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As Três Dimensões do Caráter Cristão

Caráter, sua dimensão etimológica


O termo "caráter" procede do grego "charaktēr" e significa literalmente "estampa",
"impressão", "gravação", "sinal", "marca" ou "reprodução exata". O vocábulo português
encontra-se na Almeida Revista e Atualizada (ARA), nos textos de Mt 10.41 e Fp 2.22. Porém
não traduz o original "charaktēr", mas o grego "onoma" (nome) nas duas ocorrências
mateanas e "dokimē" (qualidade de ser aprovado) em Filipenses. A tradução Almeida Revista
e Corrigida (ARC) verte a palavra na perícope de Mateus por "qualidade de profeta" e
"qualidade de justo". A Nova Versão Internacional (NVI), traduz por "porque ele é profeta",
"porque ele é justo". Não há qualquer contradição nas traduções, uma vez que o substantivo
"onoma" permite qualquer uma dessas versões. Em o Novo Testamento, "onoma" significa
"pessoas" em Ap 3.4, "reputação" em Mc 6.14 e possivelmente "caráter" em Mat 6.9. O nome
(onoma) no contexto hebreu corresponde "as qualidades de uma pessoa". Logo, a tradução de
"onoma" refere-se à natureza ou categoria do trabalho realizado pelo discípulo de Cristo, e,
não necessariamente ao "caráter", como virtude moral.
Já o vocábulo "dokimē", traduzido por "caráter" (ARA), "experiência" (ARC) e "aprovado"
(NVI), possui o mesmo sentido de Rm 16.10, isto é, "testado e aprovado". O termo, nesse
contexto, sanciona a qualidade moral e a experiência dos personagens envolvidos – Apeles e
Timóteo foram testados e aprovados como bons obreiros de Cristo. Literalmente o termo
significa "a qualidade de ser aprovado". Essa aprovação somente é ratificada depois que o
"caráter" foi minuciosamente testado. A única ocorrência da palavra "charaktēr" em seu
sentido verbal e imediato encontra-se em Hebreus 1.3. No exórdio epistolar, o literato afirma
que nosso Senhor Jesus Cristo é "a expressa imagem" da pessoa de Deus. Ele é o "charaktēr"
– a "estampa", a "gravação" ou "reprodução exata" – da "hypóstasis"("substância", "essência"
ou "natureza") do próprio Deus.
Um outro termo grego usado para definir o substantivo “caráter” é “ēthos”. Porém, algumas
explicações são necessárias. A ética filosófica costuma distinguir entre ēthos e ethos. A
diferença está na vogal longa “ē” (ē – thos) que, infelizmente, não possui corresponde em
língua portuguesa. Quando os gregos falavam em ethos, com vogal breve, referiam-se à
“ética” (ethiké), em latim, mores, isto é, moral. O termo aludia aos costumes sociais que eram
considerados valores necessários à conduta do cidadão na pólis (cidade).
Todavia, empregavam “ēthos” quando desejam descrever o caráter e o conjunto
psicofisiológico de uma pessoa. Por extensão, “ēthos” se refere às características peculiares
de cada pessoa. Esses traços individuais determinavam as virtudes e os vícios que um cidadão
da pólis era capaz de levar a efeito. Essas peculiaridades são explicitamente resgistradas por
Aristóteles em Ética a Nicômaco. O termo ethos diz respeito aos costumes sociais (At 6.14;
25.16), mas ēthos ao senso de moralidade e à consciência ética de cada pessoa (1 Co 15.33).
Os costumes (ethos) designam os valores éticos ou morais da sociedade, enquanto ēthos às
disposições do caráter diante de tais valores. Contudo, enquanto na filosofia aristotélica a
virtude definia a relação do sujeito com a pólis, no Cristianismo, define, primeiramente, a
relação do homem com Deus e, somente depois com os homens.
Daí as duas principais virtudes do Cristianismo serem a fé e o amor. Como observamos, o
caráter é a "marca" pessoal de uma pessoa. O "sinal" que a distingue dos outros e pela qual o
indivíduo define o seu estilo, a sua maneira de ser, de sentir e de reagir. Também pode ser
definido como o conjunto das qualidades boas ou más de um indivíduo que determina-lhe a
conduta em relação a Deus, a si mesmo e ao próximo. O caráter, por conseguinte, não apenas

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define quem o homem é, mas também descreve o estado moral do homem (Pv 11.17; 12.2;
14.14; 20.27).
Caráter, sua dimensão distintiva
O caráter é distinto do temperamento e da personalidade, embora esteja relacionado a eles. O
temperamento refere-se ao estado de humor e às reações emocionais de uma pessoa – o modo
de ser. A personalidade envolve a emoção, vontade e inteligência de uma pessoa – aquilo que
o indivíduo é. O caráter, influenciado pelo temperamento e personalidade, é o conjunto das
qualidades boas ou más de um indivíduo que determina-lhe a conduta – como a pessoa age.
Observe, porém, que uma das características que compõe o ser humano é imutável, inata
(temperamento), outra é o desenvolvimento geral dos traços personalógicos do sujeito em
determinado momento (personalidade). O caráter, por sua vez, embora intrinsecamente
relacionado ao desenvolvimento da personalidade, forma-se em paralelo a ela. Assim como o
desenvolvimento físico de uma criança nos primeiros anos é paralelo ao desenvolvimento
mental, o caráter é formado à medida que a personalidade vai sendo construída.
“O caráter é a forma mais externa e visível da personalidade”.
Segundo Aristóteles, a disposição moral (caráter) é adquirida ou formada no indivíduo pela
prática. Afirma um antigo provérbio que ao “semear um hábito, o indivíduo colhe um caráter”.
O caráter, segundo a sabedoria dos antigos, é o resultado de um hábito interiorizado,
aprendido através do exercício contínuo das virtudes ou dos vícios. Não deve ser confundido
com as paixões (ira, desejos, ódio), muito menos com as faculdades (razão, emoção e
vontade), pois essas categorias são naturais, próprias do ser. Consequentemente, a experiência
é o palco no qual o caráter age.
De acordo com Schopenhauer essa é uma das razões pela qual o caráter é empírico, pois
somente com a experiência é que se pode chegar ao seu conhecimento, não apenas no que é
nos outros, mas tal qual é em nós mesmos. Afirma o filósofo alemão que “quem praticou
determinado ato, tornará a praticá-lo assim que se apresentem circunstâncias idênticas, tanto
no bem como no mal”.
Assim sendo, a personalidade determina a forma como o indivíduo se ajusta ao ambiente, mas
o caráter o modo como a pessoa age e reage nesse contexto social. Já o temperamento,
segundo a definição histórica dos helênicos, designa o “tempero sanguíneo” do organismo.
Os sábios da Hélade sabiam muito bem que o temperamento é profundamente influenciado
pela composição bioquímica do sangue, pela hereditariedade, constituição física e pelo
sistema nervoso. Por ser biológico, hereditário e internalizado no indivíduo pode ser
controlado, mas jamais mutável. O caráter, no entanto, é o “sinal psíquico” do indivíduo, que
determina-lhe a conduta. Porém, é desenvolvido, educável e mutável. Mediante o
temperamento, a personalidade e o caráter, o indivíduo afirma sua autonomia; passa a ter
consciência de si mesmo como ser humano e também que tipo de pessoa é. Essa descoberta
existencial é um processo contínuo.
Caráter, sua dimensão antropoteológica
Deus criou o homem em duas fases distintas. Na primeira o Eterno forma (hb. asah) a parte
somática, corporal e visível do homem, a partir do “pó da terra” (Gn 2.7a). Esse primeiro
estágio é chamado de criação mediata ou formativa. Na segunda fase Deus cria (hb. bara) o
homem à sua imagem e semelhança (Gn 1.26,27; 2.7b). Essa imagem entende-se por moral e
natural. A natural diz respeito àquilo que o homem é: ser racional (intelecto), emocional e
volitivo (vontade). A moral relaciona-se à constituição do caráter, da moral e da ética. Diz
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respeito à constituição moral do homem, suas disposições intrínsecas que inclui o caráter e a
qualidade deste: justo e santo. Antes da Queda, o homem era perfeito em santidade, retidão e
justiça. Essas qualidades não procediam do próprio homem, mas eram reflexos dos atributos
morais e imanentes do Senhor. Os atributos morais de Deus se refletiam na constituição do
sujeito (Ef 4.24; Lv 20.7; 1 Jo 2.29; 3.2,3). Porém, após a Queda, a natureza moral do homem
foi corrompida pelo pecado (Rm 1.18-32; 3.23). Em lugar da justiça, o seu antagônico; em
vez da santidade o seu oposto; em oposição à virtude o vezo (Gl 5.19-22). Somente a obra
salvífica de nosso Senhor Jesus Cristo, mediante a ministração do Espírito Santo, é capaz de
revestir o homem de uma nova natureza, criada segundo Deus, “em justiça e retidão
procedentes da verdade” (Ef 4.24; 1 Co 1.30).
É o Espírito Santo que transforma o pecador à semelhança da natureza e do caráter de Cristo
(2 Co 3.18; 2 Pe 1.3-7). Portanto, para que você se torne o homem ou a mulher que Deus
deseja é necessário que o seu temperamento, personalidade e caráter se tornem subservientes
dos projetos de Deus para a tua vida. Até que Deus prevaleça sobre nossas vidas (2 Co 2.14),
alguns precisam ser jogados numa cisterna, como José (Gn 37.20); outros, ser alimentado por
corvos, como Elias (1 Rs 17.6); e, alguns, apresentar sua língua aos serafins, como fez Isaías
(Is 6.6,7). O caminho que Deus escolhe para forjar o caráter de seus cooperadores algumas
vezes é íngreme e inóspto. Mas, quando eles saem da fornalha, é perceptível até mesmo para
os pagãos que eles andaram com o quarto Homem na fornalha (Dn 3.25-27). Deus jamais
chamou alguém para uma grande missão sem que esse escolhido passasse por uma profunda
transformação moral.
Se desejas que o Deus de José, Elias e Isaías realize em você o mesmo que fez com eles,
coloque o seu caráter no altar do Espírito; apresente a sua personalidade Àquele que a todos
transforma segundo a imagem de Cristo. Só assim serás a pessoa que Deus deseja que você
seja.
Notas
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2002, p.40-55.
SCHOPENHAUER, Artur. O livre arbítrio. São Paulo: Editora Novo Horizonte, [s.d.] p.223-
4.

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