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O RAMERRÃO DIÁRIO

Mesmo as pessoas mais felizes conhecem a expressão, o ramerrão diário. Aquelas que são
com frequência as mais atarefadas e produtivas conhecem-na melhor. Não que não
preferissem que fosse diferente, mas, as exigências da vida (os requisitos para felicidade e paz
de espírito) impõem uma rotina, uma espécie de organização diária, que, mesmo para os mais
evoluídos, poderia ser rotulada de ramerrão diário. As pessoas evoluídas encaram-na com um
sorriso, pois, conhecem-na e aceitam-na de bom humor. As menos evoluídas repugnam-se de
nela pensar e, as ignorantes, tentam evitá-la de qualquer modo.

O ramerrão diário é a condição da vida que requer atenção regular de nossa parte, assim o
queiramos ou não. Resulta de nosso vínculo forçoso com o trabalho, ou de pura necessidade
de sobrevivência. Parece um fenômeno inevitável e de que às vezes gostaríamos de escapar,
pelo menos por algum tempo. E o levantarmo-nos de manhã. E o nos prepararmos e
vestirmos. É o nos aprontarmos para o trabalho que de nós se espera. É o cozinharmos, o
trabalharmos em casa, o darmos atenção à família, o cuidarmos da casa e do jardim. Até certo
ponto, naturalmente variando muito com as pessoas, isso inibe nossa liberdade de ação, a
necessidade de fazermos o que queremos, quando o desejamos. Afeta nossa constituição
emocional e levanta a questão: “Por que?”

“Por que”, não é tão difícil de determinar, como é difícil determinar um método para lidar com
o ramerrão diário do modo mais satisfatório. O “porquê” desse ramerrão fundamenta-se na
estrutura mesma do próprio universo.

Fazendo uma pequena revisão, somos um universo fisicamente em movimento e mentalmente


em repouso. A matéria primeira, o Nous, ou a substância que constitui o corpo do universo, é
ativada por uma força extraordinária. Essa força confere movimento ao universo material,
provocando ondas e perturbações de monumentais proporções. A mente do universo é,
essencialmente, espectador e ator em cena. Em seu próprio estado de imobilidade, é afetada
pelas ondulações, frequências e perturbações da matéria-prima em que está imersa. É como
uma boia no meio do mar: estacionária e rodeada de movimento. Porém, ao contrário da boia,
tem consciência. Percebe a ação, o movimento que não pode controlar, e não pode senão
ajustar-se ao balançar e sacudir dum lado para outro. Se o mar e o universo fossem uma
substância quieta, inanimada, não haveria esse problema. Ambos estariam em repouso. Mas
não estão, e a mente é a parte que mais sofre, porque, ao contrário do que muitas vezes
pensamos, não é ela o mais poderoso elemento da Trindade. A força é o elemento mais
poderoso. A mente pode estar consciente da força, pode dirigi-la e canalizá-la, porém, não
pode evitar seu movimento e sua presença. Aprende, assim, a lidar com a força e suas
características resultantes.

Há duas características da força que devemos conhecer. Uma é que ela causa movimento ou
perturbações na matéria primeira. A outra é que ela tem natureza eletromagnética,
provocando uma combinação de efeitos positivos e negativos a que somos também sensíveis.
Esta dualidade geralmente se manifesta como um efeito de tração ou de impulso, pelo qual
sentimo-nos atraídos para as coisas ou por elas repelidos. E, por estarmos mentalmente em
repouso, estamos sujeitos a uma regular sensação de mudança, na maneira como as coisas nos
afetam. O movimento que ocorre na matéria primeira, passando por nós, traz consigo a
inconstante polarização da força, e muito disto nos afeta para além do nosso controle.

Isto é assim como uma base para o porquê de termos um ramerrão diário. Como lidarmos com
ele é o próximo passo. O compreendermos e aceitarmos o porquê do ramerrão diário será
muito útil para o enfrentarmos, na esperança de que o tornemos menos árduo. Sabendo que
ele não cessará, só nos resta uma atitude, se desejamos suavizar nossos embates com a vida.
Temos de desenvolver estados mentais que aceitem o universo como ele é, e disposições
mentais que nos ajudem a labutar no âmbito das condições de nossa existência.
Felizmente, muito podemos fazer a este respeito. Nossos estados mentais guiam nossas
emoções. Embora não possamos sustar o movimento ou as características da força e do
universo material, podemos fazer ajustes em nossos estados mentais, que venham minimizar
os efeitos negativos, sobre nós, dos fenômenos físicos. Temos a opção de dizer: “gosto disso”,
ou “não gosto disso”. Se continuarmos a lutar contra o movimento da vida, sofreremos efeitos
deletérios das oscilações, das ondulações que nos cercam. Se tentarmos acompanhar o
movimento da vida, teremos boas experiências. É como aprender a movimentar-se na cela ao
cavalgar, ou aproveitar o vento ao velejar. Conhecer, e então aceitar o aspecto da vida que não
podemos mudar, é meia batalha ganha.

Tem-se afirmado que a meta suprema do homem é a imperturbabilidade. Trata-se do estado


em que as pulsações e os fluxos da vida não provocam resistência de nossa parte. Nosso
estado mental e nossa disposição mental são tais que os fluxos da vida e as exigências do
nosso ambiente não nos perturbam. Ajustamo-nos de fato a esses fluxos e a essas exigências,
e nossa mente está tranquila.

Tomamos muitas providências para assegurar e resguardar esse estado de imperturbabilidade.


Se ele é verdadeiramente a meta suprema, então, podemos dizer que todo comportamento é
motivado pelo desejo de alcançá-lo. Acima da fome, do sexo, da necessidade de atenção, o
supremo impulso por trás de nossas ações é vivenciar esse estado. Se analisamos alguns dos
impulsos humanos comumente reconhecidos, como a fome e o sexo, podemos perceber que a
imperturbabilidade entra em jogo em ambos os casos. Comemos porque sentimos fome,
porém, satisfazemos a fome também porque desejamos a imperturbabilidade. Se analisamos
todas as nossas ações, torna-se fácil perceber que somos motivados, em tudo o que fazemos,
pelo desejo de alcançar a imperturbabilidade. Quando comemos, bebemos, praticamos
caridade, acumulamos fortuna, desenvolvemos uma forte compleição, procuramos refúgio,
fazemos amigos, ou fazemos o que quer que seja, estamos tentando assegurar ou resguardar
um estado de imperturbabilidade.

Este estado é também um estado de equilíbrio em nossos assuntos pessoais. Tentamos


alcançar equilíbrio atraindo boas coisas e afastando as coisas más, pois, as boas coisas ajudam
a nos sentirmos imperturbáveis, ao passo que as coisas más fazem-nos sentir perturbados.
Tentamos resguardar o estado de equilíbrio acumulando uma reserva de coisas boas, a que
possamos recorrer em momentos de crise. Construímos refúgios, empregamos dispositivos
protetores, estabelecemos contato com pessoas, expressamos nossos pontos de vista, tudo
para assegurarmo-nos de que não seremos perturbados pelas pessoas e as coisas que nos
cercam.

Assim, ao abordarmos a questão do ramerrão diário, devemos ter em mente duas coisas. Uma
é a natureza do universo com que temos de lidar, e, a outra, aquilo que estamos realmente
buscando em relação a esse universo. Já postulamos, neste artigo, que a natureza do universo
é tal que resistimos ao fluxo da vida porque, mentalmente, desejamos estar quietos, e o que
estamos realmente buscando é um estado de imperturbabilidade. Temos uma resistência inata
a mudanças. Ora, como ensinam os Rosacruzes, tudo é uma questão de aprendermos o
máximo possível acerca do universo e, utilizando as artes da visualização e da sugestão,
adaptarmo-nos a suas pulsações e vicissitudes.

Disse um sábio, certa vez, que repousar não é abandonar a atividade e, sim, ajustar-se à sua
esfera, ao seu campo de ação. Na Ordem Rosacruz há mais oportunidade para isto do que na
maioria das outras organizações. Primeiro, verificamos o que somos mais qualificados para
fazer; verificamos qual é a nossa esfera, mediante estudo e intuição. Depois, aprendemos
métodos para nos adaptarmos a essa esfera, através de visualização, concentração e sugestão.

Para suportarmos o ramerrão diário, com qualquer acepção de bem-estar, é importante


formarmos disposições mentais que nos conduzam ao êxito com um mínimo de irritação. Uma
vez que tenhamos determinado que não podemos abandonar certas responsabilidades, o
passo seguinte consiste em tentarmos levá-las a cabo de maneira harmoniosa; tentarmos
gostar do que estivermos fazendo. Preparamo-nos em nosso Sanctum. Formulamos o
problema em nossa mente. Depois, fazemos uma sugestão relativa à nossa atitude para com
ele. A sugestão é uma afirmação, um comando ao nosso subconsciente. Uma vez implantada
no subconsciente, age automaticamente, para nós. Leva-nos aonde desejamos ir, sem mais
preocupação ou direção consciente de nossa parte.

Essas ações constituem a base dos muitos hábitos que nos impelem todo dia, fazendo-nos
levantar de manhã, vestir, comer, executar exercícios, e muitos outros atos a que não
dedicamos atenção consciente. Esses hábitos foram formados principalmente pela repetição
dos atos durante algum tempo. Porém, podemos conseguir os mesmos efeitos por meio de
choque ou excitação. Daí deduzimos ser eficaz associarmos emoções à sugestão. Por esta
razão a Ordem Rosacruz usa procedimentos ritualísticos em seus exercícios. As velas, o
incenso, a música, o ambiente sagrado do Sanctum, tudo isto empresta impacto emocional
àquilo que estamos prestes a realizar. O desejo também é um reforço emocional à sugestão.
Quando desejamos veementemente alguma coisa, o desejo ajuda a sugestão a “pegar”.

A sugestão também pode ser empregada para desfazer velhos hábitos. Uma nova sugestão ao
subconsciente anulará uma sugestão anterior de mesmo escopo, mais ou menos como um
novo sinal emitido para uma fita magnética tomará o lugar de um sinal anterior. A sugestão é
um poderoso recurso, e, nas mãos de uma pessoa sábia, uma força para o bem. Mas, a antiga
advertência a todos os estudantes ainda é válida: que devemos ter cuidado com o que
pedimos, porque, uma vez que as técnicas tenham sido aperfeiçoadas, conseguimos
praticamente tudo o que pedimos. Devemos ter o cuidado de não pedir fortuna e poder
capazes de nos destruir juntamente com outras pessoas.

Um bom uso da sugestão é, simplesmente, o de nos adaptarmos às exigências do ramerrão


diário. Devemos decompô-lo em suas partes e começar por aquela que mais nos irrita. Talvez
seja o enfrentarmos todos os dias uma certa pessoa que preferiríamos não ter de enfrentar,
como um vizinho tagarela, um colega egoísta, um supervisor pretensioso, ou um cônjuge
zangado. Devemos então dizer ao nosso subconsciente que desejamos compreender essa
pessoa, que queremos dar-lhe oportunidade de expressar sentimentos e emoções; que
seremos pacientes e compreensivos; que não lhe negaremos a oportunidade de ganhar o seu
dia. Verificaremos que isto é muito mais suportável do que as horas despendidas temendo
uma acareação com essa pessoa.

E o mesmo acontecerá com os outros aspectos do ramerrão diário. Em todos os casos


verificaremos que é geralmente mais fácil enfrentá-los com uma atitude positiva e tolerante,
do que viver no temor da acareação. Para muitas pessoas, o levantarem-se de manhã é um
grande problema. Elas se cansam só de pensar nisto, e o porem-se de pé, toda manhã, é um
sofrimento, seguidamente protelado. Muitas pessoas põem seu despertador para tocar meia
hora ou uma hora antes da hora em que realmente devem se levantar, só para se darem
tempo de travar a batalha de se arrancarem da cama. Isto não é ridículo?
A procrastinação é, provavelmente, o mais comum sintoma de algo que não desejamos
realmente fazer. Se queremos saber em que é que mais precisamos trabalhar, no nosso
ramerrão diário, pensemos naquilo que mais adiamos. Lembremo-nos de que não é o que
temos de fazer todos os dias que pode ser prontamente alterado, mas, antes, nossa disposição
mental, nossas atitudes, sobre as quais podemos exercer pleno controle.

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