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Traços básicos de nossa situação histórica: Conjuntura 2019

Para que anaá lise de conjuntura? “Evangelizar eá tornar o Reino de Deus


presente no mundo”(AE 176) . Para realizar esta tarefa, exige-se uma Igreja que
seja capaz de buscar compreender o mundo em que estaá inserida, de escutar a
sociedade e compreender suas caracteríásticas, seus problemas, suas
necessidades especíáficas, de ter sensibilidade para as gigantescas desigualdades
sociais, de considerar com toda seriedade e sem temor todas as questoõ es que a
sociedade levanta, conhecendo e respeitando o ser humano em todas as suas
dimensoõ es, mostrando profunda compaixaõ o diante do sofrimento, das anguá stias,
e confrontando-nos com as inuá meras formas de injustiça. Os gritos que pedem
justiça continuam ainda hoje muito fortes. “O medo e o desespero apoderam-se
do coraçaõ o de inuá meras pessoas...(AE 52)”.
Vivemos hoje numa nova era (LS 102) por isto se faz necessaá rio antes de
tudo para a evangelizaçaõ o nos darmos conta dos traços gerais da forma da
sociedade moderna em que vivemos que eá extremamente complexa e
diferenciada. Os Pastores, diz o papa, “acolhendo as contribuiçoõ es das diversas
cieê ncias, teê m o direito de exprimir opinioõ es sobre aquilo que diz respeito aà vida
das pessoas, dado que a tarefa da evangelizaçaõ o implica e exige uma promoçaõ o
integral de cada ser humano” (EG 182).
A pergunta que se impoõ e eá : como se configura nossa situaçaõ o
histoá rica? O Papa Francisco articula na Laudato Si um diagnoá stico valoroso da
atual crise social e ambiental assumindo os dados fornecidos pela comunidade
cientíáfica atual. Sua afirmaçaõ o baá sica eá que haá uma profunda relaçaõ o entre a crise
social e a crise ambiental de tal modo que elas naõ o saõ o propriamente duas crises,
mas dois momentos de uma uá nica crise socioambiental que se radica num
sistema econoê mico tecnocraá tico. “As diretrizes para a soluçaõ o requerem uma
abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluíádos
e, simultaneamente, cuidar da natureza” (LS n. 139, p. 88).
Os bispos brasileiros em sua mensagem ao povo brasileiro
afirmam(2019): “A crise eá tica, políática, econoê mica e cultural tem se aprofundado
cada vez mais no Brasil. A opçaõ o por um liberalismo exacerbado e perverso que
desidrata o Estado quase a ponto de eliminaá -lo, ignorando as políáticas sociais de
vital importaê ncia para a maioria da populaçaõ o, favorece o aumento das
desigualdades e a concentraçaõ o de renda em níáveis intoleraá veis, tornando os
ricos mais ricos aà custa dos pobres cada vez mais pobres, como jaá lembrava o
Papa Joaõ o Paulo II na Confereê ncia de Puebla (1979)”.
Segundo Marcelo Neri, diretor da FGV Social, um braço da Fundaçaõ o
Getuá lio Vargas, o Brasil em dez anos tirou 30 milhoõ es de pessoas da pobreza e se
tornou refereê ncia nas políáticas de combate aà fome. Do final de 2015 ateá 2017 os
indicadores dispararam e 6,3 milhoõ es de pessoas voltaram aà miseá ria. Nos uá ltimos
3 anos o aumento da pobreza foi de 33%. A concentraçaõ o de renda vem
aumentando desde o uá ltimo trimestre de 2014. Segundo dados do IBGE, 15, 2
milhoõ es de pessoas vivem hoje abaixo da linha de pobreza com menos de R$ 406
por meê s. A lista de excluíádos soá aumenta: entre 2016 e 2017 subiu de 25,7% para
26,5 o que significa a exclusaõ o de quase 2 milhoõ es de pessoas. Segundo estes
dados, 55 milhoõ es de brasileiros passam por privaçoõ es dos quais 40% no
Nordeste. Na crise, a renda per capita dos ricos subiu 3% e a dos pobres desceu

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20%. Doenças jaá erradicadas retornaram e a mortalidade infantil avançou sobre
as famíálias mais pobres.
Na uá ltima semana de maio, o IBGE divulgou que o PIB brasileiro caiu 0,2%
de janeiro a março, a induá stria extrativa caiu 0,6%, a induá stria de transformaçaõ o
0,5% e a e construçaõ o 2,%, a pecuaá ria 0,5%, o agronegoá cio, poreá m, saiu ileso de
tal modo que o risco de recessaõ o este ano eá evidente. Jaá atualmente o Brasil,
segundo o IBGE, tem 13, 2 milhoõ es de desempregados, 28, 4 milhoõ es
subutilizados, 11,2 milhoõ es sem carteira assinada e 23,9 milhoõ es trabalham por
conta proá pria. Segundo o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial
no ano a induá stria perdeu 2,7%. O Cearaá tem a 5 a pior renda do Nordeste com
44,7% de sua populaçaõ o na pobreza.
Estes dados confirmam o que socioá logos jaá veê m dizendo haá muito tempo:
O Brasil naõ o eá um paíás pobre, eá um paíás injusto. O Estado brasileiro recolhe uma
grande quantidade de impostos sobretudo dos pobres e da classe meá dia e
repassa a maior parte para os mais ricos. Exemplo: 300 bilhoõ es de reais como
pagamento de juros da díávida puá blica[a taxa de juros do Brasil eá a 7 a mais alta do
mundo] passam por ano para o 1% mais rico. Neste contexto, a ideia mesma de
justiça social parece ter desaparecido e “hoje, com a hegemonia da cultura
neoliberal, a noçaõ o de justiça de mercado sobrepujou e deslegitimou a noçaõ o de
justiça social”(SUNG J.M., Idolatria do dinheiro e direitos humanos, 2018, p. 14).
Que pretende dizer o Papa quando fala de que a crise se radica num
sistema econoê mico tecnocraá tico? E os bispos brasileiros quando falam de
liberalismo exacerbado e perverso? Que Projeto de Sociedade estaá sendo
implementado?
A) Neoliberalismo: o projeto atual do Capitalismo
O projeto fundamentalmente consiste na implementaçaõ o radical do que se
denomina “Liberalismo Econoê mico”. Esta corrente de teoria econoê mica eá
conhecida como a Escola de Chicago que tem, contudo, seus fundamentos
filosoá ficos nas teses da assim chamada Escola Austríáaca, cujo principal expoente
eá Ludwig von Mises (entre noá s haá o Instituto “Mises Brasil’). Teses baá sicas: o
direito de propriedade eá o uá nico direito universal, fundamental e absoluto que
começa com o direito absoluto do proá prio corpo e inclui todos os bens que se
possa adquirir. Deste direto se derivam o direito absoluto de naõ o agressaõ o aà
propriedade e o direito de defender a propriedade.
O Estado eá visto como o grande usurpador da propriedade e a uá nica
instituiçaõ o eticamente aceitaá vel na esfera da atividade econoê mica eá o “Mercado
Livre”. Todos no mercado livre teê m os mesmos direitos. Cada indivíáduo eá o uá nico
responsaá vel por seus objetivos e as estrateá gias escolhidas para alcançaá -los. Suas
regras constituem um mecanismo semelhante aà s leis da natureza: elas saõ o algo
objetivo que o ser humano naõ o tem condiçoõ es de modificar. Por esta razaõ o,
devemos estudar a açaõ o humana e a cooperaçaõ o social como um fíásico estuda as
leis da natureza (naturalismo epistemoloá gico).
Assim como naõ o podemos julgar boa ou maá a lei da gravidade, do mesmo
modo naõ o podemos julgar as leis do mercado: elas simplesmente se impoõ em a
noá s, portanto...”o mercado naõ o pertence ao campo das açoõ es e interaçoõ es
humanas e sociais” (SUNG J.M., op. cit. p. 130), eá algo superior e incontrolaá vel e
desta forma naõ o tem sentido aqui levantar questoõ es eá ticas que pertencem a outro
níável. A uá nica questaõ o aqui eá sua eficieê ncia teá cnica. O mercado eá compreendido

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como um mecanismo auto-organizador e enquanto tal sua avaliaçaõ o tem como
criteá rio a eficieê ncia e naõ o a valoraçaõ o eá tica.
Naõ o haá direitos fora das leis do mercado. Portanto, a desigualdade e a
exclusaõ o nada teê m a ver com injustiça social. Assim, a pobreza naõ o eá um
problema eá tico, mas uma incompeteê ncia teá cnica. O maior erro dos opositores do
capitalismo eá assim a acusaçaõ o de injustiça social baseada na ideia de que “a
“natureza” concedeu a todas as pessoas certos direitos soá pelo fato de terem
nascido”. Por esta razaõ o, no que toca aà distribuiçaõ o da riqueza...”naõ o tem sentido
referir-se a um suposto princíápio natural ou divino de justiça”(Cf. MISES L. von,
The Anti-Capitalist Mentality, Auburn: Ludwig von Mises Institute, 2008, p. 80,
81).
O Estado, quando me obriga a pagar impostos para garantir os chamados
direitos sociais (moradia, escola, sauá de, etc.) me obriga aà solidariedade social e
cria parasitas que vivem da minha propriedade. Assim, o imposto eá uma forma de
confisco da propriedade. Portanto, nem sauá de, nem educaçaõ o, nem prevideê ncia,
nem segurança puá blica, nem justiça se legitimam enquanto financiados pelo
Estado. Os pobres naõ o passam de indivíáduos que escolheram objetivos errados
ou estrateá gias naõ o adequadas , ou seja, saõ o indivíáduos que por culpa proá pria
perderam a competiçaõ o com outros. Assim, o meá rito (a meritocracia) emerge
como uá nico criteá rio de ascensaõ o social. Haá muitos perdedores na sociedade que
saõ o fracassados e vivem a exigir privileá gios.
Como isto se traduziu depois num projeto de sociedade? Este projeto foi
pensado nos anos quarenta sobretudo por F. von Hayek e M. Friedman e o
objetivo fundamental foi contrapor-se ao surgimento do que se chamou o Estado
de Bem-Estar Social articulado basicamente a partir das ideias do economista
britaê nico J. M. Keynes com o objetivo fundamental de salvar o capitalismo
marcado por uma profunda crise desde os anos 20 do seá culo passado decorrente
de problemas criados pela loá gica de exclusaõ o e concentraçaõ o de riqueza do
mercado e das reivindicaçoõ es neste contexto da classe trabalhadora. Estas
propostas do liberalismo econoê mico ficaram esquecidas ateá que o capitalismo
entrasse de novo em crise nos anos 70.
A ideia baá sica que moveu Keynes era que a insuficieê ncia da demanda que
marcava o capitalismo em crise soá poderia ser superada atraveá s de uma políática
de pleno emprego e de redistribuiçaõ o de riqueza (promoçaõ o do consumo para
manter a acumulaçaõ o, a eficieê ncia econoê mica). Para que a economia pudesse
atingir isto, foi necessaá ria a intervençaõ o do Estado como regulador e parceiro, ou
seja, intervençaõ o nos mecanismos do mercado atraveá s de políáticas econoê micas e
sociais de algum modo limitadoras de sua loá gica. Sem duá vida, aqui tambeá m o
mercado eá visto como o sistema econoê mico que produz maior eficieê ncia
produtiva, mas naõ o eá sempre um sistema justo na distribuiçaõ o. Assim, o Estado
aparece como o grande parceiro do mercado que atraveá s de suas intervençoõ es
tem condiçoõ es de minimizar crises econoê micas e recessaõ o e agir na direçaõ o de
enfrentar os problemas sociais aqui gerados.
O grande mecanismo do Estado de Bem-Estar Social para realizar isto foi a
criaçaõ o do que se chamou de Fundo Puá blico para operar de duas maneiras
baá sicas: Financiamento da Reproduçaõ o e Acumulaçaõ o do Capital, o que levaria a
aumentar a taxa de lucro, e Financiamento da Reproduçaõ o da Força de Trabalho
atraveá s do que se chamou o “salaá rio indireto”, as chamadas políáticas sociais:
educaçaõ o gratuita, medicina socializada, prevideê ncia social, etc.

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Numa palavra, trata-se de uma forma de articular a economia atraveá s do
financiamento simultaê neo do capital e do trabalho. Durante a segunda guerra
mundial foi publicado na Europa um relatoá rio (de Beveridge) propondo um
sistema universal de luta contra a pobreza que assim articulou os objetivos desta
forma de organizar a economia. Numa palavra, o Estado de Bem-Estar foi
instalado atraveá s dos seguintes elementos: 1) Intervençaõ o do Estado nos
mecanismos de mercado; 2) Políática de pleno emprego (melhoria dos
rendimentos dos cidadaõ os); 3) Institucionalizaçaõ o do sistema de proteçaõ o;
4)Institucionalizaçaõ o de ajudas para os que naõ o conseguem estar no mercado de
trabalho.
A partir daqui se articulou na Europa a ideia do que se chamou Estado
Social de Direito (no Brasil normalmente soá se fala de Estado de Direito)que
consiste basicamente em incluir no sistema de direitos fundamentais naõ o soá as
liberdades individuais, direitos civis(direitos negativos que protegem as pessoas
contra as usurpaçoõ es ilegíátimas do Estado), e os direitos positivos políáticos,
(direitos que garantem a participaçaõ o na formaçaõ o da vontade puá blica), mas
tambeá m os direitos econoê micos, sociais e culturais (direitos positivos ou direitos
aà prestaçaõ o, direitos sociais) [Cf. RICOEUR P., Percurso do reconhecimento, Saõ o
Paulo: Loyola, 2006, p. 213): satisfaçaõ o das necessidades baá sicas e acesso a bens
fundamentais para todos como exigeê ncias eá ticas a que o Estado deve responder
o que soá eá possíável atraveá s de intervençaõ o (pode-se falar aqui de uma justificaçaõ o
eá tica das políáticas sociais). Aqui a tese baá sica eá de que eá possíável e irrenunciaá vel
proteger os direitos sociais que caracterizam a cidadania social: a satisfaçaõ o de
necessidades baá sicas e acesso a bens fundamentais a todos os membros da
sociedade o que implica que o Estado se torne um Estado interventor no campo
econoê mico e social o que pressupoõ e a conscieê ncia de sua corresponsabilidade na
condiçaõ o social da sociedade sobretudo de seus membros mais vulneraá veis.
O resultado deste processo foi o aumento da capacidade de consumo das
classes menos favorecidas. E com isto nasce o que se chamou consumo de massa.
Isto levou a um endividamento do Estado e nos anos 70 a uma profunda crise
causada por muitas razoõ es entre as quais uma muito fundamental foi gerada pelo
fato de que os grandes oligopoá lios transnacionais naõ o enviaram os lucros obtidos
para seus estados de origem e assim naõ o alimentaram os fundos puá blicos
nacionais.
Esta crise violenta dos anos 70 foi chamada de “colapso da
modernizaçaõ o” e provocou o reaparecimento das teorias econoê micas elaboradas
nos anos 40. Este foi o fenoê meno que se denominou de Neoliberalismo. O baá sico
nesta proposta eá a eliminaçaõ o do duplo financiamento que caracterizou a fase
anterior. Agora o financiamento se dirige exclusivamente ao capital: o
neoliberalismo corta o fundo puá blico no polo do financiamento dos bens e
serviços puá blicos, numa palavra, corte do salaá rio indireto (os programas de bem-
estar social) atraveá s de reformas.
Para os adversaá rios do “Estado Social” a insisteê ncia no financiamento dos
bens e serviços puá blicos, políáticas consideradas irracionais e populistas, de fato
produz menos crescimento e mais desemprego a longo prazo que saõ o o resultado
da naõ o consideraçaõ o da escassez de recursos e da loá gica de funcionamento dos
mercados. Assim, a recomendaçaõ o agora eá para os mercados financeiros a
desregulamentaçaõ o e a eliminaçaõ o das barreiras aà entrada e aà saíáda do capital-
dinheiro; para os mercados de trabalho, a flexibilizaçaõ o e a remoçaõ o das

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claá usulas sociais, “ineficientes e danosas para os trabalhadores” (Cf. BELLUZZO L.
B., Carta Capital n. 1054 p. 45).
O objetivo fundamental agora eá maximizar o uso da riqueza puá blica nos
investimentos do capital o que faz com que os direitos sociais tendam a
desaparecer e a serem reduzidas as alíáquotas de impostos sobre os maiores
rendimentos, ou seja, impostos mais baixos para os ricos (o sistema tributaá rio
estimula a especulaçaõ o e naõ o o trabalho), desregulamentaçaõ o dos mercados de
trabalho, políáticas que aumentam as riquezas para os mais ricos (servem ao 1%
mais rico), ampliam a desigualdade econoê mica e naõ o produzem o crescimento
prometido. Uma das políáticas fundamentais a concentraçaõ o excessiva no controle
da inflaçaõ o e do orçamento ignorando as reais ameaças aà prosperidade
econoê mica que saõ o a crescente desigualdade, o sub-investimento e fosso
crescente entre produtividade (aumento de 161% em 40 anos) e salaá rio(19%.
80% dos empregos conseguidos eá atividade de baixa remuneraçaõ o. O problema eá
mundial e nacional, plenamente demonstrado no caso dos Estados Unidos, vistos
como modelo, pelo relatoá rio planejado e coordenado pelo preê mio Nobel de
economia J. Stiglitz no livro Rewiriting the Rules of American Economy, Roosevelt
Institute, 2015 mostrando tambeá m que eá possíável reduzir a desigualdade e ao
mesmo tempo melhorar o desempenho econoê mico .
L. B. Beluzzo traduziu isto assim: ...”eá preciso libertar as forças criativas da
iniciativa privada e permitir a flueê ncia mercantil desimpedida das restriçoõ es
impostas pela intervençaõ o estatal” (Carta Capital 1054, p. 45). Daíá a cruzada
global contra a intervençaõ o estatal e os direitos sociais e econoê micos criados
pelas políáticas do Estado Social, que, segundo seus adversaá rios, constituem um
obstaá culo aà operaçaõ o das leis de concorreê ncia e por isto saõ o políáticas irracionais
e populistas. Elas, a longo prazo, produziriam menos crescimento e mais
desemprego e por isto devem ser substituíádas por políáticas que naõ o se
contraponham aà s hipoá teses cientíáficas do indivíáduo utilitarista. Por isto, os
defensores do “mercado totalmente livre” (considerado condiçaõ o para a
realizaçaõ o do ser humano enquanto ser livre) se contrapoõ em radicalmente a
estas políáticas consideradas ineficientes e perturbadoras do processo produtivo
e, sobretudo, pelo que elas pressupoõ em: seu financiamento atraveá s de impostos.
O caminho agora, entaõ o, proposto era outro por levar em consideraçaõ o as
restriçoõ es de recursos e o funcionamento dos mercados competitivos:
desregulamentaçaõ o dos mercados financeiros e eliminaçaõ o das barreiras de
entrada e saíáda do capital-dinheiro, flexibilizaçaõ o do mercado de trabalho e
remoçaõ o de claá usulas sociais, políática monetaá ria controlada por um banco central
independente, etc. Aqui estaá , diz J.M. Sung (op. Cit. p. 16), “a grande novidade
“espiritual” e cultural do nosso tempo”, eá este o “novo espíárito” do capitalismo,
seus novos valores fundamentais em contraposiçaõ o ao desenvolvimentismo
anterior: confiar plenamente no mercado enquanto sistema auto-organizador
que uma vez libertado de regulaçoõ es e intervençoõ es indevidas soluciona por si
mesmo todos os problemas econoê micos e sociais, satisfazendo “a sempre
crescente gama de desejos”(CF. HAYEK F.A. von, The Road to Serfdom, Chicago:
Uni. of Chicago Press, 2007, p. 70). Deste modo, o mercado e naõ o o ser humano eá
o construtor da histoá ria: no lugar de um sujeito consciente entra em cena um
mecanismo inconsciente, impessoal, que eá politicamente incompatíável com a
democracia. As atividades das organizaçoõ es da sociedade civil, dos sindicatos,

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dos movimentos sociais saõ o simplesmente inuá teis, desprovidas de sentido,
baseados em conceitos primitivos.
Assim, o Neoliberalismo significa um processo de contraçaõ o do espaço
puá blico dos direitos e um processo de ampliaçaõ o dos interesses privados de
mercado o que levou a um aumento significativo do papel das cieê ncias e da
tecnologia no processo de produçaõ o o que faz com que muitos cientistas sociais
contemporaê neos afirmassem que a cieê ncia a tecnologia se transformaram nas
forças produtivas mais importantes.
Neste contexto se mostra que agora o eixo baá sico de nosso projeto de
civilizaçaõ o eá a subordinaçaõ o da qualidade de vida dos seres humanos ao
crescimento econoê mico (acumulaçaõ o do capital). Aqui o aumento do PIB eá o sinal
mais claro de progresso. A sociedade do crescimento eá igualmente a sociedade do
consumo ilimitado e a ideia hoje difundida fortemente de que nisto consiste
propriamente a felicidade humana. Os resultados deste processo ameaçam a vida
humana e toda vida no planeta. A exploraçaõ o ilimitada da natureza, cujos efeitos
se mostram nas cataá strofes socioambientais que experimentamos e constitui
elemento central neste modelo, alertam-nos para o fato de que o modelo
econoê mico vigente pode encaminhar a humanidade a um colapso ecoloá gico-
social.
O ser humano radicalizou este processo no seá culo XX utilizando-se para
isto das cieê ncias da vida que tornaram possíável a intervençaõ o humana no mundo
vegetal e animal. EÉ neste novo contexto que podemos compreender os problemas
que emergem em nossos tempos que saõ o ainda mais agravados pela incerteza a
respeito dos efeitos das novas tecnologias altamente eficientes que parecem
ameaçar a identidade do mundo atraveá s das novas manipulaçoõ es agora,
sobretudo, no campo dos organismos (vegetais e animais)atraveá s da descoberta
do íántimo dos organismos, da identificaçaõ o e manipulaçaõ o dos genes, da teá cnica
da transfereê ncia e recombinaçaõ o do patrimoê nio geneá tico e, portanto, a
possibilidade de se produzir em laboratoá rio combinaçoõ es e variaçoõ es dos mais
diversos seres com grande repercussaõ o, sobretudo na agricultura, na economia e
na medicina como tambeá m na vida dos trabalhadores (LS 134), tudo isto
vinculado a negoá cios financeiros gigantescos como o patenteamento de genes, a
produçaõ o de oá rgaõ os para transplantes e o desenvolvimento de oligopoá lios. Neste
contexto social naõ o se descarta a possibilidade de uma guerra bioquíámica e
bacterioloá gica.
As consequeê ncias saõ o desastrosas: o mercado absolutizado vinculou
produtividade progressiva e miseá ria progressiva, processos de desenvolvimento
e processos de exclusaõ o. Elemento ideoloá gico fundamental neste contexto eá a
defesa do mercado como uá nico elemento regulador da vida societaá ria o que
implica a recusa radical da intervençaõ o estatal a naõ o ser quando ela se poõ e a
serviço das políáticas neoliberais: liberaçaõ o do movimento dos capitais,
privatizaçoõ es, combate aà inflaçaõ o atraveá s de uma alta taxa de juros, afrouxamento
fiscal, etc. A ideia aqui pressuposta eá que o movimento do capital, deixado em si
mesmo, tenderia ao equíálibrio, ou pelo menos aà harmonia, tese cada vez mais
ameaçada pelos resultados produzidos (Cf. FAUSTO R., Caminhos da esquerda.
Elementos para uma reconstrução, Saõ o Paulo: Companhia das Letras, 2017 p. 97-
98).
Neste contexto, o desemprego se tornou estrutural porque a forma atual
do capitalismo naõ o objetiva incluir toda a sociedade (pleno emprego) no

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mercado de trabalho e consumo, mas atua por exclusaõ o: o custo da força de
trabalho tem que diminuir. Daíá tambeá m o aumento acelerado da terceirizaçaõ o.
(No Brasil, para Giannotti: “...o medo de rebaixamento do padraõ o de consumo
transforma as classes meá dias num barril de poá lvora que pode explodir a
qualquer momento, mas logo se recolhe”. Cf. GIANNOTTI J. A., Savonarolas
oficiais, in: Democracia em Risco?, op. cit., p.165-166).
S. Neckel, do Instituto de Sociologia da Universidade de Hamburgo,
mostra-nos em seus trabalhos que em muitas sociedades modernas estaá em
andamento uma transformaçaõ o da proá pria desigualdade com surgimento de
privileá gios “neo-feudais” para os ricos enquanto as classes populares enfrentam a
exclusaõ o (entre 30 e 35 milhoõ es de trabalhadores vivem hoje em condiçoõ es de
privaçaõ o de direitos proá ximas aà escravidaõ o, privados de qualquer forma de
segurança social) e retorno do trabalho forçado (21 milhoõ es no mundo, OIT).
Estaá assim acontecendo uma re-feudalizaçaõ o do capitalismo moderno
(expressaõ o usada por J. Habermas), uma vez que processos atuais de
modernizaçaõ o estaõ o conduzindo a padroõ es sociais preá -modernos que recriam o
antigo como se fosse o novo. Isto se traduz em vantagens significativas para as
elites (rendimentos gigantescos sobretudo dos mercados financeiros. Aqui a
herança e o casamento voltam a ter um papel essencial. 10% do topo da piraê mide
deteê m 80% a 90% da riqueza global aponta Th. Piketty. Cf. PIKETTY Th., O
Capital no século XXI, Rio de Janeiro: Ed. Intríánseca Ltda., 2014, p. 231 e ss) que se
beneficiam de uma oportunidade de enriquecimento uá nica na histoá ria enquanto
as camadas inferiores naõ o soá empobreceram, mas se encontram cada vez mais
expostas a condiçoõ es de trabalho que naõ o correspondem aos padroõ es modernos
elementares em mateá ria de relaçoõ es contratuais (salaá rios naõ o garantem a
sobreviveê ncia). Os trabalhadores estaõ o, em diferentes situaçoõ es, em dependeê ncia
pessoal nas relaçoõ es de trabalho e de exploraçaõ o, sem contrato ou estabilidade,
que favorecem a violeê ncia e a correçaõ o social.
Outro efeito deste processo e ao mesmo tempo seu impulso fundamental
foi a Financeirizaçaõ o. No caso do Brasil, como nos mostra J. SOUZA, A Elite do
atraso. Da escravidão à Lava Jato, 2017, a sociedade brasileira foi víátima desde
2013 de um violento ataque do capitalismo internacional com um duplo objetivo:
a) quebrar a experieê ncia nascente do BRICS (autonomia do paíás na inserçaõ o
internacional; b) transformar o orçamento puá blico por meio da díávida puá blica.
Isto eá efeito da nova configuraçaõ o do capitalismo, agora transnacionalizado, ou
seja, possuindo um espaço de açaõ o aleá m dos estados nacionais. Desta forma, hoje
no centro deste sistema estaá um descompasso suicida entre o “capital produtivo”
e o “capital improdutivo (rentista) com enormes impactos na vida humana. O
mercado, portanto, eá hoje em primeiro lugar o mercado financeiro (nacional e
internacional): em nossos dias o trabalhador eá muito mais explorado pelo capital
financeiro, pela taxa de juros: naõ o podendo pagar aà vista, ele com a taxa de juros
paga proporcionalmente o dobro ou mais pelo que compra. Com isto, a fraçaõ o
financeira do capital passa a comandar o processo econoê mico, o processo políático
e a esfera do Judiciaá rio. Isto conduz do ponto de vista políático aà criminalizaçaõ o
dos movimentos sociais, ao ataque aos sindicatos e aà difamaçaõ o dos partidos de
esquerda tentando eliminar a mediaçaõ o políática dos interesses das classes
populares.
Na realidade hoje, quem ganha dinheiro, saõ o aqueles que podem fazer
aplicaçoõ es financeiras. No mesmo semestre em que a induá stria desabou, o lucro

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dos maiores bancos cresceu 22,3%. Desta forma, as instituiçoõ es de creá dito sugam
a capacidade de compra da populaçaõ o e esterilizam o processo produtivo, pois
seu principal motor, o consumo das famíálias, fica paralisado. Daíá porque se pode
hoje falar da hegemonia do “capital improdutivo”: ele naõ o produz e naõ o cria
emprego. Isto gerou uma espeá cie de elite que vive de juros e naõ o da produçaõ o.
Este capital se apropria de volumes enormes de recursos que deveriam servir ao
desenvolvimento da capacidade produtiva e ao desenvolvimento social, ou seja, eá
um processo de desmantelamento das políáticas do Estado de Bem-Estar Social e
uma financeirizaçaõ o radical do capitalismo. Passa para o centro o aumento
vertiginoso das finanças especulativas e o Brasil se destaca no mundo como a
maior e mais influente presença do rentismo na sociedade e a classe rentista se
vai apoderando das instituiçoõ es estatais.
A acumulaçaõ o financeira toma o lugar da acumulaçaõ o produtiva. Trata-se
de uma transfereê ncia do dinheiro do povo para beneficiar os bancos e uma
minoria de aplicadores, portanto, de drenar o trabalho de todos para o bolso da
elite do dinheiro. Desaparece do horizonte a meta de uma políática consistente de
distribuiçaõ o de renda que possa efetivar transformaçoõ es profundas dos padroõ es
de vida das maiorias. Ao contraá rio, o receituaá rio eá definido com o objetivo de
preservaçaõ o dos interesses minoritaá rios dos poderosos e isto eá lamentavelmente
a repetiçaõ o do mesmo em diferentes formas na histoá ria do Brasil.
Foi no seio da nova revoluçaõ o tecnoloá gica no aê mbito da informaçaõ o, dos
transportes e das comunicaçoõ es, que se gestou um modo novo de acumulaçaõ o e
regulaçaõ o do capital: a Globalizaçaõ o ou Mundializaçaõ o do capital. Estaá em jogo
aqui um tipo de “liberalismo transnacional” jaá que por decisoõ es políáticas
desregulamentou o mercado mundial, sobretudo os mercados financeiros
produtores da especulaçaõ o em grande escala e estimuladores da criaçaõ o dos
paraíásos fiscais, uma “financeirizaçaõ o que sufoca a economia real”(LS 109).
Trata-se da formaçaõ o de uma “sociedade mundial”, porque o mercado e o sistema
de comunicaçaõ o produziram uma conexaõ o global estratificada. O objetivo
fundamental aqui eá a construçaõ o de um mercado consumidor mundial.
Revela-se aqui com clareza que o desenvolvimento tecnoloá gico se faz
exclusivamente em funçaõ o da maximizaçaõ o dos ganhos sem preocupaçaõ o “com o
justo níável da produçaõ o, uma melhor distribuiçaõ o da riqueza, um cuidado
responsaá vel do meio ambiente ou dos direitos das geraçoõ es futuras”(LS 109).
Neste contexto, as pessoas saõ o avaliadas de acordo com sua capacidade de
participaçaõ o no mercado e assim de poderem tonar-se consumidoras efetivas. O
consumo se transforma em medida da felicidade e, portanto, da realizaçaõ o
humana e conduz a um profundo individualismo. Os seres humanos saõ o nesta
mentalidade reduzidos a instrumentos uá teis ou naõ o para a consecuçaõ o deste
objetivo fundamental.
A globalizaçaõ o aprofundou os processos de interconexaõ o econoê mica,
políática e cultural, provocando uma permuta mais ampliada entre os paíáses e os
povos aumentando a interdependeê ncia ainda que de forma assimeá trica: o super-
desenvolvimento dissipador e consumista convive em nosso mundo com a
miseá ria desumanizadora(LS 109). Este sistema foi possibilitado por muitos
fatores entre os quais ocupam um lugar fundamental os progressos tecnoloá gicos
com a revoluçaõ o dos meios de comunicaçaõ o(LS 47). Fez-se, assim, possíável
ultrapassar as fronteiras do tempo e do espaço, tornando a comunicaçaõ o mundial
instantaê nea, estendendo para todo o planeta a difusaõ o naõ o soá de imagens e sons

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no seio de um bombardeio publicitaá rio permanente, mas tambeá m de capitais, de
tecnologias, de ordens de bolsas e transaçoõ es, informaçoõ es, etc. Uma mudança do
nuá cleo de acumulaçaõ o se vai configurando, ou seja, a passagem do Ocidente para
a AÉ sia, sobretudo para a China.
Na realidade, nesta dinaê mica o capital angariou para si um espaço de açaõ o
para aleá m do espaço dos estados nacionais instituindo uma economia global
atraveá s de uma onda de desregulamentaçoõ es, fusoõ es e privatizaçoõ es,
reestruturaçaõ o empresarial e produtiva, expansaõ o das empresas transnacionais,
aumentando a produçaõ o e a riqueza mundiais com distribuiçaõ o desigual de seus
resultados jaá que privilegiando elites hegemoê nicas e degradando os
ecossistemas. A globalizaçaõ o transformou profundamente a organizaçaõ o
econoê mica, as relaçoõ es sociais, os modelos de vida e cultura, os estados, a políática
e acelerou enormemente mudanças. Recorre-se hoje aà loá gica da globalizaçaõ o para
legitimar o desmantelamento das instituiçoõ es de proteçaõ o social e de controle de
mercados, do exercíácio do papel equilibrador do Estado e da proteçaõ o dos
direitos dos cidadaõ os. Haá grandes massas de indivíáduos que saõ o os perdedores
deste processo. Para o Papa, os problemas da fome e da miseá ria no mundo naõ o
seraõ o, como se propala, resolvidos simplesmente pelo mercado, pois “o mercado,
por si mesmo, naõ o garante o desenvolvimento humano integral, nem a inclusaõ o
social”(LS 109). Numa palavra, como diz o Nobel da Economia J. Stiglitz, esse
projeto tem sido um fracasso espetacular de tal forma que o neoliberalismo deve
ser declarado morto e enterrado.
Confrontamo-nos hoje todos com a possibilidade de autodestruiçaõ o da
humanidade e de todas as formas de vida do planeta. Temos conscieê ncia de que a
açaõ o humana, tecnicamente qualificada, pode arruinar definitivamente a
natureza e o proá prio ser humano: o processo de intervençaõ o na natureza
produziu um aumento consideraá vel do bem-estar e um aumento extraordinaá rio
do consumo, que, por sua vez, originou tanto um aumento enorme do
metabolismo com o meio-ambiente natural que eá essencialmente finito em seus
recursos quanto uma assimetria entre a capacidade de produzir e a capacidade
de consumir. O que hoje se faz cada vez mais manifesto eá que a civilizaçaõ o
teá cnico-cientíáfica eá marcada por uma problemaá tica baá sica: a notoá ria
incompeteê ncia do ser humano em finalizar o processo previsivelmente
destruidor de si mesmo e da natureza.
Vivemos hoje numa Sociedade essencialmente Pluralista: multiplicidade
dos imaginaá rios sociais, multiculturalismo, diferentes propostas eá ticas e
religiosas, diferentes concepçoõ es da realidade, enfraquecimento das tradiçoõ es e
das instituiçoõ es sociais entre as quais sobretudo a famíália e o Estado.
Experimentamos hoje a perda de evideê ncia e validade incondicional de valores,
convicçoõ es, formas de comportamento, sistemas normativos, instituiçoõ es o que
gera uma crise radical dos sistemas normativos, levando frequentemente a uma
relativismo difuso e mesmo ceticismo.
Neste contexto exerce enorme influeê ncia a chamada “guerra de 4a.
geraçaõ o” (KORYBKO A., Guerras híbridas, São Paulo: Expressão Popular,2018)em
que a arma fundamental de combate eá a informaçaõ o. “Trata-se de produzir
informações parcialmente verdadeiras (pós-verdade) ou falsas (fake-news), mas
plausíveis para quem as recebe, e difundi-las pela combinação da mídia
corporativa (TVs, rádios e jornais), mídias digitais (whatsapp, facebook e twitter)
e instituições com credibilidade, como Igrejas cristãs, ONGs ou institutos de
pesquisa” (OLIVEIRA P. A. R.de, Análise d conjuntura, 2019, mimeo, p. 4). Esta

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guerra constitui o resultado da combinação entre dinheiro, poder e conhecimento,
que direta ou indiretamente estabelecem conexões mútuas entre si na construção
de uma grande rede sem qualquer tipo de controle como existe na mídia
tradicional. De algum modo, há uma espécie de democracia direta em jogo aqui
e, como tal, foi vista como um processo de descentralização do poder da
comunicação. Sem dúvida se tratava aqui de um instrumento importante para
protestar contra a corrupção, o autoritarismo e defender uma democracia
autêntica. No entanto, criou-se também com isto um espaço utilizado para a
manipulação, a difusão de notícias falsas, para a recuperação de concepções que
se imaginava terem sido superadas e de estímulo ao populismo e ao
fundamentalismo religioso, defesa de racismo, homofobia e autoritarismo. A
influência é simplesmente decisiva na formação da opinião pública.
Numa sociedade pluralista, a problemaá tica do reconhecimento das
diferenças se transformou numa das forças motrizes dos movimentos sociais.
Isto nos faz perceber que as lutas na sociedade naõ o se reduzem apenas a lutas de
natureza econoê mica. Verdade eá que surgiram nas uá ltimas deá cadas novas lutas e
novos movimentos relativos aos direitos fundamentais, por exemplo: sem-terra,
sem-teto, quilombolas, indíágenas em defesa de seus territoá rios e de sua cultura,
pescadores, movimentos socioambientais, segurança lazer etc. Mas começaram a
surgir tambeá m neste contexto pluralista lutas e movimentos novos em torno da
defesa de direitos especiais ou, como normalmente se diz, lutas por
reconhecimento da identidade como como questoõ es de geê nero, sexuais,
culturais, de deficientes, de mulheres, de etnias, etc. (Cf. AQUINO JUÉ NIOR F. de,
Teologia em saída para as periferias, Saõ o Paulo: Paulinas/Pernambuco: Unicap,
2019, p. 122 e ss). De maneira geral, pode-se dizer que as igrejas estaõ o pouco
preparadas para enfrentar sobretudo estas questoõ es.

B) Implementaçaõ o deste projeto no Brasil


As novas tecnologias das redes digitais, que se tornaram amplamente
disponíáveis para os brasileiros entre 2013-2018 introduzindo a experieê ncia da
massa digital (Cf. DUNKER C. I. L, Psicologia das massas digitais: análise do sujeito
democrático, in: Democracia em Risco?, op. cit., p. 120) constituíáram um elemento
fundamental para a vitoá ria eleitoral deste projeto que foi alimentado por um
enorme bombardeio ilegal de Fake News (torna-se cada vez mais difíácil fazer-se
escutar por argumentos) a respeito sobretudo de treê s questoõ es baá sicas:
corrupçaõ o, violeê ncia e costumes. Isto aconteceu no Brasil, mas tambeá m nas
vitoá rias de Trump (Estados Unidos), Salvini (Itaá lia), Orbaá n (Hungria) e Duterte
(Filipinas). Estas vitoá rias se inscrevem num movimento mundial de forças anti-
emancipatoá rias que eá proá -capitalista, antidemocraá tico, antifeminista, racista e
antiecoloá gico. A questaõ o dos costumes e sua interpretaçaõ o religiosa se tornaram
aqui questoõ es decisivas e com o projeto neoliberal este eá um dos pilares da visaõ o
de mundo do novo governo.
Como diz R. de Almeida: “Boa parte da argumentaçaõ o dos atores proá -
conservadorismo dos costumes apela para a constataçaõ o, repetida por eles, de
que “o Estado eá laico, mas a sociedade eá religiosa”... o Brasil eá majoritariamente
cristaõ o. Logo o cristianismo (ou versoõ es dele) deve prover o paraê metro moral e
legal dos comportamentos”. Portanto, as minorias se devem submeter aà maioria.
Com isto se estaá negando a liberdade religiosa, um dos fundamentos das
liberdades modernas como diz J. Habermas (ALMEIDA R. de, Deus acima de todos,
in: Democracia em Risco? 22, op. cit., p. 47). Esta problemaá tica eá apresentada

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numa linguagem salvacionista (retoá rica messiaê nica): este governo vai salvar o
Brasil de seu caê ncer que saõ o os políáticos corruptos!
Um elemento importante que teve papel decisivo neste processo foi o
papel assumido pelo Judiciaá rio na crise políático-econoê mica das sociedades atuais
(cf. entre noá s, a operaçaõ o Lava Jato e o Manifesto assinado por cem procuradores
e promotores a favor da Escola sem Partido [proibiçaõ o de os professores
assumirem diante dos alunos suas posiçoõ es políáticas e religiosas] que, aprovada,
poderaá levar muitos professores ao afastamento ou aà prisaõ o). (Cf. FAUSTO R.,
Depois do temporal, in: Democracia em Risco?, op. cit., p. 150 e ss).
Naõ o se pode pensar a situaçaõ o do Brasil simplesmente a partir somente do
Brasil, mas precisamente no contexto da situaçaõ o do sistema global antes
apresentado. No caso brasileiro, o objetivo de implementaçaõ o do projeto
neoliberal de sociedade entre noá s se faz agora mais visíável atraveá s dos “Projetos
de Reforma” (tambeá m denominados de “Processo de Ajuste”) que constituem o
desmonte sistemaá tico dos direitos sociais: (eá impressionante a velocidade dos
esforços para mudar a Constituiçaõ o). Haá um forte retrocesso social (eliminaçaõ o
de conquistas sociais de deá cadas com intensa participaçaõ o democraá tica) com a
perda de direitos, desmantelamento dos programas sociais, a informalidade em
crescimento (as vagas no setor privado neste ano em sua grande maioria saõ o
informais aponta o IBGE), a volta da fome e aumento acentuado da desigualdade.
A tendeê ncia eá o agravamento da situaçaõ o com a plena implementaçaõ o da
Reforma Trabalhista, cujo objetivo baá sico eá reduzir o valor da força de trabalho
barateando os custos do empresariado e precarizando o trabalho (informalidade,
contrataçaõ o por hora, reduçaõ o draá stica de salaá rio) o que significa aumento do
grau de exploraçaõ o da força de trabalho. Cai com isto a CLT que era o conjunto de
normas que protegiam os empregados desde os anos 30 do seá culo passado (hoje
apenas um terço do total dos trabalhadores estaá na CLT). As condiçoõ es do
mercado de trabalho começaram a piorar desde 2015 e depois de sua
implementaçaõ o cresceu muito o contingente de trabalhadores sem acesso aos
mecanismos de proteçaõ o social vinculados aà formalizaçaõ o do trabalho como
salaá rio míánimo e aposentadoria e mesmo sem emprego(temos a maior taxa de
desemprego das Ameá ricas, 12, 7% e haá poucas perspectivas de melhora do
mercado de trabalho para os proá ximos anos), numa situaçaõ o em que as
perspectivas apontam para uma substituiçaõ o das tarefas do trabalhador por
roboê s. Que nos espera o uso cada vez mais intenso dos produtos da inteligeê ncia
artificial? A Organizaçaõ o Internacional do Trabalho decidiu denunciar o Brasil
por violaçaõ o de convençoõ es internacionais. O paíás seraá investigado por tirar a
proteçaõ o dos trabalhadores permitindo que o negociado entre empregados e
patroõ es se sobreponha aà lei.
Por sua vez, isto se aprofunda com a implementaçaõ o da Reforma da
Prevideê ncia, reduzida a uma simples questaõ o fiscal prescindindo dos valores
eá ticos aqui em questaõ o o que se mostra por exemplo na inviabilizaçaõ o da
aposentadoria da maioria dos trabalhadores (um elemento muito visíável aqui eá o
naõ o enfrentamento das diferenças gritantes na aposentadoria entre o setor
puá blico e o setor privado). EÉ importante compreender que uma Reforma da
Prevideê ncia tem um impacto geral sobre a qualidade de vida das pessoas e
expressa que tipo de sociedade se pretende construir.
Este tipo de reforma eá apresentada pelo governo como soluçaõ o
fundamental de todos os problemas do paíás hoje. Acima de tudo, afirma-se com

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força que naõ o haá alternativas para a proposta. No entanto, a pressaõ o popular e o
medo dos deputados em funçaõ o das consequeê ncias de seus votos fizeram retirar
da proposta a diminuiçaõ o dos benefíácios para idosos miseraá veis (BCP) e a
proposta de aposentadoria para os trabalhadores rurais. Estados e municíápios
foram retirados da reforma e a situaçaõ o fiscal aqui eá dramaá tica, pois, tirados os
pequenos estados criados a partir de 1980, todos os outros apresentam deá ficit.
Haá treê s dos maiores que gastam mais 25% (RJ, RGS e MG) das receitas para pagar
aposentados e pensionistas. Mantida esta situaçaõ o, o rombo nas prevideê ncias
estaduais pode quadruplicar ateá 2060.
Este projeto atual eá profundamente diferente de projetos anteriores que
ocorreram nos governos de F. H. Cardoso e Lula aqui naõ o haá apenas mudanças
nos paraê metros (por exemplo, mudança no tempo de contribuiçaõ o, de idade, etc.)
como dizem os especialistas, mas mudanças estruturais. As reformas anteriores
procuravam viabilidade financeira, embora haja algumas questoõ es
problemaá ticas. Aleá m disto, haá impacto direto das aposentadorias e benefíácios
previdenciaá rios na movimentaçaõ o da economia: para 70% dos municíápios esta eá
a fonte principal de recursos. Agora haá uma mudança de estrutura. Passa-se de
um Modelo de Repartiçaõ o para um modelo de Capitalizaçaõ o, (foi excluíáda do
texto, mas o Ministro da Economia diz que ela volta) que em uá ltima instaê ncia
significa uma privatizaçaõ o da prevideê ncia. Por isso, os grandes beneficiados da
reforma saõ o justamente os maiores privilegiados do paíás: banqueiros, rentistas,
especuladores, ou seja, o capital financeiro.
A Capitalizaçaõ o eá um modelo oposto ao da seguridade social. Quebra sua
espinha dorsal. O sistema atual eá um sistema de solidariedade entre geraçoõ es (no
ano passado, o INSS arrecadou 391 bilhoõ es de reais) e por isto eá essencial aà
distribuiçaõ o de renda no nono paíás mais desigual do mundo e a proposta eá
desmontaá -lo. Na capitalizaçaõ o, cada trabalhador eá responsaá vel por poupar para a
proá pria prevideê ncia, ele tem uma conta individual e vai capitalizaá -la a vida
inteira. Ele se aposenta com o que eá recolhido numa espeá cie de poupança
individual num fundo de pensaõ o privado. Se um empregado naõ o consegue
capitalizar o míánimo (haá muitos trabalhadores que pensam longos períáodos
desempregados ou na informalidade que eá muito alta) para ter depois um
benefíácio tambeá m míánimo eá um problema dele: ele se aposenta com o que
conseguir guardar e sabemos que a regra para a grande maioria naõ o eá sobrar,
mas faltar dinheiro ateá porque, por exemplo, para os trabalhadores que passam
longos períáodos desempregados ou na informalidade o montante poupado naõ o eá
suficiente para manter a aposentadoria.
Aleá m do mais se trata de uma Financeirizaçaõ o do sistema: saõ o empresas
que recebem o recurso da contribuiçaõ o e vaõ o aplicar cobrando os custos. Isto eá
entregar as pessoas ao mercado financeiro, porque entrega a gestaõ o das
aposentadorias aos bancos. Aqui se apresenta como oá bvia e necessaá ria a
administraçaõ o dos recursos por bancos privados. Nos paíáses que aprovaram este
sistema, isto gerou lucros bilionaá rios para os administradores e uma massa de
idosos em situaçaõ o de pobreza (60% dos paíáses que adotaram a capitalizaçaõ o jaá
voltaram atraá s). Como fica a situaçaõ o dos que naõ o conseguem arranjar emprego:
agora com a induá stria 4.0 (inteligeê ncia artificial) milhoõ es de empregos vaõ o
acabar. O avanço da pobreza eá previsíável. O tempo de contribuiçaõ o de 40 anos
para a aposentadoria integral eá inalcançaá vel para a maioria. Trabalhadores
pobres e da classe meá dia vaõ o trabalhar mais, contribuir por mais tempo e

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receber menos, o topo da piraê mide social, poreá m, vai continuar com seus
privileá gios, embora o ministro da economia repete sempre de novo que a reforma
eá para combater privileá gios (Cf. caso dos parlamentares e oficiais militares[a
economia com eles representa 1% do que se pretende tirar dos demais
trabalhadores]).
A ideia de fundo eá acabar com a Prevideê ncia Puá blica (mais profundamente
ainda, destruir o modelo de sociedade pactuado em 1988), pois aqui naõ o haá
redistribuiçaõ o, pois o dinheiro que se quer economizar vai sair dos mais pobres.
A reforma eá profundamente injusta, pois retira direitos (Segundo E. Fagnani,
Unicamp, 75% da economia viraá da retirada de direitos de quem ganha ateá dois
salaá rios míánimos, 100 milhoõ es de brasileiros, portanto, retiram renda dos que
poderiam consumir estimulando investimentos e geraçaõ o de empregos) e
dinheiro dos mais pobres. Este eá o receituaá rio mundial do neoliberalismo tomado
como programa de governo. Soá de sonegaçaõ o de pagamento da prevideê ncia por
parte dos ricos saõ o 500 bilhoõ es de reais e o projeto naõ o toca na questaõ o. A Receita
Federal sabe quem saõ o os sonegadores, mas nada faz.
Aleá m disto o paíás abre maõ o de 350 a 400 bilhoõ es por ano com isençoõ es
fiscais. O governo atual naõ o interrompeu estas politicas, mas as aprofundou com
a políática dos cortes naõ o do lucro dos banqueiros, mas das políáticas sociais. Com
as políáticas de ajuste jaá estaá havendo mais desemprego o que significa reduçaõ o
do mercado interno, porque haá muito menos dinheiro nas maõ os de muitas
pessoas. Aleá m de tudo isto jaá foi anunciada a privatizaçaõ o das empresas estatais
que poraá aà disposiçaõ o do governo 70 bilhoõ es a mais para serem transferidos para
os mais ricos. A reforma da prevideê ncia eá apresentada pelo governo como
condiçaõ o necessaá ria para que o Brasil retome o crescimento econoê mico e isto eá
repetido permanentemente na míádia.
O Brasil precisa de uma Reforma Tributaá ria verdadeira que reverta
radicalmente a situaçaõ o atual: hoje 70% dos impostos saõ o cobrados sobre o
consumo e o salaá rio e apenas 30% sobre o patrimoê nio. A urgeê ncia aqui eá
diminuir o peso sobre o consumo da populaçaõ o e aumentar sobre a riqueza e a
renda o que significa que esta reforma pode ser o grande mecanismo para
combater privileá gios. Acabar com a Lei Kandir que isenta de ICMS todas as
exportaçoõ es agríácolas e primaá rias, penalizando o povo e as contas puá blicas nos
estados e municíápios. O presidente e seu ministro da economia estabelecem
como objetivos fundamentais da reforma tributaá ria a simplificaçaõ o dos impostos
e sua reduçaõ o para os grandes empresaá rios.
Vinculado a isto estaá o Congelamento por 20 anos das despesas primaá rias
do governo federal (traduza-se isto para gastos sobretudo em educaçaõ o e sauá de)
(PEC 55 promulgada no governo Temer e naõ o revogada) que praticamente
paralisa as funçoõ es puá blicas no paíás (isto eá a políática de Ajuste Fiscal que
começou no segundo mandato da Dilma (Jaá havia sido votada no governo Temer
a lei da Terceirizaçaõ o. O aumento do setor de serviços se tornou estrutural,
porque a produçaõ o agora opera por fragmentaçaõ o em todas as suas esferas e
compra serviços no mundo inteiro). No entanto, apesar dos cortes enormes, o
deá ficit puá blico continua crescendo afetando fortemente a educaçaõ o, a sauá de, o
programa de moradias, a reforma agraá ria, os programas de apoio aà agricultura
familiar, etc., em contraposiçaõ o radical ao sentido social de nossa constituiçaõ o.
Portanto, trata-se de um projeto de paíás em que naõ o haá lugar para a
inclusaõ o e a justiça social, mas eá voltado a garantir os lucros dos endinheirados

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inclusive tratando todas as esferas sociais como empresas. Tudo tem indicado
que ateá agora o governo golpista naõ o daá sinais de conseguir cumprir as
promessas voltadas a reequilibrar as contas puá blicas e retomar o crescimento
econoê mico. Na realidade, persistem a agonia fiscal e a instabilidade do sistema
produtivo com efeitos dramaá ticos a níável social: sem emprego a desigualdade
aumenta e saõ o os pobres que pagam. Em março de 2019, a concentraçaõ o de renda
atingiu o maior patamar em uma pesquisa feita desde 2012 pela Fundaçaõ o
Getuá lio Vargas e a economia brasileira recuou segundo o IBGE 0,2% no primeiro
trimestre deste ano. Ao menos 63 milhoõ es de consumidores, ou seja, 40% da
populaçaõ o adulta, estaõ o com díávidas atrasadas informa a Serasa Experian, os
preços dos íátens da cesta baá sica subiram ateá 30% nos uá ltimos 12 meses diz o
Dieese, todos os meses o mercado reduz a projeçaõ o de crescimento para este ano,
a arrecadaçaõ o de tributos estaá em queda, o consumo em queda constante, o níável
de investimento em 2018 ficou no mesmo patamar de uma deá cada atraá s.
Nossa induá stria patina, ela que foi a base do avanço de todos os atuais
paíáses desenvolvidos, entre noá s depois de desacelerar em 2018, recuou 2,7% nos
primeiros meses de 2019. O paíás estaá em contramaõ o aà situaçaõ o da induá stria
mundial. O avanço da induá stria mundial foi puxado pelos ramos de maior
intensidade tecnoloá gica que saõ o precisamente os mais atingidos pela crise
brasileira. Estes segmentos saõ o decisivos para a economia “por empregarem maõ o
de obra mais qualificada, pagarem salaá rios maiores e formarem o polo mais
dinaê mico nas aá reas de pesquisa, desenvolvimento e inovaçaõ o...muitos deles
líáderes da atual revoluçaõ o tecnoloá gica que estaá na origem da atual da chamada
induá stria 4.0...(Cf. DRUMMOND C., A indústria em farrapos, in: Carta Capital n.
1060, p. 42).
Em obedieê ncia ao projeto neoliberal, ataca-se a intervençaõ o estatal para
garantia de direitos. A trajetoá ria de nossa economia confirma que, aleá m disto, sua
coordenaçaõ o foi decisiva para a obtençaõ o de taxas elevadas de crescimento. A
tese agora eá que o Estado eá sinoê nimo de falta de eficieê ncia e liberdade. Haá grande
pressaõ o para a reduçaõ o do Estado (daíá a venda de estatais) em articulaçaõ o com os
interesses do grande capital. “Bolsonaro, Paulo Guedes e seus “seguidores”,
dentro e fora do governo, empenham-se na desconstruçaõ o do arcabouço
institucional que sustentou o desenvolvimento do Paíás ao logo de cinco deá cadas”
(Cf. BELLUZZO L.G., Na contramão, de patinete, in: Carta Capital n. 1060, p. 45).
As elites, na realidade, diante do Estado sempre perseguem o mesmo
objetivo: aprisionaá -lo em funçaõ o de tornaá -lo instrumento da acumulaçaõ o do
capital o que significa uma particularizaçaõ o do Estado que conduz tanto a uma
precarizaçaõ o dos direitos quanto a uma ordem juríádica e policial contra os
pobres, os íándios, os afrodescendentes, as mulheres e outros grupos minoritaá rios,
aà perpetuaçaõ o da desigualdade e da pobreza. Perde-se o Estado como meio de
universalizaçaõ o de direitos, de justiça e de igualdade. Os grupos da ultradireita
em manifestaçoõ es por todo o paíás defendem o fechamento do Congresso e do STF
por serem obstaá culos ao governo Bolsonaro. Trata-se de uma espeá cie de
autoritarismo de fundamentaçaõ o religiosa. Neste contexto, o que ainda cativa os
eleitores do atual governo eá o discurso moralista, o apelo aà religiaõ o e aà famíália e a
promessa de reestabelecimento da segurança puá blica.
Justamente aqui se situa a cruzada contra o que se chama de “marxismo
cultural” que se afirma ser a visaõ o de mundo hegemoê nica da intelectualidade
brasileira amplamente difundida na Universidade que eá marcada por forte

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doutrinaçaõ o de esquerda. Reaparece uma tese conhecida desde a ditadura militar
de que na universidade se valoriza em demasia o ensino das humanidades,
sobretudo sociologia e filosofia, que naõ o daõ o retorno financeiro ao Brasil. Diante
das primeiras medidas de corte do orçamento no ministeá rio da educaçaõ o e as
reaçoõ es fortes da sociedade, o ministro estendeu a poda de 30% a todas as
universidades e institutos teá cnicos (mais de 2 bilhoõ es de reais continuam
bloqueados o que significa 29,74% dos recursos previstos para este ano e
tambeá m se confirmou o bloqueio de mais de 2.700 bolsas de mestrado e
doutorado) e anunciou uma reduçaõ o de 2,4 bilhoõ es no Fundeb, o fundo federal
destinado aà s escolas primaá rias que devem, segundo o plano do governo, mudar
radicalmente seu meá todo e seu conteuá do sem doutrinaçaõ o e sexualizaçaõ o
precoce. Houve reaçaõ o forte tambeá m em universidades renomadas no exterior
contra a reduçaõ o dos investimentos no ensino no Brasil (o paíás hoje eá o 13 o maior
produtor de cieê ncia no mundo, 95% da pesquisa se faz nas universidades
federais). O traá gico entre outras coisas eá uma classe dominante incapaz de
compreender que, sobretudo hoje, a educaçaõ o eá simplesmente decisiva para o
desenvolvimento econoê mico e social (basta lembrar que nas universidades
federais 70% dos estudantes possuem renda per capita familiar de ateá 1,5 salario
míánimo) e para preparar as pessoas para a cidadania.
Na realidade, isto se situa dentro de um anti-intelectualismo radical que
marca a visaõ o de mundo do grupo que estaá no poder. A. Alonso fala de uma
“comunidade moral” que elegeu Bolsonaro, “um conjunto de valores de
orientaçaõ o de conduta e interpretaçaõ o da realidade”...que divide o mundo em
coá digos binaá rios_ cidadaõ os de bem e bandidos, eá ticos e corruptos, etc._ capazes
de simplificar a realidade e ativar sentimentos de alta voltagem como medo, oá dio,
afeto, etc. (Cf. ALONSO A., A comunidade moral bolsonarista, in: Democracia em
Risco?, op. cit., p. 52).Esta comunidade tem basicamente treê s pilares: o
nacionalismo beligerante (que teme sobretudo a ameaça comunista, nega as
classes sociais e defende o protagonismo de teá cnicos desligados de partidos), o
moralismo hierarquizador [contra a corrupçaõ o e a degradaçaõ o dos costumes]e o
antielitismo[divide o paíás entre uma elite social esnobe e intelectualizada e a
classe meá dia sem sofisticaçaõ o e verniz cultural].
Tudo isto eá vinculado ao que Adorno chamou de “síándrome fascista” cuja
atitude determinante eá o oá dio segregativo. Dunker exemplifica isto no caso
brasileiro: “Aqui, predomina a identificaçaõ o de massa e uma espeá cie de reaçaõ o
hipnoá tica de oá dio que age por contaminaçaõ o. Por exemplo, se o PT tem casos de
corrupçaõ o, as pessoas que simpatizam com ele saõ o automaticamente defensoras
da corrupçaõ o, ou, ateá , corruptas elas mesmas. A contiguidade do oá dio passa do
PT para o comunismo, daíá para o esquerdismo, geê nero, ideologia e disso para
qualquer sintagma que contenha a expressaõ o “social”’...(Cf. DUNKER C. I. L., op.
cit., p. 128).
Por outro lado, analistas políáticos apontam para uma novidade no cenaá rio
políático: teria sido instalado em Brasíália o que se tem denominado de
“Parlamentarismo Informal”, ou, semiparlamentarismo com o “Centraõ o”, grupo de
partidos direitistas e fisioloá gicos, em sintonia com o Presidente da Caê mera,
assumindo o protagonismo e aumentando cada vez mais sua proá pria força aà
revelia do Presidente da Repuá blica, enquanto no senado haá quem trabalhe para a
introduçaõ o de um regime parlamentarista formal. Numa palavra, naõ o soá se
projeta uma reestruturaçaõ o do Estado brasileiro, mas concretamente saõ o dados

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passos que de alguma forma jaá efetivam propostas. EÉ importante notar que
Bolsonaro no Legislativo naõ o recorre primeiramente aos Partidos, mas aà s
Bancadas, eliminando, o quanto possíável o jogo partidaá rio. De modo geral, haá
sinais claros de tentativas de atacar militantes políáticos, intelectuais, artistas e a
impressa críática seja atraveá s de processos judiciais, seja por degradaçaõ o moral.
Importante neste contexto eá tambeá m o protagonismo cada vez mais claro
dos Militares. Com mais de 100 representantes nos ministeá rios e autarquias, os
generais constituem a força mais visíável de sustentaçaõ o do presidente no poder.
Eles, na realidade, estaõ o determinando o destino da naçaõ o, embora se nota um
deslocamento de grandes consequeê ncias em sua postura. Tiveram durante muito
tempo um projeto nacionalista o que hoje se revela inteiramente superado. Isto
se revela em sua leitura da situaçaõ o atual do mundo, sobretudo de sua postura
frente aà China. A compra de produtos nacionais, sobretudo de commodities, pela
China para muitos economistas livra o Brasil de um colapso econoê mico
garantindo um superaá vit no comeá rcio entre os paíáses de 30 bilhoõ es de doá lares.
No entanto, as Forças Armadas parecem convencidas de que a China constitui
hoje para o mundo a ameaça que no seá culo passado representou a Uniaõ o
Sovieá tica de modo que a uá nica maneira de evitar o desastre seria a submissaõ o aos
Estados Unidos, uá nica poteê ncia capaz de defender os valores ocidentais e
cristaõ os. Assim, aderindo claramente ao neoliberalismo, naõ o veem problema em
ceder o patrimoê nio mineral, energeá tico e tecnoloá gico a poteê ncias estrangeiras (cf.
casos uraê nio, preá -sal, Embraer, base de Alcaê ntara).
Na relaçaõ o com a natureza poõ e-se no Brasil em primeiro lugar o
desmatamento da regiaõ o amazoê nica que emite 200 milhoõ es de toneladas de
carbono, o que coloca nosso paíás entre os cinco paíáses mais poluidores do mundo.
Num períáodo de 150 dias neste ano, os oá rgaõ os de controle liberaram, para ir de
encontro aos interesses da induá stria do ramo, 199 pesticidas para o uso na
agricultura dos quais 43% estaõ o terminantemente proibidas em diversos paíáses,
sobretudo na Uniaõ o Europeia. O Brasil hoje eá um dos maiores mercados de
agrotoá xicos do planeta (consome 20% da produçaõ o mundial). Por sua vez, o
agronegoá cio desmata impiedosamente, desperdiça e consome boa parte da aá gua
utilizada no paíás, mas contribui juntamente com a exportaçaõ o de minerais para
que o paíás tenha recursos para pagar o deá ficit resultante das transaçoõ es de
mercadorias e serviços com o mundo assim como com os custos da díávida
interna e externa. Daíá a submissaõ o sem problemas ao capital vinculado ao
agronegoá cio e aà mineraçaõ o. Neste contexto, a preocupaçaõ o ecoloá gica emerge
como um obstaá culo fundamental ao crescimento econoê mico.
O resultado desses processos eá um cenaá rio humano de sofrimento, de
incerteza e de insegurança, de violeê ncia contra a pessoa humana e a vida,
desemprego, traá fico de drogas e outros negoá cios ilíácitos, corrupçaõ o, sonegaçaõ o
fiscal, poder discricionaá rio dos meios de comunicaçaõ o social, abuso de poder
políático e econoê mico, crimes ambientais. O que importa eá a abertura a novas
frentes de expansaõ o do capital. Isto levou estruturalmente aà concentraçaõ o da
renda e da riqueza e aà exclusaõ o social, ao aumento das careê ncias na educaçaõ o, na
sauá de, na cultura, na degradaçaõ o ambiental, na falta de moradias (o deá ficit
habitacional do paíás atinge 7 milhoõ es de famíálias concentradas nos grupos com
rendimentos de ateá 1,8 mil reais por meê s).
A exigeê ncia baá sica de nossa realidade social eá uma políática consistente de
distribuiçaõ o de renda. Para sua efetivaçaõ o se faz necessaá rio tomar medidas que

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afetem o patrimoê nio, a renda e os privileá gios da minoria mais rica. EÉ uma
necessidade baá sica aumentar as oportunidades de emprego, educaçaõ o e renda
para a maioria da populaçaõ o. Usar os recursos da Uniaõ o e dos estados
prioritariamente para ampliar os serviços puá blicos de forma eficiente e gratuita
para toda a populaçaõ o. Que o corte de gastos puá blicos defendido com força por
certos segmentos de nossa sociedade seja feito no superaá vit primaá rio e no
pagamento dos juros da díávida puá blica que eá certamente a maior despesa do
Orçamento da Uniaõ o nos uá ltimos dez anos.
Trata-se de uma transfereê ncia de dinheiro do povo para beneficiar os
bancos e uma minoria de aplicadores. Em 2007, o governo federal pagou R$
160,3 bilhoõ es em juros, quatro vezes mais de tudo o que gastou no social e
correspondente a 6, 3% de nosso Produto Interno Bruto (PIB). Nunca se pode
esquecer que pobreza eá um grande obstaá culo ao crescimento econoê mico, mas
sobretudo um desastre humano. Naõ o eá de espantar que numa sociedade assim
estruturada a violeê ncia chegue a explodir e estabelecer aá reas nas cidades
controladas por facçoõ es criminosas vinculadas ao comeá rcio de drogas e se
constituam como instituiçaõ o paralela ao proá prio Estado de Direito.
C) Juíázo EÉ tico
O Papa Francisco descreve com lucidez os efeitos das causas estruturais
deste processo: nessa sociedade com tanta produtividade, haá milhoõ es de pessoas
que morrem de fome no mundo. Quando a especulaçaõ o financeira condiciona o
preço dos alimentos tratando-os simplesmente como mercadorias milhoõ es de
pessoas morrem de fome. Reina a ambiçaõ o desenfreada por dinheiro. O serviço
do Bem Comum fica em segundo plano. Quando o capital se torna um íádolo e
dirige todas as açoõ es humanas arruíána a sociedade, condena o ser humano,
transforma-o em escravo, destroá i a fraternidade inter-humana, poõ e em risco a
casa comum.
Isto acontece quando no centro de um sistema econoê mico estaá o deus
“dinheiro” e naõ o a pessoa humana. Este sistema daá primazia ao mercado em
detrimento da pessoa humana e por isto esta economia mata. Daíá a raiz uá ltima da
crise: eá uma crise antropoloá gica, porque se nega a primazia do ser humano sobre
o capital. O criteá rio que deve reger as políáticas econoê micas eá a promoçaõ o do
desenvolvimento social: elas devem atender aà populaçaõ o especialmente a que eá
mais vulneraá vel. Naõ o tem futuro uma sociedade em que se dissolve a verdadeira
fraternidade. Por isto “hoje precisamos imperiosamente que a políática e a
economia em diaá logo se coloquem decididamente ao serviço da vida,
especialmente da vida humana (LS 189)”.
Para isto, diz o Papa, faz-se necessaá rio superar uma concepçaõ o maá gica do
mercado que acha ser possíável resolver todos os problemas “apenas com o
crescimento do lucro das empresas e dos indivíáduos”. Antes isto torna as pessoas
obcecadas com a maximizaçaõ o dos lucros(o Papa fala de “idolatria do dinheiro”),
insensíáveis e indiferentes ao sofrimento dos pobres, aos efeitos ambientais
destes processos e aà s suas consequeê ncias para a vida humana. Dentro do
esquema do lucro naõ o haá lugar para pensar nos outros e na natureza, naõ o eá
possíável considerar seriamente o valor real das coisas, “o seu significado para as
pessoas e as culturas, os interesses e as necessidades dos pobres”. EÉ urgente para
noá s redefinir aquele conceito que marcou taõ o fortemente a cultura moderna: o
Progresso. “Um desenvolvimento tecnoloá gico e econoê mico, que naõ o deixa um

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mundo melhor e uma qualidade de vida integralmente superior naõ o se pode
considerar progresso” (LS 190)”.
O papa Francisco conclamou os cristaõ os a escutar o clamor por justiça no
mundo atual o que eá uma exigeê ncia que concerne a todos independentemente se
teê m alguma feá religiosa ou naõ o. Isto implica entrar num auteê ntico diaá logo que
procure sanar efetivamente as raíázes profundas e naõ o a apareê ncia dos males do
nosso mundo. Esta tarefa tem dois momentos complementares: 1)A cooperaçaõ o
para resolver as causas estruturais da pobreza e para promover o
desenvolvimento integral dos pobres; 2) Os gestos mais simples e diaá rios de
solidariedade para com as miseá rias muito concretas que encontramos.
Solidariedade aqui significa a gestaçaõ o de um nova mentalidade: poê r em
primeiro plano a comunidade, dar prioridade aà vida de todos frente aà
apropriaçaõ o de bens por parte de alguns, reconhecer a funçaõ o social da
propriedade e o destino universal dos bens como realidades anteriores aà
propriedade privada. A solidariedade significa, assim, a decisaõ o de devolver ao
pobre o que lhe corresponde o que exige igualmente mudanças estruturais e
novas convicçoõ es e atitudes. Naõ o se trata apenas de garantir comida ou um
sustento decoroso, mas prosperidade e civilizaçaõ o em seus muá ltiplos aspectos o
que engloba educaçaõ o, acesso ao cuidados da sauá de e trabalho.
Por isto a urgeê ncia em atacar as causas estruturais da pobreza soá pode
acontecer renunciando aà autonomia absoluta dos mercados e da especulaçaõ o
financeira e enfrentando as causas estruturais da desigualdade jaá que ela
constitui a raiz dos males sociais. Isto permite articular um horizonte que deve
nortear toda a políática econoê mica: a dignidade de cada pessoa humana e o bem
comum saõ o os valores de base e por isto naõ o devem ser reduzidos a apeê ndices
acrescentados de fora para ampliar discursos políáticos que naõ o possuem nem
perspectivas nem programas de um desenvolvimento integral.
Manfredo Arauá jo de Oliveira UFC

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