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CURITIBA
2009
MUNIRA GOTTARDELLO DE ROCHA
CURITIBA
DEZEMBRO 2009
MUNIRA GOTTARDELLO DE ROCHA
BANCA EXAMINADORA
própria de um tempo dominado pela técnica e pela tecnologia que inaugura novas e
parece estar fora do mundo. Porém, é possível estar no mundo de outro modo, sem
mais próprias é o caminho que o homem, decidido a existir faticamente, terá que
INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 8
2. CAMINHOS DO SILÊNCIO.................................................................................... 28
2.3 A angústia............................................................................................................ 39
CONCLUSÃO............................................................................................................. 58
REFERÊNCIAS...........................................................................................................60
INTRODUÇÃO
pessoas andam de um lado a outro vendo o tempo do relógio lhes cobrar pressa,
moderno. Nesse cenário pouco espaço há para o silêncio e quando este surge,
surge como negação de algo, como privação, às vezes até como censura. Evita-se
ser dito as palavras são evocadas e sons são provocados. O homem desacostumou-
sobre o silêncio é necessário, ainda que difícil, para que o entendimento usual a
O homem que vive o “esquecimento do ser” não convive bem com o silêncio, porque
este o coloca diante do ser ou de volta ao seu ser mais próprio? O silêncio é a
acontecimentos que se deram ao longo dos seus 87 anos, além de trazer uma breve
de Martin Heidegger.
como o ser-aí pode estar no mundo, partindo do modo impessoal, que é a primeira
resultado das pesquisas aqui apresentado não é nada além de uma pequena e
nem completa.
referência para o estudo ontológico e metafísico, pois por toda a sua obra evidencia-
ele próprio nomeia – “Wege, nicht Werke – Caminhos, não obras” – ainda não foi
pensamento, pois não representa somente uma seqüência de fatos, mas reflete o
Admirado por alguns, rejeitado por outros, o certo é que é impossível ficar
foi sempre um solo fértil para a construção do futuro” (CASANOVA, 2009, p.9). Além
do ser, muitos temas são abordados em suas preleções e conferências, além dos
livros, para a aproximação com o ser. Assim, os seus escritos se apresentam como
campo fértil para o exercício do pensar e, não seria incorreto afirmar, que alguns
questão sobre o sentido do ser, além das sendas que se abrem para se chegar ao
ser.
discreto, trabalhador e justo; e a mãe, uma mulher alegre e dedicada aos afazeres
rígido”, pois “a vida católica está de tal maneira inserida em sua carne e sangue que
ganhos que lhes permitiam viver bem, porém sem condições de “mandar as crianças
para a escola mais adiantada”. Assim, após concluir os estudos da escola primária,
Heidegger ganha uma bolsa de estudos de uma fundação local e vai estudar em
Constance, onde fica alojado num internato para futuros padres. Ele permanece
nesse seminário no período de 1903 a 1906, quando vai para o ginásio de St.
de saúde.
onde viverá por quase toda a sua vida e onde também, mais tarde, se distanciará do
teologia, recebe nova bolsa de estudos para filosofia católica, conhece o livro de
Edmund Husserl, Investigações Lógicas, que se torna “um livro de culto pessoal”
Em 1913, ele conclui seu doutorado com a tese sobre A Doutrina do Juízo
Doutrina de Duns Scotus das Categorias e dos Significados. Também nesse ano
nacional, com quem se casa dois anos depois, encerrando, assim, uma possível
apoio em seus estudos. Husserl tem o hábito de reescrever todos os seus escritos
organizá-los, no final de 1917. Entre os dois “devem ter ocorrido intensas conversas
falta que lhe faz aquele filosofar a dois” (SAFRANSKI, 2005, p.117), enquanto
Heidegger está em serviço de formação militar no campo de manobras de Heuberg,
outros importantes pensadores de sua época, como Karl Jaspers e Rudolf Bultmann,
referências no pensamento mundial, como Hannah Arendt, com quem tem um caso
amoroso nos anos de 1924 e 1925. A amizade com Jaspers será interrompida por
ocasião da guerra, da mesma forma a amizade com Arendt. Essas amizades são
de “o rei secreto da filosofia”, sendo logo nomeado para Marburg. Em 1927, ele
publica a obra Ser e tempo, considerada, por muitos, sua maior e melhor obra. Em
recusa, pela primeira vez, ir a Berlim. Em 1934 recusa novamente ir a Berlim, dessa
vez anunciada publicamente no rádio, com o texto Paisagem criativa: por que
1933, se filia ao partido e ainda nesse ano é eleito reitor. Viaja para diversas
(SAFRANSKI, 2005, p.335), pois “com Hölderlin, Heidegger quer descobrir o que há
com o divino que nos falta e com uma ‘política’ que está acima dos assuntos
um sistema de revolução traída, que para ele era uma revolução metafísica,
um revelar-se do seyn no chão de uma comunidade popular. Assim o
nacional-socialista autêntico, como Heidegger continua se sentindo, tem de
tornar-se pensador em tempos precários (SAFRANSKI, 2005, p.343).
“próprio pensar”.
anos. Na última carta, Heidegger escreve “que diante da grande filosofia o próprio
próprio” (SAFRANSKI, 2005, p.371), a ponto de dizer a seu filho: “algo pensa dentro
ainda mantém correspondência com Elisabeth Blochmann, que fora sua aluna, e em
abril de 1938 lhe descreve sua “solidão. Não se queixa, mas aceita-a como
ele distinguido. Solidão não nasce nem se mantém pela ausência de algo, mas pela
chegada de uma outra verdade, ser atacado pela plenitude do só-estranho e único”
Göttingen, porém, por não defender “em absoluto a concepção de mundo nacional-
socialista” (SAFRANSKI, 2005, p.375), seu nome foi retirado da lista em favor do
(SAFRANSKI, 2005, p.375). Heidegger percebe que já não possui tanta influência na
esfera política como outrora, porém ainda conta com alguns defensores. Os líderes
políticos sabem do prestígio internacional de Heidegger e pretendem fazer uso
Itália, no início dos anos quarenta, mas foram suspensas por conta da guerra.
Descartes, em Paris, e por esse motivo, recusa, já que esperava ser chamado a ser
Safranski, que
da faculdade de filosofia para que ele fosse liberado desse chamado. Ao voltar
guardá-los em local seguro, perto de Messkirch. E o fará junto de seu irmão Fritz
Negra. Durante o verão, nos intervalos da colheita de feno, que garante aos
Heidegger faz “uma grande aparição – a última em alguns anos. (...) fala sobre a
de renunciar à sua casa e ter sua biblioteca confiscada, apesar de ainda ter licença
benevolente com ele” (SAFRANSKI, 2005, p.395), com exceção de Adolf Lampe,
que havia sofrido com a reitoria de Heidegger e se mostra contra a sua reabilitação.
Assim, Heidegger solicita um encontro pessoal com Lamper, encontro esse que é
(SAFRANSKI, 2005, p.396), porém não faz o que todos esperavam dele.
licença de professor. Tal parecer não é aceito pelo conselho, que decide reabrir o
processo contra Heidegger. Heidegger vai em busca de apoio e, para isso, solicita
um parecer de Karl Jaspers, que, no início, pensa em recusar tal pedido. “Mas
A última carta entre Jaspers e Heidegger data de 1936, e desde então estão
sem se comunicar. Em 1937, Jaspers, que era casado com uma judia, “fora expulso
Heidegger que nunca a deu. Depois será a vez de Heidegger esperar de Jaspers um
já ter sido consfiscada. Assim, “ele fora considerado disponível, portanto pouco
sanatório. O que se sabe é que ele permaneceu lá por volta de três semanas e saiu
curado, mas “por algum tempo permaneceu isolado. Muitos que queriam parecer
uma pergunta de Beaufret1 a Heidegger: “de que maneira se pode devolver o sentido
ensaio de Sartre aparecido poucos meses antes, também discutido por toda parte na
e mostra que Heidegger está de volta ao exercício do pensar, dando início a uma
1
Jean Beaufret (1907-1982) estudioso da filosofia alemã, discípulo de Heidegger e principal introdutor do
pensamento heideggeriano na França pós-guerra.
O texto Sobre o Humanismo é um documento de “intensificada continuação”
e ao mesmo tempo uma contabilidade em causa própria. Como intromissão
nas tentativas de orientação política do seu tempo, esse texto pareceria
desamparado. Mas como tentativa de recapitular seu próprio pensar e
determinar o seu lugar atual, como abertura de um horizonte onde se
visualizam certos problemas da vida em nossa civilização – visto assim,
esse texto é um documento grandioso e também eficiente da trajetória
intelectual de Heidegger. Além disso nele já está presente toda a filosofia
heideggeriana tardia (SAFRANSKI, 2005, p.426).
dela ter se recusado a publicar o texto Sobre o Humanismo nos Estados Unidos. O
em 1967. A partir daí Arendt visita Heidegger todos os anos, até sua morte em 1975.
p. 442).
Heidegger ser reaceito como aposentado regular e com permissão para ensinar,
de Belas-Artes. Assim, um novo público se forma em torno dele, público que não
ovacionado de pé.
jovem médico suíço, que lera Ser e tempo, com o qual trava grande e duradoura
uma série de seminários que se estendem até 1969. Esses seminários acontecem
2
Montanhas do norte da Floresta Negra acima de Baden-Baden (Safranski, 457)
3
Cidade suíça
Em 1955, ele conhece o poeta francês René Char, apresentado por Jean
Beaufret. Essa nova amizade leva Heidegger à Lê Thor, região de Vaucluse, onde
fará seminários nos anos de 1966, 1968 e 1969, mantendo “um ritual fixo”:
escreve a Hanna Arendt: “Em momentos como este a Spiegel retoma seus velhos
maus modos” (9.3.1966, BwAJ, 655, in SAFRANSKI, 2005, p.485). Arendt “reagiu
com um acesso de ira contra Adorno, que, porém realmente nada tivera com o artigo
Erich Kästner escreve: “Não há nada que eu deseje mais... do que o senhor
desista de não se defender. O senhor não sabe quanta dor causa a seus amigos por
desprezar isso tão obstinadamente até agora. É um dos argumentos mais fortes...
que as infâmias se tornem fatos, quando não nos defendemos audivelmente contra
elas” (BwHK, 80 in SAFRANSKI, 2005, p.485). Para Kästner a defesa deveria ser
casinha plana, construída no jardim de sua casa. Nessa época Hannah Arendt o
las Caminhos (Wege), mas o título acabou sendo mesmo Obras (Werke)”
de teologia de Freiburg” (SAFRANSKI, 2005, p.500) para uma conversa e lhe pede
para ser enterrado em Messkirch. “Pediu um enterro religioso e que Welte falasse na
sua sepultura. Nesse último diálogo dos dois comentaram que a proximidade da
para o português do Brasil. Muitos dos seus livros reúnem preleções e artigos
desses escritos e foi ele quem decidiu a linha editorial. “Não se trata de edição
textos tais como foram deixados pelo autor” (LOPARIC, 2004, p.36).
Não cabe aqui comentar todo o legado deixado por Heidegger, assim a
atenção estará concentrada em duas de suas obras, a saber, Ser e tempo (1927) e
Além disso, é com Ser e tempo que Heidegger inaugura uma nova fase em
sua vida, “deixa de ser uma referência local e ganha o status de um fenômeno único
da filosofia do século XX” (CASANOVA, 2009, p.75). Faz isso ao suscitar uma
questão que há muito é dada como resolvida, a saber, a questão sobre o sentido do
ser. “Ser e tempo inicia-se com a constatação de que o problema central de toda
ontologia, o significado daquilo que é, do ser, do ser do ente, não foi resolvido no
de Heidegger, Ser e tempo deixa de ser a obra referencial, para tornar-se “uma
fenomenologia.
Stein, em sua obra Seis estudos sobre “Ser e tempo” (2005), apresenta a
demore sobre ela um tanto a mais. Para isso se buscou apoio na explicação
e explorá-las de um modo ainda não feito ou já esquecido, pois “uma vez formulada
tudo recai por assim dizer em um espaço de obviedade que acaba por atuar de
forma obstrutiva” (CASANOVA, 2008, p.82). Ou seja, é preciso que velhas questões
sejam postas novamente à discussão para que se perceba que a questão em si não
foi totalmente elucidada, mas é tida como já encerrada, pois dela tudo já se sabe.
tempo, que Heidegger traz de volta à tona, a partir de um diálogo estabelecido com
a tradição.
‘ser’ é conceito evidente por si mesmo” (HEIDEGGER, 2008, p.38-39). Dito de outro
modo, sobre aquilo que se compreende como mais evidente, mais óbvio é que se
deve se debruçar.
A obra Ser e verdade reúne preleções ministradas nos anos de 1933 e 1934,
quando Heidegger vive um outro momento de sua vida. Após ter se filiado ao partido
metafísica que almejava não irá acontecer pelas vias da política. Em 1934 é
partido que, mais tarde, lhe fará sanções, impedindo, inclusive, de ministrar aulas e
É fácil perceber esses momentos na citada obra que inicia com o seguinte
parágrafo:
A juventude acadêmica sabe da grandeza do momento histórico que o povo
alemão atravessa. Que é que está acontecendo? O povo alemão como um
todo está chegando a si mesmo, isto é, está encontrando orientação. Nesta
orientação, o povo, chegando a si mesmo, cria o Estado. Este povo, que se
estrutura dentro do Estado, instala duração e constância e, destarte, cresce
e se transforma em nação. A nação assume o envio e destino do povo. É
assim que um povo adquire uma missão entre os povos e cria sua história.
Os acontecimentos desta história estendem-se longos na direção de um
devir carregado de um porvir desconhecido. Neste e para este devir, a
juventude acadêmica já está desabrochando e disposta a ser convocada. E
isso significa: ela vive da vontade de buscar a disciplina e educação que
venham amadurecê-la e fortalecê-la para a liderança político-espiritual a
ser-lhe confiada, no futuro, pelo povo em prol do Estado, no mundo dos
povos (HEIDEGGER, 2007, p.21).
tempo, colaborando com a escrita da história e que ele seria o condutor desse
p.275).
Hardtmut Tietjen, editor da obra em 2001. Atenção especial deve ser dada à
apresenta o filósofo como aquele que pode (e deve) retornar à caverna para poder
libertar, senão todos, ao menos alguns daqueles que ainda estão presos nela. Ao
pode ser entendido como algo benéfico, necessário e pertencente à fala e ao próprio
Por que evitar o silêncio? Ainda segundo Orlandi (2007, p.27), a linguagem foi criada
pelo homem quando este percebeu o silêncio como significação, pois a linguagem
homem sentir-se presente no conhecido, já o silêncio abre espaço para o que não foi
dito claramente, para o subentendido, para o que pode vir a ser e ainda não é.
parece fugir, o silêncio permite ao homem exercer seu controle, porque questiona o
como aquilo que incomoda e desestabiliza, devendo ser abafado por sons e falas,
conceber que alguém nada tenha a dizer. Assim fala-se a respeito de tudo por todo
falação. Esta é conduzida pela curiosidade e ambas são “modos de ser da fala e da
presença não apenas é e está num mundo, mas também se relaciona com o mundo
junto ao mundo, sendo os outros “aqueles dos quais, na maior parte das vezes, não
(HEIDEGGER, 2008, p.175). Assim, o modo de ser cotidiano é o estar junto aos
outros e ao mundo, dos quais o ser-aí não se diferencia nem se mantém isolado.
Nesse sentido ainda não é possível entender o ser-aí como ser-no-mundo, mas
ser-aí é conduzido pelos outros, sendo os outros qualquer um que não ele mesmo.
Assim, o ser-aí na cotidianidade assume para si o que não lhe é próprio, ou seja, o
ser-com é, aqui, o ser como o outro. Esse ser como o outro é o que garante a
O impessoal é o que não se nomeia, o que não se aprofunda, o que não cria
agir no impessoal é o fazer porque todo mundo faz, é o dizer por que todo mundo
diz. É o passar pela vida sem mesmo saber por quê. Versos de Fernando Pessoa
bem expressam a situação: “Vive-se como se nasce sem o querer nem saber. Nessa
ser-aí acredita que vive, e por acreditar nisso não questiona nem se espanta. Mas
será essa forma de viver uma ilusão? A isso Heidegger responde: “o impessoal se
cotidianidade é o não saber de si mesmo. Vive assim aquele a quem o seu próprio
poder-ser ainda não se mostrou, mas que se mantém junto ao mundo que lhe vem
que pode falar. Estando o ser-aí no modo de ser do impessoal, sua fala será
impessoal não cria raízes, não vai ao fundo, a fala na cotidianidade permanecerá no
que e sobre o quê se fala convida o outro a participar na escuta. Porém, não é
próprio do impessoal estabelecer relações autênticas, de forma que esse falar nada
traz de novo, apenas contenta-se em tomar como certo o que já foi falado e
de autoridade, pois ao ser indagado sobre o quê se fala apenas repete o já falado,
impessoal vai assim alimentando-se e seguindo não só pelo que é falado, pelo que
mantém em lugar nenhum nem preso a nada. Tudo se lhe mostra e tudo lhe escapa,
escapa-lhe porque não reconhece, nem o percebe. Mantém-se assim com a ilusória
sensação de caminhar sem, na verdade, nunca ter saído do mesmo lugar. Não se
pode entender aqui o não sair do lugar como o demorar-se em algo ou com algo,
mas como modo de ser sempre o mesmo, e nesse sempre o mesmo a inconstância
juntas,
não se acham simplesmente uma ao lado da outra em sua tendência de,
mas um modo de ser arrasta o outro consigo. A curiosidade, que nada
perde, e a falação que, tudo compreende, dão à presença, que assim existe,
a garantia de “uma vida cheia de vida”, pretensamente autêntica. Com esta
pretensão, porém, mostra-se um terceiro fenômeno característico da
abertura da presença cotidiana, a ambiguidade. (HEIDEGGER, 2008,
p.237).
sem dedicar muito do seu tempo e de sua atenção a nenhum evento, passa pelas
coisas e vê não para conhecer, mas somente para ver. Coisa vista, coisa conhecida,
prender-se o ser-aí não se prende nem a si mesmo nem às coisas elas mesmas.
para mostrar que sabe e conhece. Dessa forma participa de tudo ao mesmo tempo
nem lado a lado como se a cada momento um isolado dos demais se apresentasse,
nome de decadência. Esta não deve ser entendida de maneira negativa ou no seu
sentido pejorativo, mas sim como demonstração de que o ser-aí “numa primeira
aproximação e na maior parte das vezes, está junto e no mundo das ocupações (...)
ser do ser-aí no mundo, também não caracteriza falha na sua constituição, nem
pode ser entendida como o que se perdeu a si mesmo. A decadência é uma forma
segurança, ele se permite decair no mundo, para ali permanecer tranqüilo. Apesar
disso, o ser-aí próprio da cotidianidade não é menos real nem poderia ser
cotidianidade oferece como possibilidade. Até aqui, já foi dito, o ser-aí pode ser
entendido como aquele que está junto ao mundo, mas ainda não no mundo. Para
reconhecer a si, nem as coisas como elas são é o sentimento de quem não está em
casa, de quem não pertence a lugar nenhum. Diante disso, é possível dizer que o
admiração, sente-se tocado e só isso. Ele não fala mais: fica em silêncio”
obscurecidas para o ser-aí suas possibilidades mais próprias. Posto diante de si, o
ser-aí deve atender ao apelo que lhe é feito. Somente assim, poderá deixar os
Para poder fazer a escolha, o ser-aí já deve ter sido posto diante de si
mesmo, não como diante de algo que surge agora de algum lugar, como algo dado,
mas como aquilo que é seu e que sempre já está junto a si. O seu poder-ser próprio
se mostra e se oculta, para que o ser-aí possa se reconhecer como aquilo que em
Esse mostrar-se a si mesmo aparece como consciência, que não pode ser
enquanto fenômeno “a consciência não é um fato que ocorre e que, por vezes,
simplesmente se dá. Ela ‘é’ e ‘está’ apenas no modo de ser da presença e, como
Esse apelo é silencioso, não faz estardalhaço nem burburinho, pois estes
são próprios do impessoal. Mas ao dizer que o apelo é silencioso não se quer dizer
que o ver a si mesmo como possibilidade que já é, seja algo indolor como uma
possível que, nesse momento, o ser-aí queira recuar e voltar para a facilidade do já
conhecido. Somente o ser-aí disposto a entregar-se ao seu ser mais próprio é que
se rende ao apelo, pois “só é atingido pelo apelo quem quer recuperar-se”
própria do impessoal, mas para o aquietar-se junto a si. Quem chama? O próprio
ser-aí apela para si. Porém, esse apelo não é algo pelo qual um dia o ser-aí se
decidiu. O apelo não vem como resposta de um pedido ou de uma vontade expressa
pelo ser-aí. “O apelo justamente não é e nunca pode ser algo planejado, preparado
ou voluntariamente cumprido por nós mesmos. O apelo ‘se faz’ contra toda espera e
ser-aí para deixar o impessoal e assumir para si aquilo que ele sempre já é.
angustiar-se para o ser e estar em dívida mais próprio” (HEIDEGGER, 2008, p.378).
É preciso aqui fazer uma pausa. Tentar uma releitura do que até aqui foi
escrito. Para tanto, toma-se como apoio os escritos de Heidegger sobre a Alegoria
da Caverna, de Platão.
sons e veem algumas sombras refletidas na parede. Como não podem se mexer
atribuem o som das palavras aos homens que veem na parede e atribuem ao que
veem e ouvem o caráter de real, da mesma forma que o ser-aí entregue ao modo de
as sombras sem manter relações com elas, nem se questionam sobre a luz. “Não
conhecem a diferença entre o encoberto e o desencoberto. Estão inteiramente
ausentes, são todos olhos e todos ouvidos para o que lhes vem ao encontro”
(HEIDEGGER, 2007, p.143). É esse o modo de ser do ser-aí no impessoal. Tudo vê,
tudo sabe, sobre tudo fala, mas não estabelece relações com nada. Aceita o que lhe
é dado como é dado, como certo. É o homem esquecido de si mesmo, o ser-aí que
Ele se move no âmbito do que ele pode, do que não lhe causa esforço, do
que vai e se dá por si mesmo; move-se no espaço do que não exige força,
do que lhe é corriqueiro e ordeiro. Critério de sua avaliação é a manutenção
de um estado tranqüilo sem expor-se a qualquer exigência ou necessidade.
(HEIDEGGER, 2007, p.148)
perceber e diferenciar o impróprio daquilo que se lhe mostra como sua possibilidade
mais própria, mas isso ainda não é suficiente para que ele deixe esse modo de ser e
modo tranqüilo. O apelo da consciência, que não foi planejado nem desejado, é um
momento inesperado e brusco. O ser-aí libertado não é ainda livre. Mas já retirado
para que possa, aos poucos, aprender a ver e se reconhecer para além das figuras
projetadas na parede. Para tanto, o ser-aí precisa querer, precisa fazer a escolha. A
mais estranho, fora dos domínios da falação e da curiosidade. Está pronto para
entregar-se à angústia.
2.3 A angústia
Nesse modo de ser muitos irão permanecer, sem mesmo nem se dar conta que
momento serão tocados por algo que não saberão definir. Lispector descreveu
Se tudo existe é porque sou. Mas por que esse mal estar? É porque não
estou vivendo do único modo que existe para cada um de se viver e nem sei
qual é. Desconfortável. Não me sinto bem. Não sei o que é que há. Mas
alguma coisa está errada e dá mal estar. No entanto estou sendo franca e
meu jogo é limpo (LISPECTOR, 2004, p.73).
É a sensação de que algo não vai bem, mas não se consegue precisar o que
é. Algo está diferente quando tudo se mostra igual. Apenas se sabe isso: algo está
errado e dá mal estar. Sente-se estranho, apesar disso não recua. Busca-se o
conhecido, mas este já não lhe diz mais nada. Não há apoio. Não é medo, temor. O
temor é sempre temor diante de alguma coisa, mas nesse mal estar que se
apresenta nada se oferece como confronto, nada aparece como ameaça. É angústia
e “na angústia perde-se o que se encontra à mão no mundo circundante, ou seja, o
O ser-aí está suspenso, nada mais lhe pertence, nada mais lhe fala. O que
lhe toca agora não é determinado. “Na angústia não se dá o encontro disso ou
angustia e junto com a angústia: nada. Não um como conseqüência do outro, pois
“nada e angústia não é uma relação de causa e efeito, mas o nada e a angústia
nem para onde voltar, pois “a angústia se angustia com o mundo como tal”
(HEIDEGGER, 2008, p.253). O mundo como tal se mostra agora estranho, diferente,
e o que se descortina ao ser-aí em nada mais se parece com o que lhe dava apoio.
seu ser enquanto possibilidade de ser aquilo que já sempre é” (HEIDEGGER, 2008,
p.254). Dito de outra forma “a clara coragem para a angústia essencial garante a
humor que apela ao homem em sua essência para que aprenda a experimentar o
ser no nada” (HEIDEGGER, 1979, p.39), que permite ao ser-aí que estava junto ao
Apropriar-se de si, não como ser lançado ao mundo, mas lançado em seu mundo no
mundo. Não significa isso que o mundo antes habitado pelo ser-aí não exista mais.
O que muda é o modo como o ser-aí vai estar no mundo. Agora já consegue se
perceber diferente dos outros na sua singularidade. Ainda que continue a conviver
com eles, não se confunde com, não busca mais ser como os outros. O ser-aí diante
das infinitas possibilidades que se lhe apresentam consegue distinguir o que é o seu
propriedade. Mas o que se pode entender por verdade nesse contexto? Que
O ser-aí está pronto para voltar ao mundo do qual nunca saiu, mas o olhar
sobre o mundo agora é outro. O modo de ser do ser-aí agora é o seu modo, aquele
angústia e do ser livre como possibilidades de sua abertura, que sempre já estavam
Numa experiência não se entra, não se pode entrar, se nela já não se está
de algum modo. Se não fosse assim como seria possível tocar algo que
jamais se ofereceria ao toque? Ou melhor: como seria possível ser tocado
por algo para cujo toque jamais se estaria aberto, isto é, para o qual se
estaria e sempre in-diferente e a-pático? (FOGEL, 1999, p.78)
O homem que se entrega ao seu ser-aí mais próprio, que faz a experiência
da angústia, que não recua diante dela, que experimenta o desconforto do velado
impessoal, pode se por a caminho de casa, pode se ocupar com suas coisas.
arrastado por elas, reconhece-as. Torna-se “um homem de silêncio, (é) um homem
O que não significa dizer que encontra-se pronto, feito, acabado. O poder-
ser que se lhe abre é movimento de fazer-se e refazer-se sempre novo de novo, de
O homem agora existe, não é mais coisa entre as coisas, mas pode ser-com
Tal ação não coloca o fim ou a meta da ação fora da própria ação e, por
isso, não espera, não quer, não precisa de gratidão, recompensa. É uma
ação que se gratifica e se revigora por si própria e desde si mesma. Da
alegria do seu fazer nasce e renasce a disposição e o apetite de fazer. Ela é
verdadeiramente interessada e, por isso, não é interesseira (FOGEL, 1999,
p.214).
Foi dito acima que daqui não se pode voltar. Isso significa que o desvelado
não pode ser mais ignorado. Esse instante, essa abertura, não se fecha mais, é para
sempre.
ser-aí que não possui um fim no tempo, mas existe de maneira finita, e disso
2008, p. 525). Urgência não é atropelo, não é o fazer por fazer próprio de quem não
sabe o que faz, mas silêncio que “se faz como escuta, quer dizer, como abandono
Isso significa que o ser-aí no seu mais próprio fazer-se é o que silencia e se
diante daquele que “não perde a palavra”. Não falar não é o mesmo que silenciar.
Não falar é próprio de quem não pode falar, enquanto que silenciar é o não falar de
1999, p.222)
releitura apoiada em outros escritos. Foi dito que o modo de ser impessoal do ser-aí
caverna?
ele mesmo, pelo seu mais próprio. Ele está pronto para sair da caverna.
O homem que saiu da caverna é aquele que agora consegue distinguir luz e
que os outros não veem, “é diferente dos demais habitantes da caverna. Ele
p.195).
que teve o seu poder-ser mais próprio desvelado para si precisa voltar ao mundo,
senão de nada teria valido a travessia que fez. Importa poder voltar. Ainda que não
3. SILÊNCIO
Escrever sobre o silêncio não se mostra como tarefa simples, nem tão pouco
nunca consegue falar ou escrever sobre o silêncio, por mais que deseje ou se
o silêncio, então do que se fala? Talvez a questão não esteja bem colocada. O
correto, talvez, seja perguntar: de que silêncio se fala? Certamente não do silêncio
do discurso, que dá origem ao discurso e se apresenta entre palavras e frases,
dele. Nem tão pouco o silêncio daquele que deixa de falar, que cala. Mas, senão e
silêncio condutor. O silêncio que envolve o homem, que envolve as coisas e também
A lida não será abandonada e o silêncio não é místico, nem mistério. Não
serão oferecidos conceitos nem definições, mas tão somente uma interpretação,
seu poder-ser mais próprio: poder-ser porque ainda não é, querer-ter porque ainda
não tem. É a prontidão para a angústia. Isso significa que não é ainda a angústia já
desvelada que se apresenta ao ser-aí. Nesse momento, o ser-aí ainda não é, mas
momento em que o ser-aí precisa afastar-se do que lhe rodeia, distanciar-se do que
pode ser, sem clara distinção. O ser-aí precisa chegar ao mais fundo e quanto mais
ao fundo ele chega mais se espanta, mais se admira. No espanto se cala, não por
não saber ou não poder falar, mas porque não saberia o que dizer. E ao falar, ainda
que de modo impróprio, teria sua atenção desviada, perderia o encanto do caminho
para que isso seja, de fato, possível, o ser-aí precisa, antes, estabelecer uma
relação própria consigo. Para que essa relação seja possível, o ser-aí é chamado a
O silêncio não se busca. Ele vem ao encontro e toma o ser-aí de uma forma
que o ser-aí não espera. Não é encontro marcado, nem decisão tomada
previamente, mas é um ser tomado por, e que a partir disso permite e exige a
escolha. E assim, negar-se uma forma única é não aceitar mais o nivelamento de
É movimento, o que não significa dizer linear, contínuo, constante. Tem mais a ver
primeira porta para o novo que, ainda, não fecha a porta do velho, enquanto modo
impessoal de ser e estar. É o silêncio do apelo que permite ao homem escutar o que
ele ainda não entende. É a abertura para o poder-ser, que ainda não garante que vá
se chegar a ser.
Enquanto apelo o silêncio não é cessação de sons nem ruídos, também não
aparece como espaço vazio onde nada acontece. O silêncio do apelo busca trazer o
seu modo de ser, como momento de espera e de preparação. O mundo à sua volta
continua com sua agitação e nervosismo, e o ser-aí é chamado a afastar-se sem sair
do mundo. Não se deixa decair na cotidianidade, mas ainda não conhece o seu
por esse silêncio não sabe ainda o que vai encontrar pela frente. Enganos podem
acontecer, porém
Se o ser-aí não se propõe a escutar o apelo a partir de outro modo que não
permanecer no impessoal. Isso pode acontecer pelo modo como o apelo acontece,
falação.
silêncio. Por isso o apelo não se dá por palavras nem articulações, senão somente
ser do ser-aí, mesmo que o ser-aí ainda não consiga ver a abertura do seu ser mais
próprio, essa abertura desde sempre existe e está com ele, sendo dele. “Em seu ser,
do ser-aí. Portanto, para que o ser-aí possa se deparar com e apreender o seu ser-
aí mais próprio ele necessita voltar ao início, ou em outras palavras, o ser-aí deve
voltar-se às origens. No caminhar para a frente ele deve dar um passo atrás.
O silêncio não deve ser entendido apenas no limite do falar e calar, ainda
que essas modalidades também pertençam a ele. Por isso é necessário aqui dedicar
um tempo para o entendimento do falar e calar enquanto aberturas do ser-aí que já
O homem que voltou seu olhar para si, que deu o passo atrás, que
reconhece e assume seu poder-ser mais próprio, esse homem agora é. Enquanto é,
o homem existe. “Existir é ser em si mesmo, sendo, de maneira que este sendo ‘é’ e
está como tal, no meio do sendo em sua totalidade” (HEIDEGGER, 2007, p.114).
como sendo no mundo. Não mais conduzido pela falação e pela curiosidade, ele
possui nova disposição que lhe permite nova compreensão de si, das coisas, do
“olhos” de tédio e assim encontrará tédio em tudo; o feliz, por sua vez, “verá” tudo
com olhos de felicidade e reconhecerá a felicidade em tudo que ver e a partir dessa
alegrias dos peixes no rio através de minha própria alegria, à medida que vou
fala, mas sim a falação ou falatório no modo do impessoal. “Neste caso, a linguagem
2008, p.224).
Compreende bem aquele que escuta bem. Logo aquele que fala é também,
e antes, aquele que escuta. Porque escutou e compreendeu pode falar, de forma
que “escutar é o estar aberto existencial da presença enquanto ser-com os outros”
compreender. O compreender não surge de muitas falas nem de muito escutar por
Porém, nem sempre aquele que compreendeu é aquele que fala. Dito de
outra forma, “quem silencia na fala da convivência pode ‘dar a entender’ com maior
2008, p.227).
Em linhas gerais, pode-se dizer, então, que, o ser-aí na sua abertura mais
compreende porque tem disposição para isso. Porque tem disposição para isso
pode escutar e assim falar. Mas pode também silenciar justamente por ter
Isso faz com que seja retomada a questão apresentada por Heidegger em
silêncio será apenas algo negativo, não falar, e meramente um dado externo, a
O silêncio, ou o outro silêncio, nas palavras de Harada (1987, p.13), vai além
própria do ser-aí, que lhe permite existir, transcender, ultrapassar a si mesmo para ir
ser mais próprio), ainda que em ações ordinárias. É o momento do salto e exige
houve busca, e esta aconteceu porque desde sempre o ser-aí já sabia de sua
existência. Pois “quando alguém se lança assim numa tal busca, ele só o faz porque
por ela” (FOGEL, 1999, p.209). Recolhido não é encapsulado, trancado, mas antes
aberto, que se faz a cada momento, que se permite retornar a si e às coisas elas
mesmas. O ser-aí recolhido em si mesmo é o ser-aí que está em casa, pois “retornar
às coisas elas mesmas e deixá-las ser é o modo de quem está em casa” (SASSI,
2008, p.18).
Silêncio exige concentração, não como ato contemplativo, mas como vida
homem de ocupação. É aquele homem que tomou posse de si mesmo, que faz
todas as coisas convergirem para o mesmo ponto, que não pode ser de outro modo
senão esse que é o seu modo. Não pode se ocupar com outras coisas que não as
suas coisas. E ao ocupar-se das suas coisas ele está entregue, está inteiro. E ao
estar inteiro com as suas coisas ele está livre. “Silêncio parece, pois, se referir a um
contrário, o existir, cada ser-aí sempre existe como ele mesmo” (HEIDEGGER,
2008, p.6). Assim, cada homem é um homem, cada existir é um existir, e dessa
forma sempre único. Ainda que vários homens se vejam impelidos a assumir a
própria vida e decidir-se nela e por ela, cada decisão é única. Ainda que seja a
mesma decisão a ser tomada não é igual. O próprio ser-aí que se vê tomado por si
mesmo, diante de diversas situações, é sempre o mesmo sem ser igual. Como já
dito, é movimento.
E o que lhe move? O que busca? Nada além dele mesmo. No ser ele
mesmo mais próprio aí se encontra sua motivação e sua busca. E nesse ser ele
mesmo mais próprio o ser-aí pode voltar à fala. “A transcendência é fala. Não como
trazer a fala, mas não deixa de existir junto ao ser-aí. Ainda que fale, o ser-aí
continua em silêncio, enquanto aquele que permanece junto a si. Aquele que existe,
existe em silêncio, e seu falar não é um simples enunciar do que lhe ocorre, nem tão
pouco um anunciar enquanto tornar público. O seu falar traz junto toda a
nem o exclui. Pois o silêncio está presente na fala já na maneira como esta é
pronunciada, senão “a palavra pode virar mero vocábulo, e a fala, mero falatório”
coisas e a si, num escutar cuidadoso e atento que Heidegger, em seu texto sobre A
empenha nessa tarefa, para que ele possa, até no inaudível, perceber, “ver” como
5
Tradução livre de Hermógenes Harada.
está a saúde do coração. É esse o modo do ser-aí quando se põe a “ouvir” ou a
Já foi dito que o ser-aí no seu modo mais próprio não se retira do mundo,
criando para si um outro mundo isolado de tudo e de todos, mas antes está no seu
mundo no mundo. O que significa dizer que o ser-aí possui outro modo de estar no
Isso significa que o ser-aí mais próprio convive com as coisas ao mesmo
tempo em que as deixa ser como são, e no sendo das coisas elas não assumem o
poder ver a si próprio como sendo o ser-aí pode, agora, ver as coisas como são,
mas antes, como completude, totalidade, inteireza. É capacidade de ver, ouvir e falar
aquilo que é e somente isso. Silêncio não é aquilo que tira, mas sim aquilo que
Aqui também não se pode pensar o ser-aí como completo e acabado. Por
estar no seu modo mais próprio tem acesso às suas possibilidades e assim o ser-aí
é sempre possibilidade de. E o homem se torna, segundo Fogel (1999, p.220), não
responsabilidade de seus atos e decisões, que sabe que seu poder-ser mais próprio
lhe foi desvelado e que nem todos passarão por essa experiência. Então, mesmo
convivendo com eles, sabe que eles não tem alcance para algumas coisas, que
ainda convivem com as sombras, mas que, nem por isso, são menos merecedores
de respeito, pois na incapacidade de ser, eles são, ainda que no modo impessoal, o
que, no momento, lhes é permitido ser e dessa forma exclui o julgamento de valor.
O homem de solidão não se considera melhor, nem maior que os outros, por
ter tido acesso à sua abertura mais própria, por saber-se existente. Ele sabe que é,
e enquanto é ele apenas é, e é apenas aquilo que ele pode ser, nem mais nem
menos.
Ser e saber-se um homem de tarefa necessária, de destino, é, sobretudo,
ser e saber-se na possibilidade própria, isto é, necessária o que incide e
coincide com o ser no e desde o limite. É impor-se ser o que pode e, então,
precisa ser e jamais pretender, presumir ser o que está fora de tal
possibilidade, além ou aquém, e, portanto, o que, por princípio e
constituição, não pode ser. É este o tipo que quer o que pode e só o que
pode, pois sabe ser insensatez maior e absoluta o querer ou, mesmo e
principalmente, o colocar como dever-ser e como meta o que, por
constituição e princípio, não pode ser (FOGEL, 1999, p.223).
ou privação. O ser-aí não foge mais do silêncio, pois este é parte constituinte de si e
2007, p.123). Ele não tira algo de algo como exclusão ou encerramento, mas traz o
ser-aí à sua abertura mais própria, confere ao ser-aí o seu lugar no mundo e o
ser-aí falar de modo autêntico aquilo que no falatório não cabe, o silêncio não é
negativo nem negação, mas afirmação da possibilidade do ser-aí ser aquilo que ele
“O silêncio não se pode tomar meramente por fora, pela vocalização, como
(HEIDEGGER, 2007, p.124). Não é porque não se pode falar que se chega ao
silêncio, pois o não poder falar é próprio dos animais e das coisas e, nem por isso,
se pode afirmar que os animais e as coisas silenciam. Eles simplesmente não falam.
silêncio.
“Ele também não diz respeito à chamada singularidade própria de cada eu,
existencial não é o estar fechado, mas justo o contrário. No silêncio, o ser-aí se abre
para as suas possibilidades mais próprias. Dessa forma pode estabelecer relações
confundir com isso tudo. Mantém-se fiel a si sem necessitar fechar-se para o mundo.
diferencia por poder falar e, assim, poder calar. E nesse calar permanece junto
humor, que irá determinar o modo e para onde o ser-aí vai se encaminhar. A
propriedade traz junto o impessoal. Assim, sabe o ser-aí da possibilidade de decair
para o impessoal, por isso está em vigília, atento e concentrado no seu caminho.
Presta atenção em tudo que lhe cerca, para que possa diferenciar e reconhecer
no seu modo mais próprio não se retira, mas no seu não-falar pode dizer muito.
mas isso não é ação obrigatória. De forma que a linguagem não é somente a
do ser-aí, por isso originária, como o silêncio. Desse modo é que se pode dizer que
o ser mora na linguagem, pois esta se funda no silêncio originário do ser-aí, e ambos
CONCLUSÃO
abertura das suas possibilidades mais próprias. Portanto, é a partir do modo como o
ser-aí está no mundo, que irá perceber o silêncio. Enquanto está no modo da
que deve ser suplantado, extinto. Foge-se dele, evita-o, nega-o. Pois aqui o silêncio
incomoda, desestabiliza, quebra a facilidade do que não exige profundidade.
livre, sem perceber que o que se dá é justamente o contrário. Por desconhecer suas
percebe que algo está diferente. Não sabe definir o que acontece. É um momento
enfrentar o seu medo. De alguma forma, ele sabe que não poderá recuar e assim
para o salto.
se lança a elas. Estar em sua abertura não é estar fora do mundo, mas estar no
mundo de outro modo. O silêncio lhe vem ao encontro, junto com seu modo mais
sempre já era dele e estava com ele. Está em casa. Pode-se dizer sereno, pleno.
Parafraseando Pessoa (1992, p. 497), o ser-aí pode tornar-se só quem sempre foi.
Assim pode-se dizer que para se alcançar o silêncio não basta não falar,
percorrer o caminho que lhe tira da cotidianidade, lhe permite fazer escolhas, optar
por si, assumir responsabilidades e dar o salto. Salto que o leva para o fundo e para
o alto.
perceberam o apelo para entregar-se ao seu ser mais próprio, o silêncio será
sempre ausência, nunca presença. Para que se possa compreender o que foi aqui
Assim que não se pode falar do silêncio através de definições, pois isso
seria manter-se na impessoalidade, que fala sobre tudo sem estabelecer relações
com nada. Além disso, apresentar uma definição é fechar toda uma infinidade de
silêncio, dos caminhos que podem conduzir a ele. Mas enquanto experiência, cada
um terá que fazer a sua. Ainda que se percorra o mesmo caminho, cada um fará
passou com o outro, porque existe a disposição para a escuta atenta, e nessa
REFERÊNCIAS
HARADA, Hermógenes. O meio silêncio. Arte e palavra, UFRJ, Rio de Janeiro, v.3,
p. 11-24, 1987.
______. Introdução à Filosofia. Trad. Marco Antonio Casanova. São Paulo: Martins
Fontes, 2008. 432p.
PERDIGÃO, Andréa Bomfim. Sobre o silêncio. São José dos Campos: Pulso, 2005.
231p.
STÖRIG, Hans Joachim. História geral da filosofia. Petrópolis: Vozes, 2008. 687 p.