante também fornecer propostas
para a avaliação do processo de leitura. O professor aparece como uma
mediação necessária para uma franca escolarização da literatura. Em
intervalos de leitura, como sugerido por Rildo Cosson, verificam-se
dificuldades de decifração, reencaminhando-as, quando possível, para
a interpretação, e também oferecendo, no plano metodológico, uma
possibilidade de interação do leitor com texto literário, pensando nas
propostas recepcionistas da literatura, sugeridas por documentos oficiais,
raramente praticadas em sala de aula.
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Assim procedeu-se com a diferenciação entre a literatura africana e a
afro-brasileira. Como passo seguinte, posto tratar-se da literatura infantil
e juvenil no ensino fundamental, observou-se a importância de, para
o processo de letramento literário, se escolher livros que não somente
tratam dos temas transversais propostos pelos Parâmetros Curriculares
Nacionais, porém aqueles que tratam do tema de maneira artística, não
somente como cognição ou instrumentalização. Diante da situação
exposta, Cosson e Martins escrevem:
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a aproximação da leitura literária pelo universo dos gêneros
digitais.
“Um passo adiante: do leitor literário como instância textual
para o leitor real” compõe o último eixo temático da disciplina Leitura
do texto literário.
Juntamente com as estratégias de Cosson, flexíveis e que podem
ser expandidas por novas propostas, há de se destacar a utilização efetiva
de práticas recepcionistas e as potencialidades da perspectiva subjetiva
da leitura. Tanto para uma quanto para a outra é fundamental que as
atividades de leitura literária sejam pensadas a partir de estratégias que
possuam o diálogo como o lugar da didática. Práticas anteriores de
leitura dos alunos devem ser ouvidas. Selecionar e organizar textos que
estejam inseridos num discurso mais amplo, ou seja, não sirvam como
apenas exemplo de algo, como na configuração de textos nas obras
didáticas; neste caso, a posição de Regina Zilbermann (2007) deve ser
lembrada: compreender o livro:
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histórico de mudança de concepções, que pautaram e ainda pautam
sua prática.
O trabalho educacional deve ser dinâmico e pensá-lo como um
exercício que assume e compartilha suas próprias dúvidas deve ser um
dos desafios do professor mediador da leitura da literatura no ensino
fundamental.
Tendo como referência final da disciplina a perspectiva os estudos
da francesa Annie Rouxel e de Neide Luzia de Rezende, falaremos de
um processo efetivo de leitura literária para o qual a participação do
leitor real, integrado numa comunidade interpretativa, é de fato relevante.
Da literatura realmente lida, pode-se pensar em vários registros feitos
pelos leitores de suas próprias singularidades.
A leitura é integrada à escrita e a oralidade. Por meio de “manuais
de bordo”, “diários de leitura”, “autorretratos de leitor”, há uma
possibilidade de se avaliar a leitura literária realizada. Observando as
possibilidades de expansão e limite da presente disciplina, reconhecendo
este e atentado para aquele, as palavras de Rita Jover-Faleiros são
oportunas:
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vivendo num lugar coletivo, com a potencialidade de construírem
comunidades interpretativas, em formação.
Para a concepção da disciplina, escolhas de leitura crítica, e
encaminhamento dos debates, o tema do papel do professor como
mediador do processo de letramento literário foi vital. É ele quem vai
materializar as atividades humanizadoras da literatura, como apontado
por Antonio Candido:
17
tal qual aquela dita por Bartolomeu Queiros: “Diante do texto literário,
todo leitor tem o que dizer. Ao tomar da palavra, o leitor se faz mais
sujeito, em vez de apenas sujeitar-se” (2012, p. 87).
É um passo adiante, mesmo reconhecendo que as propostas
recepcionistas mal pisaram nas salas de aula do ensino fundamental.
Entretanto, é uma potencial passagem de uma cultura literária distanciada
e distanciadora para a existência de uma biblioteca interior, a presença
de sujeitos leitores.
Referências
18
Aparecida de; SOARES, Magda. Literatura infantil: políticas e
concepções. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
19
ROUXEL, Annie. Mutações epistemológicas e o ensino da
literatura: o advento do sujeito leitor. Trad. Samira Murad. Revista
Criação & Crítica, n.9, p.13-24, nov. 2012; disponível em:
[HTTP://www.revistas.usp.br/criacaoecritica]. Acesso em 12/
fev/2014.
____ . Que literatura para a escola? Que escola para a literatura. In:
Letras, Passo Fundo, RS, v. 5, n. 1, jan./jun. 2009.
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Ensino de literatura, letramento literário e
formação de leitor
Francisco Neto Pereira Pinto
Márcio Araújo de Melo
21
Nesse mesmo sentido, relacionamos essas diferentes visões de
letramento literário aos posicionamentos paradigmáticos neste trabalho
chamados de cartesiano e complexo, posto eles encerrarem concepções,
valores, atitudes, percepções e conformarem visões de realidade e
orientarem práticas no mundo diferentemente, o que implica dizer,
portanto, que o modo como os trabalhos voltados ao letramento literário
veem a relação do leitor com esse tipo de texto, no percurso de formação
escolar, está relacionado não somente às especificidades do literário em
si, mas também ao ensino, à aprendizagem, à educação e ao próprio
sujeito educando.
Ao falar de paradigma, não vamos restringir o significado do
termo à esfera científica, tal como aparece em Thomas Kuhn (2009),
pois nos parece bastante apropriado estender seu raio de abrangência
a outros domínios, como o faz Fritjof Capra (2006), ao concebê-lo
como uma constelação formada por concepções, valores, percepções
e práticas que são compartilhados por uma comunidade e modela uma
visão particular de realidade que, por sua vez, constitui-se como base
da maneira pela qual a comunidade se organiza.
Compreender as questões paradigmáticas é da maior importância
para os sistemas educacionais, visto que, como coloca Maria Cândida
Moraes (1997), o modelo científico prevalecente em determinado
momento histórico influencia nas teorias voltadas à aprendizagem que,
por seu turno, reverberam efeitos na prática pedagógica. Assim, não é
gratuita a prática do professor em sala de aula, quer dizer, sua maneira
de trabalhar é testemunha de, entre outras, sua visão de educação, do
posicionamento pedagógico adotado pela escola, do modelo educacional
no qual se situa e, subjacente a tudo isso, encontra-se um paradigma
científico com sua lógica de funcionamento que empresta sentidos a
toda cadeia de relações.
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Quanto ao paradigma da complexidade, compreendemos tratar-
se de um conjunto de concepções, visões, princípios, valores e realizações
que, sobretudo, ergue-se em reação ao paradigma ainda dominante –
aquele que se convencionou chamar de cartesiano – que prima pela
simplificação, separação e redução; contudo, não para negá-lo, mas
para ir além, dando ênfase na relação e solidariedade entre as partes na
constituição do todo. A complexidade, sob esse prisma, não perde de
vista as singularidades associadas às partes, porém tem no horizonte o
todo, que pode, às vezes, ser mais ou ser menos que a soma das partes,
dada a natureza das interações entre elas ocorridas no processo relacional.
A transdisciplinaridade, por seu turno, será assumida como um princípio
do paradigma da complexidade (AKIKO SANTOS, 2009) e
compreendida, a partir de Basarab Nicolescu (1999), como uma visão
diante do conhecimento e do mundo cujo “objetivo é a compreensão do
mundo presente, para o qual um dos imperativos é a unidade do
conhecimento” (NICOLESCU, 1999, p. 53 - grifo do autor).
Leitor de literatura ideal, aqui, é uma expressão tomada de
empréstimo a Hans Jauss (2002a) para nos referir à figura do leitor de
literatura que frequenta as páginas de trabalhos teóricos e orientações
oficiais que versam sobre o que se espera que a escola forme como leitor
literário. Constitui-se, ao cabo, em abstração e em uma finalidade em
si. Para o autor, esse tipo de leitor é aquele que deve estar equipado não
somente com “a soma de todo conhecimento histórico-literário
atualmente disponível, mas também capaz de registrar conscientemente
cada impressão estética e de ancorá-la numa estrutura de efeito do
texto” (JAUSS, 2002a, p. 879).
Por seu turno, ao leitor de literatura real atribuímos o estatuto
de qualquer indivíduo encontrável quer na escola ou em qualquer outro
espaço lendo literatura que, por sua vez, tenha como suporte físico quer
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folhas de papel, como em livros, quer a tela de um aparelho eletrônico,
como o computador. Trata-se, então, para usar as palavras de Paul
Zumthor (2007, p. 23), de “um homem particular, feito de carne e de
sangue” com seu peso, estatura e um conjunto de traços físicos, psíquicos
e espirituais que o singulariza. Esse leitor é, quase sempre, nos trabalhos
e orientações voltados à leitura literária, o ponto de chegada; no entanto,
nesta pesquisa, constitui-se em ponto de partida.
Do ponto de vista da complexidade, não há leitor ideal, mas
sim indiviso em sua condição de humano, o que implica ser, de acordo
com Edgar Morin (2007, p.15), “a um só tempo físico, biológico,
psíquico, cultural, social, histórico” etc. Assim, como leitor real, estamos
nós considerando a pessoa humana de carne, osso e espírito, dotada de
razão, emoção e sexualidade, que é boa e má, que sonha, angustia-se,
sofre e faz sofrer. Por essa razão, nossa imagem de leitor real coloca-se
como dinâmica e plástica, pois se ajusta a cada sujeito existente ou por
vir, seja ele quem for.
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Magda Soares (2004), que letramento ainda é um termo com sentido
fluido, dúbio e impreciso.
No entanto, trazemos aqui o entendimento de que, do ponto
de vista individual, dizer que alguém é letrado hoje significa tomá-lo
como capaz de “viver no mundo da escrita, dominar os discursos da
escrita, ter condições de operar com os modos de pensar e produzir da
cultura escrita” (BRITTO, 2005, p.13), ou seja, saber fazer uso efetivo
e competente da tecnologia da escrita, o que envolve habilidades tais
como:
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a questão da formação do leitor literário, ou seja, o que se requer de
um sujeito que lê literatura para que se diga dele como sendo um leitor
que faz uso efetivo e competente da tecnologia da escrita literária de
maneiras minimamente esperadas para sujeitos escolarizados.
É curioso notar que, de acordo com Britto (2004), há um
senso comum, relativamente bem aceito na sociedade, de que entre
as experiências com a leitura, à leitura literária é reservado um status
bem particular, ou seja, ela é compreendida como a forma mais
fundamental da experiência da leitura. Dito isso, surge a pergunta:
o que se espera de um leitor literariamente letrado? O processo de
letramento literário, que se realiza mediante usos de textos literários,
engloba não apenas o uso social da escrita em uma dimensão
diferenciada, “mas também, e sobretudo, uma forma de assegurar
seu domínio” (COSSON, 2007, p. 12).
De acordo com o texto das Orientações Curriculares Nacionais
(OCEM), “podemos pensar em letramento literário como estado ou
condição de quem não apenas é capaz de ler poesia ou drama, mas dele
se apropria efetivamente por meio da experiência estética, fruindo-o”
(BRASIL, 2006). Com base na definição acima, das OCEM (2006),
a apropriação efetiva do texto literário por parte do leitor se dá por
meio da experiência estética, que é a leitura do texto, segundo a perspectiva
da fruição que, para o documento, é o mesmo que prazer estético. A
essa visão de fruição poderíamos relacionar o conceito de aisthesis
formulado por Jauss (2002b), que engloba o prazer derivado da percepção
sensível e intelectual, cujos fundamentos remontam à Poética, de Aristóteles
(2005), quando este fala do prazer que se pode derivar ante uma técnica
perfeita de imitação como também em reconhecer uma imagem original
no imitado.
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Parece-nos que essa concepção de fruição, que embasa o conceito
de letramento literário das OCEM (2006), exclui a dimensão passional
na comunicação da literatura com seu leitor, que, ao contrário, comparece
no conceito já apresentado de (SOARES, 2004), quando fala do divertir-
se e da catarse. Quando nos voltamos, contudo, ao pensamento de
Aristóteles (2005), vemos que a finalidade da tragédia era a imitação
das ações de pessoas, da vida, da felicidade e desventura, de modo a
inspirar pena e temor e operar a catarse própria destas emoções. Assim,
no contexto das elaborações deste pensador, quer lendo, quer assistindo
a uma tragédia, o investimento passional no gozo da obra não constituía
aniquilação do caráter estético do objeto artístico.
Útil é, então, a diferenciação que faz Roland Barthes (1993)
entre prazer e fruição, que, embora fenômenos distintos, não são, em
seu pensamento, excludentes. O primeiro relaciona-se ao contentamento
e o segundo ao desvanecimento, isso porque o prazer envolve a euforia,
a saciedade e o conforto, e a fruição, por sua vez, está relacionada à
agitação, ao abalo e à perda. O prazer, assim, volta-se para a emoção,
ao passo que, como declara o autor, a fruição é intransitiva e está “fora
de qualquer finalidade imaginável” (BARTHES, 1993, p. 68).
O prazer é agradável, e a fruição pode até mesmo aborrecer,
pois é forjada na tensão que se estabelece entre o texto e o leitor, do
que resulta para este último perda e desconforto, pois o texto de fruição
é aquele que, de acordo com Barthes (1993, p. 22), “faz vacilar as bases
históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência de seus gestos,
de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação
com a linguagem”. Entendemos, então, que a fruição advém da crise
a que a obra é capaz de fazer abater sobre o leitor, de colocá-lo em
choque com seu universo até então conhecido, podendo daí o leitor
derivar ou não o prazer.
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Se, por um lado, o conceito de fruição de Barthes (1993) não
exclui o prazer, embora não se confunda com ele; por outro, os conceitos
de letramento literário – dos autores que estamos considerando nesta
primeira parte de nosso capítulo -, não abrem espaço para a leitura
prazerosa na acepção barthesiana, e isso fica evidente nos trabalhos que
discutiremos a partir de agora. Para Graça Paulino (2004), o leitor
literariamente letrado é aquele que sabe escolher suas leituras, que
aprecia construções e significações verbais de cunho artístico e que faz
disso parte de seus afazeres e prazeres. Esse tipo de leitor, ainda de
acordo com autora:
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objetivos culturais em sentido mais amplo e não objetivos funcionais
ou imediatos para seu ato de ler (PAULINO, 2001).
Interessante notar, dessas colocações, o fato de a autora enfrentar
a árdua tarefa de sublinhar os aspectos que interessam à formação do
leitor literário e o que deve ser desprezado quando a perspectiva é a do
letramento. Vejamos que Paulino valoriza os aspectos formais e aqueles
ligados ao contexto de produção, ou seja, tantos os elementos interiores
quanto os exteriores ao texto são relevantes no estudo do texto literário.
Porém, os objetivos funcionais aí não entram, e aqui entendemos esse
pensamento da estudiosa como uma referência, por exemplo, ao uso
do texto para fins doutrinais, informativos, históricos e outros.
No entanto, não são somente esses objetivos que ficam de fora
de uma educação literária. Há também aqueles ligados à imediaticidade
do ato de ler e, nesta direção, o entendemos como aquilo que Rildo
Cosson (2007) chama de entretenimento, que a leitura literária pode
proporcionar, ou, ainda, leitura recreativa, para tomar de empréstimo
a ideia de Anne-Marie Chartier (1999). Cosson (2007) ainda nos diz
que na escola a literatura é um locus de conhecimento e que deve ser
explorada de modo adequado para que funcione como tal. Porém,
conhecimento para o autor restringe-se àqueles que mobilizam as
faculdades racionais com o fim de conhecer e articular com proficiência
o mundo feito de linguagem, o que equivale, na linguagem do autor,
a análise literária.
Trata-se de uma perspectiva interessante, pois rompe com uma
visão de estudo da literatura que se processa inteiramente no âmbito
da história da literatura. Aqui se pode ver que o foco é o texto literário
e sua exploração segundo instrumentos forjados pelas teorias da literatura.
O texto, nesse caso, vem ocupar a cena no estudo da literatura. Nesta
direção, então, para utilizar o pensamento de Marcelo Chiaretto (2007),
29
a análise literária está na base do letramento literário, uma vez que
disponibiliza procedimentos geradores e capacitadores que possibilitam
a apropriação do mundo da escrita literária pelos leitores, posto que,
para utilizar as palavras de Paulino (2011, p. 219), a “formação de um
leitor de livros exige, principalmente, uma identificação cultural com
o modo de ler esse objeto”.
O leitor literário, nessa ótica, muito menos importa sua
identificação com a obra literária em si, mas com o modo como se lê
determina obra. A grande questão que aí se coloca é que não há apenas
um modo de ler uma obra literária, porque isso se decide pela filiação
que o leitor faz a esta ou aquela orientação teórica ou mesmo conforme
sua própria história de leitura o possibilite ler. Tal ato, então, para esses
autores, parece acertado afirmar, estabelece relação com certo modo
de ler legitimado por determinadas instâncias legitimadoras, como,
por exemplo, os especialistas da academia que se ocupam com as leituras
literárias. A identificação, pois, não é com a obra literária em si, muito
embora seja o texto literário no centro da cena de estudo, mas com os
modos de ler legitimados por determinadas instituições com credenciais
para dizer como devem ou não ser lidas as obras literárias.
O modo de ler que podemos inferir desses postulados do
letramento, que apresentamos até agora, a julgar pelos detalhes que nos
oferece Paulino (2001; 2004) e pelo que diz Cosson (2007), possibilita-
nos relacioná-lo, ainda que não exclusivamente, com os saberes produzidos
no campo da Poética. Muito embora essa palavra
não tenha conservado o mesmo sentido ao longo dos tempos,
Tzvetan Todorov (1973) nos assegura que, de um modo geral, a Poética,
aqui nos restringindo à estrutural, “visa ao conhecimento das leis gerais
que presidem ao nascimento de cada obra” (TODOROV, 1973, p.
15).
30
A Poética não diz respeito ao exame de uma obra particular, mas
do delineamento de leis gerais que presidem o funcionamento da estrutura
do literário, trata-se, logo, de “propor uma estrutura do funcionamento
do discurso literário, uma teoria que apresente um quadro tal dos possíveis
literários, que as obras literárias existentes apareçam como casos particulares
realizados” (TODOROV, 1973, p. 15). Não é uma obra literária em
particular que interessa, mas sim as leis que regem a estrutura segundo
a qual o literário se realiza e, neste caso, “o texto particular não será
senão um exemplo que permite descrever as propriedades da literatura”
(TODOROV, 1973, p. 15). Se, por um lado, esse é o interesse da
Poética, por outro, aqueles que se ocupam da tarefa de interpretação
dos textos literários podem nela encontrar instrumentos valiosos que
lhes auxiliem visualizar o funcionamento da estrutura interna do objeto
literário, posto que, nessa ótica:
31
Contudo, não é verdade que esses autores postulam uma incursão
no texto literário somente na perspectiva de seus elementos internos,
uma vez que o sujeito literariamente letrado, segundo o ponto de vista
que vimos falando, é aquele que também sabe relacionar a obra ao seu
contexto de produção e que consegue resgatar objetivos culturais mais
amplos. No entanto, mesmo levando em consideração os elementos
internos e externos à obra, há uma vontade que subjaz a esse projeto,
qual seja, o de assegurar uma abordagem racional, objetiva, do objeto
artístico; logo, trata-se de olhar o texto literário segundo uma perspectiva
científica, o que corresponde, segundo Todorov (1973, p. 13), a “um
dos sonhos do positivismo em Ciências Humanas”.
É neste sentido, então, que estamos relacionando racionalização
a esta vertente do letramento literário, posto tratar-se aí, como vimos,
de um esforço em reduzir a abordagem do texto literário a uma única
dimensão, a racional, o que implica, pois, em excluir do seu sistema
lógico aquilo que não se conforma a essa dimensão. Há, neste ínterim,
uma conexão entre essa orientação do letramento literário e a ordem
paradigmática ainda vigente, a tradicional, cartesiana, e isso se dá pelo
fato de que é a lógica dessa ordem que rege o modo como esses estudiosos
formulam seu entendimento do que vem a ser letramento literário.
O modo de conceber o letramento literário orienta não somente
o modo como se deve ler um texto literário, mas também o que pode
ou não ser entendido como literário, e quando enunciamos a questão
desta forma, estamos no campo dos ‘valores’ relacionados à escrita e
leitura literárias. Egon Rangel (2007, p. 130) nos lembra que letramento
é “um termo técnico que designa e articula entre si três ordens diferentes
de fatores relacionados à linguagem escrita”. Uma dessas ordens tem
que ver com “os valores – inclusive éticos e estéticos – em nome dos
32
quais a escrita participa da vida social, assim como os diferentes graus
de intensidade dessa participação” (RANGEL, 2007, p. 130).
São esses valores associados à leitura literária que orientam a
“concepção do que deva ser a ‘boa leitura’” (RANGEL, 2007, p. 131,
grifo do autor) e, consequentemente, a má leitura. Conforme vimos,
são os instrumentos da Poética, de uma perspectiva
interna, e recursos de outras áreas que permitem relacionar o
texto à sua exterioridade, como, por exemplo, da história e sociologia
da literatura que garantem uma boa leitura do ponto de vista do letramento
literário na concepção dos autores até agora elencados. Ler bem, portanto,
é ler na perspectiva de valor assumida por essa determinada vertente
do letramento literário.
Conforme Todorov (1973, p. 123), “é uma verdade incontestável,
hoje, que o juízo de valor sobre uma obra depende de sua estrutura”
e que os valores extrínsecos à obra sejam legitimados pela tradição e,
desse modo, acreditamos estar nos avizinhando do campo da Estética.
Embora haja variação quanto ao que se entende por arte e, por conseguinte,
sobre as teorizações a cerca da arte, entenderemos aqui por Estética a
ciência “cujo objeto é o amplo reino do belo; de modo mais preciso, seu
âmbito é o da arte, na verdade, a bela arte” (HEGEL, 2001, p. 27, grifo
do autor).
No campo da estética, selecionamos dois autores, Georg W. F.
Hegel (1997; 2001) e Benedetto Croce (1997), que, guardadas as
particularidades, também tiveram o cuidado de limitar a intensidade
das emoções na apreciação da obra de arte bela. Muito embora sejam
as paixões e os sentimentos em seus estados mais imediatos que animem
a fantasia artística (HEGEL, 1997) ou a intuição (CROCE, 1997),
quer no fazer artístico, quer na contemplação, esses materiais interiores
33
necessitam de ser abrandados, ou expurgados, tanto no ato de criação
como de criação.
Para Hegel (1997), a matéria-prima da poesia (aqui entendemos
como literatura, conforme conhecemos hoje) é a fantasia e, logo, para
o fazer literário, é de interesse a inteira dimensão da subjetividade
humana, dado que o verdadeiro objeto da poesia é o reino infinito do
espírito, que está relacionado ao subjetivo. Porém, todo esse material
não deve se manifestar em estado bruto na arte literária. Conforme diz
o autor, “a poesia não pode se contentar com as representações puramente
interiores, mas que as há de receber para trabalhar, modelar e exprimir
artisticamente” (HEGEL, 1997, p. 379). De modo similar, a leitura de
uma obra bela não comporta comoção em sua contemplação, pois a
ocupação com o belo, quer no fazer artístico, quer na apreciação “propicia
o abrandamento do ânimo” (HEGEL, 2001, p. 29, grifo do autor).
Similarmente, Croce (1997) reconhece que a fantasia é o que
anima o artista na sua criação, mas também, como os outros estudiosos
da Estética já abordados, rejeita incisivamente a manifestação do passional
em sua imediaticidade, quer no fazer artístico, quer no ato de contemplação.
Para o autor, todo o conteúdo que anima o artista não deve aparecer
na obra criativa em sua figuração imediata, mas, ao contrário, o criador
deve engenhosamente trabalhar “a passagem do sentimento imediato
para sua mediação e resolução na arte, do estado passional ao estado
contemplativo” (CROCE, 1997, p. 128). Escrever e ler literatura, pois,
na perspectiva acima abordada, ou seja, do gosto, não é uma tarefa que
se presta facilmente, dado que, como bem reconhece o autor, “é sabido
que o gosto, nos verdadeiros artistas e nos verdadeiros entendedores de
arte, ‘se afina com os anos’” (CROCE, 1997, p. 132, grifo do autor).
Qual a relação de tudo isso com o letramento literário? A conexão
que tentamos estabelecer foi uma que relaciona a vertente do letramento
34
literário, que chamamos de cartesiano, e esses trabalhos da Poética e
Estética que, em suas postulações para a apreciação da obra de arte, no
nosso caso o texto literário, senão extirpam a dimensão passional do
processo, ao menos a cerceiam em muito sua manifestação. A contemplação
de uma obra de arte, segundo o que vimos até agora, é algo que se
circunscreve a poucos, no mínimo especialistas, e não é, de longe, uma
empreitada que se possa assumir sem arrojado conhecimento da tradição
estética, poética e literária.
Uma das consequências da lógica desse discurso é que ele exclui
os educandos da educação básica do contato efetivo com as obras literárias,
porque pressupõe lograr sucesso em equipar os estudantes com
instrumentos de análise para que eles, ‘algum’ dia, possam efetivamente
entrar em conjunção com o objeto artístico. A grande questão é que
os alunos da escola média ainda são leitores em formação, e aí se corre
o risco de essa formação nem mesmo começar - na perspectiva da
escolarização, conforme nos fala Soares (1999) -, uma vez que esse é
um processo que tem apenas início, e nunca fim.
Percebemos, de entrada, que aqueles que frequentam a escola
básica são os que ficam do lado de fora da apreciação estética na perspectiva
valorativa de arte que essa vertente do letramento faz circular, pois a
arte que agrada aos jovens, no dizer de Croce (1997), é a arte passional,
qualificada de arroubo barato e que, longe de despertar o sentimento
estético em direção ao gosto, provoca náuseas. Por seu turno, o artista
digno de admiração é aquele mais difícil e incontestável e a crítica
admirável se torna cada vez mais exigente, fervorosa e profunda.
Parece-nos, pois, bastante crível que há certo esforço a perpassar
todas essas elaborações que se inclina na direção de reduzir tanto o
texto literário quanto o leitor da literatura a um único nível de realidade,
o racional. Se, pois, arte se faz com ideia e técnica, por que, então,
35
reduzi-la somente a técnica? Se, por um lado, o artista investe subjetividade
e objetividade na construção do objeto artístico, por que o apreciador
deveria, por seu turno, investir-se apenas racionalmente? O objetivo
dessas perguntas é nos levar a ver que, por tudo o que estamos
considerando, nem o texto literário nem seu leitor são levados plenamente
em consideração. São, por assim dizer, chamados à cena da leitura
sempre de modo parcial, privados da complexidade que os constituem.
Seriam desarrazoadas essas afirmações? Um modo de verificarmos
uma resposta mais complexa a esta pergunta seria interrogar o lugar da
subjetividade em todos esses trabalhos. Há à subjetividade um lugar
assegurado e legítimo aí tal qual é reservado aos estudos que se realizam
mediante a razão? A resposta parece indicar que não e, assim, vamos
afirmar, para adaptar aos nossos propósitos o pensamento de Michel
Foucault (1987), que a leitura literária por esses trabalhos até agora
apontados é, e sempre foi, vigiada; sobretudo contra as emoções, o que
configura uma interdição ao bovarismo, para nos valermos do pensamento
de Daniel Pennac (1993), com o fim de evitar que o leitor sobreponha
“suas próprias expectativas de leitor empírico às expectativas que o
autor queria que um leitor-modelo tivesse” (ECO, 1994, p. 16). Essas
nossas conclusões encaminham-se no sentido da argumentação de
Britto (2004, p. 48), quando diz: “mesmo no caso da leitura do texto
literário, em que se valoriza a percepção subjetiva da realidade (...),
prevalece, mesmo de forma mitigada, a centralidade do sujeito cartesiano”.
36
Algumas considerações
37
Letramento literário na perspectiva da complexidade
38
que considere uma ampla rede de subjetividades e sentidos”. Nenhum
dos autores que investigamos e que tratam do letramento literário de
forma a conceituá-lo inclui de maneira nomeada a dimensão subjetiva
como constitutiva do conceito, tal como o faz Pereira, que, um pouco
mais à frente em seu texto arrola algumas categorias que certamente
ficam de fora na anterior orientação de letramento de que tratamos.
Em suas palavras:
39
tal como o é em Kant e, por conseguinte, nos demais que se filiam à
sua orientação estética. Temos, pois, nesta definição de Pereira (2007)
do que vem a ser letramento literário, um resgate do que foi deixado
de fora e, mesmo rejeitado, nas definições anteriormente explicitadas.
É digno de notar que essa conceituação elaborada por Pereira
(2007) reabilita à legítima leitura literária a dimensão catártica aristotélica
bem como o prazer barthesiano. Desse modo, as percepções sensível
e intelectual, fruição e prazer não entram na ordem da leitura literária
em regime de exclusão e, à medida que cada uma dessas dimensões
guarda suas particularidades, complementam-se, o que, certamente,
torna a leitura literária mais rica e complexa. É nesse sentido que lemos
as palavras de Pereira (2007, p. 33) quando ainda está elaborando seu
conceito de letramento literário: “mas também requer dos sujeitos
envolvidos em seu processo de ensino-aprendizagem níveis de reflexão
cada vez mais dinâmicos e complexos”.
Neste ponto de nossa argumentação, queremos relacionar os
estudos de Abreu (2006) e Pereira (2007) à lógica do paradigma complexo,
conforme já explicitamos, com base em Moraes (1997) e Morin (2008).
Neste ínterim, podemos dizer que esse conceito de letramento literário
funciona segundo a lógica da racionalidade, e não da racionalização,
posto que não rejeita, não exclui de seu sistema lógico aquilo que lhe
contraria, como, por exemplo, o impossível e a contingência.
Isso nos leva ao princípio dos diversos níveis de realidade que
se estruturam segundo lógicas diferentes, o que constitui um dos pilares
do pensamento transdisciplinar, tendo em vista que podemos visualizar
aqui um conceito de letramento que não rejeita os instrumentos da
Poética e que pode abrir caminhos para que a Estética tenha mais a
dizer ao ensino da literatura, uma vez que legitima a subjetividade como
uma dimensão fundante e não menos digna do que qualquer outra no
40
fazer, fruir e derivar prazer da arte. Não menos legítima, pois, que a
objetividade.
No ensino básico, objetividade e subjetividade não precisam
rivalizar, quer dizer, de uma perspectiva transdisciplinar, cujo fundamento
é o paradigma da complexidade, esses níveis, mesmo funcionando
segundo lógicas diferentes, não guardam nenhuma hierarquia sobre o
outro, o que significa que o estudo da literatura não precisa aspirar à
objetividade com prejuízos à subjetividade. Todos os níveis têm a mesma
importância e o que precisa ser empreendido é uma educação que
alargue os níveis de percepção do educando, para que se possa conseguir
passar de um nível ao outro em uma relação de complementaridade e
não de exclusão.
Nesse sentido, o letramento literário poderá ser um instrumento
eficaz na formação de leitores aptos a perceberem os jogos de linguagem
em seus matizes sintáticos, fonéticos, fonológicos, semânticos... logo,
da ordem do racional, como também a buscarem na literatura aquilo
que dê forma às suas angústias, desejos, alegrias etc. Buscar, enfim, nos
textos literários aquilo que dê sentido à sua vida. Assim sendo, segundo
a lógica do discurso do novo paradigma, as duas vertentes do letramento
literário não estão em relação de exclusão, ou seja, ambas têm algo de
muito importante a falar sobre a formação do leitor literário, colocando-
se, pois, em relação de complementaridade. Porém, essa última orientação
já guarda uma relação de correspondência com a lógica do novo paradigma
e se adéqua aos postulados da transdisciplinaridade e, por isso, estamos
chamando-a de complexa.
O ensino da literatura necessita adaptar-se aos novos tempos e
necessidades, quer sejam aquelas que operam na sociedade como um
todo, quer aqueles que dizem diretamente da educação e, nesse sentido,
uma das razões para a abertura do conceito de letramento a outras
41
maneiras de se relacionar com o literário está ligada à emergência das
propostas educacionais transdisciplinares que, no dizer de Pereira (2007),
importa em uma das mais significativas consequências paradigmáticas
na produção do saber.
A orientação anterior, a vertente que estamos chamando de
cartesiana, embora, ao que parece, seja majoritária no campo de pesquisa
do letramento literário, precisa alargar seus horizontes no que concerne
às realidades que importam ser consideradas quando a questão é a
formação de leitor literário, posto que a literatura, pela sua própria
natureza, demanda do leitor investimento tanto de natureza objetiva
quando subjetiva e, neste processo, ela exige que o leitor a ela se entregue
por completo. É, pois, rumo à totalidade que o letramento deve avançar,
tal como o está fazendo Abreu (2006) e Pereira (2007), sob pena de
promover uma formação que já em seus primórdios nasce mutilada.
Algumas considerações
42
esquerdo” (MORAES, 1997, p. 138), isso porque, como diz Morin
(2007), o ser humano é a um só tempo físico, biológico, psíquico,
cultural, social, histórico.
Importante trazer à atenção o fato de que não há mais hierarquias
entre razão e emoção, pois a lógica do novo paradigma é a racionalidade
e não a racionalização e, se assim é, os pares subjetividade/objetividade,
interno/externo, racional/irracional e outros deixam de ser vistos como
excludentes e passam para um regime de complementaridade. Se a
literatura corresponde “a uma necessidade universal, que precisa ser
satisfeita e cuja satisfação constitui um direito” (CANDIDO, 1995, p.
242), a preocupação da escola aqui mais uma vez se desloca, passando,
assim, do ensino à aprendizagem, uma vez que mais que ensinar, a
escola precisa concentrar sua atenção na aprendizagem do aluno.
Nessa perspectiva de ensino da literatura, sob a ótica do letramento
orientado pelo paradigma da complexidade, segundo princípios da
transdisciplinaridade, os procedimentos da Poética têm seu lugar, bem
como a Estética, somente os valores associados à leitura literária deixam
de ser racionalizantes e, neste caso, então, a:
43
e, nessa relação, o processo podem ser de uma riqueza e natureza tais
que, por mais esforços que façamos, talvez não o possamos apreender
em sua totalidade, exatamente porque entendemos que a totalidade é
assim, sabemos que ela existe, mas nunca conseguimos esgotá-la, senão
visualizar apenas pequenos fios que a tecem. A literatura encerra mundos,
o sujeito que a lê, também. São mundos, logo, em conexões e, aí, é
forçoso que o conceito de letramento literário se alargue de modo a
apontar para o momento da relação, em que o objeto literário atinge
seu potencial supremo e o leitor morre, ou alcança o êxtase em vida.
Referências
44
BARTHES, R. O prazer do texto. Tradução de J. Buinsurg. 3 ed.
São Paulo, SP: Perspectiva, 1993.
45
CHIARETTO, M. A leitura literária diante da visão moderna de
progresso. In: PAIVA, A. et. al. (Orgs). Literatura e Letramento:
espaços, suportes e interfaces, o jogo do livro. Belo Horizonte:
Autêntica, 2007. p. 235-42.
46
JAUSS, H. R. O texto poético na mudança de horizonte da leitura.
Tradução de Marion S. Hirschmann e Rosane V. Lopes. In: LIMA,
L. C. Teoria da literatura em suas fontes. Vol. 2. Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 2002a. p. 873 – 919.
47
NICOLESCU, B. O manifesto da transdisciplinaridade.
Tradução de Lucia Pereira de Sousa. São Paulo: TRIOM, 1999.
48
(Orgs). Escolarização da leitura literária. Belo Horizonte:
Autêntica, 1999. p.17-48.
49
Em busca das memórias: proposta de trabalho
a partir da leitura do texto literário
Maria José Paulino de Assis
Luciane Alves Santos
51
mas, em certa medida, contribuiu para o declínio da experiência do
narrador de tempos imemoriais. Por muito tempo o domínio da letra
foi restrito a um pequeno grupo privilegiado, que deteve não apenas a
soberania da escrita, mas também das ideias, o poder de passar adiante
o que se quer que seja entendido.
Com o lento acesso à leitura e à escrita, os intelectuais idealistas
começam a conquistar espaço na sociedade, enveredar seus ideais e
participar da encenação da História, deixando de ser meros espectadores.
Segundo os estudos de Vanessa Correa (2009) sobre oralidade
e escrita, a necessidade de se comunicar, que existiu desde os primórdios
da humanidade e, ainda hoje, é fundamental para o crescimento e as
conquistas do ser humano. Usamos a linguagem diariamente para as
mais diversas funções, precisamos saber nos expressar para fazer compras,
trabalhar, estudar, emitir opiniões, necessidades e sentimentos.
Correa ressalta ainda que a interação comunicativa se revela
primordial para atuarmos como agentes da História viva da Humanidade.
E para nos tornamos sujeitos dessa História precisamos constituir uma
identidade social. Quem sou eu no mundo em que vivo? Posso contribuir
para transformá-lo ou devo me submeter aos modelos vigentes? Sem
memória de si e de sua comunidade, o sujeito é desenraizado, desalojado
de histórias e tradições específicas, e fica mais vulnerável às influências
de uma sociedade mercantilizada, marcada pelo consumismo que, na
visão de Stuart Hall (2005), promove um verdadeiro “supermercado
cultural”.
A partir da importância da recuperação da memória, apresentamos
neste capítulo o estudo do gênero memorialista e sua contribuição para
a coletividade, pois acreditamos que tentar recuperar o passado e a
tradição é uma forma de dar significado à própria existência. Na escola,
atividades como a contação de histórias, a realização de oficinas de
52
produção textual, leituras e de análises de textos literários são importantes
para reforçar o objetivo proposto.
Os rastros da memória
53
Le Goff apresenta, por meio do pensamento de Jack Goody, a
afirmação de que “em todas as sociedades, os indivíduos detêm uma
grande quantidade de informações no seu patrimônio genético, na sua
memória de longo prazo e, temporariamente, na memória ativa”
(GOODY apud LE GOFF, 2013, p. 389). Conservar a memória é
relevante para as sociedades, uma vez que esse legado contribuirá com
a formação crítica e identitária de gerações subsequentes. A falta de
registros pode, inclusive, comprometer a preservação do patrimônio
de um povo. Além disso, um povo sem memória é um povo sem
história. Observamos, portanto, as relações de poder ditadas por setores
dominantes de uma sociedade em que a memória coletiva é um forte
instrumento de dominação das classes que ascendem ao poder:
54
a aquisição da escrita, a oralidade, ou contação de histórias, não foi
renegada, também continuaram os monumentos em homenagem,
especialmente, àqueles que detinham o poder.
Basicamente, podemos dividir as fases da história da memória
coletiva em sociedade sem escrita e sociedade da escrita. De acordo
com Le Goff (2013, p. 393), “nestas sociedades sem escrita, há especialistas
da memória, homens-memória: genealogistas, guardiões dos códices
reais, historiadores da corte, tradicionalistas”. Goody, por sua vez,
retoma esse assunto ao enfatizar que:
55
Portanto, nesse processo evolutivo, muito se tem a explanar,
no entanto, nos delimitaremos à afirmação de Leroi-Gourhan, citada
por Le Goff (2013, p. 396), “a evolução da memória, ligada ao
aparecimento e à difusão da escrita, depende essencialmente da evolução
social e, especialmente, do desenvolvimento urbano”.
Com o crescimento acelerado e desordenado dos centros urbanos,
a ascensão do progresso social, tecnológico e midiático, a memória
urbana tem veementemente a necessidade de registros, pois se torna
uma “verdadeira identidade coletiva, comunitária”. E é nesse sentido
que precisamos inserir a escola como mediadora desse processo de
afloração das memórias e reconhecimento de identidades.
56
À medida que o tempo passa, a criança que ouve histórias tem
mais imaginação, adquire riqueza vocabular e desenvoltura social. Para
Fanny Abramovich (1993), ouvir inúmeras histórias é fundamental
para toda criança, pois esse é o despertar da aprendizagem como leitor,
uma vez o leitor é aquele que vivencia uma caminhada de infinitas
descobertas e compreensão do mundo. A autora defende ainda que as
histórias ouvidas despertam na criança a sensibilidade, as emoções, a
imaginação:
57
incompetência atribuída à escola está ligada a conflitos com
a linguagem (cf. Soares, 1987), a percepções distorcidas e
míticas acerca do que seja o fenômeno linguístico (cf. Bagno,
1999, 2000). Sabemos quanto nos aflige a seletividade,
a manutenção da estrutura de classes e a reprodução da
força de trabalho (cf. Carraher, 1986) que, incondicional-
mente, decorrem também dessa incompetência e dessas
distorções. Sabemos que a educação escolar é um processo
social, com nítida e incontestável função política, com
desdobramentos sérios e decisivos para o desenvolvimento
global das pessoas e da sociedade. Sentimos na pele que
não dá mais para “tolerar” uma escola que, por vezes,
nem se quer alfabetiza (principalmente os mais pobres) ou
que, alfabetizando não forma leitores nem pessoas capazes
de expressar-se por escrito. (ANTUNES, 2009, p. 37).
58
linguística padrão, como também entender a necessidade desse uso em
determinados contextos sociais.
O estímulo à produção de relatos orais pode e deve ser ativado
no meio escolar. O educando precisa ser motivado à exposição oral de
suas ideias e vivências, pois o domínio progressivo dessa modalidade
linguística constitui uma fonte de crescimento pessoal, tanto afetivo
como cognitivo. O exercício da oralidade desenvolve simultaneamente
hábitos de fala e de escuta. Costumes estes que devem ser comuns entre
nós: seres sociais.
Le Goff (1990) apresenta citação de Henri Atlan para referenciar
o registro da memória nas modalidades falada e escrita:
59
Se a influência dos relatos orais tem necessidade de registro, a
partir desse momento, surge a etapa da escrita, estimulada pela progressiva
exposição de narrativas literárias engendradas na modalidade oral. As
narrativas passadas de pai para filhos, filhos para netos, bisnetos e demais
descendentes devem ganhar um lugar especial nas memórias, tornando-
se importantes elementos de recuperação do passado e das identidades
individuais. As proezas vividas ou sonhadas, as conquistas, os amores,
as aventuras, as dores e as alegrias poderão eternizar-se com o exercício
da modalidade escrita, perpetuando-se como romances, contos, relatos,
biografias, memoriais ou memórias literárias.
De acordo com Hall (1998), há na constituição das sociedades
modernas uma mudança constante, rápida e permanente. Diante desse
processo, constata-se que a formação identitária não é estática, construída
em forma, podendo, inclusive, modificar-se com o tempo. A velocidade
com que as transformações ocorrem no mundo moderno impõe ao
homem a necessidade de caminhar no mesmo ritmo. Nessa corrida
alucinante, para manter-se em sintonia, o passado vai ficando cada vez
mais distante e valores fundamentais esquecidos.
O resgate das lembranças familiares, da infância, da adolescência,
como também da vida adulta cotidiana, desperta a afetividade e atribui
uma importância antes despercebida. Esse valor afetivo inspira o registro
escrito como forma de imortalizar acontecimentos lembrados. Com a
memória ativada e motivados a produzir textos com narrativas e descrições
familiares e pessoais, os alunos estarão conscientes da atuação como
escritores de sua própria história. Nesse sentido, Le Goff valoriza a
memória como o “elemento essencial do que se costuma chamar identidade,
individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais
dos indivíduos e das sociedades de hoje” (1990, p. 410).
60
A escola deve participar ativamente na construção e/ou valorização
da identidade, tanto individual quanto coletiva, proporcionando ao
sujeito a concepção de agente de sua própria história e da História do
seu povo, de sua gente. Conforme Maria Aparecida Bergamaschi (2002),
as pesquisas em torno da memória, de modos variados, têm atingido
alguns setores educacionais que buscam discuti-la e compreendê-la em
diversos contextos, relacionando-a com práticas educativas da sociedade,
mais especificamente com práticas escolares.
Constatamos que já existem trabalhos nesse campo, o que é
significativo, pois as atividades escolares devem, acertadamente,
contemplar o registro das memórias, de forma que o indivíduo sinta-se
parte da História. Além do mais, a escola deve garantir o acesso aos
mais diversos meios de informações para que se chegue ao maior número
possível de dados que auxiliem na constituição das memórias e da
identidade.
No domínio literário, a relação entre memória e sentidos foi
imortalizada no século XX pela obra Em busca do tempo perdido,
publicada entre 1913 e 1927, pelo escritor francês Marcel Proust. O
empreendimento literário de Proust esgarçou as fronteiras do romance
tradicional ao tecer o mundo interior pelo fio da memória involuntária,
que se desenrola acompanhando o tempo psicológico da infância. O
principal mérito de sua extensa obra (sete volumes) foi mostrar como
a lembrança se manifesta em diferentes sentidos, e como nossa percepção
da realidade é enriquecida quando deixamos penetrar em nossa alma
os processos de reconhecimento do passado.
Bergamaschi (2002) acrescenta que a obra de Marcel Proust
assegura que a memória é a garantia da identidade, é ela que possibilita
dizer ‘eu’ reunindo tudo o que fomos e fizemos e tudo o que somos e
fazemos, portanto, memória é a matéria-prima da existência. Então,
61
é pertinente afirmar que o ato de contar histórias, a seleção de enredos
e o público-ouvinte contribuem com a formação da identidade, garantida
pela memória. Esse ‘eu’ que emerge nos romances é, de fato, resultado
de experiências e escolhas. Reafirmando a importância da contação,
estabelecemos um elo entre contação de histórias, memória e identidade.
Em sala de aula, estimulados por textos que compuseram a
tradição literária, ao lado da cultura popular, os alunos podem resgatar
histórias de seus familiares e pessoas bem próximas, passarão a narrá-las
com deleite. Passando então ao registro escrito, a exemplo de José Lins
do Rego, na voz do narrador-personagem encantado pela vida no
Engenho Corredor:
62
Num dia em que ele me deixou sozinho, corri sôfrego
para o objeto da proibição; uma coleção de mulheres nuas,
de postais em todas as posições da obscenidade. Não sei
para que meu tio guardava aquela nojenta exposição de
porcarias. Sempre que sucedia ficar sem ele no quarto, era
para os postais imundos que me botava. Sentia uma atração
irresistível por aquelas figuras descaradas de meu tio Juca.
63
seu texto, revisando, aperfeiçoando as ideias. Ao reler sua produção, o
aluno percebe tratar-se de um todo coeso, claro, coerente e que falar
é diferente de escrever.
É bom lembrar que saber escrever não significa necessariamente
escrever como um artista, empregar palavras e expressões do mais alto
nível vocabular ou de difícil entendimento, mas conseguir transmitir
por escrito o que se deve ou quer dizer.
Finalmente, com os registros escritos de tantos momentos da
vida pessoal e familiar, é importante que aconteça a socialização das
ideias, a leitura coletiva das composições. Aponta-se, a partir daí,
produções independentes, em outro espaço que não se restrinja à sala
de aula.
Concluindo etapas...
64
Neto no poema Catar feijão: “Catar feijão se limita com escrever/ jogam-
se os grãos na água do alguidar/ e as palavras na folha de papel;/ e depois,
joga-se fora o que boiar.” (NETO, 2003, p. 190).
Atuar, então, como aquele que escreve a partir do olhar atento,
crítico e afetivo sobre as histórias de vida, as aventuras que causaram
calafrios e tantas emoções exige muito labor, observação minuciosa e
conhecimento das preocupações individuais e coletivas.
Ana Lima (2009), em artigo da Revista Na Ponta do Lápis,
intitulado Recordar para lembrar discorre sobre o objetivo do texto de
memórias, que é resgatar um passado, com base nas lembranças de
pessoas que, de fato, viveram esse tempo. Representa o resultado de
um encontro, no qual as experiências de uma geração anterior são
evocadas e repassadas para outra, dando assim continuidade ao fio da
história, que é de ambas, porque a história de cada indivíduo traz em
si a memória do grupo social ao qual pertence. Lembra também que
é esse resgate das lembranças de pessoas mais velhas passadas continuamente
às gerações mais novas, através de palavras e gestos, que liga os moradores
de uma comunidade. É certo ainda que recupera e fortalece laços antes
fragilizados pelo tempo.
Para Lima (2009) o fato de entender que a história de alguém
mais velho é nossa própria história desperta um sentimento de pertencer
a determinado lugar e época e ajuda na percepção de um passado que
foi realmente vivido e não está morto nem enterrado.
E a escola, como já apontamos, tem um papel fundamental nesse
processo de resgate da história, da expressão oral com fluência e
empolgação ao registro da escrita, que desencadeará a leitura dos textos
ora produzidos, propiciando deleite da leitura oral.
Finalmente, teremos o resultado de um trabalho prazeroso e
construtivo, uma vez que este, com certeza, estimulará a produção de
65
outros gêneros textuais1, consolidando o novo escritor que agora existe
nestes alunos que foram estimulados e orientados a escreverem textos
a partir de suas ideias, de suas vivências.
Pode-se ainda divulgar um fruto de grande apreço: a coletânea
de textos do gênero memórias destes alunos. Resultado da persistência,
pesquisa, recordações, formulação de ideias, elaboração de conceitos
e conclusões.
A árdua tarefa de redigir textos na escola deverá ser atenuada,
tornando-se prazerosa a partir da prática de contar histórias, e histórias
do seu contexto, em que o aluno esteja envolvido ou envolva pessoas
do seu meio, personagens reais, com as quais ele partilhou momentos,
aventuras ou simplesmente ouviu os relatos.
Referências
1 Segundo Marcuschi (2009, p. 155), os gêneros textuais são os textos que encontramos em nossa vida diária e
que apresentam padrões sociocomunicativos característicos definidos por composições funcionais, objetivos
enunciativos e estilos concretamente realizados na integração de forcas históricas, sociais, institucionais e
técnicas.
66
BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Memória: entre o oral e o
escrito. Revista História da Educação. Pelotas: UFRGS, 2002.
V. 6, núm. 11, pp. 131 a 146. Disponível em http://seer.ufrgs.br/
index.php/asphe/article/view/30603/pdf. Acesso em 02/05/14.
67
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de
gêneros e compreensão. 3. ed. São Paulo: Parábola Editorial,
2009.
68
Literatura Afro-brasileira e/ou Negro-brasileira na sala de
aula: leituras do texto literário
69
identificada como “afro-brasileira”. Apesar de o conceito ainda estar
em construção, o autor apresenta algumas “constantes discursivas” que
visam a caracterizar a compreensão dessa literatura.
Para Duarte (2008), algumas “constantes discursivas” podem
ser utilizadas a fim de destacar critérios para identificar um texto que
possa representar a literatura afro-brasileira: a temática, a autoria, o
ponto de vista, a linguagem e o público. O crítico afirma que esses
aspectos retomariam uma precisão mais voltada à sensibilidade de
compreensão para uma literatura representativa do povo negro.
Nesse sentido, a temática está ligada aos aspectos culturais e
religiosos relativa à identidade e às culturas dos povos afrodescendentes
em sua linhagem especificamente negra. Assim, o que estiver relacionado
ao processo de escravidão, até à revalorização cultural africana, deve
ser considerado como temática. Baseado nos critérios mencionados
anteriormente, Duarte (2008) destaca autores da literatura negra, como
Maria Firmina dos Reis, Solano Trindade, Domício Proença Filho,
Paulo Lins, Maria Carolina de Jesus, Lima Barreto, Oswaldo Camargo,
Conceição Evaristo, Oliveira Silveira e, principalmente, os poetas e
ficcionistas envolvidos nas produções de Cadernos Negros.
A “autoria” é outro aspecto relevante para a identificação da
literatura afro-brasileira, segundo Duarte (2008), no entanto, é necessário
o cuidado para não cometer determinadas confusões, pois esse é um
ponto delicado. Autores como Castro Alves, que foi durante muito
tempo enaltecido como “poeta dos escravos”, por exemplo, não constaria
dentro dessa possibilidade de autoria de literatura afro-brasileira. Duarte
(2008) chama a atenção para o não reducionismo em relação ao autor
negro, no sentido de ser evidenciada apenas a cor da pele ou a condição
social do escritor. Na perspectiva de ir além do tom da pele, o pesquisador
destaca os autores Cruz e Sousa e Machado de Assis. Há uma controvérsia
70
pelo lado da crítica em indicar Machado de Assis como um autor da
literatura negra ou afro-brasileira, por se tratar de uma relevante figura
literária do Brasil. Duarte (2008) discorda dessa crítica:
71
e o aluno possam refletir sobre a condição do homem na sociedade que
empareda, ou seja, que não permite ao homem atingir seus objetivos,
vencendo com seus méritos as adversidades impostas, dos que impediam
a sua ascensão social e a divulgação de sua arte literária. Ou seja,
“Emparedado” não deixa de ser uma representação autobiográfica de
Cruz e Sousa e as dificuldades pelas quais o poeta teve que enfrentar.
O “ponto de vista” elencado por Duarte (2008) faz parte do
que seria essa relação de pensamento social com a literatura afro-brasileira.
Segundo o autor, o ponto de vista configura-se em “indicador preciso
não apenas da visão de mundo autoral, mas também do universo axiológico
vigente no texto, ou seja, do conjunto de valores morais e ideológicos
que fundamentam opções até mesmo vocabulares presentes na
representação” (DUARTE, 2008, p. 15).
Nesse contexto, Duarte (2008) destaca o autor esquecido nos
livros didáticos de Literatura Brasileira, Luís Gama, o único livro publicado
em 1859, Trovas Burlescas de Getulino. Vale ressaltar, que dez anos
após a publicação de Trovas Burlescas, Castro Alves protagonizava
o título de “Poeta dos escravos”, com a publicação de “Navio negreiro”,
no livro Os escravos, em 1869. O aspecto importante, que também
permanece oculto nos livros didáticos, é o fato do poema ter sido
publicado quase vinte anos depois da promulgação da Lei Eusébio de
Queirós, que proibiu o tráfico de escravos, em 4 de setembro de 1850.
Entretanto, o motivo da reflexão é destacar que Luís Gama esteve muito
mais presente nessa batalha, uma vez que seus poemas destacavam a
situação do negro perante a sociedade brasileira.
O ponto de vista trata-se de um elemento importante dentro
do contexto da história do negro no Brasil, principalmente, quando
esse ponto de vista é ressaltado por um poeta, que foi além de sua
própria arte, relevando-se nas funções de jornalista, abolicionista e
72
revolucionário. Luís Gama desprezava a aristocracia, que se considerava
superior, e esse desprezo foi violentamente escrito nos versos de Trovas
Burlescas. Nos livros didáticos, a figura de Luís Gama, grande líder
do povo negro, não foi contemplada.
O poeta Luís Gama nasceu em 21 de junho de 1830, filho de
Luiza Mahin e um fidalgo de família baiana. Segundo a história, a mãe
participou da Revolta dos Malês, em 1935 e da Sabinada, em 1937.
Conta a história que a separação entre mãe e filho ocorreu nesse período,
quando Luís Gama contava os 10 anos de idade. O pai do futuro poeta,
um fidalgo de uma tradicional família baiana, o vendeu para pagar dívidas
de jogo. A partir de 1847, morando em uma fazenda em Lorena, interior
de São Paulo, teve a oportunidade de ser alfabetizado, e no ano seguinte,
ingressa na Força Pública da Província, fazendo parte de um grupo de
soldados que defendia a corte portuguesa das constantes rebeliões. O
interesse pela política ocorre, principalmente, ao trabalhar na função de
soldado particular do Conselheiro Furtado de Mendonça, proprietário
de uma vasta biblioteca. Em 1850, Luís Gama passa a frequentar o curso
de Direito na tradicional Faculdade Largo São Francisco, porém, não
consegue concluir os estudos, pelas fortes pressões sofridas por parte de
professores e estudantes. Seis anos depois, é expulso da Força pública
por má conduta, e por ter respondido a altura um oficial que o insultara.
Por esse motivo, Luís Gama passou trinta e nove dias preso. O trabalho
de amanuense da Secretaria de Polícia durou até 1869, quando foi demitido
por lutar pelos direitos dos negros (AZEVEDO, 1999).
Em Trovas burlescas, Luís Gama tem posicionamento firme
em relação à aristocracia brasileira, mas não perdoava os negros que
não se identificavam como tal, quando tinham acesso à universidade
ou contribuíam para a opressão contra outros negros. Defendeu os
negros não somente em seus poemas ou nos ensaios jornalísticos, mas,
73
principalmente, no fórum, a partir do que tinha aprendido na faculdade
de Direito. Conhecido como o defensor de escravos e crítico da
aristocracia, também atuou a favor dos escravos foragidos e fundou a
Mocidade Abolicionista. Após anos de luta, o poeta faleceu no dia 24
de agosto de 1882, seis anos antes da tão almejada Lei da Abolição, em
1888. A sua obra foi ignorada durante muito tempo pelos currículos
escolares, mas é retomada com a lei 10.639/03, e os estudos relacionados
ao reconhecimento do poeta autodidata e revolucionário em sua época
(AZEVEDO, 1999).
O poema mais representativo de Luís Gama, “Quem sou eu?”,
focaliza o ponto de vista do autor negro, carregado de sátira e zombaria
destinada à classe nobre brasileira, traz uma crítica àqueles que o acusam
de “bode” como forma de identificar o negro de modo depreciativo e
inferiorizado. O poeta, em “Quem sou eu?”, não se deixa intimidar,
defende-se das acusações, criticando a sociedade que se acha superior
ao negro. O poema inicia com afirmações modestas pelo eu lírico, mas
o tom de humildade talvez seja usado apenas para despistar (“pobre
monge”, “não sou vate”, “digo muito disparates”, “louco”, “pateta”…),
pois faz questão de certificar que foge sempre à hipocrisia dos representantes
aristocratas, fidalgos e barões… Vejamos alguns versos:
[…]
Se negro sou, ou sou bode Pouco importa. O que isto
pode? Bodes há de toda a casta,
74
E também alguns tratantes Aqui, nesta boa terra Marram
todos, tudo berra; Nobres Condes e Duquesas, Ricas
Damas e Marquesas, Deputados, senadores, Gentis-ho-
mens, veadores; Belas Damas emproadas,
e nobreza empatufadas; Repimpados principotes, Or-
gulhosos fidalgotes,
Frades, Bispos, Cardeais, Fanfarrões imperiais,
Gentes pobres, nobres gentes Em todos há meus parentes.
[…]
75
discurso de resistência, de fundamental importância para a construção
de uma identidade negra.
Na mesma linha de pensamento, Bernd (1987) aponta a
transgressão como um fator essencial a conferir a especificidade à literatura
dita negra. Para Bernd:
76
de linguagem, ao destacar na introdução algumas atividades e produtos
ligados ao período da escravidão no Brasil, particular aos negros que
resistiam à escravidão. Passagens como a descrição das máscaras de folha
de flandres, e de que elas serviam para impedir o roubo feito pelos
escravos, são provas de reflexiva ironia colocada pelo autor:
77
pretende controlar a sociedade; o fato de identificar que “dinheiro
também dói”, quando resolve não avariar a mercadoria (o escravo) para
não perder o investimento. Enfim, o tratamento com as pessoas, a
captura da escrava Arminda, a profissão de Candinho (capturador de
escravos), traça um paralelo nas condições de miséria e abandono que
unem os que foram reproduzidos pela pobreza gerada pela escravidão
(DUARTE, 2010). A permanência da violência para manter a ordem,
a submissão das pessoas e o próprio senso de justiça, cujos fins não
justificam os meios, mas que na concepção de Candinho, que havia
recuperado a liberdade do filho às custas da prisão de sua vítima, justifica-
se a partir do momento em que acredita na desculpa para a sua história:
“nem todas as crianças vingam”.
Em Machado de Assis afrodescendente, Duarte (2007)
explica o fato de Machado de Assis, apesar de não assumir uma postura
militante em relação à escravidão, teve relevante influência no que diz
respeito ao movimento abolicionista. Para Duarte (2007, p. 10), Machado
de Assis “empenhou-se a seu modo na luta pela abolição, não apenas
como colunista e colaborador ativo, mas também como acionista da
Gazeta de Notícias – um dos jornais de maior circulação na Corte –,
cujas posições eram francamente contrárias à escravatura”. O referido
livro contempla uma antologia organizada por Duarte (2007), que
insere ensaios e notas da obra de Machado de Assis, os quais comprovam
a participação do autor em várias obras, destacando um retrato crítico
e irônico a respeito da escravidão no seu tempo.
O ponto de vista forma outro aspecto do texto afro-brasileiro,
assim, Duarte (2008, p. 17) argumenta que “a assunção de um ponto
de vista afro-brasileiro atinge seu ponto culminante com a série Cadernos
Negros, do grupo paulista Quilombhoje, que produz desde 1978 e
publica volumes anuais de prosa e poesia”. A poesia e a prosa difundidas
78
nessa série fazem a diferença é o que pode ser observado nas relações
de classe e de cor, típicas da sociedade brasileira. Nos contos e poemas
de Cadernos Negros, vozes de autores negros contemporâneos emitem
o tom do compromisso com a escrita, com a consciência e, principalmente,
com a população brasileira que é marginalizada. No poema “Teimosa
presença”, de Lepê Correia (1998, p. 92), publicado Cadernos Negros:
melhores poemas, constatamos a luta diária e a resistência do negro
por um país mais justo e igualitário:
79
trabalho de ressignificação que contraria sentidos hegemônicos na
língua” (DUARTE, 2008, p. 18).
Nesse aspecto da linguagem no universo afro-brasileiro, também
é ressaltado no poema de Solano Trindade (2006), “Sou negro”, um
sentimento de valor da ancestralidade, o significado do reconhecimento
em relação ao seu povo e aos avós, que lutaram pela liberdade:
Sou negro
meus avós foram queimados pelo sol da África
minh’a alma recebeu o batismo dos tambores atabaques,
gonguês e agogôs
Contaram que meus avós
vieram de Loanda
como mercadoria de baixo preço
plantaram cana pra o senhor do engenho novo e fundaram
o primeiro maracatu.
Depois meu avô brigou como um danado nas terras de
Zumbi
Era valente como o quê Na capoeira ou na faca e escreveu
não leu
O pau comeu
Não foi um pai João humilde e manso Mesmo vovó
não foi de brincadeira Na guerra dos Malês ela se destacou
Na minh’a alma ficou o samba
o batuque o bamboleio
e o desejo de libertação…
80
desse compromisso com a marca da simbologia negra, no sentido positivo,
afirmativo, ou seja, o poeta traça uma narrativa poética da representação
dos seus antepassados. Na primeira estrofe a apresentação ocorre
retomando às suas origens africanas: “minh’a alma recebeu o batismo
dos tambores/ atabaques, gonguês e agogôs”, a musicalidade, as festas,
a celebração de uma vida, que apesar das adversidades, comemora e se
orgulha dos avós, que foram trazidos para o Brasil, arrancados de suas
terras em Angola e vendido como mercadoria por um valor irrisório.
Os problemas enfrentados pelos seus antepassados e a forma
como viveram no Brasil, “plantando cana”, “fundando o primeiro
Maracatu”, trazem na lembrança do poeta a imagem de um povo que
trabalhou, foi explorado, porém não houve submissão, principalmente
na passagem em que mostra a luta dos avós “nas terras de Zumbi”,
salientando a resistência de seu povo contra os maus-tratos e a não-
passividade em relação aos desmandos do colonizador. Solano Trindade
(2006) retrata a relação de seus avós com a Revolta dos Malês, a luta
da avó no objetivo pela liberdade, com a valorização da música, do
batuque, como símbolo de uma herança africana, da ancestralidade e
da resistência da identidade negra que não cansa de lutar pela liberdade
e pelo respeito.
Nesse contexto, Solano Trindade (2006) faz parte da última
constante discursiva que é o público, devido à positiva recepção de sua
obra. Duarte (2008, p. 20) explica de que forma essa relação da obra e
do público é realizada: “No caso, o sujeito que escreve o faz não apenas
com vistas a atingir um determinado segmento da população, mas o
faz também a partir de uma compreensão do papel do escritor como
porta-voz de uma determinada coletividade”. O público pode interessar-
se pela literatura afro-brasileira, segundo Duarte (2008), mas que seja
realizado apresentando a diversidade cultural, a cultura africana, tentar
81
combater o preconceito a partir de diálogos, inibir a discriminação de
modo a proporcionar ao leitor textos afirmativos da cultura negra.
Zilá Bernd (1987, p. 16) discorda sobre “conceituar literatura
negra pelo critério da cor da pele do autor”, pois essa determinação
não justificaria o fato de somente escrever sobre uma temática negra
se pertencer a essa etnia. Nesse contexto, a autora assegura que somente
“a partir da evidência textual poderá formar um rigor científico a análise
da questão. Poderão ser considerados como literatura negra aqueles
textos em que houver um eu enunciador que se quer negro, que reivindica
a sua especificidade negra”. Bernd (1987) considera que haverá polêmica
em torno da expressão “Literatura negra”, mas: “pode se considerar
como literatura negra os textos em que for nítido um certo modo negro
de ver o mundo, ou melhor, nos quais os escritores, partilhando uma
certa formação histórica, situação de ex-escravos, dela tomarem
consciência” (BERND, 1987, p. 16).
Na relação com o público, Duarte (2008) destaca o grupo
Quilombhoje, de São Paulo, que busca no público negro o alvo para a
disseminação das ideias e reflexões desenvolvidas nas produções individuais
e, principalmente, na produção semestral de publicações de poemas e
contos nos Cadernos Negros, no qual está presente a maior concentração
de autores negros, exemplo de Cuti (2010), que foi um dos fundadores
do Quilombhoje, crítico literário e autor do estudo Literatura negro-
brasileira. Cuti (2010) é considerado um dos mais significativo difusor
da cultura negra no Brasil.
82
Literatura negro-brasileira: o reconhecimento da autoria
negra
83
-brasileira” lança-nos, em sua semântica, do continente
africano, com suas mais de 54 nações, dentre as quais nem
todas são maioria de pele escura, nem tão pouco estão
ligada a ascendência negro-brasileira.(CUTI, 2010, p. 40).
84
que eu não penso
porque eu me entrego todo negro
a este poente
hão de supor que eu não soulnascente.
85
maternidade e família como um processo constante de renovação
(EVARISTO, 1998, p. 41):
86
O sentimento de injustiça é constante, mas a luta por dignidade sem
vitimização. Esta recorrência da violência silenciosa e a luta diária da
mulher negra por reconhecimento é discutida no artigo “Mulheres
marcadas”, de Duarte (2009) com nítida similitude com a poesia “Negra”,
de S. Machado:
Sou mulher
Sou Negra.
Escura como a noite.
Escura como o Nilo, jorrando ondas de negralma.
Fui escrava.
Como mucama limpei o caminho dos meus
Senhores.
Fui corpo, sangue, orifício para o prazer do outro.
Fui operária, doméstica, lavadeira…
Negrimaculei a alvazia a sociedade.
Costurei o rasgo da invisibilidade.
Subi o morro:
Favela de São Jorge.
Lá no alto, fui pássaro…Cantei.
Da África para o mundo
Mostrei minha voz humilhada,
Porém, no ritmo do tambor,
Forte.
Fui vítima
Da minha cor, do meu sexo.
Muitas portas fechadas.
87
Fui guerreira e acordei
No meio da noite… tiroteios
São Jorge havia liberado o dragão.
Cuspes de fogo tentaram queimar meus sonhos.
Resisti…
Sou mulher
Sou Negra
Sou pobre
Sou história.
Escura como a noite.
Escura como o Nilo, jorrando ondas de negralma.
Ser negra
Na integridade
Calma e morna dos dias
Ser negra
De carapinha,
De dorso brilhante,
De pés soltos nos caminhos
88
Ser negra,
De negras mãos,
De negras mamas
De negra alma
Ser negra,
Nos traços,
Nos passos,
Na sensibilidade negra.
Ser negra,
Do verso e reverso,
De choro e riso,
De verdades e mentiras,
Como todos os seres que habitam terra.
Negra
Puro afro sangue negro,
Saindo nos jorros
Por todos os poros.
89
Em maio sopram ventos desatados por mãos de mando,
turvam o sentido do que sonhamos.
Em maio uma tal senhora liberdade se alvoroça, e desce
às praças das bocas entreabertas
e começa:
“Outrora, nas senzalas, os senhores…”
Mas a liberdade que desce à praça nos meados de maio
pedindo rumores,
é uma senhora esquálida, seca, desvalida e nada sabe de
nossa vida.
A liberdade que sei é uma menina sem jeito, vem montada
no ombro dos moleques
e se esconde
no peito, em fogo, dos que jamais irão à praça.
Na praça estão os fracos, os velhos, os decadentes e seu
grito: “Ó bendita Liberdade!”
E ela sorri e se orgulha, de verdade, do muito que tem feito!
90
O racismo que existe,
o racismo que não existe. O sim que é não,
o não que é sim. É assim o Brasil ou não?
91
possibilidade de perceber a educação pautada no respeito e na promoção
da igualdade étnica e de pertencimento cultural e social na sociedade
brasileira.
Referências
ASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: Relíquias de Casa Velha.
Rio de Janeiro: Garnier, 1990.
92
CAMARGO, Oswaldo de. Em maio. In: Cadernos Negros:
melhores poemas. São Paulo: Quilombhoje, 1998.
93
DUARTE, Eduardo de Assis. (Org.) Machado de Assis
afrodescendente. 2. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2007.
94
MACHADO, Serafina. Negra. In: Cadernos Negros nª 29. São
Paulo: Quilombhoje, 2006.
95
www.ceao.ufba.br/livrosevideos/pdf/literatura%20afrobrasileira.pdf.
Acesso em: 21 de junho de 2014.
96
A literatura indígena no contexto escolar: algumas
considerações
Andrea L. Bernardes
Wanda P. de S. Gaudêncio
Carlos Augusto de Melo
97
temáticas que envolvem aspectos culturais e literários de diversidades
étnicas, consideradas fora do eixo europeu/ocidental (GRUPIONI,
1966). De fato, mesmo diante da imposição legal, percebe-se que o
assunto não integra livros didáticos dos professores, cujos conteúdos
curriculares deveriam abordar obrigatoriamente a história e a cultura
indígena na perspectiva multidisciplinar e da pluralidade cultural
contemporânea (BERGAMASCHI; GOMES, 2012). É tarefa difícil
– mas não impossível - desconstruir essa mentalidade, tanto dos alunos
quanto dos professores, em ambientes escolares.
A inserção de escritores, representantes da literatura indígena
propriamente dita, como Daniel Munduruku (2009), Eliane Potiguara
(2004), entre outros, possibilita a desconstrução do cânone literário e
a visibilidade da literatura indígena - ainda nova para uma parcela de
professores de literatura - aos nossos alunos, levando em consideração,
como foi dito, a necessária (re)educação das relações étnico-raciais e
da construções identitárias nas escolas brasileiras.
Em busca de alternativas que viabilizassem a inclusão da literatura
e cultura indígenas no sistema escolar, este texto representa uma proposta
de conscientização para a mudança da representação da trajetória dos
povos indígenas na Educação Básica, principalmente no ensino de
literatura.
98
Rita Durão; Iracema, O Guarani e Ubirajara, de José de Alencar,
Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto e Macunaíma,
de Mário de Andrade. Porém, seria adequado inseri-los nessa categoria?
De fato, o que é literatura indígena?
A conceituação do que seja esse tipo de literatura é apresentada
por Polar (2000) como aquela escrita por nativos, ou seja:
99
[...] a literatura escrita pelos povos indígenas no Brasil
pede que se leiam as várias faces de sua transversalidade,
a começar pela estreita relação que mantém com a lite-
ratura de tradição oral, com a história de outras nações
excluídas (as nações africanas, por exemplo), com a mescla
cultural e outros aspectos fronteiriços que se manifestam
na literatura estrangeira e, acentuadamente, no cenário da
literatura nacional. (GRAÚNA, 2013, p. 190).
100
Percebe-se que, ao longo da história da literatura brasileira, o
cânone literário tradicional sobre a temática indígena sufocou as vozes
dos povos indígenas por conta da dominação da cultura letrada e da
desvalorização da oralidade (GRAÚNA, 2013). Ao se aterem às questões
socioculturais dos índios, os autores desse cânone não resgataram as
raízes indígenas muito menos apresentaram aos leitores novas possibilidades
sobre as riquezas culturais, sociais e religiosas dos índios, sem julgamentos
nem predileções etnocêntricas. Quando se avaliam algumas obras
brasileiras, como, por exemplo, as de Basílio da Gama e de José de
Alencar, verifica-se que esses prejulgamentos, bem como as tendências
de supervalorização da branquitude e da cultura europeia, são bastante
recorrentes.
Thiél (2012, p.62) considera que o “índio é traduzido pelo
discurso colonial como hóspede em sua própria terra; cordial quando
submisso; hostil quando rebelde; esquivo e inconstante; carente de lei,
rei e fé; inocente, mas cruel.”
Nas obras, eles são retratados do ponto de vista eurocêntrico:
sob a égide da incivilidade e da falta de cultura, só porque não comungava
dos mesmos hábitos, religião e forma de organização social dos
colonizadores. Ou, de acordo com a ideologia romântica que os concebia
como seres idealizados e exóticos, representantes da natureza e distantes
da civilização.
Nesse sentido, esses textos literários foram responsáveis pela
formação de uma tradição inventada, marcada pelo exotismo, sobre as
identidades indígenas que, até hoje, permanecem, equivocadamente,
na mentalidade brasileira:
101
sinônimo de atraso cultural; outras, como selvagem, que
atrapalhava o desenvolvimento econômico. Chegou a ser
utilizado como mão de obra escrava e também foi retra-
tado na literatura como um ser que vivia num paradisíaco
“estado de natureza”, ou seja, mais próximo do natural.
A isso chamamos de visão romântica, que até nossos dias
muitas pessoas têm. Esse tipo de olhar sobre estes povos
acabou direcionando as pessoas para uma compreensão
equivocada sobre os indígenas: ou você é “índio” e vive
como antigamente (na mata, pelado, caçando ou pescando,
andando de canoa, vendo as horas passarem olhando o
céu), ou você se integra à sociedade dita civilizada e dei-
xa de ser “índio”. Para quem pensa desse modo, quando
algum indígena estuda ou se destaca em algum setor da
vida urbana (literatura, cinema, música, meio ambiente)
ele logo é taxado de “civilizado”. (MUNDURUKU,
2013, s/p).
102
Aqui virei ter.
Guerreiros, não choro;
Do pranto que choro;
Se a vida deploro,
Também sei morrer (DIAS, 2001, p. 98).
103
o corisco do céu; e a sua força como a tempestade que desce das nuvens”
(ALENCAR, 1974, p. 31). Em O Guarani, Peri era:
104
branco é incondicional, faz-se de corpo e alma, implicando
sacrifício e abandono de sua pertença à tribo de origem.
Uma partida sem retorno. (BOSI, 1996, p. 177-179).
105
Na obra Macunaíma, de Mário de Andrade (1993), há o resgate
da memória cultural do país, por meio da figura de um anti-herói que
reflete a proposta de mistura cultural que forma o conceito de identidade
apresentado por Baniwa (2006). O protagonista não se percebe em sua
condição de índio e busca a reafirmação de sua identidade em outro
contexto. Deixa a mata, vivencia vários contextos da cultura popular
e é persuadido por valores contidos na malandragem da cidade. Ele
nega suas origens e assume a mestiçagem, visto como símbolo do
nacionalismo etnocêntrico que aflora ao final do século XIX.
Geralmente, os alunos estudam essas obras literárias na escola
e, a partir delas, têm contato com a cultura indígena que, como se
percebe, foi construída de maneira estereotipada e limitadora, tal como
acreditar que a língua tupi era a única dos indígenas brasileiros ou
houvesse culturas uniformes. No olhar de fora, os índios não possuíam
diversidade cultural, étnicas e identitárias:
106
povos indígenas e impossibilitar a ampliação da experiência de alteridade
sobre as facetas da história e da cultura indígenas.
No contexto literário, as organizações políticas, sociais, religiosas
e culturais dos povos aborígenes ainda não eram levadas em consideração,
pois “a abordagem que se faz do índio na história da literatura brasileira
não é indígena, mas indigenista ou indianista” (GRAÚNA, 2013, p.
47).
Com o objetivo de superar essas lacunas unilaterais da história
da literatura, é necessário fazer com que os alunos tenham uma percepção
dos índios que ultrapasse os limites do que o outro sabe ou disse sobre
ele. Na escola, deve-se conhecer o índio por meio de seus próprios
representantes, estudando textos literários da tradição oral e escrita
indígena.
A literatura indígena
107
movimento literário e também político, de afirmação identitária dos
povos autóctones brasileiros. Jecupé (2002) assinala que é preciso buscar
a voz dos indígenas para a grande tribo do mundo moderno, em outras
palavras, oferecer aos indígenas a oportunidade de revelarem as suas
próprias histórias e culturas literárias.
A inserção da literatura indígena contribui para que os índios
tenham a oportunidade de se expressarem sociopoliticamente, bem
como demonstrarem ao homem a necessária relação com o meio ambiente,
por meio de temas próprios às questões ambientais:
108
A marca da literatura produzida pelos autores indígenas é o
resgate e a defesa de suas culturas por meio das memórias ancestrais.
Nesses textos literários, abordam-se conhecimentos, mitos, lendas e
rituais que foram transmitidos oralmente de geração a geração e que
têm como objetivo fixar-se como um instrumento de luta, de
conscientização e de libertação:
109
As lembranças das narrativas orais do avô constituem o estreito
laço entre o passado ancestral e o presente formador das sensibilidades
da personagem Munduruku:
110
suas terras. Também denunciam o descaso do poder públi-
co, a invasão de seus territórios, a destruição da natureza.
Fazem isso usando a internet, os celulares, as câmeras de
vídeos e a literatura, que é o que mais nos interessa nessa
conversa. (MUNDUKURU, 2013, s/p).
111
mesmo. Quem não reverencia os seres da natureza não
merece viver. (MUNDURUKU, 2009, p. 31-33).
112
Nesse poema, o “eu-lírico” feminino revela sua indagações
permeadas pelos sentimentos de revolta e de indignação em relação à
difícil luta de revelação de sua verdadeira identidade. São nítidas as
marcas identitárias, cujos valores estão entre as características físicas
(meus cabelos, minhas rugas, minha cara) e a memória (consciência,
história, violência, estupro), individual e coletiva, do “eu-indígena”.
Esse poema demonstra a força da mulher indígena em defesa de seu
lugar como figura matriarcal representante da origem do povo brasileiro.
A incessante afirmação das tradições indígenas representa a luta
dos povos indígenas para consciência de ser índio na sociedade brasileira
contemporânea. A literatura torna-se veículo importante de fortalecimento
do conjunto de vozes indígenas em luta pelo seu lugar na formação
identitária do país.
113
É necessária uma pesquisa no que está disposto no Referencial
Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (MEC, 1998). Nele,
estão mencionados os aspectos referentes ao aprendizado dos processos
e dos valores de cada grupo, bem como aos padrões de relacionamento
social que são sintonizados com a vivência cotidiana dos índios nas suas
comunidades.
Além disso, torna-se necessário promover manifestações culturais
e literárias coletivas na sala de aula, não apenas em datas comemorativas,
como o tradicional “Dia do Índio”. A leitura da literatura indígena
proporciona a identificação dos alunos com as sensibilidades reveladas
pelas vozes das personagens e dos “eu-líricos” das diversas comunidades
indígenas. Esses textos permitem o despertar para a arte da memória
como construtora dos laços entre o passado e o presente do jovem leitor.
Os professores podem apresentar os textos da literatura indígena,
com o objetivo de promover a discussão em sala de aula. Deve-se
estimular a pesquisa e a socialização de textos produzidos pelos autores
indígenas por meio de saraus, de chás literários e de representações
teatrais em eventos culturais realizados na escola.
Por meio das experiências literárias, é possível despertar nos
alunos os sentimentos e as sensibilidades de alteridade que ajudem no
apoio às campanhas de demarcação de terras e a outros direitos dos
povos indígenas no contexto político, econômico, social e cultural do
país. E diante da constatação do caráter político e social revelado pela
literatura indígena pode-se atuar no sentido de ser aliado ao que sugere
a Lei Nº 11.645/08:
114
desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história
da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos
indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira
e o negro e o índio na formação da sociedade nacional,
resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica
e política, pertinentes à história do Brasil. (BRASIL, 2008).
Referências
115
___________. O Guarani. 14. ed. São Paulo: Editora Ática, 1975.
116
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20072010/2008/lei/
l11645.htm. Acesso em: 06 jul. 2014.
117
GRAÚNA, Graça. Contrapontos da Literatura Indígena
contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013.
JECUPÉ, Kaká Werá. Ore Awé Roiruá Ma. Todas as vezes que
dissemos adeus. São Paulo: Trion, 2002.
118
POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. São
Paulo: Global, 2004.
119
Sobre os Autores
121
Ileel-UFU (MG), vinculado ao programa de Mestrado Profissional
em Letras/ CAPES.
122
Prefeitura Municipal de Bayeux-PB. Desenvolveu projetos que
foram premiados pela Secretaria de Estado da Educação da Paraíba
no Prêmio Mestres da Educação: Em cena: Minha Cidade (2011),
D’Ávila Lins Notícias – Jornal (2012), Poetas Paraibanos: do erudito
ao popular (2013), Uso de novas tecnologias no registro das memórias
(2014).
123
Este livro foi diagramado pela Editora da UFPB em 2015,
utilizando as fonte Borgia Pro e Lato.
Impresso em papel Offset 75 g/m2
e capa em papel Supremo 90 g/m2.
124