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FAE CENTRO UNIVERSITÁRIO

MUNIRA GOTTARDELLO DE ROCHA

O SILÊNCIO NO PENSAMENTO DE MARTIN HEIDEGGER

CURITIBA
2009
MUNIRA GOTTARDELLO DE ROCHA

O SILÊNCIO NO PENSAMENTO DE MARTIN HEIDEGGER

Trabalho de conclusão de curso


apresentado para a disciplina Monografia
III como requisito parcial para obtenção de
Licenciatura no curso de Filosofia da FAE
Centro Universitário.

Orientador: Prof. Dr. Vagner Sassi

CURITIBA
DEZEMBRO 2009
MUNIRA GOTTARDELLO DE ROCHA

O SILÊNCIO NO PENSAMENTO DE MARTIN HEIDEGGER

Este trabalho foi julgado adequado para a obtenção do grau de Licenciada em


Filosofia e aprovado na sua forma final pela Banca Examinadora, da FAE –
Centro Universitário.

Curitiba, 21 de dezembro de 2009.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Vagner Sassi


Orientador

Prof. Dr. Antonio Joaquim Pinto


Aos meus pais
Ricarte (in memorian) e Glacy.
Causa e razão de tudo.
Amor para todo o sempre.
Ao Professor,
Dr. Vagner Sassi,
muito obrigada.
“O objetivo de uma armadilha de peixes é
pegar peixes; quando eles caem na
armadilha ela é esquecida. O objetivo de
uma armadilha para coelhos é pegar
coelhos; quando estes são agarrados,
esquece-se a armadilha. O objetivo das
palavras é transmitir as idéias. Quando
estas são apreendidas, as palavras são
esquecidas. Onde poderei encontrar
alguém que se esqueceu das palavras? É
com ele que gostaria de conversar.”
Chuang Tzu
RESUMO

ROCHA, Munira Gottardello De. O silêncio no pensamento de Martin Heidegger.

62 p. Monografia (Filosofia) – FAE – Centro Universitário. Curitiba, 2009.

O presente estudo tem por objetivo pesquisar a compreensão ontológica e o

entendimento de Martin Heidegger sobre a questão do silêncio O silêncio é,

usualmente, aceito como negativo, indicativo de ausência ou privação. Percepção

própria de um tempo dominado pela técnica e pela tecnologia que inaugura novas e

variadas formas de comunicação. O homem que não acompanha o ritmo frenético

parece estar fora do mundo. Porém, é possível estar no mundo de outro modo, sem

se deixar dominar e ser levado. Para tanto, o homem é chamado a aquietar-se na

estranheza de si mesmo. Sair do modo impessoal e chegar às suas possibilidades

mais próprias é o caminho que o homem, decidido a existir faticamente, terá que

percorrer. Ao deparar-se com as suas possibilidades mais próprias, o homem

percebe o silêncio como modo de ser-no-mundo. Não como modo contemplativo, de

isolamento, mas como modo de realizar-se naquilo que ele sempre já é.

Palavras-chave: Martin Heidegger; silêncio; ontologia.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 8

1. VIDA E OBRA DE MARTIN HEIDEGGER.............................................................10

1.1 Cronologia e principais acontecimentos..........................................................11

1.2 Ser e tempo e Ser e verdade..............................................................................23

2. CAMINHOS DO SILÊNCIO.................................................................................... 28

2.1 O ser-aí impessoal ............................................................................................. 29

2.2 A prontidão para a angústia...............................................................................35

2.3 A angústia............................................................................................................ 39

3.1 O silêncio como apelo........................................................................................ 47

3.2 O silêncio do sendo............................................................................................ 50

CONCLUSÃO............................................................................................................. 58

REFERÊNCIAS...........................................................................................................60
INTRODUÇÃO

O mundo contemporâneo é um mundo inundado por sons e barulhos,

dominado pelo avanço da tecnologia que imprime à vida um ritmo acelerado. As

pessoas andam de um lado a outro vendo o tempo do relógio lhes cobrar pressa,

exigindo, mesmo nos momentos de descanso, a agitação própria do homem

moderno. Nesse cenário pouco espaço há para o silêncio e quando este surge,

surge como negação de algo, como privação, às vezes até como censura. Evita-se

de todos os modos o vazio angustiante do silêncio. Mesmo quando não há nada a

ser dito as palavras são evocadas e sons são provocados. O homem desacostumou-

se a estar só, ainda que essa seja sua condição inerente.

O silêncio não é assumido como assunto possível em conversas triviais e,

no ambiente acadêmico, essa discussão fica restrita ao círculo da linguagem ou da

linguística, tanto pela dificuldade que aí se apresenta quanto pelo entendimento

comum de que o silêncio traz em si grande carga de aspectos negativos. Pensar

sobre o silêncio é necessário, ainda que difícil, para que o entendimento usual a

respeito não seja tomado como sua essência.

Diante disso, algumas questões se fazem necessárias e constituem a

centralidade do trabalho que se propõe. Em um mundo onde os sons imperam qual

o espaço-tempo do silêncio? O silêncio é tão somente a ausência de sons e ruídos?

O homem que vive o “esquecimento do ser” não convive bem com o silêncio, porque

este o coloca diante do ser ou de volta ao seu ser mais próprio? O silêncio é a

impossibilidade de linguagem e comunicação? E, finalmente, qual o entendimento

de Martin Heidegger sobre a questão do silêncio?

Por se tratar de uma investigação teórica sobre o tema, o presente estudo

parte de uma pesquisa bibliográfica sobre o assunto, concentrando sua atenção

principalmente em duas obras de Martin Heidegger, a saber, Ser e tempo e Ser e

verdade. Busca-se também apoio em outros autores, cujos pensamentos comungam

com as ideias do filósofo.


Estudar o silêncio a partir do entendimento ontológico, ultrapassando os

limites da linguagem – silêncio enquanto discurso – constitui-se como objetivo

principal deste trabalho e orienta a composição do mesmo. Assim, este estudo se

organiza da seguinte forma:

O primeiro capítulo apresenta a vida de Martin Heidegger e os principais

acontecimentos que se deram ao longo dos seus 87 anos, além de trazer uma breve

apresentação das duas obras utilizadas como carros-chefes deste estudo.

Considera-se essa apresentação inicial – vida e obra – do filósofo de elevada

relevância, pois o entendimento do contexto histórico-cultural é fundamental para a

correta compreensão de como se deu o processo de elaboração dos pensamentos

de Martin Heidegger.

O segundo capítulo, intitulado Caminhos do Silêncio, tenta mostrar os modos

como o ser-aí pode estar no mundo, partindo do modo impessoal, que é a primeira

forma de apreensão e interpretação de si e do mundo, até se deparar com a

angústia e com a liberdade. De maneira leve, porém, essencial, o tema silêncio já é

abordado nas considerações apresentadas neste capítulo e, assim, já prepara o

espaço para a ulterior reflexão.

O terceiro capítulo, Silêncio, traz a abordagem do tema central da pesquisa

proposta, e se apresenta dividido em duas partes, a saber, O silêncio do apelo e O

silêncio do sendo. A intenção é ultrapassar os limites do entendimento do silêncio

enquanto linguagem, discurso, e apresentá-lo sob o prisma ontológico, característica

fundamental do pensamento heideggeriano.

Tem-se a consciência da extensão do tema proposto, de forma que o

resultado das pesquisas aqui apresentado não é nada além de uma pequena e

inicial abordagem do assunto. Portanto, não se pretende mostrar como conclusivo,

senão como o primeiro passo de um longo caminhar. E, admitindo-se que “toda

leitura já é uma interpretação”, o que se apresenta agora é tão somente uma


interpretação possível, uma forma de leitura que não se julga, por si só, nem correta

nem completa.

1. VIDA E OBRA DE MARTIN HEIDEGGER

Martin Heidegger (1889-1976), filósofo alemão, tornou-se, ainda em vida,

referência para o estudo ontológico e metafísico, pois por toda a sua obra evidencia-

se a busca pelo entendimento do ser. Autor de extensa coleção de escritos, os quais

ele próprio nomeia – “Wege, nicht Werke – Caminhos, não obras” – ainda não foi

totalmente descoberto no cenário filosófico brasileiro, apesar de figurar entre os mais

comentados. Conhecer a vida de um pensador é uma forma de se aproximar de seu

pensamento, pois não representa somente uma seqüência de fatos, mas reflete o

próprio andar do filósofo.

Admirado por alguns, rejeitado por outros, o certo é que é impossível ficar

indiferente à figura de Heidegger. “Com assentimento ou aversão, porém, Heidegger

foi sempre um solo fértil para a construção do futuro” (CASANOVA, 2009, p.9). Além

de pensamentos originais, ele também oferece vocábulos e modo de apresentação

próprios e recorre às “construções vocabulares com hífen, para designar os

dispositivos numa ligação indissolúvel” (SAFRANSKI, 2005, p.29).

Além disso, Heidegger percebe que

precisa encontrar um caminho para convocar aqueles momentos de


percepção em seus ouvintes (...) Os momentos de verdadeira percepção –
medo, tédio, chamado da consciência – têm de ser despertados nos
ouvintes, para que o mistério do Dasein, que deve habitar neles, se possa
manifestar (SAFRANSKI, 2005, p.220).

Assim, para que se possa compreender o pensamento de Heidegger em sua

totalidade, há que, primeiro, se sondar suas particularidades, suas expressões

próprias, ver despertar em si esses momentos de verdadeira percepção e, a partir

deles, entrar no mistério do Dasein.


Apesar de Heidegger ter como ocupação central a questão sobre o sentido

do ser, muitos temas são abordados em suas preleções e conferências, além dos

livros, para a aproximação com o ser. Assim, os seus escritos se apresentam como

campo fértil para o exercício do pensar e, não seria incorreto afirmar, que alguns

temas que não se apresentam como principais são igualmente necessários e de

extrema relevância para a pesquisa filosófica.

Muitos desses temas são encontrados em passagens, curtos trechos em

variados textos, e um olhar atento percebe como se entrelaçam, se completam, se

fundem e mostram mais caminhos. Há que se buscar, portanto, no pensamento do

filósofo as nuances e entrelaçamentos dos caminhos possíveis para se responder à

questão sobre o sentido do ser, além das sendas que se abrem para se chegar ao

ser.

1.1 Cronologia e principais acontecimentos

Martin Heidegger nasceu em Mersskirch, Alemanha, em 26 de setembro de

1889, em uma família católica, de origem camponesa. Segundo Safranski (2005,

p.28), o pai era zelador de objetos sacros e sacristão, de personalidade reservada,

discreto, trabalhador e justo; e a mãe, uma mulher alegre e dedicada aos afazeres

domésticos. A crença no catolicismo não chega a “fanatismo nem confessionalismo

rígido”, pois “a vida católica está de tal maneira inserida em sua carne e sangue que

nem precisam defender sua fé ou impô-la diante dos outros”.

Ainda segundo Safranski (2005, p.35), a família tinha algumas posses e

ganhos que lhes permitiam viver bem, porém sem condições de “mandar as crianças

para a escola mais adiantada”. Assim, após concluir os estudos da escola primária,

Heidegger ganha uma bolsa de estudos de uma fundação local e vai estudar em

Constance, onde fica alojado num internato para futuros padres. Ele permanece

nesse seminário no período de 1903 a 1906, quando vai para o ginásio de St.

Georg, em Freiburg. Em 1909, entra para o noviciado da Sociedade de Jesus, em


Tisis, Feldkirch (Áustria), de onde é dispensado após duas semanas, por problemas

de saúde.

Martin Heidegger ainda depende da ajuda financeira da Igreja para continuar

sua vida acadêmica. Em 1909, inicia os estudos de teologia e filosofia em Freiburg,

onde viverá por quase toda a sua vida e onde também, mais tarde, se distanciará do

catolicismo. Porém, antes desse rompimento, Heidegger conclui seus estudos de

teologia, recebe nova bolsa de estudos para filosofia católica, conhece o livro de

Edmund Husserl, Investigações Lógicas, que se torna “um livro de culto pessoal”

(SAFRANSKI, 2005, p.53).

Em 1913, ele conclui seu doutorado com a tese sobre A Doutrina do Juízo

no Psicologismo e, em 1915, inicia a livre docência com uma dissertação sobre A

Doutrina de Duns Scotus das Categorias e dos Significados. Também nesse ano

conhece, na universidade, Elfride Petri, protestante e estudante de economia

nacional, com quem se casa dois anos depois, encerrando, assim, uma possível

carreira eclesiástica. Em 1919, nasce seu primeiro filho e Heidegger afasta-se do

catolicismo ao declarar, junto de sua esposa, que “não poderão cumprir os

compromissos assumidos no casamento de educar os filhos como católicos”

(SAFRANSKI, 2005, p.101).

Em 1916, Husserl chega a Freiburg e desde então Heidegger tenta se

aproximar de seu mestre “que no começo se mostrara reservado” (SAFRANSKI,

2005, p.116), pois para Husserl, Heidegger era um “filósofo confessionalmente

comprometido”. No ano seguinte Husserl aceita receber Heidegger e lhe promete

apoio em seus estudos. Husserl tem o hábito de reescrever todos os seus escritos

para serem publicados e, Heidegger é chamado para desempenhar a atividade de

organizá-los, no final de 1917. Entre os dois “devem ter ocorrido intensas conversas

filosóficas” (SAFRANSK, 2005, p.117), a ponto de Husserl lamentar em uma carta “a

falta que lhe faz aquele filosofar a dois” (SAFRANSKI, 2005, p.117), enquanto
Heidegger está em serviço de formação militar no campo de manobras de Heuberg,

onde permanece até final de 1918.

Além da amizade com Husserl, Heidegger mantém laços de amizade com

outros importantes pensadores de sua época, como Karl Jaspers e Rudolf Bultmann,

além de influenciar estudantes que, posteriormente, tornar-se-ão também

referências no pensamento mundial, como Hannah Arendt, com quem tem um caso

amoroso nos anos de 1924 e 1925. A amizade com Jaspers será interrompida por

ocasião da guerra, da mesma forma a amizade com Arendt. Essas amizades são

retomadas no período pós-guerra, época de grande fecundidade do pensamento

heideggeriano, e mantidas até o fim de suas vidas.

Em 1922, com a interpretação de Aristóteles, e em 1923, com suas

conferências sobre Ontologia, Heidegger começa a despertar atenção e é chamado

de “o rei secreto da filosofia”, sendo logo nomeado para Marburg. Em 1927, ele

publica a obra Ser e tempo, considerada, por muitos, sua maior e melhor obra. Em

1928, é nomeado para Freiburg como sucessor de Husserl.

Nos anos de 1929/30 faz conferências e preleções sobre Metafísica, O que

é Metafísica e Os Conceitos Fundamentais da Metafísica. Também nessa época

recusa, pela primeira vez, ir a Berlim. Em 1934 recusa novamente ir a Berlim, dessa

vez anunciada publicamente no rádio, com o texto Paisagem criativa: por que

permanecemos na Província? (SAFRANSKI, 2005, p.331)

No início da década de 1930, Heidegger apoia o nacional-socialismo. Em

1933, se filia ao partido e ainda nesse ano é eleito reitor. Viaja para diversas

cidades, a fim de fazer propaganda partidária junto às universidades. Deixa a reitoria

em 1934 por desentendimentos com autoridades governamentais. Essa época dá

início a uma fase de isolamento de Heidegger e afastamento da política. No verão

de 1934, sua conferência

foi anunciada sob o título O Estado e a Ciência. Heidegger abriu caminho


pelo auditório superlotado, onde os camisas-marrons eram a maioria, foi até
o pódio e declarou que tinha mudado o tema: Falarei de lógica. Lógica vem
de logos. Heráclito disse... E nesse momento ficou claro que Heidegger
tratava de mergulhar em sua própria profundeza e que não falaria contra a
política mas queria preservar a antiga distância com relação a ela. Já nas
primeiras frases ele declina de um discurso indisciplinado sobre concepção
de mundo, mas também da tralha das formulações que a ciência burguesa
habitualmente oferece sob o título “lógica”. Lógica é o andar pelo fundo do
ser, que nos interroga, local da dúvida. Já na segunda hora da conferência,
só restavam no auditório os interessados em filosofia (SAFRANSKI, 2005,
p.335).

Foram difíceis os primeiros semestres após a saída da reitoria, conforme

escreve para Jaspers:

para mim é... um tatear laborioso; só há poucos meses consegui ligar-me de


novo ao trabalho... interrompido no verão 32/33; mas é um balbuciar débil, e
de resto há dois marcos – problemas com a fé no futuro e o fracasso da
reitoria – muitas coisas que realmente deveriam estar superadas (1.7.1935,
BwHJ, 157 in SAFRANSKI, 2005, p.335).

Nessa época, Heidegger se liga ao pensamento de Hölderlin, poeta lírico e

romancista alemão, e este “será constante ponto de referência em seu pensar”

(SAFRANSKI, 2005, p.335), pois “com Hölderlin, Heidegger quer descobrir o que há

com o divino que nos falta e com uma ‘política’ que está acima dos assuntos

cotidianos” (SAFRANSKI, 2005, p.335). Em 1934, Heidegger faz sua primeira

conferência sobre Hölderlin e inicia a retomada da “filosofia solitária” sem o

envolvimento na política nacional-socialista, que agora representa para Heidegger

um sistema de revolução traída, que para ele era uma revolução metafísica,
um revelar-se do seyn no chão de uma comunidade popular. Assim o
nacional-socialista autêntico, como Heidegger continua se sentindo, tem de
tornar-se pensador em tempos precários (SAFRANSKI, 2005, p.343).

Entre 1935 e 1938, Heidegger dedica-se a compreender as forças de poder

presentes e atuantes nos tempos modernos: é o período em que elabora as críticas

à técnica de maquinaria, ciência instrumental, administração da cultura e des-

divinização (SAFRANSKI, 2005, p.348). Também nesse período apresenta


conferências sobre Nietzsche e escreve a obra Contribuições à Filosofia, não

destinada à publicação na época, e que serve, para Heidegger, como exercício do

“próprio pensar”.

Em suas Contribuições podemos ver Heidegger transpondo-se, com um


delírio de conceitos e uma ladainha de frases, a um “outro estado”. As
Contribuições são um laboratório para a invenção de uma nova maneira de
falar de Deus. Heidegger faz experiências consigo mesmo, para descobrir
se isso é possível: fundar uma religião sem uma doutrina positiva
(SAFRANSKI, 2005, p.364).

Em 1936, a amizade com Jaspers é interrompida e fica suspensa por vários

anos. Na última carta, Heidegger escreve “que diante da grande filosofia o próprio

debater-se é muito indiferente e só serve como recurso de emergência” (BwHJ, 161

in SAFRANSKI, 2005, p.373).

Como dito anteriormente, esse período marca uma fase de isolamento e

solidão de Heidegger, e “a força do pensamento heideggeriano passa por cima dele

próprio” (SAFRANSKI, 2005, p.371), a ponto de dizer a seu filho: “algo pensa dentro

de mim. Não posso defender-me disso” (SAFRANSKI, 2005, p.372). Heidegger

ainda mantém correspondência com Elisabeth Blochmann, que fora sua aluna, e em
abril de 1938 lhe descreve sua “solidão. Não se queixa, mas aceita-a como

consequência extrema da circunstância de ser marcado pelo destino de pensar e por

ele distinguido. Solidão não nasce nem se mantém pela ausência de algo, mas pela

chegada de uma outra verdade, ser atacado pela plenitude do só-estranho e único”

(BwHB, 91 in SAFRANSKI, 2005, p.372).

Em 1935, Heidegger é lembrado para assumir a cátedra de Filosofia em

Göttingen, porém, por não defender “em absoluto a concepção de mundo nacional-

socialista” (SAFRANSKI, 2005, p.375), seu nome foi retirado da lista em favor do

prof. Heyse, que “era um firme e hábil organizador político nacional-socialista”

(SAFRANSKI, 2005, p.375). Heidegger percebe que já não possui tanta influência na

esfera política como outrora, porém ainda conta com alguns defensores. Os líderes
políticos sabem do prestígio internacional de Heidegger e pretendem fazer uso

disso, apesar de apresentarem reservas à filosofia heideggeriana. Heidegger é

convidado a apresentar suas palestras em vários países como Espanha, Portugal e

Itália, no início dos anos quarenta, mas foram suspensas por conta da guerra.

Em 1937, Heidegger passa a ser controlado pela Gestapo, já que há

desconfiança de que “sua filosofia tem fortes ligações escolásticas” (SAFRANSKI,

2005, p.379). Foi convidado tardiamente a participar do congresso internacional de

Descartes, em Paris, e por esse motivo, recusa, já que esperava ser chamado a ser

o representante alemão em tal congresso. Então, “Heidegger ficou em casa

trabalhando em sua própria contribuição para o entendimento franco-alemão”

(SAFRANSKI, 2005, p.382).

Durante o período de guerra, Heidegger mantém-se mergulhado em sua

filosofia e em sua crítica aos tempos modernos. Quando a França é derrotada, em

1940, Heidegger, numa conferência sobre Nietzsche, diz, segundo explicação de

Safranski, que

a Alemanha provou ser mais cartesiana do que a cartesiana nação França.


A Alemanha conseguiu melhor do que a França realizar o sonho de
Descartes do domínio da res extensa, portanto o domínio técnico da
natureza. (...) A Alemanha venceu porque concretizou perfeitamente –
sobre-humanamente – os males dos tempos modernos. Os franceses são
aprendizes de feiticeiros: desencadearam um processo do qual não estão
mais à altura. Só na Alemanha totalitária de Hitler formou-se aquela
humanidade que está à altura da técnica moderna. Aqui obviamente as
pessoas se tornaram munição (SAFRANSKI, 2005, p.385).

Em 1944, todos os homens entre dezesseis e sessenta anos foram

convocados pelo Führer, inclusive Heidegger, apesar do pedido de alguns membros

da faculdade de filosofia para que ele fosse liberado desse chamado. Ao voltar

dessa missão, Heidegger recebe autorização para organizar seus manuscritos e

guardá-los em local seguro, perto de Messkirch. E o fará junto de seu irmão Fritz

durante o inverno de 1945.


A cidade de Freiburg será tomada pelos aliados e, por isso, na primavera, a

faculdade de filosofia é transferida para o castelo Wildenstein, próximo da Floresta

Negra. Durante o verão, nos intervalos da colheita de feno, que garante aos

catedráticos e estudantes os alimentos, estuda-se Kant e Hölderlin. Ao final do verão

Heidegger faz “uma grande aparição – a última em alguns anos. (...) fala sobre a

frase de Hölderlin: em nós tudo se concentra no espiritual, ficamos pobres para

ficarmos ricos” (SAFRANSKI, 2005, p.393).

Ao voltar de Wildenstein, Heidegger se vê na condição de réu. Ele pode ter

de renunciar à sua casa e ter sua biblioteca confiscada, apesar de ainda ter licença

para lecionar. Em julho de 1945, Heidegger deve se apresentar diante uma

comissão formada por catedráticos, designada pela administração militar francesa,

para “o procedimento de limpeza das universidades”. “A comissão é bastante

benevolente com ele” (SAFRANSKI, 2005, p.395), com exceção de Adolf Lampe,

que havia sofrido com a reitoria de Heidegger e se mostra contra a sua reabilitação.

Assim, Heidegger solicita um encontro pessoal com Lamper, encontro esse que é

registrado minuciosamente em uma ata para ser entregue à comissão. Heidegger se

autodefende, teme pela “degradação social e perda das possibilidades de trabalho”

(SAFRANSKI, 2005, p.396), porém não faz o que todos esperavam dele.

Heidegger não manifesta nenhum sentimento de culpa. Mas também não


sente nenhum. Pois para ele a situação é a seguinte: ele se engajara numa
revolução nacional-socialista por pouco tempo, porque a tomara por uma
revolução metafísica. Quando ela não cumpriu o que lhe prometera e nunca
conseguiu explicar direito o que ela prometera – ele se afastou e fez seu
trabalho filosófico, sem ser influenciado pela concordância ou reprovação do
partido. Não escondeu sua distância crítica do sistema, mas anunciou-a em
suas conferências. Nessa medida era menos responsável pelo sistema do
que a grande maioria dos cientistas que haviam se adaptado, e nenhum dos
quais fora chamado à responsabilidade. (...) Como mais tarde admitiu diante
de Jaspers (8.4.1950), sentia vergonha de ter colaborado por pouco tempo,
isso sim. Mas era vergonha por ter-se enganado, equivocado. O que ele
próprio tinha querido – irrupção, renovação – isso do seu ponto de vista
político real (SAFRANSKI, 2005, p.396).
Lampe mantém seu voto contra Heidegger, o que faz com que a comissão

apresente uma punição ao filósofo. Porém é um parecer brando e sugere que

Heidegger seja aposentado prematuramente, mantendo seus rendimentos e sua

licença de professor. Tal parecer não é aceito pelo conselho, que decide reabrir o

processo contra Heidegger. Heidegger vai em busca de apoio e, para isso, solicita

um parecer de Karl Jaspers, que, no início, pensa em recusar tal pedido. “Mas

depois sentiu-se no dever de dar o parecer, pois exatamente nesse semestre de

inverno fazia uma conferência sobre a necessidade de elaborar a culpa”

(SAFRANSKI, 2005, p.398).

A última carta entre Jaspers e Heidegger data de 1936, e desde então estão

sem se comunicar. Em 1937, Jaspers, que era casado com uma judia, “fora expulso

do cargo e proibido de ensinar e publicar. Heidegger não reagira com uma só

palavra” (SAFRANSKI, 2005, p.398). Jaspers esperava uma explicação de

Heidegger que nunca a deu. Depois será a vez de Heidegger esperar de Jaspers um

comentário sobre seu parecer, que também não virá.

De toda forma, Jaspers sentia-se na obrigação de elaborar o tal parecer e

algumas frases desse parecer foram determinantes para a decisão do conselho:

Na nossa situação a educação da juventude deve ser tratada com a maior


responsabilidade. Deve-se procurar uma total liberdade de ensino, mas não
ela não pode ser produzida imediatamente. O modo de pensar de
Heidegger, que em sua essência me parece acanhado, ditatorial e
desprovido de poder de comunicação, seria funesto no ensino atualmente.
Seu pensamento me parece mais importante do que o conteúdo de juízos
políticos, cuja agressividade pode facilmente mudar de direção. Enquanto
não houver nele um legítimo renascimento, que seja visível em sua obra,
penso que esse professor não pode ser colocado diante de uma juventude
hoje quase sem força interior. Primeiro a juventude precisa adquirir um
pensar independente (SAFRANSKI, 2005, p.400).

Inicialmente, a sentença dada a Heidegger soou branda, apesar de sua casa

já ter sido consfiscada. Assim, “ele fora considerado disponível, portanto pouco

onerado, podendo logo ser reconduzido ao cargo” (SAFRANSKI, 2005, p.400).


Porém, com o surgimento de alguns boatos sobre a proximidade de Heidegger e

intelectuais franceses, entre eles Sartre, os opositores de Heidegger, especialmente

Lamper, conseguem que a investigação não fosse encerrada e destinada a

Heidegger uma punição mais severa, de forma que os rendimentos de Heidegger

fossem suspensos e sua licença para lecionar definitivamente cassada.

Em 1946, Heidegger sofre um colapso físico e mental sendo atendido pelo

barão Victor von Gebsattel,

médico e psicólogo, que pertencia à escola de Binswanger da análise do


Dasein, orientação psicanalítica inspirada na filosofia heideggeriana, e a
qual também pertenceu o futuro amigo de Heidegger, Medard Boss
(SAFRANSKI, 2005, p.411).

Há poucas informações sobre o colapso e a estada de Heidegger no

sanatório. O que se sabe é que ele permaneceu lá por volta de três semanas e saiu

curado, mas “por algum tempo permaneceu isolado. Muitos que queriam parecer

politicamente inocentes achavam melhor evitar ligações com Heidegger”

(SAFRANSKI, 2005, p.411).

Ainda nesse ano, Heidegger escreve o texto Sobre o Humanismo a partir de

uma pergunta de Beaufret1 a Heidegger: “de que maneira se pode devolver o sentido

da palavra humanismo?” (SAFRANSKI, 2005, p.416). Heidegger aceitou a pergunta

e se propôs escrever sobre, “pois ela lhe dava a oportunidade de responder ao

ensaio de Sartre aparecido poucos meses antes, também discutido por toda parte na

Alemanha: O Existencialismo é um Humanismo?” (SAFRANSKI, 2005, p.417).

O texto parece responder, ainda que indiretamente, o pensamento de Sartre

e mostra que Heidegger está de volta ao exercício do pensar, dando início a uma

nova fase em sua vida e em sua filosofia.

1
Jean Beaufret (1907-1982) estudioso da filosofia alemã, discípulo de Heidegger e principal introdutor do
pensamento heideggeriano na França pós-guerra.
O texto Sobre o Humanismo é um documento de “intensificada continuação”
e ao mesmo tempo uma contabilidade em causa própria. Como intromissão
nas tentativas de orientação política do seu tempo, esse texto pareceria
desamparado. Mas como tentativa de recapitular seu próprio pensar e
determinar o seu lugar atual, como abertura de um horizonte onde se
visualizam certos problemas da vida em nossa civilização – visto assim,
esse texto é um documento grandioso e também eficiente da trajetória
intelectual de Heidegger. Além disso nele já está presente toda a filosofia
heideggeriana tardia (SAFRANSKI, 2005, p.426).

Algum tempo depois, por volta de 1949, o processo contra Heidegger é

retomado e a proibição de ensinar pode ser revogada. Nesse período, Heidegger e

Jaspers voltam a se comunicar, quando este escreve ao

reitor de Freiburg, Gerd Tellenbach: ‘O senhor professor Martin Heidegger é


reconhecido em todo o mundo por suas realizações na filosofia, como um
dos mais importantes filósofos da atualidade. Na Alemanha não há quem o
supere. Seu filosofar quase oculto, que toca as mais profundas questões, só
indiretamente reconhecível em seus textos, faz dele talvez hoje uma figura
única em um mundo filosoficamente pobre.’ Era preciso permitir que
Heidegger pudesse trabalhar em paz e, caso desejasse, também ensinar
(SAFRANSKI, 2005, p.435).

Logo Heidegger e Hannah Arendt também voltam a se encontrar, apesar

dela ter se recusado a publicar o texto Sobre o Humanismo nos Estados Unidos. O

reencontro acontece no inverno de 1950 e a partir daí, Heidegger e Arendt


encontram-se algumas outras vezes, sendo a segunda visita em 1952, e nova visita

em 1967. A partir daí Arendt visita Heidegger todos os anos, até sua morte em 1975.

Arendt “vê-se no papel de anjo protetor do Heidegger ‘melhor’”. (SAFRANSKI, 2005,

p. 442).

No início da década de 1950 ainda se discute sobre a possibilidade de

Heidegger ser reaceito como aposentado regular e com permissão para ensinar,

contudo, as críticas e especulações não se concentram apenas na esfera política,

mas também questionam a seriedade e cientificidade do trabalho de Heidegger.

Enquanto ainda estava proibido de lecionar nas universidades, Heidegger

encontra outros espaços para apresentar seus pensamentos, ministra conferências


no “elegante sanatório de Bühlerhöhe2”, no clube de Bremen e na Academia Bávara

de Belas-Artes. Assim, um novo público se forma em torno dele, público que não

entende muito bem o que Heidegger diz, mas composto de

empresários de sólida formação burguesa, em geral humanista, que não


haviam sido tocados por correntes acadêmicas; para eles filosofia era uma
espécie de religiosidade mundana que julgavam absolutamente necessária
na confusão pós-guerra, ainda que individualmente não a compreendessem
muito bem (SAFRANSKI, 2005, p.456).

Em 1951, Heidegger recebe de volta a permissão para lecionar em

universidades. Mas é em 1953 que se dá o início de sua carreira pós-guerra.

Heidegger consegue reunir “toda a Munique intelectual dos anos cinqüenta, na

conferência A Questão da Técnica. Estavam ali Hans Carossa, Friedrich Georg

Jünger, José Ortega y Gasset” (SAFRANSKI, 2005, p.459). Ao final, Heidegger é

ovacionado de pé.

No final da década de 1940, Heidegger havia recebido uma carta de um

jovem médico suíço, que lera Ser e tempo, com o qual trava grande e duradoura

amizade, Medard Boss. Durante anos trocam correspondências e, em 1959, iniciam

uma série de seminários que se estendem até 1969. Esses seminários acontecem

em Zollikon3, na casa de Boss e reúnem entre 50 a 70 pessoas – médicos,

psicoterapeutas, discípulos e colaboradores do médico.

No começo os participantes tinham a sensação de que ‘um homem de Marte


encontrava pela primeira vez um grupo de terráqueos e queria compreender-se com
eles’ (ZS, XII). Paciente, recomeçando como sempre, Heidegger explicou o se
‘princípio fundamental’, de que Dasein significa estar aberto para o mundo. Nesses
seminários Heidegger tentou pela primeira vez tornar compreensíveis perturbações
psíquicas com ajuda dos conceitos fundamentais da análise do dasein de Ser e
Tempo. Comentaram-se histórias de pacientes. O questionamento principal ser se, e
em que medida, a relação aberta com o mundo pode ser reduzida. Relação aberta
com o mundo significa suportar o presente sem fugir para o futuro nem para o
passado (SAFRANSKI, 2005, p.471).

2
Montanhas do norte da Floresta Negra acima de Baden-Baden (Safranski, 457)
3
Cidade suíça
Em 1955, ele conhece o poeta francês René Char, apresentado por Jean

Beaufret. Essa nova amizade leva Heidegger à Lê Thor, região de Vaucluse, onde

fará seminários nos anos de 1966, 1968 e 1969, mantendo “um ritual fixo”:

Pela manhã sentavam-se diante da casa sob os plátanos e, com


acompanhamento de cigarras, comentavam Heráclito ou a frase de Hegel:
‘uma meia rasgada é melhor do que uma remendada. Com a consciência da
própria dignidade não acontece o mesmo’, ou conceito grego de destino, ou
em 1969 a décima-primeira tese de Feuerbach de Marx: ‘os filósofos apenas
interpretaram diversamente o mundo. O que importa é modifica-lo.’ Nessas
manhãs sob as sombras das árvores todos concordam: temos de interpretar
o mundo de maneira a podermos poupa-lo outra vez. (...) À tarde saíam em
passeio pela região, para Avignon, para os vinhedos da Vauclause, e
sobretudo para a cadeia de montanhas de SAint-Victoire, de Cézzane. (...)
Heidegger podia sentar-se longo tempo sobre um bloco de rocha diante da
montanha, contemplando. (...) Naturalmente os amigos recordavam o relato
de como Sócrates podia permanecer horas a fio imóvel imerso em
pensamentos. À noite ficavam sentados novamente na casa de René Schar
(...) E René Schar era grato com Heidegger por ter liberado novamente a
visão para a essência da poesia, que não era senão “o mundo em seu
melhor lugar” (SAFRANSKI, 2005, p.470).

Em 1964, Adorno publica O Jargão da Autenticidade, maior crítica ao

pensamento heideggeriano. Adorno “buscava encontrar na filosofia de Heidegger

uma continuidade facista” (SAFRANSKI, 2005, p.479). Novo empenho contra

Heidegger surge em fevereiro de 1966, na revista Der Spigel, “com o título

‘Heidegger: Meia-Noite de uma Noite do Mundo’. Continha várias afirmações falsas”

(SAFRANSKI, 2005, p.485). Amigos de Heidegger reagem aborrecidos; Jaspers

escreve a Hanna Arendt: “Em momentos como este a Spiegel retoma seus velhos

maus modos” (9.3.1966, BwAJ, 655, in SAFRANSKI, 2005, p.485). Arendt “reagiu

com um acesso de ira contra Adorno, que, porém realmente nada tivera com o artigo

da Spiegel de 1966.” (SAFRANSKI, 2005, p.485).

Erich Kästner escreve: “Não há nada que eu deseje mais... do que o senhor

desista de não se defender. O senhor não sabe quanta dor causa a seus amigos por

desprezar isso tão obstinadamente até agora. É um dos argumentos mais fortes...

que as infâmias se tornem fatos, quando não nos defendemos audivelmente contra
elas” (BwHK, 80 in SAFRANSKI, 2005, p.485). Para Kästner a defesa deveria ser

“mais minuciosa e enérgica” (SAFRANSKI, 2005, p.485).

Finalmente Heidegger aceita conceder uma entrevista à Spiegel, desde que

nada seja publicado enquanto estiver vivo. Assim, em 23 de setembro de 1966

ocorre a entrevista, publicada em 1976, após a morte de Heidegger, sob o título: Só

um Deus ainda pode nos salvar.

No início da década de 1970, Heidegger ainda se dedica ao trabalho, porém,

devido às condições físicas, evita as viagens e se vê obrigado a se mudar para uma

casinha plana, construída no jardim de sua casa. Nessa época Hannah Arendt o

visita todos os anos e dedica

seus últimos anos a trabalhar em sua grande obra incompleta: Da Vida do


Espírito: O Pensar – O Querer – O Julgar. Nos pensamentos que ali
desenvolve ela se aproxima de Heidegger como em nenhum outro
momento. Sua conclusão diz que Heidegger devolveu à filosofia ‘um pensar
que expressa gratidão por ter-lhe sido atribuído ao menos o ‘isso’ (Dass)
nu’. Sua ligação com Heidegger não se desfaz mais em nenhum aspecto.
Todo ano ela o visita e cuida zelosamente da edição e tradução de sua obra
nos Estados Unidos. Heidegger reconhece a sua ajuda, agradecido; escreve
que mais uma vez se confirma que ninguém compreende melhor os
pensamentos dele do que Hannah (SAFRANSKI, 2005, p.494).

Os últimos anos de vida de Heidegger são dedicados à organização de seus

escritos, “preparando a edição completa de suas obras. Na verdade queria chamá-

las Caminhos (Wege), mas o título acabou sendo mesmo Obras (Werke)”

(SAFRANSKI, 2005, p.496).

Em 1975, morre Hannah Arendt e Heidegger “também se prepara agora

para morrer, calmo, controlado, indiferente” (SAFRANSKI, 2005, p.499). No início de

1976, Heidegger chama Bernhard Welte, “seu conterrâneo de Messkirch e professor

de teologia de Freiburg” (SAFRANSKI, 2005, p.500) para uma conversa e lhe pede

para ser enterrado em Messkirch. “Pediu um enterro religioso e que Welte falasse na

sua sepultura. Nesse último diálogo dos dois comentaram que a proximidade da

morte incluía a proximidade com a terra natal” (SAFRANSKI, 2005, p.500).


Heidegger morre no dia 26 de maio de 1976 e, conforme seu pedido, é

enterrado em Messkirch, em 28 de maio.

1.2 Ser e tempo e Ser e verdade

Heidegger é autor de volumosa coleção de escritos. Ao todo são 102

volumes, a maioria já lançada no mercado editorial, porém poucos ainda traduzidos

para o português do Brasil. Muitos dos seus livros reúnem preleções e artigos

escritos ao longo de sua vida. Heidegger cuidou pessoalmente da organização

desses escritos e foi ele quem decidiu a linha editorial. “Não se trata de edição

histórico-crítica, mas de uma ‘edição de última mão’, que deverá apresentar os

textos tais como foram deixados pelo autor” (LOPARIC, 2004, p.36).

Não cabe aqui comentar todo o legado deixado por Heidegger, assim a

atenção estará concentrada em duas de suas obras, a saber, Ser e tempo (1927) e

Ser e verdade (1933/34), que serviram de base para o presente estudo. É

importante ressaltar que não se pretende elaborar um tratado sobre as referidas

obras, mas somente uma breve apresentação.

Ser e tempo é considerada, por muitos, como a obra mais importante de

Martin Heidegger. Isso, segundo Carneiro Leão, no pósfácio da edição traduzida

para o português, ocorre porque

Ser e tempo ultrapassa de muito uma obra de filosofia. É um marco na


caminhada do pensamento pela história do Ocidente. É a questão do
sentido do ser. Não tanto o rigor sistemático como, sobretudo, o caráter
provocador do questionamento fizeram da questão de Ser e tempo o maior
desafio para o pensar do século XX (LEÃO in HEIDEGGER, 2008, p.549).

Além disso, é com Ser e tempo que Heidegger inaugura uma nova fase em

sua vida, “deixa de ser uma referência local e ganha o status de um fenômeno único

da filosofia do século XX” (CASANOVA, 2009, p.75). Faz isso ao suscitar uma

questão que há muito é dada como resolvida, a saber, a questão sobre o sentido do
ser. “Ser e tempo inicia-se com a constatação de que o problema central de toda

ontologia, o significado daquilo que é, do ser, do ser do ente, não foi resolvido no

interior da história da ontologia” (CASANOVA, 2009, p.76).

Para Loparic (2004, p.40), no entanto, após a publicação da obra completa

de Heidegger, Ser e tempo deixa de ser a obra referencial, para tornar-se “uma

etapa” do pensamento heideggeriano, pois “ficaram patentes os limites da

formulação da questão do ser em termos da teoria nela exposta: a analítica

existencial.” (LOPARIC, 2004, p.40). De qualquer forma, Ser e tempo é leitura

obrigatória para aquele que pretende se iniciar nos estudos de ontologia e

fenomenologia.

Stein, em sua obra Seis estudos sobre “Ser e tempo” (2005), apresenta a

estrutura sistemática de Ser e tempo da seguinte forma:

1) No início da obra Heidegger situa a questão da ontologia fundamental,


do sentido do ser.
2) A clarificação desta questão somente pode resultar do recurso ao único
ente que compreende ser – o homem (Dasein), o estar-aí.
3) O estar-aí é ser-no-mundo.
4) Ser-no-mundo é cuidado, cura (Sorge).
5) Cuidado é temporal (zeitlich)
6) A temporalidade do cuidado é temporalidade esctática que se distingue
do tempo linear, objetivado (STEIN, 2005, p.13).

Dentre tantas expressões apresentadas ao longo da obra de Heidegger – e

a partir dela – uma em especial, a saber, ontologia fundamental, merece que se

demore sobre ela um tanto a mais. Para isso se buscou apoio na explicação

oferecida por Casanova (2008):

Ontologia fundamental não significa aqui superontologia, mas aponta muito


mais para a compreensão da necessidade de se perguntar antes de mais
nada pela possibilidade mesma da ontologia. O termo fundamental presente
na expressão indica que a investigação não se mantém mais no âmbito de
uma ontologia positiva, mas desce até o fundamento mesmo das ontologias
em geral e sonda como elas retiram desse fundamento a sua própria
determinação (CASANOVA, 2008, p.79).
Isso significa dizer que é preciso voltar os olhos às ontologias já conhecidas

e explorá-las de um modo ainda não feito ou já esquecido, pois “uma vez formulada

uma questão e uma vez constituídos os caminhos predominantes de resposta a ela,

tudo recai por assim dizer em um espaço de obviedade que acaba por atuar de

forma obstrutiva” (CASANOVA, 2008, p.82). Ou seja, é preciso que velhas questões

sejam postas novamente à discussão para que se perceba que a questão em si não

foi totalmente elucidada, mas é tida como já encerrada, pois dela tudo já se sabe.

É a questão sobre o sentido do ser, ponto central de toda a obra Ser e

tempo, que Heidegger traz de volta à tona, a partir de um diálogo estabelecido com

a tradição.

No primeiro capítulo, ele fala da “necessidade de uma retomada explícita da

questão do ser” e apresenta alguns preconceitos que “dispensam o questionamento

do ser: 1) ’Ser’ é o conceito ‘mais universal’; 2) O conceito de ‘ser’ é indefinível; 3) O

‘ser’ é conceito evidente por si mesmo” (HEIDEGGER, 2008, p.38-39). Dito de outro

modo, sobre aquilo que se compreende como mais evidente, mais óbvio é que se

deve se debruçar.

A obra Ser e verdade reúne preleções ministradas nos anos de 1933 e 1934,

quando Heidegger vive um outro momento de sua vida. Após ter se filiado ao partido

nacional-socialista e conseguir a reitoria em 1933, percebe que a revolução

metafísica que almejava não irá acontecer pelas vias da política. Em 1934 é

demitido da reitoria e afasta-se do partido e da política, ficando sob a vigilância do

partido que, mais tarde, lhe fará sanções, impedindo, inclusive, de ministrar aulas e

publicar seus pensamentos. É nessa época que Heidegger aproxima-se do

pensamento de Hölderlin e também faz pesadas críticas ao tecnicismo que se impõe

ao mundo e à própria filosofia.

É fácil perceber esses momentos na citada obra que inicia com o seguinte

parágrafo:
A juventude acadêmica sabe da grandeza do momento histórico que o povo
alemão atravessa. Que é que está acontecendo? O povo alemão como um
todo está chegando a si mesmo, isto é, está encontrando orientação. Nesta
orientação, o povo, chegando a si mesmo, cria o Estado. Este povo, que se
estrutura dentro do Estado, instala duração e constância e, destarte, cresce
e se transforma em nação. A nação assume o envio e destino do povo. É
assim que um povo adquire uma missão entre os povos e cria sua história.
Os acontecimentos desta história estendem-se longos na direção de um
devir carregado de um porvir desconhecido. Neste e para este devir, a
juventude acadêmica já está desabrochando e disposta a ser convocada. E
isso significa: ela vive da vontade de buscar a disciplina e educação que
venham amadurecê-la e fortalecê-la para a liderança político-espiritual a
ser-lhe confiada, no futuro, pelo povo em prol do Estado, no mundo dos
povos (HEIDEGGER, 2007, p.21).

Heidegger está mesmo convencido que o momento pelo qual a Alemanha

passa é o momento do desencobrimento, e que a filosofia estaria dominando seu

tempo, colaborando com a escrita da história e que ele seria o condutor desse

processo. Assim, “em fevereiro de 1933 chegou para Heidegger o momento de

ação. De repente o êxtase também parece possível na política” (SAFRANSKI, 2005,

p.275).

Não muito tempo depois, percebe seu engano e reescreve as preleções do

semestre de 1931/32 – Da essência da verdade – numa forma alterada, segundo

Hardtmut Tietjen, editor da obra em 2001. Atenção especial deve ser dada à

interpretação que Heidegger faz sobre a Alegoria da Caverna, de Platão, em que

apresenta o filósofo como aquele que pode (e deve) retornar à caverna para poder

libertar, senão todos, ao menos alguns daqueles que ainda estão presos nela. Ao

que o editor comenta:

Nestes termos se reflete, na interpretação do filósofo que retorna à caverna


como libertador, bem como na sua intenção e no perigo a que está exposto,
a compreensão que Heidegger tem de si mesmo, ao assumir o cargo de
reitor e ao continuar sua atividade acadêmica no tempo do nazismo. Nas
interpretações de Nietzsche durante a segunda metade dos anos 30,
Heidegger consegue desmascarar, em sua essência, a ideologia nazista
como simples meio para tomar, conservar e acumular poder (Hardmut
Tietjen in HEIDEGGER, 2007, p. 312).
2. CAMINHOS DO SILÊNCIO

Ser e verdade reúne preleções ministradas por Heidegger, nos semestres de

verão de 1933 e de inverno de 1933/1934. As preleções do semestre de inverno,

agrupadas sob o título Da essência da verdade, trazem, no capítulo cinco, a

discussão Sobre verdade e linguagem. Nesta se encontra a questão que figura

como inicial para o presente estudo:

Será, então, que, em última análise, a origem da essência da linguagem


está em poder calar-se e guardar silêncio? O silêncio será apenas algo
negativo, não falar, e meramente um dado externo, a ausência de som, a
calada? Ou será que o silêncio é algo positivo e mais profundo, e toda fala
não é senão o não-silêncio, o já não e ainda calar-se? (HEIDEGGER, 2007,
p.119).

Heidegger questiona o entendimento usual que se tem sobre o silêncio, ou

seja, o silêncio como ausência do som, como impedimento ou impossibilidade de

manifestação através da fala, para logo em seguida questionar se o silêncio não

pode ser entendido como algo benéfico, necessário e pertencente à fala e ao próprio

do ser-aí. Antes, porém, de se abordar o silêncio sob esse aspecto, há que se

entender e percorrer o caminho que poderá levar a esse entendimento, partindo da

compreensão cotidiana do silêncio como privação.

Em seu livro As Formas do Silêncio, Orlandi (2007, p.27) escreve: “O ato de

falar é o de separar, distinguir e, paradoxalmente, vislumbrar o silêncio e evitá-lo”.

Por que evitar o silêncio? Ainda segundo Orlandi (2007, p.27), a linguagem foi criada

pelo homem quando este percebeu o silêncio como significação, pois a linguagem

estabiliza o movimento dos sentidos. Ou seja, a linguagem enquanto fala faz o

homem sentir-se presente no conhecido, já o silêncio abre espaço para o que não foi

dito claramente, para o subentendido, para o que pode vir a ser e ainda não é.

Além dessa possibilidade de abertura ao desconhecido, do qual o homem

parece fugir, o silêncio permite ao homem exercer seu controle, porque questiona o

silêncio do outro, e disciplina, pois é possível mandar silenciar, de forma a atender o

imediatismo da racionalidade, que busca o claro e distinto. O silêncio, assim, surge

como aquilo que incomoda e desestabiliza, devendo ser abafado por sons e falas,

pois um homem em silêncio é um homem sem sentido (ORLANDI, 2007, p.34).

O homem, ao longo do tempo, foi perdendo a capacidade de silenciar.

Novas e variadas formas de comunicação foram criadas. Logo, não se pode

conceber que alguém nada tenha a dizer. Assim fala-se a respeito de tudo por todo

o tempo, sem se saber ao certo sobre o que se fala.


O nosso imaginário social destinou um lugar subalterno para o silêncio. Há
uma ideologia da comunicação, do apagamento do silêncio, muito
pronunciado nas sociedades contemporâneas. Isso se expressa pela
urgência de dizer e pela multidão de linguagens a que estamos submetidos
no cotidiano. (ORLANDI, 2007, pg.35)

2.1 O ser-aí impessoal

A esse falar sobre tudo e nada ao mesmo tempo, Heidegger chama de

falação. Esta é conduzida pela curiosidade e ambas são “modos de ser da fala e da

visão na cotidianidade” (HEIDEGGER, 2008, p.237). Para que se possa prosseguir é

necessário entender esses “modos de ser” que se apresentam.

A cotidianidade é a uma possibilidade do ser-aí 4 estar no mundo, pois “a

presença não apenas é e está num mundo, mas também se relaciona com o mundo

segundo um modo de ser predominante” (HEIDEGGER, 2008, p.169).

O modo de ser cotidiano do ser-aí é o impessoal e assim junto aos outros e

junto ao mundo, sendo os outros “aqueles dos quais, na maior parte das vezes, não

se consegue propriamente diferenciar, são aqueles entre os quais também se está”

(HEIDEGGER, 2008, p.174).

Entendidos aqui – os outros e mundo – não categorialmente, mas como

existenciais, pois “o mundo é sempre o mundo compartilhado com os outros”

(HEIDEGGER, 2008, p.175). Assim, o modo de ser cotidiano é o estar junto aos

outros e ao mundo, dos quais o ser-aí não se diferencia nem se mantém isolado.

Nesse sentido ainda não é possível entender o ser-aí como ser-no-mundo, mas

apenas como o ser que está junto a.

A presença, enquanto convivência cotidiana, está sob a tutela dos outros.


Não é ela mesma que é, os outros lhe tomam o ser. O arbítrio dos outros
dispõe sobre as possibilidades cotidianas de ser da presença. Mas os
outros não estão determinados. Ao contrário, qualquer outro pode
representá-los. O decisivo é apenas o domínio dos outros que, sem
surpresa, é assumido sem que a presença, enquanto ser-com, disso se dê
conta. O impessoal pertence aos outros e consolida seu poder.
(HEIDEGGER, 2008, p.183)
4
Optou-se por utilizar o termo ser-aí como tradução para o termo em alemão Dasein. Porém, será mantida a
expressão presença quando esta aparecer como tradução de Dasein nas obras consultadas.
Na cotidianidade, o ser-aí é aquilo que ele não é. Sem se dar conta disso o

ser-aí é conduzido pelos outros, sendo os outros qualquer um que não ele mesmo.

Assim, o ser-aí na cotidianidade assume para si o que não lhe é próprio, ou seja, o

ser-com é, aqui, o ser como o outro. Esse ser como o outro é o que garante a

uniformidade do impessoal, excluindo a possibilidade de surpresa e diferenciação.

Assim, o impessoal é todos e ninguém, é tudo e nada ao mesmo tempo. O

impessoal é neutro e mediano e, sendo mediano, permanece no conveniente

enquanto conveniente. Nesse modo de ser promove o “nivelamento de todas as

possibilidades de ser” (HEIDEGGER, 2008, p.184).

O impessoal é o que não se nomeia, o que não se aprofunda, o que não cria

raízes. Seu envolvimento com as coisas é superficial, sem obrigações nem

responsabilidades. É próprio do impessoal apresentar-se no anonimato, identificado

com conceitos abrangentes e abstratos. O ser-aí no modo de ser do impessoal se

isenta de responsabilidades e as decisões são transferidas, de forma que suas

ações são apenas repetições e reproduções. É o agir apressado do dia-a-dia, cheio

de compromissos onde até as pausas são controladas, planejadas e ocupadas. O

agir no impessoal é o fazer porque todo mundo faz, é o dizer por que todo mundo

diz. É o passar pela vida sem mesmo saber por quê. Versos de Fernando Pessoa

bem expressam a situação: “Vive-se como se nasce sem o querer nem saber. Nessa

ilusão de viver” (PESSOA, 1992, p.674).

Vive-se como se nasce sem saber de si mesmo nem do mundo, e assim

permanece, agindo e falando como se vivesse, como se soubesse. Dessa forma o

ser-aí acredita que vive, e por acreditar nisso não questiona nem se espanta. Mas

será essa forma de viver uma ilusão? A isso Heidegger responde: “o impessoal se

revela como ‘o sujeito mais real’ da cotidianidade” (HEIDEGGER, 2008, p.186). O

impessoal é um dos modos de ser do ser-aí, e sendo um modo de ser não é


permanente, mas é o modo de ser próprio da cotidianidade. E próprio da

cotidianidade é o não saber de si mesmo. Vive assim aquele a quem o seu próprio

poder-ser ainda não se mostrou, mas que se mantém junto ao mundo que lhe vem

ao encontro. Ou seja, o impessoal é “a primeira interpretação do mundo e do ser-no-

mundo” (HEIDEGGER, 2008, p.187).

A partir dessa primeira interpretação é que o ser-aí se posiciona no mundo e

estabelece suas conexões com os outros e com as coisas na medianidade, na

superficialidade do ser, muitas vezes assim permanecendo. E nesse permanecer na

impessoalidade, o ser-aí se mostra e percebe o que lhe está à volta através da

falação e da curiosidade, num movimento de decadência que são os “caracteres

existenciais da abertura do ser-no-mundo quando o ser-no-mundo se detém no

modo de ser do impessoal” (HEIDEGGER, 2008, p.230).

A fala é própria do homem enquanto ser que se comunica, que se expressa,

que pode falar. Estando o ser-aí no modo de ser do impessoal, sua fala será

também assim conduzida pelo impessoal, como “modo de ser do compreender e da

interpretação da presença cotidiana” (HEIDEGGER, 2008, p.231). Assim como o

impessoal não cria raízes, não vai ao fundo, a fala na cotidianidade permanecerá no

já falado, no já conhecido e dado. Em outras palavras, a fala, enquanto abertura

originária do modo de ser do ser-aí só pode se dar em relações autênticas, onde o

que e sobre o quê se fala convida o outro a participar na escuta. Porém, não é

próprio do impessoal estabelecer relações autênticas, de forma que esse falar nada

traz de novo, apenas contenta-se em tomar como certo o que já foi falado e

reproduzi-lo, num movimento de repetição e certeza.

O falado na falação arrasta consigo círculos cada vez mais amplos,


assumindo um caráter autoritário. As coisas são assim como são porque é
assim que delas (impessoalmente) se fala. Repetindo e passando adiante a
fala, potencia-se a falta de solidez. Nisso se constitui a falação. A falação
não se restringe apenas à repetição oral da fala, mas expande-se no que
escreve enquanto “escrivinhação”. (HEIDEGGER, 2008, p.232)
A falta de solidez é o que permite à falação do ser-aí impróprio o seu caráter

de autoridade, pois ao ser indagado sobre o quê se fala apenas repete o já falado,

ao ser perguntado por que é assim, se restringe a responder: porque sim. E o

impessoal vai assim alimentando-se e seguindo não só pelo que é falado, pelo que

ouve falar, mas também pelo que lê.

Na certeza de tudo conhecer e tudo já saber o ser-aí permanece fechado às

possibilidades que poderiam se lhe apresentar. Na segurança da certeza não se

mantém em lugar nenhum nem preso a nada. Tudo se lhe mostra e tudo lhe escapa,

escapa-lhe porque não reconhece, nem o percebe. Mantém-se assim com a ilusória

sensação de caminhar sem, na verdade, nunca ter saído do mesmo lugar. Não se

pode entender aqui o não sair do lugar como o demorar-se em algo ou com algo,

mas como modo de ser sempre o mesmo, e nesse sempre o mesmo a inconstância

da impermanência do que está junto às coisas sem estar com as coisas.

Essa impermanência é a característica principal da curiosidade que é regida

pela falação. Assim, falação e curiosidade, enquanto modos de ser, apresentam-se

juntas,
não se acham simplesmente uma ao lado da outra em sua tendência de,
mas um modo de ser arrasta o outro consigo. A curiosidade, que nada
perde, e a falação que, tudo compreende, dão à presença, que assim existe,
a garantia de “uma vida cheia de vida”, pretensamente autêntica. Com esta
pretensão, porém, mostra-se um terceiro fenômeno característico da
abertura da presença cotidiana, a ambiguidade. (HEIDEGGER, 2008,
p.237).

A curiosidade conduz o ser-aí de um lugar a outro, de uma coisa à outra,

sem dedicar muito do seu tempo e de sua atenção a nenhum evento, passa pelas

coisas e vê não para conhecer, mas somente para ver. Coisa vista, coisa conhecida,

já pode se encaminhar para outra coisa. Prende-se às ocupações diárias e nesse

prender-se o ser-aí não se prende nem a si mesmo nem às coisas elas mesmas.

No impessoal, o compreender da presença não vê a si mesmo em seus


projetos, no tocante às possibilidades ontológicas autênticas. A presença é
e está sempre “por aí” de modo ambíguo, ou seja, por aí na abertura pública
da convivência, onde a falação mais intensa e a curiosidade mais aguda
controlam o “negócio”, onde cotidianamente tudo e, no fundo, nada
acontece. (HEIDEGGER, 2008, p.239)

Mostrar-se de modo ambíguo é também próprio do ser-aí na convivência

impessoal da cotidianidade: demonstrar interesse por algo ao mesmo tempo em que

não se permanece junto a ele. Busca saber e conhecer, sem o aprofundamento,

para mostrar que sabe e conhece. Dessa forma participa de tudo ao mesmo tempo

que com nada se envolve.

O impessoal traz em si, ao menos, três modos de ser, a saber, a falação, a

curiosidade e a ambiguidade. Três modos de ser que não se mostram em separado,

nem lado a lado como se a cada momento um isolado dos demais se apresentasse,

mas os três juntos, um trazendo em si o outro.

A falação abre para a presença o ser, em compreendendo, para o seu


mundo, para os outros e para consigo mesma, mas de maneira a que esse
ser para... conserve o modo de uma oscilação sem solidez. A curiosidade
abre toda e qualquer coisa, de maneira que o ser-em esteja em toda parte e
em parte nenhuma. A ambiguidade não esconde nada à compreensão da
presença, mas só o faz rebaixar o ser-no-mundo ao desenraizamento do em
toda parte e em parte nenhuma. (HEIDEGGER, 2008, p.242)

Para o conjunto desses três modos de ser do impessoal, Heidegger dará o

nome de decadência. Esta não deve ser entendida de maneira negativa ou no seu

sentido pejorativo, mas sim como demonstração de que o ser-aí “numa primeira

aproximação e na maior parte das vezes, está junto e no mundo das ocupações (...)

que possui, frequentemente, o caráter de perder-se no caráter público do impessoal”

(HEIDEGGER, 2008, p.240). Também não é a decadência um modo inferior de ser,

senão apenas um “modo especial de ser-no-mundo em que é totalmente absorvido

pelo ‘mundo’ e pela co-presença dos outros no impessoal” (HEIDEGGER, 2008,

p.241). O decair no mundo é uma possibilidade do ser-aí no mundo e, enquanto

possibilidade, constitui-se como sua abertura própria. É constituinte, enquanto

possibilidade, do ser-aí no mundo esse modo de ser da decadência regida pela

falação, curiosidade e ambiguidade.


Em outras palavras, a decadência não é um modo desvirtuado ou errado de

ser do ser-aí no mundo, também não caracteriza falha na sua constituição, nem

pode ser entendida como o que se perdeu a si mesmo. A decadência é uma forma

de apreensão do mundo que permite ao ser-aí transitar pelo mundo apoiado no

impessoal, que lhe garante a tranqüilidade e a estabilidade do estar no já conhecido.

Estabilidade que resulta em alienação, pois o ser-aí na decadência tudo

compreende, mas “o que propriamente se deve compreender permanece, no fundo,

indeterminado e inquestionado” (HEIDEGGER, 2008, p.243).

O ser-aí faz sua primeira aproximação e interpretação do mundo pela

convivência cotidiana, superficial e inquieta, movido pela falação que dita a

curiosidade que busca tudo compreender para em nada se prender. Nessa

segurança, ele se permite decair no mundo, para ali permanecer tranqüilo. Apesar

disso, o ser-aí próprio da cotidianidade não é menos real nem poderia ser

considerado um modo errado de ser, senão apenas o modo que a abertura da

cotidianidade oferece como possibilidade. Até aqui, já foi dito, o ser-aí pode ser

entendido como aquele que está junto ao mundo, mas ainda não no mundo. Para

ser-no-mundo o ser-aí deve atender ao apelo do querer-ter-consciência, que é “o

modo de abertura da presença”. Esse apelo é a “presença colocada diante da

estranheza de si mesma” de forma que o “querer-ter-consciência transforma-se na

prontidão para a angústia” (HEIDEGGER, 2008, p.377).

A estranheza entendida como o “não estar em casa”, que é “existencial e

ontologicamente como fenômeno mais originário” (HEIDEGGER, 2008, p.256). Não

reconhecer a si, nem as coisas como elas são é o sentimento de quem não está em

casa, de quem não pertence a lugar nenhum. Diante disso, é possível dizer que o

que se apresenta é o medo, o temor, a angústia imprópria, manifestações

conhecidas do ser-aí apoiado no impessoal.

Como a angústia já sempre determina, de forma latente, o ser-no-mundo,


este enquanto ser que vem ao encontro na ocupação junto ao “mundo”,
pode sentir medo. Medo é angústia imprópria, entregue à decadência do
“mundo” e, como tal, angústia nela mesma velada (HEIDEGGER, 2008,
p.256).

Frente ao desconhecido, na estranheza, o ser-aí silencia. “Diante da

admiração profunda e do terror atroz, o homem perde a fala. Enche-se de

admiração, sente-se tocado e só isso. Ele não fala mais: fica em silêncio”

(HEIDEGGER, 2003, p.193).

2.2 A prontidão para a angústia

No impessoal o ser-aí se perde a si mesmo, de forma que suas escolhas

mais próprias são relegadas e encobertas pelo impessoal, ficando assim

obscurecidas para o ser-aí suas possibilidades mais próprias. Posto diante de si, o

ser-aí deve atender ao apelo que lhe é feito. Somente assim, poderá deixar os

modos da cotidianidade que lhe encobrem o seu poder-ser mais próprio.

A passagem do impessoal, ou seja, a modificação existenciária do


impessoalmente si mesmo para o ser-si-mesmo de maneira própria deve
cumprir-se como recuperação de uma escolha. Recuperar a escolha
significa escolher essa escolha, decidir-se por um poder-ser a partir de seu
próprio si-mesmo. Apenas escolhendo a escolha é que a presença
possibilita para si mesma o seu poder-ser próprio. (HEIDEGGER, 2008,
p.346)

Para poder fazer a escolha, o ser-aí já deve ter sido posto diante de si

mesmo, não como diante de algo que surge agora de algum lugar, como algo dado,

mas como aquilo que é seu e que sempre já está junto a si. O seu poder-ser próprio

se mostra e se oculta, para que o ser-aí possa se reconhecer como aquilo que em

possibilidade ele sempre já é. “Porque está perdida no impessoal, a presença deve

primeiro encontrar-se. Para encontrar-se, ela deve ‘mostrar-se’ a si mesma em sua

possível propriedade” (HEIDEGGER, 2008, p.346).

Esse mostrar-se a si mesmo aparece como consciência, que não pode ser

aqui entendida como parâmetro de interpretação ou explicação biológica, tão pouco


teológica ou moral. Consciência aqui se mostra como “fenômeno da presença” e

enquanto fenômeno “a consciência não é um fato que ocorre e que, por vezes,

simplesmente se dá. Ela ‘é’ e ‘está’ apenas no modo de ser da presença e, como

fato, só se anuncia com e na existência fática” (HEIDEGGER, 2008, p.347). É a

consciência que faz o apelo para que o ser-aí se encontre a si mesmo.

Esse apelo é silencioso, não faz estardalhaço nem burburinho, pois estes

são próprios do impessoal. Mas ao dizer que o apelo é silencioso não se quer dizer

que o ver a si mesmo como possibilidade que já é, seja algo indolor como uma

transição suave de um estado a outro. “Na tendência de abertura do apelo, insere-se

um momento de impacto, de sobressalto brusco” (HEIDEGGER, 2008, p.350). É

possível que, nesse momento, o ser-aí queira recuar e voltar para a facilidade do já

conhecido. Somente o ser-aí disposto a entregar-se ao seu ser mais próprio é que

se rende ao apelo, pois “só é atingido pelo apelo quem quer recuperar-se”

(HEIDEGGER, 2008, p.350). Assim, ao apelo corresponde não só uma disposição,

mas também um escutar.

O apelo dispensa qualquer verbalização. Ele não vem primeiro à palavra e,


não obstante, nada permanece obscuro e indeterminado. A fala da
consciência sempre apenas se dá em silêncio. Não somente nada perde em
termos de percepção, mas até leva a presença interpelada e apelada à
silenciosidade de si mesma. A falta de verbalização do que, no apelo, se
apela não remete o fenômeno à indeterminação de uma voz misteriosa, mas
mostra apenas que a compreensão não deve se apoiar na expectativa de
uma comunicação ou de algo parecido. (HEIDEGGER, 2008, p.352).

Se não há comunicação como entendida no impessoal, também não há

possibilidade de negociação. Assim o ser-aí é chamado não para uma conversa,

própria do impessoal, mas para o aquietar-se junto a si. Quem chama? O próprio

ser-aí apela para si. Porém, esse apelo não é algo pelo qual um dia o ser-aí se

decidiu. O apelo não vem como resposta de um pedido ou de uma vontade expressa

pelo ser-aí. “O apelo justamente não é e nunca pode ser algo planejado, preparado
ou voluntariamente cumprido por nós mesmos. O apelo ‘se faz’ contra toda espera e

mesmo contra toda vontade” (HEIDEGGER, 2008, p.354).

O apelo se faz no silêncio e assim se faz porque “é só na silenciosidade que

o querer-ter-consciência compreende, adequadamente, essa fala silenciosa. A

silenciosidade retira a palavra da falação e da compreensão impessoal”

(HEIDEGGER, 2008, p.378).

Falou-se anteriormente sobre o apelo da consciência e agora se fala sobre o

querer-ter-consciência. Assim se faz necessária uma observação, pois se trata de

dois momentos distintos. O apelo da consciência é aquele momento brusco em que

o ser-aí se interpela a si mesmo, na tentativa de chegar à abertura de suas

possibilidades mais próprias. O querer-ter-consciência é a tomada de decisão do

ser-aí para deixar o impessoal e assumir para si aquilo que ele sempre já é.

“Chamamos de decisão essa abertura privilegiada e própria, testemunhada pela

consciência na própria presença, ou seja, o projetar-se silencioso e pronto a

angustiar-se para o ser e estar em dívida mais próprio” (HEIDEGGER, 2008, p.378).

É preciso aqui fazer uma pausa. Tentar uma releitura do que até aqui foi

escrito. Para tanto, toma-se como apoio os escritos de Heidegger sobre a Alegoria

da Caverna, de Platão.

No primeiro estágio, os homens estão presos na caverna, ouvem alguns

sons e veem algumas sombras refletidas na parede. Como não podem se mexer

atribuem o som das palavras aos homens que veem na parede e atribuem ao que

veem e ouvem o caráter de real, da mesma forma que o ser-aí entregue ao modo de

ser da cotidianidade que tem existência real, através da falação e da curiosidade.

Ambos, o homem na caverna e o ser-aí no impessoal, atribuem valor ao que veem e

ao que ouvem, por estarem “totalmente entregues ao que lhes é dado”

(HEIDEGGER, 2007, p.143).

Eles não possuem condições de distinguir a sombra da luz, convivem com

as sombras sem manter relações com elas, nem se questionam sobre a luz. “Não
conhecem a diferença entre o encoberto e o desencoberto. Estão inteiramente

ausentes, são todos olhos e todos ouvidos para o que lhes vem ao encontro”

(HEIDEGGER, 2007, p.143). É esse o modo de ser do ser-aí no impessoal. Tudo vê,

tudo sabe, sobre tudo fala, mas não estabelece relações com nada. Aceita o que lhe

é dado como é dado, como certo. É o homem esquecido de si mesmo, o ser-aí que

não se reconhece na sua propriedade.

Esta situação é a situação cotidiana do homem, não é uma falta, exclusão


ou exceção, mas é a situação do homem em todo dia, na medida em que
está entregue ao falatório e à conversa mole, abandonado ao usual, ao
imediato, ao cotidiano, ao que é corriqueiro. No cotidiano, o homem
esquecido de si mesmo se perde no atropelo das coisas. (HEIDEGGER,
2007, p.143)

Em algum momento, o ser-aí que está imerso e perdido no impessoal,

precisa encontrar a si mesmo, é chamado por si para si, para a tomada de

consciência. É a libertação das amarras do homem preso na caverna. Porém, ao ser

libertado das amarras, o homem se volta de novo para as sombras. Da mesma

forma, o ser-aí, ao ser interpelado pela consciência, apresenta resistências. Por

quê? Porque é mais fácil manter-se junto ao já conhecido.

Ele se move no âmbito do que ele pode, do que não lhe causa esforço, do
que vai e se dá por si mesmo; move-se no espaço do que não exige força,
do que lhe é corriqueiro e ordeiro. Critério de sua avaliação é a manutenção
de um estado tranqüilo sem expor-se a qualquer exigência ou necessidade.
(HEIDEGGER, 2007, p.148)

Assim, o apelo da consciência tira as amarras do ser-aí que se encontra no

impessoal. O que poderia representar libertação, em um primeiro momento se

mostra como desconforto, como retirada da tranqüilidade. “A retirada das algemas

não é uma real libertação” (HEIDEGGER, 2007, p.149). O ser-aí consegue já

perceber e diferenciar o impróprio daquilo que se lhe mostra como sua possibilidade
mais própria, mas isso ainda não é suficiente para que ele deixe esse modo de ser e

assuma o seu poder-ser mais próprio.

O retirar as amarras não é um processo de transição suave, não ocorre de

modo tranqüilo. O apelo da consciência, que não foi planejado nem desejado, é um

momento inesperado e brusco. O ser-aí libertado não é ainda livre. Mas já retirado

do burburinho e da agitação do trivial, ele é chamado a aquietar-se em si mesmo,

para que possa, aos poucos, aprender a ver e se reconhecer para além das figuras

projetadas na parede. Para tanto, o ser-aí precisa querer, precisa fazer a escolha. A

escolha de manter-se junto a si somente, de avançar em direção aquilo que lhe é

mais estranho, fora dos domínios da falação e da curiosidade. Está pronto para

entregar-se à angústia.

2.3 A angústia

Afirmou-se que o impessoal é o modo próprio do ser-aí na cotidianidade.

Nesse modo de ser muitos irão permanecer, sem mesmo nem se dar conta que

outras possibilidades poderiam lhes ser oferecidas. Porém, alguns em algum

momento serão tocados por algo que não saberão definir. Lispector descreveu

assim o seu mal estar:

Se tudo existe é porque sou. Mas por que esse mal estar? É porque não
estou vivendo do único modo que existe para cada um de se viver e nem sei
qual é. Desconfortável. Não me sinto bem. Não sei o que é que há. Mas
alguma coisa está errada e dá mal estar. No entanto estou sendo franca e
meu jogo é limpo (LISPECTOR, 2004, p.73).

É a sensação de que algo não vai bem, mas não se consegue precisar o que

é. Algo está diferente quando tudo se mostra igual. Apenas se sabe isso: algo está

errado e dá mal estar. Sente-se estranho, apesar disso não recua. Busca-se o

conhecido, mas este já não lhe diz mais nada. Não há apoio. Não é medo, temor. O

temor é sempre temor diante de alguma coisa, mas nesse mal estar que se

apresenta nada se oferece como confronto, nada aparece como ameaça. É angústia
e “na angústia perde-se o que se encontra à mão no mundo circundante, ou seja, o

mundo intramundano em geral. O ‘mundo’ não é mais capaz de oferecer alguma

coisa, nem sequer a co-presença dos outros” (HEIDEGGER, 2008, p.254)

O ser-aí está suspenso, nada mais lhe pertence, nada mais lhe fala. O que

lhe toca agora não é determinado. “Na angústia não se dá o encontro disso ou

daquilo com o qual se pudesse estabelecer uma conjuntura ameaçadora”

(HEIDEGGER, 2008, p.253). O ser-aí se depara com o nada, “a angústia manifesta

o nada” (HEIDEGGER, 1979, p.37). Este é próprio da angústia. A angústia é o que

angustia e junto com a angústia: nada. Não um como conseqüência do outro, pois

“nada e angústia não é uma relação de causa e efeito, mas o nada e a angústia

estão juntos” (HEIDEGGER, 1979, p.40).

Avançar é o que resta ao ser-aí, pois na angústia não há como retroceder,

nem para onde voltar, pois “a angústia se angustia com o mundo como tal”

(HEIDEGGER, 2008, p.253). O mundo como tal se mostra agora estranho, diferente,

e o que se descortina ao ser-aí em nada mais se parece com o que lhe dava apoio.

Assim lhe é retirada a “possibilidade de, na decadência, compreender a si mesmo a

partir do ‘mundo’ e da interpretação pública” (HEIDEGGER, 2008, p.254).

A angústia arrasta a presença para o ser livre para... para a propriedade de

seu ser enquanto possibilidade de ser aquilo que já sempre é” (HEIDEGGER, 2008,

p.254). Dito de outra forma “a clara coragem para a angústia essencial garante a

misteriosa possibilidade da experiência do ser” (HEIDEGGER, 2008, p.254). A

angústia tira o ser-aí da impropriedade, deixa-o suspenso e lhe abre as

possibilidades do seu poder ser mais próprio. É a angústia, “esta disposição de

humor que apela ao homem em sua essência para que aprenda a experimentar o

ser no nada” (HEIDEGGER, 1979, p.39), que permite ao ser-aí que estava junto ao

mundo ser-no-mundo, e isso o assusta, o angustia.

Enquanto disposição, o angustiar-se é um modo de ser-no-mundo; a


angústia se angustia com o ser-no-mundo lançado; a angústia se angustia
por poder ser-no-mundo. Em sua completude, o fenômeno da angústia
mostra, portanto, a presença como ser-no-mundo que existe faticamente
(HEIDEGGER, 2008, p.258).

Existir faticamente é a possibilidade que se abre ao ser-aí na angústia.

Apropriar-se de si, não como ser lançado ao mundo, mas lançado em seu mundo no

mundo. Não significa isso que o mundo antes habitado pelo ser-aí não exista mais.

O que muda é o modo como o ser-aí vai estar no mundo. Agora já consegue se

perceber diferente dos outros na sua singularidade. Ainda que continue a conviver

com eles, não se confunde com, não busca mais ser como os outros. O ser-aí diante

das infinitas possibilidades que se lhe apresentam consegue distinguir o que é o seu

mais próprio do que é do mundo.

Quanto ao seu “conteúdo”, o “mundo” à mão não se torna um outro mundo,


o círculo dos outros não se modifica, embora, agora, o ser-para o que está à
mão, no modo de compreender e ocupar-se, e o ser-com da preocupação
com os outros sejam determinados a partir de seu poder-ser mais próprio
(HEIDEGGER, 2008, p.379).

Perceber seu mundo, agora, é um desvelar-se da verdade, possível pelo

afastamento de si e do mundo. Aquilo que antes se encontrava encoberto pela

impropriedade começa a mostrar-se. O próprio ser-aí pode reconhecer-se na

propriedade. Mas o que se pode entender por verdade nesse contexto? Que

movimento de passagem é esse? Para essas questões, Safranski oferece a

seguinte explicação sobre o que Heidegger escreveu:

Verdade, diz ele, não existe nem do lado do sujeito no sentido da


“verdadeira” afirmação, nem do lado do objeto no sentido do corretamente
designado, mas é um acontecimento que ocorre num movimento duplo: um
movimento partindo do mundo, que se mostra, vem à frente, aparece; e um
movimento partindo do ser humano, que se apossa do mundo e o revela.
Esse duplo acontecimento transcorre na distância em que o ser humano se
colocou em relação a si e ao seu mundo. Ele sabe dessa distância e por
isso também sabe que existe um mundo que se lhe mostra, e outro que se
retrai. Sabe isso porque vivencia a si mesmo como uma criatura que pode
se mostrar e ocultar. Esse distanciamento é o espaço da liberdade. A
natureza da verdade é a liberdade (WW, 13). Liberdade nesse sentido
significa: ter distância, espaço. Heidegger também chama essa distância,
que proporciona espaço, de abertura (Offenheit). Só nessa abertura existe o
jogo de velamento e desvelamento. Se não houvesse essa abertura, o ser
humano não poderia se distinguir daquilo que o rodeia. Nem poderia
distinguir-se de si mesmo, portanto nem saberia que está aí. Só porque
existe essa abertura, o ser humano pode ter a idéia de medir suas
afirmações sobre a realidade naquilo que a realidade lhe mostra. O ser
humano não possui verdades irrefutáveis, mas está – irrefutavelmente – em
uma relação de verdade que produz aquele jogo de velar e desvelar-se,
aparecer e desaparecer, estar-aí e estar-encoberto (Weg-Sein)
(SAFRANSKI, 2005, p.264).

O ser-aí está pronto para voltar ao mundo do qual nunca saiu, mas o olhar

sobre o mundo agora é outro. O modo de ser do ser-aí agora é o seu modo, aquele

que ele reconhece na liberdade do seu poder-ser aquilo que sempre já é, na

liberdade do distanciamento, da abertura do mostrar-se e ocultar-se. Liberdade

como “realização da necessidade mais radical – da vocação, da identidade”

(FOGEL, 1999, p.78).

Porém, só quem se deixou tocar pela angústia pode falar da experiência da

angústia, da mesma forma que somente aquele que, ultrapassando o desconforto

tranqüilo da angústia, pode falar da experiência da liberdade, e, assim, da própria

angústia e do ser livre como possibilidades de sua abertura, que sempre já estavam

ali com ele.

Numa experiência não se entra, não se pode entrar, se nela já não se está
de algum modo. Se não fosse assim como seria possível tocar algo que
jamais se ofereceria ao toque? Ou melhor: como seria possível ser tocado
por algo para cujo toque jamais se estaria aberto, isto é, para o qual se
estaria e sempre in-diferente e a-pático? (FOGEL, 1999, p.78)

O homem que se entrega ao seu ser-aí mais próprio, que faz a experiência

da angústia, que não recua diante dela, que experimenta o desconforto do velado

que se desvela independente de sua vontade, que reconhece agora o pessoal e o

impessoal, pode se por a caminho de casa, pode se ocupar com suas coisas.

Convive com a falação e com a curiosidade, próprias do mundo, mas não se vê

arrastado por elas, reconhece-as. Torna-se “um homem de silêncio, (é) um homem

de ocupação, de tarefa própria, isto é, absolutamente necessária – por isso inútil”

(FOGEL, 1999, p.207). “Absolutamente necessária”, ou seja, imprescindível, vital,


enquanto o que dá vida é o poder realizar-se, entregar-se às suas ocupações é sua

necessidade, “necessidade da liberdade no movimento de realização, isto é, de

liberação de uma identidade – melhor, de um próprio” (FOGEL, 1999, p.208).

O que não significa dizer que encontra-se pronto, feito, acabado. O poder-

ser que se lhe abre é movimento de fazer-se e refazer-se sempre novo de novo, de

si, por si, para si.

Um modo de ser é um poder-ser, ou seja, uma possibilidade do viver, do


existir, que vem a ser à medida que, na e pela ação, se faz. Se faz, quer
dizer, faz-se a partir de si próprio, tal como vida, uma vez que um verbo, um
poder-ser é sempre o fazer-se ou o vir-a-ser de vida: movimento que se
move a si próprio (“Psyché”) ou que se faz, que brota, que emerge desde si
mesmo e, em se alternando e se diferenciando, para si mesmo retorna,
numa insistente dinâmica de auto-revitalização (“Physis”) (FOGEL, 1999,
p.210)

O homem agora existe, não é mais coisa entre as coisas, mas pode ser-com

as coisas ao fazer-se, e daqui não se pode voltar senão continuar no caminho.

Porém esse continuar no caminho é caminhar no caminho, ou seja, fazer-se no

caminho ao caminhar. Não é busca de fim determinado ou meta estabelecida, é o

agir no próprio agir.

Tal ação não coloca o fim ou a meta da ação fora da própria ação e, por
isso, não espera, não quer, não precisa de gratidão, recompensa. É uma
ação que se gratifica e se revigora por si própria e desde si mesma. Da
alegria do seu fazer nasce e renasce a disposição e o apetite de fazer. Ela é
verdadeiramente interessada e, por isso, não é interesseira (FOGEL, 1999,
p.214).

Foi dito acima que daqui não se pode voltar. Isso significa que o desvelado

não pode ser mais ignorado. Esse instante, essa abertura, não se fecha mais, é para

sempre.

Esse instante, que é começo e que é o revelar-se da possibilidade enquanto


tal ou nela mesma, é “para sempre”, pois revela-se, evidencia-se (ilumina-se
ou faz-se visível, enquanto e como eclosão da e na experiência), que vida,
que existência, é, precisa ser insistentemente retomada, a persistente
repetição desta hora, deste acontecimento arcaico e fundante, de modo tal
que, a vida mesma, o próprio tempo em sua gênese (em sua temporalidade
e temporalização) é a dinâmica de urdimento e tessitura (destino, envio,
ação) desta hora, deste instante. O “para sempre” não é fora do tempo, in-
ou a-temporal, mas fala justamente da evidência desta hora e deste lugar de
urdimento do tempo, da temporalização, portanto (FOGEL, 1999, p.212).

É o tempo no tempo, é o perceber-se nesse tempo como existência e como

ser-aí que não possui um fim no tempo, mas existe de maneira finita, e disso

“emerge a significância propriamente dita e a urgência do ser-aí humano” (STÖRIG,

2008, p. 525). Urgência não é atropelo, não é o fazer por fazer próprio de quem não

sabe o que faz, mas silêncio que “se faz como escuta, quer dizer, como abandono

atento e entrega cuidadosa a isto que se faz” (FOGEL, 1999, p.220).

Isso significa que o ser-aí no seu mais próprio fazer-se é o que silencia e se

afasta? É o ser-aí fechado em si?

O silêncio parece com fechamento e, no fundo, é justo o contrário (...) o


silêncio se torna acontecimento daquele calar-se da presença humana, a
partir do qual o silêncio, isto é, a totalidade do sendo, em cujo seio, está a
presença humana, vem à linguagem. E, assim, a palavra não é cópia ou
decalque das coisas, mas justamente a elaboração que contém e retém em
si a abertura recolhida e tudo o que nela se oferece e patenteia
(HEIDEGGER, 2007, p. 123).

Justamente o ser-aí aberto às suas possibilidades é o que pode silenciar

diante daquele que “não perde a palavra”. Não falar não é o mesmo que silenciar.

Não falar é próprio de quem não pode falar, enquanto que silenciar é o não falar de

quem pode e deve falar. Assim,

silenciar em sentido próprio só é possível numa fala autêntica. Para poder


silenciar, a presença deve ter algo a dizer, isto é, deve dispor de uma
abertura própria e rica de si mesma. Pois só então o estar em silêncio se
revela e, assim, abafa a “falação” (HEIDEGGER, 2008, p.228).

Silenciar não é o retirar-se para a contemplação no alto da montanha,

afastado do burburinho e agitação da cotidianidade, mas “o homem de silêncio, um

homem estigmatizado pela necessidade de uma tarefa – este senta-se ao pé do


bate-estacas, encontra aí sua montanha e ouve, e escuta, e profere, e faz” (FOGEL,

1999, p.222)

Como foi feito anteriormente, também aqui é necessária a pausa. Tentar a

releitura apoiada em outros escritos. Foi dito que o modo de ser impessoal do ser-aí

se equipara ao homem preso na caverna e que o apelo da consciência é o libertar

das amarras. E agora, como associar a angústia e a liberdade à alegoria da

caverna?

No terceiro estágio, o homem já libertado das suas amarras sai da caverna e

vai ao encontro da luz, sente-se desconfortável, não consegue ver. É o momento da

angústia. Decidido ele caminha para a frente. Entre o conforto e a familiaridade do

impessoal e a inquietude silenciosa e tranqüila da angústia, o ser-aí decide-se por

ele mesmo, pelo seu mais próprio. Ele está pronto para sair da caverna.

A libertação não acontece nem se dá sem o uso da força. O homem,


portanto, deve entrar em movimento e cambalear nessas questões mesmas
caso queira saber quem ele é! Só se pode colocar a questão lá onde e
quando o homem se lançar na decisão sobre si mesmo e em sua relação
com os poderes que o oprimem (HEIDEGGER, 2007, 185).

O homem que saiu da caverna é aquele que agora consegue distinguir luz e

sombra, reconhece o pessoal e o impessoal como possibilidades do seu ser. Vê o

que os outros não veem, “é diferente dos demais habitantes da caverna. Ele

atravessou uma transformação e o seu destino é bem outro” (HEIDEGGER, 2007,

p.195).

O homem não é homem enquanto, amarrado na caverna, sente-se bem e


conversa; também não o é enquanto assume a atitude contrária, fora da
caverna; o homem só é e é sempre trânsito e passagem da caverna para a
luz e retorno de volta para a caverna. Essa passagem constitui a própria
história do homem (HEIDEGGER, 2007, p.196).

O homem que saiu da caverna, precisa agora retornar à caverna. O homem

que teve o seu poder-ser mais próprio desvelado para si precisa voltar ao mundo,
senão de nada teria valido a travessia que fez. Importa poder voltar. Ainda que não

possa contar a todos o que agora vê, ele precisa voltar.

3. SILÊNCIO

Escrever sobre o silêncio não se mostra como tarefa simples, nem tão pouco

de êxito garantido. O próprio Heidegger chama atenção ao risco desse exercício:

Quem fala sobre o silêncio, expõe-se ao perigo de provar, da maneira mais


direta, que nem conhece nem compreende o silêncio. Por outro lado, com a
observação de que sobre o silêncio não se deve falar, poder-se-ia retirar-se
da lida muito facilmente e abandonar o silêncio, como coisa “mística” e
obscura, ao chamado pressentimento emocional e à cisma de uma
essência. É o que não pode acontecer enquanto estivermos na filosofia.
Entretanto, não poderemos também acreditar ter compreendido o silêncio
com a ajuda de alguma “definição” (HEIDEGGER, 2007, p.120).

Mas na filosofia, não se pode abandonar a coisa que se apresenta pela

dificuldade inicial que se apresenta junto. Ir o mais fundo possível, descartar

definições, conceitos, entendimentos pré-concebidos e aceitos, eis a tarefa primeira

da filosofia. Apesar disso, Carneiro Leão é enfático ao escrever que “ninguém

nunca consegue falar ou escrever sobre o silêncio, por mais que deseje ou se

empenhe” (LEÃO, 1987, p.27).

Pois só é possível falar ou escrever, rompendo o silêncio. É uma primeira


experiência: o silêncio se dá na impossibilidade e como impossibilidade de
falar e escrever sobre. Com a pergunta, o que é o silêncio?, nem podemos
renunciar a uma tal pretensão. Estamos sempre e necessariamente numa
“outra” (LEÃO, 1987, p.27).

Porque se rompeu o silêncio se está em outra. Estando em outra, que já não

o silêncio, então do que se fala? Talvez a questão não esteja bem colocada. O

correto, talvez, seja perguntar: de que silêncio se fala? Certamente não do silêncio
do discurso, que dá origem ao discurso e se apresenta entre palavras e frases,

como elo e unificador e que surge pela ausência do discurso ou impossibilidade

dele. Nem tão pouco o silêncio daquele que deixa de falar, que cala. Mas, senão e

tão somente, do silêncio do ser, o silêncio do sendo. Do instante da decisão. Do

silêncio condutor. O silêncio que envolve o homem, que envolve as coisas e também

a fala. O silêncio do caminho que abre a janela para a paisagem.

A lida não será abandonada e o silêncio não é místico, nem mistério. Não

serão oferecidos conceitos nem definições, mas tão somente uma interpretação,

ainda que, ao final, descubra-se que o melhor é silenciar.

3.1 O silêncio como apelo

Discorreu-se sobre o apelo silencioso do querer-ter-consciência, como um

apelo, um chamado do ser-aí por e para ele mesmo. É o primeiro descortinar-se do

seu poder-ser mais próprio: poder-ser porque ainda não é, querer-ter porque ainda

não tem. É a prontidão para a angústia. Isso significa que não é ainda a angústia já

desvelada que se apresenta ao ser-aí. Nesse momento, o ser-aí ainda não é, mas

está se pondo a caminho. É o momento da preparação. Assim como o dia se

prepara no silêncio da madrugada e do silêncio “se levanta o despertar da vida”.

Na calada da noite, o instante em que todas as coisas estão imersas no


silêncio, prenhes de quietude. Na medida em que a noite avança e se
inclina para madrugada, a quietude submerge mais e mais no fundo
silêncio. Esse mergulho no profundo silêncio é, ao mesmo tempo, um
crescer do silêncio que se avoluma e vem ao nosso encontro como o tinir da
quietude. É o silêncio intenso. O instante, em que o céu e a terra estão
suspensos no ponto de salto, na espera. É a contensão da eclosão. De
repente, amanhece. Do silêncio se levanta o despertar da vida. Toda a
natureza toa numa algazarra matinal. É o nascimento do dia (HARADA,
1987, p. 11).

Estar suspenso no ponto de salto não é ainda lançar-se ao salto. É o

momento em que o ser-aí precisa afastar-se do que lhe rodeia, distanciar-se do que

já conhece. É afastamento, mas não é solidão. O ser-aí retira-se e traz em si tudo o


que é e o que não é, tudo o que foi e o que não foi, tudo o que pode ser e o que não

pode ser, sem clara distinção. O ser-aí precisa chegar ao mais fundo e quanto mais

ao fundo ele chega mais se espanta, mais se admira. No espanto se cala, não por

não saber ou não poder falar, mas porque não saberia o que dizer. E ao falar, ainda

que de modo impróprio, teria sua atenção desviada, perderia o encanto do caminho

que se abre a sua frente.

“O fazer-silêncio é o modo discursivo de apropriação de si, como retirada do

falatório e possibilidade reencontrada de uma relação própria com o outro, de

entendimento e escuta do outro em sua singularidade” (DUBOIS, 2004, p. 151).

Certamente o ser-aí que se apropriou de si tem a possibilidade, própria de sua

abertura, de estabelecer relações autênticas com os outros e com o mundo. Mas

para que isso seja, de fato, possível, o ser-aí precisa, antes, estabelecer uma

relação própria consigo. Para que essa relação seja possível, o ser-aí é chamado a

aquietar-se, no silêncio de sua estranheza. O ser-aí só poderá saltar se fizer a

preparação para o salto, da mesma forma que a algazarra matinal só se dá depois

de ter estado mergulhada na quietude, no silêncio da noite.

Buscar o silêncio é negar-se uma forma única, é permitir-se autor dos


próprios desejos e percepções; é autorizar-se a sentir-se primeiramente,
antes de agir ou dizer algo. Dar espaço a ele é interromper o desperdício –
de falas vazias, de energia, de expectativas; é preservar a qualidade de
contato com o mundo que nos rodeia (PERDIGÃO, 2005, p. 217).

O silêncio não se busca. Ele vem ao encontro e toma o ser-aí de uma forma

que o ser-aí não espera. Não é encontro marcado, nem decisão tomada

previamente, mas é um ser tomado por, e que a partir disso permite e exige a

escolha. E assim, negar-se uma forma única é não aceitar mais o nivelamento de

possibilidades próprio do impessoal. Permitir-se autor dos próprios desejos e

percepções é reconhecer-se na singularidade, enquanto modo do ser-aí ser aquilo

que ele já sempre é e que só ele pode ser.


Mas, enquanto apelo, o silêncio opera como fio condutor de uma passagem.

É movimento, o que não significa dizer linear, contínuo, constante. Tem mais a ver

com o primeiro olhar sobre as coisas e sobre si. É o início do desvelamento, é a

primeira porta para o novo que, ainda, não fecha a porta do velho, enquanto modo

impessoal de ser e estar. É o silêncio do apelo que permite ao homem escutar o que

ele ainda não entende. É a abertura para o poder-ser, que ainda não garante que vá

se chegar a ser.

Enquanto apelo o silêncio não é cessação de sons nem ruídos, também não

aparece como espaço vazio onde nada acontece. O silêncio do apelo busca trazer o

ser-aí para a quietude de si mesmo. Quietude aqui entendida como tranqüilidade no

seu modo de ser, como momento de espera e de preparação. O mundo à sua volta

continua com sua agitação e nervosismo, e o ser-aí é chamado a afastar-se sem sair

do mundo. Não se deixa decair na cotidianidade, mas ainda não conhece o seu

verdadeiro lugar. Ainda busca uma forma de se manter onde se está.

Permitir o silêncio implica em aceitar um fluxo vital que nem sempre


dominamos. É como emprestar seu corpo para a vinda de um ser novo.
Hospedar o silêncio, é gestar um rumo e um tempo desconhecidos. Há de
valer a pena correr tal risco (PERDIGÃO, 2005, p.217).

Enquanto apelo, o silêncio ainda apresenta seus riscos. O ser-aí apanhado

por esse silêncio não sabe ainda o que vai encontrar pela frente. Enganos podem

acontecer, porém

os enganos não surgem de uma falha do apelo, mas somente do modo em


que se escuta o apelo – de que, ao invés de ser propriamente
compreendido, o apelo é arrastado pelo impessoalmente si mesmo para
uma conversa negociadora consigo mesmo, desviando-se, assim de sua
tendência de abertura (HEIDEGGER, 2008, p.352)

Se o ser-aí não se propõe a escutar o apelo a partir de outro modo que não

o do impessoal, não chega ao caminho que o levará à abertura de suas


possibilidades mais próprias. E só pode escutar de outra forma se já compreendeu o

que se fala no silêncio do apelo.

Vale lembrar que, enquanto modo de ser, o impessoal também apresenta

uma abertura de possibilidades e, entre estas, está a possibilidade do ser-aí

permanecer no impessoal. Isso pode acontecer pelo modo como o apelo acontece,

que é um modo diferente do que aquele apresentado pelo impessoal, a saber, a

falação.

O apelo dispensa qualquer verbalização. Ele não vem primeiro à palavra e,


não obstante, nada permanece obscuro e indeterminado. A fala da
consciência sempre e apenas se dá em silêncio. Não somente nada perde
em termos de percepção, mas até leva a presença interpelada à
silenciosidade de si mesma. (HEIDEGGER, 2008, p.352)

A fala, enquanto modo de ser autêntico do ser-aí, só é possível a partir do

silêncio. Por isso o apelo não se dá por palavras nem articulações, senão somente

no silêncio. Pois o modo de ser próprio do ser-aí é anterior ao modo impessoal de

ser do ser-aí, mesmo que o ser-aí ainda não consiga ver a abertura do seu ser mais

próprio, essa abertura desde sempre existe e está com ele, sendo dele. “Em seu ser,

a presença já sempre se conjugou com uma possibilidade de si mesma”

(HEIDEGGER, 2008, p.258).

Da mesma forma, o silêncio se mostra anterior às palavras, por isso próprio

do ser-aí. Portanto, para que o ser-aí possa se deparar com e apreender o seu ser-

aí mais próprio ele necessita voltar ao início, ou em outras palavras, o ser-aí deve

voltar-se às origens. No caminhar para a frente ele deve dar um passo atrás.

3.2 O silêncio do sendo

O silêncio não deve ser entendido apenas no limite do falar e calar, ainda

que essas modalidades também pertençam a ele. Por isso é necessário aqui dedicar
um tempo para o entendimento do falar e calar enquanto aberturas do ser-aí que já

se encontra numa relação autêntica consigo, com os outros e com o mundo.

O homem que voltou seu olhar para si, que deu o passo atrás, que

reconhece e assume seu poder-ser mais próprio, esse homem agora é. Enquanto é,

o homem existe. “Existir é ser em si mesmo, sendo, de maneira que este sendo ‘é’ e

está como tal, no meio do sendo em sua totalidade” (HEIDEGGER, 2007, p.114).

O ser que na cotidianidade estava junto ao mundo, agora se pode dizer

como sendo no mundo. Não mais conduzido pela falação e pela curiosidade, ele

possui nova disposição que lhe permite nova compreensão de si, das coisas, do

mundo. “Sendo disposição e compreender igualmente originários, a disposição se

mantém numa certa compreensão. Corresponde-lhe também uma certa

possibilidade de interpretação” (HEIDEGGER, 2008, p.223).

Disposição, entendida como humor, é o que vai dar o tom da compreensão e

partir desta, a interpretação. Exemplificando: o entendiado “verá” o mundo com

“olhos” de tédio e assim encontrará tédio em tudo; o feliz, por sua vez, “verá” tudo

com olhos de felicidade e reconhecerá a felicidade em tudo que ver e a partir dessa

felicidade fará sua interpretação das coisas, do mundo e de si mesmo. "Conheço as

alegrias dos peixes no rio através de minha própria alegria, à medida que vou

caminhando à beira do mesmo rio" (Chuang Tzu in BUZZI, 1999, p.16).

“A fala é a articulação da compreensibilidade” (HEIDEGGER, 2008, p.223).

Só se pode falar daquilo que já anteriormente se compreendeu, e a articulação

demonstra a compreensão ou não. Se, ao se exprimir verbalmente algo, essa

expressão se mantém como repetição ou reprodução, não se caracteriza, então, a

fala, mas sim a falação ou falatório no modo do impessoal. “Neste caso, a linguagem

pode ser despedaçada em coisas-palavras simplesmente dadas” (HEIDEGGER,

2008, p.224).

Compreende bem aquele que escuta bem. Logo aquele que fala é também,

e antes, aquele que escuta. Porque escutou e compreendeu pode falar, de forma
que “escutar é o estar aberto existencial da presença enquanto ser-com os outros”

(HEIDEGGER, 2008, p.226). Entendido que o ser-aí pode ser-com os outros à

medida que estejam na mesma abertura, ou seja, enquanto “coexistentes”, e assim

conseguem estabelecer relações autênticas. Assim, “fala e escuta fundam-se no

compreender. O compreender não surge de muitas falas nem de muito escutar por

aí” (HEIDEGGER, 2008, p.227).

Porém, nem sempre aquele que compreendeu é aquele que fala. Dito de

outra forma, “quem silencia na fala da convivência pode ‘dar a entender’ com maior

propriedade” (HEIDEGGER, 2008, p.227). Porque não necessita mais participar do

falatório, já que a sua compreensão ultrapassa a “clareza aparente, ou seja, a

incompreensão da trivialidade” (HEIDEGGER, 2008, p.228). E assim como a fala e a

escuta só são possíveis em relações autênticas, assim também o silenciar. Dessa

forma, o silêncio surge como “uma possibilidade constitutiva da fala” (HEIDEGGER,

2008, p.227).

Em linhas gerais, pode-se dizer, então, que, o ser-aí na sua abertura mais

própria, já livre das amarras da cotidianidade, é aquele que compreende, e

compreende porque tem disposição para isso. Porque tem disposição para isso

pode escutar e assim falar. Mas pode também silenciar justamente por ter

compreendido. Então o silêncio surge como essa possibilidade do falar e não-falar,

ou ainda, do falar e calar?

Isso faz com que seja retomada a questão apresentada por Heidegger em

Ser e verdade e que consta no início do segundo capítulo do presente estudo: “O

silêncio será apenas algo negativo, não falar, e meramente um dado externo, a

ausência de som, a calada?” (HEIDEGGER, 2007, p.119)

A esse indagar pode-se apresentar a seguinte observação:

Na escalação de variações, nada dizer, pouco dizer e muito dizer, o calar-se


como modalidade da fala e a fala como modalidade do calar-se se
movimentam num processo de condensação e rarefação de uma presença
de fundo, cujo ser, em se retraindo para a profundidade dela mesma nos
vem de encontro, à fala, um outro silêncio. Um outro silêncio, um silêncio de
fundo que, em transcendendo o falar e o calar-se, lhes dá ao mesmo tempo,
peso e quilate do seu falar. Esse outro silêncio de fundo que envolve,
compenetra e transcende o comportamento humano chamado “falar e calar-
se” não é mais uma ocorrência de algo subjetivo em nós. É antes um
momento constitutivo que perfaz a própria dinâmica da estruturação do ser-
no-mundo, o qual usualmente denominamos de existência ou
transcendência (HARADA, 1987, p.13).

O silêncio, ou o outro silêncio, nas palavras de Harada (1987, p.13), vai além

do simples falar e calar. O outro silêncio é de fundo, é aquele no qual o ser-aí se

entrega todo, inteira e completamente a si mesmo. O silêncio aqui é a abertura mais

própria do ser-aí, que lhe permite existir, transcender, ultrapassar a si mesmo para ir

ao encontro de si. Sair do ordinário (cotidiano) para chegar ao extraordinário (seu

ser mais próprio), ainda que em ações ordinárias. É o momento do salto e exige

concentração. É movimento. É o estar aberto às suas mais próprias possibilidades,

ao seu poder-ser mais próprio. Enquanto poder-ser, o ser-aí vai se fazendo e se

refazendo, sempre novo de novo.

Aberto, sem dúvida, não no sentido de o homem correr atrás de qualquer


estímulo e circunstância e se dissipar em sua variedade, mas, pelo
contrário, no sentido da abertura para o sendo, que está recolhido e
concentrado em si (HEIDEGGER, 2007, p.122-123).

Recolhido em si é o modo de quem se encontrou. Se encontrou porque

houve busca, e esta aconteceu porque desde sempre o ser-aí já sabia de sua

existência. Pois “quando alguém se lança assim numa tal busca, ele só o faz porque

já está na desconfiança, na entre- e ante-visão da “coisa”, já guiado e determinado

por ela” (FOGEL, 1999, p.209). Recolhido não é encapsulado, trancado, mas antes

aberto, que se faz a cada momento, que se permite retornar a si e às coisas elas

mesmas. O ser-aí recolhido em si mesmo é o ser-aí que está em casa, pois “retornar

às coisas elas mesmas e deixá-las ser é o modo de quem está em casa” (SASSI,

2008, p.18).
Silêncio exige concentração, não como ato contemplativo, mas como vida

prática, de ação. Nas palavras de Fogel (1999, p.207), um homem de silêncio é um

homem de ocupação. É aquele homem que tomou posse de si mesmo, que faz

todas as coisas convergirem para o mesmo ponto, que não pode ser de outro modo

senão esse que é o seu modo. Não pode se ocupar com outras coisas que não as

suas coisas. E ao ocupar-se das suas coisas ele está entregue, está inteiro. E ao

estar inteiro com as suas coisas ele está livre. “Silêncio parece, pois, se referir a um

momento estrutural de liberdade” (HARADA, 1987, p.13).

A cada momento somos de um modo e não de outro. Ser nesta


determinação caracteriza a vida como um projeto de cada pessoa, lançado
na articulação do limiar de cada instante. Pelo simples fato de, sendo,
termos a compreensão de nosso ser, possuímos a soberania de nós
mesmos, decidindo de um modo e não de outro o que fazemos em cada
instante. Estar aqui escrevendo – este e não outro texto – ,e não em outra
atividade qualquer, me faz agora ser o escritor que sou e não qualquer outra
coisa. Mas, radicalmente, não há nada que me determine continuar aqui
escrevendo. Somos sempre nossa própria possibilidade e, como tal,
contemos seu impessoal. Neste sentido, cabe a cada um o seu próprio
destino, sendo este conveniente ao esforço e responsabilidade de
manutenção do próprio, no exercício de viver (...) Exercer nossa liberdade é
a tarefa de nos reconhecermos no aberto possível da realidade, sendo com
decisão de nossa própria realização; é ser como indica o poeta grego
Píndaro, vindo a ser o que se é (PESSOA, 1987, p.56).

Isso tudo retira o entendimento do homem como universal, uniforme e

padronizado. Pois, “o ser-aí humano jamais existe em termos universais. Ao

contrário, o existir, cada ser-aí sempre existe como ele mesmo” (HEIDEGGER,

2008, p.6). Assim, cada homem é um homem, cada existir é um existir, e dessa

forma sempre único. Ainda que vários homens se vejam impelidos a assumir a

própria vida e decidir-se nela e por ela, cada decisão é única. Ainda que seja a

mesma decisão a ser tomada não é igual. O próprio ser-aí que se vê tomado por si

mesmo, diante de diversas situações, é sempre o mesmo sem ser igual. Como já

dito, é movimento.
E o que lhe move? O que busca? Nada além dele mesmo. No ser ele

mesmo mais próprio aí se encontra sua motivação e sua busca. E nesse ser ele

mesmo mais próprio o ser-aí pode voltar à fala. “A transcendência é fala. Não como

meio de comunicação, não como expressão do sujeito ou indicação de uma

ocorrência” (HARADA, 1987, p.21).

Se o ser-aí volta à fala, o silêncio se desfaz? Não, o silêncio do sendo pode

trazer a fala, mas não deixa de existir junto ao ser-aí. Ainda que fale, o ser-aí

continua em silêncio, enquanto aquele que permanece junto a si. Aquele que existe,

existe em silêncio, e seu falar não é um simples enunciar do que lhe ocorre, nem tão

pouco um anunciar enquanto tornar público. O seu falar traz junto toda a

silenciosidade do seu ser, toda a sua existencialidade.

O silêncio se torna o acontecimento daquele calar-se originário da presença


humana, a partir do qual o silêncio, isto é, a totalidade do sendo, em cujo
seio está a presença humana, vem à linguagem. E, assim, a palavra não é
uma cópia ou decalque das coisas, mas justamente a elaboração que
contém e retém em si a abertura recolhida e tudo que nela se oferece e
patenteia (HEIDEGGER, 2007, p.123).

A palavra, enquanto fala autêntica, interrompe o silêncio, mas não o elimina

nem o exclui. Pois o silêncio está presente na fala já na maneira como esta é

pronunciada, senão “a palavra pode virar mero vocábulo, e a fala, mero falatório”

(HEIDEGGER, 2007, p.123).

A palavra se forma no silêncio e assim é se o ser-aí se demora junto às

coisas e a si, num escutar cuidadoso e atento que Heidegger, em seu texto sobre A

Serenidade5, vai chamar de ausculta ponderada. Ausculta é o modo como o médico

examina o coração de seu paciente. O médico se coloca junto ao paciente e ali se

demora, em silêncio, com atenção e inteiro no ouvir o pulsar daquele coração.

Nesse momento apesar de “ouvir com os ouvidos” todo o corpo do médico se

empenha nessa tarefa, para que ele possa, até no inaudível, perceber, “ver” como

5
Tradução livre de Hermógenes Harada.
está a saúde do coração. É esse o modo do ser-aí quando se põe a “ouvir” ou a

“ver” a si, ao mundo e as coisas. E desse modo, da “ausculta ponderada” surge o

estado de “serenidade para com as coisas”.

Já foi dito que o ser-aí no seu modo mais próprio não se retira do mundo,

criando para si um outro mundo isolado de tudo e de todos, mas antes está no seu

mundo no mundo. O que significa dizer que o ser-aí possui outro modo de estar no

mundo, outro modo de perceber a si e às coisas.

Isso significa que o ser-aí mais próprio convive com as coisas ao mesmo

tempo em que as deixa ser como são, e no sendo das coisas elas não assumem o

comando do ser-aí, pois as coisas e o ser-aí não se confundem mais.

Onde toda distinção é posta de lado e vige a serenidade (Gelassenheit), aí


tudo é. Enquanto transformamos tudo e a nós mesmo em objetos de busca,
amor, crença ou uso, nunca vemos a nós mesmos e às coisas, mas tão-
somente representações para nós (SASSI, 2008, p.18).

O silêncio do sendo é não precisar mais buscar representações ou

interpretações, justamente porque cada coisa é o que é e se mostra como é. Por

poder ver a si próprio como sendo o ser-aí pode, agora, ver as coisas como são,

porque assim se mostram, porque ele também agora se vê como é.

Tu, místico, vês uma significação em todas as cousas.


Para ti tudo tem um sentido velado.
Há uma cousa oculta em cada cousa que vês.
O que vês, vê-lo sempre para veres outra cousa.
Para mim, graças a ter olhos só para ver,
Eu vejo ausência de significação em todas as cousas;
Vejo-o e amo-me, porque ser uma cousa é não significar nada.
Ser uma cousa é não ser susceptível de interpretação. (PESSOA, 1992,
p.233)

Dessa forma, o silêncio não aparece como vazio, ausência ou interrupção,

mas antes, como completude, totalidade, inteireza. É capacidade de ver, ouvir e falar
aquilo que é e somente isso. Silêncio não é aquilo que tira, mas sim aquilo que

permite tudo isso.

Aqui também não se pode pensar o ser-aí como completo e acabado. Por

estar no seu modo mais próprio tem acesso às suas possibilidades e assim o ser-aí

é sempre possibilidade de. E o homem se torna, segundo Fogel (1999, p.220), não

só um “homem de silêncio”, mas também um “homem de solidão”.

Solidão não como afastamento ou isolamento, mas como o saber-se dono

do seu destino. É de solidão o homem que sabe não poder transferir a

responsabilidade de seus atos e decisões, que sabe que seu poder-ser mais próprio

lhe foi desvelado e que nem todos passarão por essa experiência. Então, mesmo

convivendo com eles, sabe que eles não tem alcance para algumas coisas, que

ainda convivem com as sombras, mas que, nem por isso, são menos merecedores

de respeito, pois na incapacidade de ser, eles são, ainda que no modo impessoal, o

que, no momento, lhes é permitido ser e dessa forma exclui o julgamento de valor.

O homem de solidão não se considera melhor, nem maior que os outros, por

ter tido acesso à sua abertura mais própria, por saber-se existente. Ele sabe que é,

e enquanto é ele apenas é, e é apenas aquilo que ele pode ser, nem mais nem

menos.
Ser e saber-se um homem de tarefa necessária, de destino, é, sobretudo,
ser e saber-se na possibilidade própria, isto é, necessária o que incide e
coincide com o ser no e desde o limite. É impor-se ser o que pode e, então,
precisa ser e jamais pretender, presumir ser o que está fora de tal
possibilidade, além ou aquém, e, portanto, o que, por princípio e
constituição, não pode ser. É este o tipo que quer o que pode e só o que
pode, pois sabe ser insensatez maior e absoluta o querer ou, mesmo e
principalmente, o colocar como dever-ser e como meta o que, por
constituição e princípio, não pode ser (FOGEL, 1999, p.223).

O silêncio, para o ser-aí, agora não é percebido como desconforto, ausência

ou privação. O ser-aí não foge mais do silêncio, pois este é parte constituinte de si e

lhe revela toda a amplitude de suas possibilidades. No silêncio o ser-aí é e a partir

dele pode falar, porque também pode escutar e compreender.


De forma que é possível afirmar: “o silêncio não é negativo” (HEIDEGGER,

2007, p.123). Ele não tira algo de algo como exclusão ou encerramento, mas traz o

ser-aí à sua abertura mais própria, confere ao ser-aí o seu lugar no mundo e o

permite estar no modo do cuidado, da atenção e da concentração. Permitindo ao

ser-aí falar de modo autêntico aquilo que no falatório não cabe, o silêncio não é

negativo nem negação, mas afirmação da possibilidade do ser-aí ser aquilo que ele

sempre já é, agora desvelado.

“O silêncio não se pode tomar meramente por fora, pela vocalização, como

interrupção ou falta da vocalização (simples quietude, ‘o silêncio da floresta’)”

(HEIDEGGER, 2007, p.124). Não é porque não se pode falar que se chega ao

silêncio, pois o não poder falar é próprio dos animais e das coisas e, nem por isso,

se pode afirmar que os animais e as coisas silenciam. Eles simplesmente não falam.

De forma que a ausência de sons e ruídos não remete, obrigatoriamente, ao

silêncio.

“Ele também não diz respeito à chamada singularidade própria de cada eu,

recolhimento como encapsular-se” (HEIDEGGER, 2007, p.124). O silêncio enquanto

existencial não é o estar fechado, mas justo o contrário. No silêncio, o ser-aí se abre

para as suas possibilidades mais próprias. Dessa forma pode estabelecer relações

autênticas, relaciona-se com os outros, com as coisas, com o mundo sem se

confundir com isso tudo. Mantém-se fiel a si sem necessitar fechar-se para o mundo.

Se no silêncio o ser-aí se fecha é porque não se decidiu a dar o salto e não

experimentou a sua própria quietude.

“O silêncio é, antes, o caráter distintivo do ser humano, por cujo ser o

homem está exposto à totalidade do sendo. O calar-se do silêncio se recolhe à

concentração tensa dessa exposição” (HEIDEGGER, 2007, p.124). O homem se

diferencia por poder falar e, assim, poder calar. E nesse calar permanece junto

àquilo que lhe é mais próprio, de maneira cuidadosa, porque é a disposição, ou

humor, que irá determinar o modo e para onde o ser-aí vai se encaminhar. A
propriedade traz junto o impessoal. Assim, sabe o ser-aí da possibilidade de decair

para o impessoal, por isso está em vigília, atento e concentrado no seu caminho.

Presta atenção em tudo que lhe cerca, para que possa diferenciar e reconhecer

aquilo que é seu.

O silêncio também não é um não-dizer como concessão, como retirada e


retraimento, como impotência. Este tipo de silêncio é apenas uma forma de
sua ausência, em contraste com a vigência (isto é, com a presença da
essência) do silêncio, enquanto concentração tensa da exposição, enquanto
superioridade, e isto significa poder. O poder, que possibilita também a
articulação em palavras, e a linguagem, que nos dá a possibilidade de nos
oferecer à soberania do ser e de nos instalar nela – é isso que significa falar
e morar na linguagem (HEIDEGGER, 2007, p.124).

Fazer concessões e retrair-se é próprio do impessoal que não assume nada

como seu e transfere responsabilidades e decisões. Assim o silêncio só pode ser

entendido como ausência, pertencendo à autoridade do ser como os outros. O ser-aí

no seu modo mais próprio não se retira, mas no seu não-falar pode dizer muito.

Na concentração do sendo, o ser-aí pode também articular em palavras,

mas isso não é ação obrigatória. De forma que a linguagem não é somente a

articulação verbal, nem instrumento à disposição, mas antes é constituinte também

do ser-aí, por isso originária, como o silêncio. Desse modo é que se pode dizer que

o ser mora na linguagem, pois esta se funda no silêncio originário do ser-aí, e ambos

– linguagem e silêncio – são existenciais.

CONCLUSÃO

O ser-aí como ser-no-mundo pode estar no modo impessoal ou estar na

abertura das suas possibilidades mais próprias. Portanto, é a partir do modo como o

ser-aí está no mundo, que irá perceber o silêncio. Enquanto está no modo da

impessoalidade o ser-aí evita o silêncio. Já no modo de sua abertura mais própria,

ele assume o silêncio como modo de realizar-se.

Assim, a primeira interpretação que se tem do silêncio é de algo que oprime,

que deve ser suplantado, extinto. Foge-se dele, evita-o, nega-o. Pois aqui o silêncio
incomoda, desestabiliza, quebra a facilidade do que não exige profundidade.

Representa o desconhecido, e este dá medo. Melhor manter-se no que já se

conhece, no que se domina, é o que pensa o ser-aí na impessoalidade. Imagina-se

livre, sem perceber que o que se dá é justamente o contrário. Por desconhecer suas

possibilidades mais próprias, o ser-aí se mantém preso ao que ele não é.

Mas, de repente, o ser-aí é tocado pelo silêncio de outro modo, e ele

percebe que algo está diferente. Não sabe definir o que acontece. É um momento

crucial. Do susto surge uma nova possibilidade. O ser-aí é chamado a se decidir, a

enfrentar o seu medo. De alguma forma, ele sabe que não poderá recuar e assim

avança. Nesse avançar o ser-aí é convidado a dar um passo atrás, a se preparar

para o salto.

No salto, depara-se com a abertura das suas possibilidades mais próprias e

se lança a elas. Estar em sua abertura não é estar fora do mundo, mas estar no

mundo de outro modo. O silêncio lhe vem ao encontro, junto com seu modo mais

próprio. O ser-aí, então, entrega-se a si no silêncio. Entrega-se àquilo que desde

sempre já era dele e estava com ele. Está em casa. Pode-se dizer sereno, pleno.

Parafraseando Pessoa (1992, p. 497), o ser-aí pode tornar-se só quem sempre foi.

Assim pode-se dizer que para se alcançar o silêncio não basta não falar,

pois a ausência de sons, ruídos ou palavras não configuram, necessariamente, o

estar em silêncio. Para poder se dizer em silêncio, o ser-aí do homem deve

percorrer o caminho que lhe tira da cotidianidade, lhe permite fazer escolhas, optar

por si, assumir responsabilidades e dar o salto. Salto que o leva para o fundo e para

o alto.

Não é experiência destinada a todos. Assim para aqueles que não

perceberam o apelo para entregar-se ao seu ser mais próprio, o silêncio será

sempre ausência, nunca presença. Para que se possa compreender o que foi aqui

demonstrado graficamente, através de palavras, é necessário que, antes e somente

assim, tenha se feito a experiência do silêncio. Ter percorrido o caminho de volta.


Porque estar em silêncio é ser aquilo que desde sempre já se é. Se não for assim,

as palavras serão mera representação, reprodução do que se ouviu falar. Pois há

uma distinção entre falar do silêncio e o falar a partir do silêncio.

Assim que não se pode falar do silêncio através de definições, pois isso

seria manter-se na impessoalidade, que fala sobre tudo sem estabelecer relações

com nada. Além disso, apresentar uma definição é fechar toda uma infinidade de

possibilidades em apenas uma. É reduzir o que não pode ser reduzido.

Pode-se falar, apenas, da possibilidade de fazer-se a experiência do

silêncio, dos caminhos que podem conduzir a ele. Mas enquanto experiência, cada

um terá que fazer a sua. Ainda que se percorra o mesmo caminho, cada um fará

isso de um modo único e seu. Como co-existentes um poderá entender o que se

passou com o outro, porque existe a disposição para a escuta atenta, e nessa

escuta é possível compreender. Compreende-se, então, que é o mesmo silêncio, a

mesma experiência, mas não é igual.

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