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Identidades

Brasilio Sallum }r.


Lilia Moritz Schwarcz
Diana Vidal
Afrânio Catani
(orgs.)

edusP
dSP U N IV E R S ID A D E D E SÃ O PA U LO

R e ito r M a rc o A n to n io Z a g o

V ic e - r e it o r V ahan A gopyan

|e d l,sP
E D IT O R A D A U N IV E R S ID A D E D E SÃO PA U LO

D ir e to r -p re s id e n te P lin io M a r t in s F ilh o

C O M IS SÃ O E D IT O R IA L
P r e s id e n t e R u b e n s R ic u p e r o

V ic e - p r e s id e n t e C a rlo s A lb e rto B a rb o sa D a n ta s

A n to n io P e n tea d o M e n d o n ç a

C h e s t e r L u iz G a lv ã o C e s a r

M a r ia A n g e la F a g g in P e r e ir a L e ite

M a y a n a Z a tz

T â n ia T o m é M a r t in s d e C a s t r o

V a lé r ia D e M a r c o

E d it o r a - a s s is t e n t e C a rla F e rn a n d a F o n ta n a
C h e f e T e c . D iv , E d i t o r i a l C r is t ta n e S ilv e s tr in
ID E N T ID A D E CO M O PRO BLEM A

Kwame Anthony Appiah *

Um dia desses, digitei identity social Science no Google, e essa ferramenta


de busca anunciou, toda orgulhosa, haver encontrado “aproximadamente
120 milhões de resultados” em cerca de um quarto de segundo. Acrescentei
a palavra problem e os resultados apontaram ainda 30 milhões de páginas.
Disso se conclui que, atualmente, se fala bastante a respeito de identidade,
uma vez que raça, gênero, orientação sexual, nacionalidade e religião, entre
tantos outros marcadores, são identidades; e parece que, por esses dados do
Google, um quarto se refere à identidade como problema. Esse fato indica
que vem ocorrendo significativa mudança no modo como os anglófonos fa­
lam da vida social. E não só eles; basta digitar no Google “ identidade social”
e se terá 1,25 milhão de páginas; “ identidad social” alcança mais de 8 milhões
de páginas; “ identité sociale” produz cerca de 26,5 milhões.
Há pouco mais de meio século, tais palavras dificilmente eram usadas
do modo como são hoje para tratar dessas características sociais com par­
tilhadas pelas pessoas. Em 1950, a identidade de alguém era aquilo que o
distinguia, não o que o ligava aos outros. Vejamos a diferença: um relatório
policial diria que “a vítima é do sexo masculino, negra, heterossexual, por
tencente a uma determinada associação católica, mas sua identidade pcrnni
nece desconhecida”. Na época, predominava esse significado de Identidade.
Assim, neste texto, teorizarei um pouco acerca da natureza dessas identidades

Kwame Anthony Appiah é professor da Princeton University. Tradução de I.ótlo I.mnrnço d<
Oliveira e revisão técnica de Ana Maria Sailum.
18 Identidades

sociais e sobre como pensamos nelas atualmente. Há três dimensões que


acredito serem importantes.
Primeiramente, as identidades sociais dependem de rótulos para sua
existência - um velho insight proveniente da teoria sociológica rotuladora
de algumas décadas atrás. Isso porque as pessoas reagem aos outros e pen­
sam sobre si mesmas por meio desses rótulos. Vocês pensam nas pessoas
como baianos ou bósnios ou batistas, e então reagem a eles como tais; vocês
pensam em si mesmos como brasileiros e fazem (ou não) certas coisas por­
que é isso que vocês pensam ser. Assim, este primeiro ponto é metafísico: o
nominalismo a respeito de identidades sociais é preferível ao realismo onto-
lógico. Enfatizo que não quero dizer que identidades não sejam reais, o que
quero é dizer algo a respeito de como elas são reais.
O tato de os rótulos não poderem ser eliminados não significa que um
ou mais rótulos não possam estar em circulação ao mesmo tempo, nem im ­
pede que eles sejam substituídos, uns pelos outros, ao longo do tempo. Ou
seja, é preciso sempre haver algum rótulo. Assim, por exemplo, nos Estados
Unidos, African virou negro - person o f color ou African-atnerican. O desdo­
bramento desses muitos rótulos fundamenta por que faz sentido falar deles
como rótulos em mudança no tempo para a mesma identidade. O fato de os
rótulos não poderem ser eliminados não é porque há uma relação biunívoca
entre rótulos e identidades. Podemos ter identidades com muitos rótulos
que vão se transformando com os anos. Em suma, pois, o primeiro ponto é
que as identidades sociais exigem rótulos.
É importante que rótulos de identidades sociais sejam entendidos como
contestáveis em suas fronteiras. Não temos resposta pronta para a pergunta
sobre se o filho de um afro-americano com uma esquimó criada no Alasca
é realmente negro. Há quem negue que um transexual pós-operado tenha
realmente mudado de sexo. Questões desse tipo podem gerar infindáveis
discussões. A aceitação da contestabilidade é outra razão pela qual o aomi-
nalismo parece ser a única opinião sensata a respeito de identidades.
Dizer que os limites são contestáveis não significa que não haja casos
óbvios. Se, diante de toda evidência, considerar-se que Brad Pitt não é um
homem, teremos perdido todo o nosso sentido de semântica: pode haver
respostas claras a perguntas a respeito da atribuição de conceitos com fron­
teiras indistintas. Essa contestabilidade reconhecida, construída por nos­
sa utilização das palavras, é sugestivarnente semelhante à contestabilidade
essencial de muitos conceitos normativos, mostrada anos atrás por Walter
Bryce ( iallic'. I )e fato, a seguncla dimensão de identidade sobre a qual quero

W II, Ciallic, "Hsscntlally Conlested Concepts”, 1956.


Identidade como 1‘iobleniii

chamar a atenção é precisamente que há normas associadas ás identidades


sociais, que denomino: normas de identificação e normas de tratamento As
normas de identificação especificam a maneira como pessoas de dt lei nu
nada identidade devem se comportar; e as normas de tratamento, <num :,<■
deve ou não reagir e atuar sobre pessoas de certa identidade fmeut tonarei
as normas indiferentemente, dizendo o que as pessoas devem ou niio l.i/ei,
ou o que deveríam ou não fazer). Resumo este segundo ponto dizendo que
a identidade é normativa.
Não é necessário que tais “devem” e “deveriam” sejam especilicamonle
morais. Que os homens não deveriam usar saias não é uma verdade moral.
De fato, não penso que haja qualquer verdade nisso. No entanto, vivo em
uma sociedade em que há uma norma nesse sentido: as pessoas nos listados
Unidos não apenas esperam que os homens não usem saias, mas também
esperam que não o façam porque reconhecem que os homens não devem
fazê-lo. A norma cria a regularidade comportamental. Não é essa regular!
dade que cria a expectativa de comportamento. As normas (como os crité­
rios de pertencimento) geralmente não são aceitas por todos, e muitas vezes
há curiosas disputas a respeito delas. Assim, faz parte de nossa compreensão
dessas normas o fato de elas serem contestáveis.
Eis aqui mais alguns exemplos de normas que tenho em mente. Negati
vamente: homens heterossexuais não devem apaixonar-se uns pelos outros;
negros e brancos não devem envergonhar suas respectivas etnias; judeus o
muçulmanos não devem comer carne de porco. Positivamente: os homens
devem abrir as portas para as mulheres; homens homossexuais devem reve •
lar-se publicamente; os negros devem apoiar ações afirmativas; muçulma
nos devem fazer o hadji\ A existência dessas normas não implica dc imedia­
to que as apoiemos. Uma norma de que pessoas de certo tipo devem “ lazer
algo” significa apenas que é amplamente sabido que elas devem “ fazer algo".
A terceira dimensão da identidade deriva da segunda: por existirem nor
mas de identificação, pessoas que, pelos rótulos, se identificam como x agem
às vezes segundo o próprio rótulo. Quero dizer com isso que uma razão pela
qual elas agem como agem é que são motivadas pela ideia “ tenho razão em
‘fazer algo’ porque sou um x”.
Este último ponto nos instiga a encarar as identidades como essem ml
mente subjetivas, uma vez que a importância delas advém do papel que do
sempenham nos pensamentos e atos de seus portadores. Defendo, pois, um
modo de ver as identidades como nominais, normativas e subjetivas, traços

Mulçumano que fez peregrinação a Meca (N. R.).


20 hlatliihtilcs

que explicam por que hoje em dia costumamos nos referir a elas como so­
cial mente construídas.
A meu ver, nem tudo que é importante na vida social o é por ser subjeti­
vo desse modo. Escolho as identidades subjetivas por considerar seu papel
crucial em algo muito mais específico: a vida ética.
Para tratar da vida ética, primeiramente observemos quão ampla é
a gama de tipos de pessoas que se ajustam à rubrica geral que estabelecí.
Meu relato responde à questão a que me referi no início deste artigo so­
bre o que são coisas “tais como” raça, gênero, orientação sexual, naciona­
lidade, religião etc. Agora, podemos acrescentar, por exemplo, identidades
de profissionais liberais (advogado, médico, jornalista, filósofo); profissões
(artista, compositor, romancista); filiações, formais ou informais (fã de bei­
sebol, amante de jazz, membro do Partido Conservador, católico, maçom);
e outros rótulos menos consistentes (dândi, conservador, cosmopolita). Em
cada um desses casos, há rótulos, normas e identificações subjetivas.
Se isso é que são identidades, a mim parece tolo querer ser a favor ou
contra elas. Apenas temos de lidar com elas. Para tanto, cabe perguntar: qual
é a extensão do papel desempenhado por essas identidades em nossa vida?
Para responder a essa pergunta, não partirei da vida social propriamente
dita, mas daquilo, como disse, que denomino “vida ética” dos indivíduos. E,
por ética, aqui me refiro ao sentido dado por Aristóteles em Ética a Nicôma-
co: de reflexão sobre o que faz a vida humana ir bem, o que faz uma pessoa
ter eudaimonia. Palavra de Aristóteles que, como agora sabemos, melhor se
traduz não como “felicidade", mas como “florescência”. Ética, nesse sentido,
possui importantes ligações com moralidade, conforme acepção de Ronald
Dworkin. Ética, diz ele, “abrange convicções a respeito de que tipo de vida
é bom ou ruim, e moralidade abrange princípios a respeito de como uma
pessoa deve tratar as outras pessoas”3.
Cada um de nós tem uma vida para ser vivida. Encaramos muitas exi­
gências morais, mas estas nos oferecem variadas opções. Não devemos ser
descorteses ou cruéis, por exemplo, mas podemos viver de diversas manei­
ras evitando tais vícios. Também enfrentamos pressões de circunstâncias
históricas e de dons físicos e mentais: nasci na família errada para ser o rei
da Suécia e tenho o corpo errado para a maternidade; sou desajeitado de­
mais para ter êxito como jogador profissional de basquete e sou também
insuficientemente musical para ser um concertista de piano. Mas ainda que
uma pessoa leve em conta esses limites morais, históricos, físicos e mentais,

3. R. Dworkin, Sovereigit Virtuc, 2000, p .185, nota 1. Observe-se que a definição de Dworkin admite
que o ético pode incluir o moral Rode ser melhor levar uma vida na qual você trate os outros
como dcvcn.im ser IraItulos.
lilnillilihli' i mui t /'i.t/i/i niii

ela poderá dar a largada em sua vida com imiilas po.v,ibllld.idr'i I Ia munir
ras opções, muitos momentos de escolha, grandes e |mh|iumi«>s, iiii i m ril111
ção de uma vida. E um liberal íilosófico (que não é o mesmo que um llbei al
econômico) acredita que, no fim das contas, essas est olhas pn lein em a pes
soa de cuja vida se trata.
Há aqui duas idéias importantes e distintas. Uma delas é loiisliluliva
Cada vida possui aquilo que poderiamos, segundo Herdei, i ham.u dr uma
.......

medida*. Esses são os padrões pelos quais se decidirá se ela é mais ou menos
bem-sucedida. A medida da minha vida, por exemplo, depende consiiluli
vamente do quão bom é meu trabalho filosófico, porque me compronieli a
ser um filósofo. Isso será verdade para a maioria de nós, acadêmicos, uo que
.

concerne a nosso campo de estudos. Porém, é possível que alguém dê uma


contribuição filosófica importante acidentalmente - como fez, por exemplo,
. .

Kenneth Arrow. O teorema de Arrow é um acréscimo à sua medida de êxito


pelo fato de ele ser economista de profissão4
5; fosse primordialmente um ma
...

temático, pouco teria esse teorema acrescentado à sua vida, por ser, do pou
to de vista matemático, bastante desinteressante; e o que nele é de interesse
matemático já era conhecido de Condorcet6.

Assim, o primeiro ponto fundamental é que cada um de nós tem um


papel no estabelecimento de nossa própria medida. É um papel: algumas
coisas são um acréscimo ao êxito de qualquer vida em que ocorram, sejam
quais forem as escolhas e os projetos que os agentes possam ter. Mas isso
significa que, em geral, cada um tem uma medida diferente de outra pessoa.
O segundo ponto é que minha vida é um trabalho meu, desde que eu dê
aos outros o devido crédito. Sem dúvida, todos nós poderiamos construir
vidas melhores, mas isso não justifica que se imponha uma vida melhor a
nós. Amigos atenciosos, sábios bondosos e parentes aflitos têm o direito de
nos oferecer ajuda e conselhos sobre como proceder. Devem, porém, ser
.■

conselhos, e não coerção. E, assim como a coerção privada será um erro nes­
sas circunstâncias, será um erro que governos, interessados na perfeição dc
seus cidadãos, empreendam essa coerção.
Não há dúvida de que esses dois pontos estão ligados. Que eu determino
■ W ../1W ' "•rvj---.,

minha medida de vários modos significa que estou muitas vezes mais bem

4. Refere-sc a Johaim Gottfried von Herder (1744-1803), filósofo, teólogo e poeta alemão, precursor
do romantismo germânico (N. R.).
>. Trata-se do teorema da impossibilidade de Arrow, que lhe valeu o Prêmio Nobel de Economia de
1972. Grossa modo, diz que a soma das racionalidades individuais não produz uma racionalidade
coletiva (N. R.).
m

6. Marie-Jean-Antoine-Nicolas de Caritat, marquês de Condorcet (1743-1794), matemático e filósofo


francês (N. R.).
Llnilidihlrs

situado |»ai a saber como clirigir minha própria vida. Mas isso éum fato con­
tingente, importante, é verdade, mas ainda assim contingente. Mesmo que
você conheça o bastante sobre minha medida para fazer um juízo quanto ao
que devo fazer, seu papel é aconselhar-me, não tomar a decisão por mim.
Assim, minha individualidade não se produz em um vácuo, antes é molda­
da pelas formas sociais disponíveis, e, evidentemente, por nossas interações
com os outros.
O terceiro capítulo de On Liberty [Sobre a Liberdade] (“Sobre a Indivi­
dualidade como um dos Elementos do Bem-estar” ) é a formulação inglesa
clássica dessa noção de individualidade7. Porém, como John Stuart Mill ali
reconheceu com franqueza, seu próprio pensamento a respeito desses te­
rnas foi profundamente moldado por um ensaio de Wilhelm von Humboldt,
escrito nos anos de 1790, no livro que hoje conhecemos como The Limits
of State Action [Os Limites da Ação do Estado]. No capítulo “Do Homem
Individual e dos Fins Supremos de Sua Existência”, Humboldt escreveu que
é “mediante uma união [...], baseada nas vontades e capacidades de seus
membros, que cada um se habilita a participar dos ricos recursos coletivos
dos outros”8. Os liberais compreendem que temos necessidade de outras
pessoas: o respeito à individualidade não é aprovação do individualismo.
Pode-se objetar que eu esteja compreendendo aqui muitas coisas como
identidade, até mesmo algumas que normalmente não pensamos como
identidades sociais. Creio, porém, que o fato de fazê-lo é, na verdade, uma
vantagem, por serem essas outras identidades tão importantes em nossa
vida ética quanto as identidades sociais usuais. E considero relevante colo­
car as identidades sociais sobre as quais norrnalmente falamos no contexto
de todas essas outras porque elas compartilham, do ponto de vista ético, do
traço comum que as pessoas utilizam ao buscar a eudaimonia, desenvolven­
do uma concepção de o que é, para sua vida, ir bem e tentando, então, viver
de acordo com essa concepção.
Essas duas contribuições são distintas. Uma identidade pode vir com
metas constitutivas, cuja adoção por nós estabelece padrões para o êxito ou
fracasso de nossos projetos. Assim acontece, por exemplo, com a identidade
“romancista”. Ela proporciona modos de definir uma concepção de o que
é, para minha vida, ir bem, e assim ajuda a estabelecer minha medida. Mas
tuna identidade pode também ajudar-me a viver de acordo com uma con-
cepçáo, proporcionando-me os meios para levá-la a cabo. As identidades

| S, MUI, <)n1 ilwrty,


VV vou I íuinliolill, lhe I irnth of State Action, 1969. p. 9. Esse ensaio de Humboldt, embora escrito
enlie 1/9 111 1/9.’ , m'i foi publicado pela primeira ve/, de forma completa em 1852. Ver “ Introdução”
p vil.
:'T

::

Identidade coma ProNeintí *^

religiosas, por exemplo, realizam isso de maneira óbvia: ajudam a eonsl ilmr
comunidades de pessoas que podem apoiar-se umas às outras na busi .1 de
metas que compartilham como membros daquela religião.
Por que dispomos de tão diversa esfera de identidades e relações soe lais?
r*
-li Uma resposta etiológica tratará de nossa evolução como espécie social e do
fato de sermos evolucionariamente destinados ao jogo social de construir
a coalizão na busca de alimento, parceiros e proteção. Por isso é que temos
solidariedades e antagonismos do tipo in-group e out-group, que os psicó
logos sociais têm explorado nos últimos cinquenta anos. A essa resposta
psicológico-evolucionária, podemos acrescentar uma resposta econômica
A diferenciação da economia moderna criou a necessidade de as pessoas
associarem aptidões e treinamentos de novas maneiras. Outrora, havia ape
nas alguns poucos tipos de trabalho: governante, sacerdote, bardo, escriba,
agricultor, soldado, caçador, ferreiro. Hoje, o United States Department of
Labor relaciona milhares de profissões em seu manual de ocupações0. I lá
muitas respostas objetivas semelhantes, relativas às origens da diversidade
da identidade.
No entanto, há também uma resposta ética - não do ponto de vista do
Sinneswelt (mundo dos sentidos), mas do Verstandeswelt (mundo do enten­
dimento), para empregar a terminologia kantiana. Porque a psicologia que
a evolução produziu em nós indica que existe um modo pelo qual o mundo
se mostra por dentro, do ponto de vista de uma criatura com aquela psieo
logia. F., dessa perspectiva, há outra resposta igualmente persuasiva: usamos
identidades para construir nossa vida; nós a construímos como homens e
como mulheres, como ganenses e como brasileiros, como cristãos e como
judeus; nós a construímos como filósofos e como romancistas, como pais
e como filhas. As identidades são um recurso essencial nesse processo A
moralidade - que, como já disse, significa para mim a forma como (levemos
tratar uns aos outros - é também parte do andaime sobre o qual erguemos
essa construção. Há então diversos projetos que empreendemos vohmta
riamente, tais como aprender a ser um cozinheiro realmente bom, ou jogar
bridge, ou tocar violão ou, de maneira mais sublime, propor-se a escrever
grandes obras de ficção.
As identidades são tão variadas e extensas porque, no mundo moderno, as
pessoas precisam de um enorme rol de ferramentas para construir sua vida A
gama suficiente de opções para cada um de nós não é a mesma para Iodos nós
De fato, as pessoas estão construindo novas identidades o tempo todo:gtiy lem
basicamente uns quarenta anos; punk é mais jovem.

9. United States Department of Labor, Occupational Outlook Handbook, 201a-


'I lili tlllilthlc t

Sustento que .is identidades cstiio entre as mais importantes ferramentas


soí inlmeule mantidas e transmitidas para construir uma vida. A construção
de tuna vida lem muitas dimensões. Algumas são profundamente pessoais,
moldando os atos exclusivamente nossos ou em parceria com nossos ínti­
mos, mas cpistcmicamenle cerradas para desconhecidos. São privadas no
sentido de que não são da conta de ninguém mais. A maioria de nós man­
tém pelo menos um relacionamento sério. Como esse relacionamento vai
é da conta de cada um, da conta do parceiro ou parceira, talvez da família
e dos amigos. Fora isso, ninguém tem direito à informação sobre o anda­
mento dessa relação. Outras notícias são intrinsecamente públicas; elas são
conhecidas de todos, e somos conhecidos por elas. Não há razão para ser um
democrata, a menos que você deseje ser computado como tal, agir como um
democrata, ser visitado por colegas democratas, contestar as reivindicações
de republicanos e opor-se a seus votos. Portanto, as identidades diferem à
medida que se comprometem mais no âmbito privado ou público.
Há pelo menos duas dimensões importantes da identidade, que exibem
um espectro público-privado. Uma delas, como já vimos, é epistêmica.
Nesse caso, a privacidade é somente uma questão da regulação do conhe­
cimento. Minha identidade homossexual pode ser essencial para minha
vida. Mas, se estou no armário, estou protegendo essa identidade - tanto
quanto sua importância - da maioria das outras pessoas; é uma questão
de grau, porque o círculo de conhecimento pode ser maior ou menor. Po­
rém, mesmo que eu esteja fora do armário, o modo como expresso minha
sexualidade não é da conta nem do Estado nem da sociedade. Posso ser
solicitado a, sensatamente, manter dissimulado meu comportamento se­
xual, porque os atos sexuais de outros podem nos atingir de tal modo que
temos o direito de não nos deixar expor sem consentimento. E, decerto, o
que faço em privacidade epistêmica pode estar sujeito à regulamentação
por outras razões. Porém, ser um assunto privado significa que tem a ver
com coisas da minha vida, a cujo respeito - pelo menos enquanto forem
mantidas fora da visão pública - cabe a mim decidir. Podemos dizer que
são assuntos praticamente privados.
A maioria das pessoas considera que as identidades religiosas devem ser
epistemicamente públicas, mas praticamente privadas. Os outros podem ter
conhecimento a respeito, mas não têm o direito de determinar como deve­
mos agir sobre elas. Os sadomasoquistas, creio, tendem a manter suas práti­
cas sexuais epistemicamente privadas e julgam que elas devam ser também
praticamente privadas. Uma vez que a regulamentação exige conhecimento,
desde que uma dimensão da identidade seja, dc forma legítima, pralicamen
te pública, isso exige que se aceite que ela não seja epistemicamente privada.
Identidade como Problema

Recentemente, os filósofos muito têm escrito sobre como as identidades


;

sociais figuram de modo público, prática e epistemicamente, o que, cm Im


guagem hegeliana, é rotulado como “política do reconhecimento’’ Obvia
mente, as reações de outras pessoas têm papel preponderante na moldagcm

do sentimento de alguém sobre quem ele próprio é. Como assinala ( M1.11 lc,
Taylor, esse processo começa na vida privada: “No nível íntimo, podemos
-
.

ver quanto uma identidade original necessita e é vulnerável ao icc unhe


cimento oferecido ou negado por outras pessoas importantes.” ( )s i ria* lona
mentos, diz ele, “são cruciais porque são provas importantes da identidade
gerada internamente”*0. Mas esse é apenas o começo. Nossas identidades
não dependem apenas de interações na vida íntima. A lei, a escola, a Igreja, o
»>-

trabalho c muitas outras instituições também nos moldam. Mais adiante, re


tomarei a questão de por que grande parte de nossa identidade é essoiu ia! ás
interações públicas com pessoas para além de nossos íntimos, e então msis
• • • • • • <*■ ■ *•• *

tirei em que há aspectos de nossa identidade que também são mais privados
Antes, porém, quero assinalar que um modo essencial pelo qual nossas
identidades moldam nossa experiência subjetiva é por meio da psicologia
da estima, por meio dos sentimentos gerados em nós pelo respeito t* despir
zo dos outros. Tanto o respeito quanto o desprezo podem ocorrer mediados
ou não pela identidade. Você pode desprezar-me porque fui desonesto Isso
não diz respeito à identidade: seu respeito diminuído por mim não é um
respeito diminuído mediado pela identidade de um desonesto. Você está
reagindo ao fato de ter havido desonestidade, e não a uma suposta idenhda
de desonesta. De outro lado, se você me olha com desprezo por eu ser um ci
gano, julgando-me pelo fato de algum outro cigano ter sido desonesto com
você, então a identidade tem papel indiscutível para explicar sua reação a
mim. Minha atitude em relação a você, que, até onde eu sei, não foi desunes
to com ninguém, é mediada pelo fato de você compartilhar da identidade
com alguém desonesto. Agora, é certo que, se sou cigano e vejo outro cigano
..

sendo desonesto, posso sentir-me envergonhado. Assim, algumas dc nossas


atitudes negativas relativamente a nós mesmos também são mediadas pela
identidade.
O mesmo se dá com as atitudes positivas, como o respeito. Não só posso
sentir-me enaltecido privadamente pelos feitos de outros dc minha iden
tidade - orgulhar-me de seus feitos - como posso também experimentar
estima social por isso. (Essa estima nem sempre é positiva, como quando
alguém diz: “Realmente admiro o modo como vocês, judeus, mantém se
unidos” )

10. C. Taylor, Multiculturalism, 1994, p. 36; A. Honneth, The Struggle for Recognition, 199*5.
26 Identidades

Infeiizmente, vivemos em sociedades que têm tratado muitas pessoas


com desprezo por serem, digamos, mulheres, homossexuais, negros, judeus.
Como nossas identidades são moldadas “dialogicamente”, segundo Taylor,
as pessoas com essas características as têm considerado essenciais - o mais
das vezes negativamente essenciais - às suas identidades. A política do re­
conhecimento começa quando se percebe que isso é errado. Uma forma
de remediar, buscada pelos detentores dessas identidades, implica ver es­
sas identidades coletivas não como fontes de limitação e insulto, mas como
partes valiosas de quem eles são. E, uma vez que uma ética moderna da
autenticidade (que provém aproximadamente do romantismo) requer que
exprimamos quem somos essencialmente, os detentores dessas identidades
avançam ao exigir que a sociedade os reconheça como mulheres, homosse­
xuais, negros, católicos e façam o trabalho cultural necessário para resistir
aos estereótipos, desafiar os insultos e eliminar as restrições.
Mas vale insistir que o dano causado por práticas anteriores de exclusão
não foi simplesmente a negação da estima e a corrosão do autorrespeito.
Todas as velhas formas de desprezo levam não só à negação do respeito, mas
mantêm as pessoas fora de empregos, educação, dinheiro e poder.
Todo tipo de coisa tem sido sugerido para reverter essa história de des­
prezo: leis contra discursos de ódio ou assédio verbal no local de trabalho,
ensino público em prol da tolerância, louvor público dos heróis dos opri­
midos. São formas de política pública de reconhecimento. Mas é impor­
tante reconhecer que, enquanto membros de grupos que experimentaram
exclusão ou desprezo históricos realmente precisam de novas práticas so­
ciais para florescerem, o que eles buscam é também uma redistribuição
de educação, dinheiro e poder. Quando os negros e as mulheres dos Es­
tados Unidos lutaram pelo voto, frequentemente o fizeram como negros
e como mulheres. Não estavam, porém, exigindo reconhecimento de sua
identidade, exigiam, sim, o direito ao voto. Do mesmo modo, quando os
movimentos de gays e lésbicas dos Estados Unidos lutam por reconheci­
mento, eles o fazem exigindo direitos - como de servir abertamente ao
Exército ou de casar-se - que seriam bem-vindos, ainda que viessem sem
reconhecimento. Nem todas as reivindicações políticas feitas em nome da
identidade de certo grupo são predominantemente reivindicações de re­
conhecimento.
Na vida social, também, é igualmente importante não avançar demais na
luta por uma política de reconhecimento. Se este acarreta proclamar a iden­
tidade de alguém na vida social, então o desenvolvimento de normas enér­
gicas de identificação pode tornar-se não libertador, mas opressivo. I lá um
tipo de política de identidade que não só permite, mas também exige que eu
Identidade úuiih /*/. '/>/* m.i

trate a cor de minha pele ou minha sexualidade como essenciais |>ui .t minha
vida social. Muito embora minha “raça” ou minha sexualidade possam sei
elementos da minha individualidade, alguém que insista em que eu oi gaiu/.e
minha vida em torno desses elementos não é um defensor da individualidu
de. Insisto na privacidade prática de minha identidade: na necessidade de
deixar para mim sua expressão.
O envolvimento da identidade na política formal significa que multas
identidades são tanto epistêmica quanto praticamente públicas. As pessoas
querem que suas identidades sejam conhecidas - em parte graças ás demandas
de autenticidade -> mas também esperam que o exercício de suas identidades
tenha lugar no contexto de estranhos, que reagem a elas (as identidades pns
tas na política formal) em virtude de suas próprias identidades.
Esse tipo de política é realmente uma característica profunda da vida
democrática moderna. Identificamo-nos com pessoas e partidos por varia
das razões psicológicas, entre as quais identificações do tipo pré-político, e,
por isso, estamos mais inclinados a apoiar todas as políticas de tal pessoa
ou partido. Em parte, isso ocorre porque pessoas sensatas têm coisas mais
importantes a fazer do que descobrir, por si mesmas, qual deve ser o equi­
líbrio adequado entre, digamos, imposto de consumo e imposto de renda,
mas também porque pessoas suficientemente semelhantes a você podem
realmente escolher políticas, quando de fato pensam sobre elas, como as
que você escolhería se tivesse tempo para isso. Aqui, pois, como em muitos
lugares na vida, é sensato que se pratique uma divisão cognitiva do traha
lho. Isso costumava funcionar mediante a criação de identidades polítu as
esquerda, direita, liberal ou Liberal, democrata, republicano, denim rata
cristão, socialista e marxista. Porém, em muitas das democracias rn as, as
filiações a partidos são menos vigorosas do que costumavam ser, e outras
identidades vêm ganhando mais peso político. Penso que isso se dá poique
muitas das filiações partidárias mais antigas tinham por base a classe sm ial,
e a definição de classe relacionada com o trabalho tem perdido iniporláin ia
para a identificação das pessoas. De modo bem profundo, um novo tipo de
política de identidade, baseada na preponderância cada vez menor d.w lasse
social - sua importância decrescente como identificação subjetiva , lem
aumentado no Ocidente a partir da década de 1960.
Na maior parte do restante do mundo, as identidades políticas mais impui
tantes jamais se basearam na classe social. Eram étnicas, etnorrcgionais, irli
giosas, baseadas em castas ou em uma identidade nacional. A ma inn.ilidade
também foi extremamente importante no Ocidente nos últimos dois s<’s tilns,
assim como a religião, especialmente em países como Grã-Brctan! ia, A lei 11.111lia
Suíça e Estados Unidos, que possuem significativo número lanlo de <alolh os
28 Identidades

como de protestantes, e grande ramificação destes últimos. Raça também tem


sido uma preocupação política fundamental das sociedades europeias e de suas
descendentes - na Australásia, na África do Sul e no Novo Mundo.
Tais identidades engajam-se na política por duas razões. Uma delas é que
suas normas constitutivas denotam que pessoas com determinada identida­
de compartilham objetivos que o Estado pode promover ou retardar. Não
surpreende que mulheres atuem juntas na vida política, uma vez que suas
opções são moldadas pelo sexismo das instituições públicas; ou que pessoas
negras atuem juntas em sociedades marcadas pelo racismo antinegros; ou
que homossexuais assim o façam em sociedades permeadas pela homofobia.
A conexão entre identidade e política constitui-se, nesse caso, de normas de
idenliíicaçâo; é uma conexão interna, pode-se dizer.
Mas as pessoas também atuam com base em identidades por razões mais
puramente estratégicas. A política democrática requer a formação de coali­
zões cm larga escala por meio de sociedades de pessoas que nem sequer se
conhecem. Quando menos, tais coalizões são necessárias na busca de uma
gama de recursos, tanto simbólicos quanto materiais, que os Estados mo­
dernos distribuem. Essa função estratégica é de particular importância em
contextos de escassez, nos quais trabalhar com alguns e contra outros é o
único meio de obter recursos. Não foi de surpreender que identidades étni­
cas e religiosas ganhassem proeminência nos Bálcãs assim que a economia
iugoslava entrou em colapso. Tais conexões entre identidade e política são,
em sentido obviamente semelhante, externas: a identidade estaria ali à espe­
ra de ser mobilizada na perseguição de metas, as quais não têm muito a ver
com a particularidade da identidade ou com as suas normas.
As identidades etnorraciais nem sempre são definidas por normas de
comportamento características. São essencialmente contrastantes - e esse
é um dos importantes achados da antropologia moderna -, exigem urna
fronteira com outras etnicidades para que se estabeleça sua importância.
Acima de tudo, ser iorubá, digamos, é não ser ibo ou hauçá; ser hútu é não
ser tútsi; ser basco é não ser francês nem espanhol. Claro que há formas dis­
tintas de comportamento associadas à etnicidade: culinária, modos de falar
e vestir e até mesmo filiações religiosas. Porém, comuniente se entende que
o abandono de qualquer uma delas não acarreta o abandono da etnicidade
de alguém. Nos Estados Unidos, o judaísmo é uma identidade etnorracial
porque podem ser abandonadas a lei e a tradição judaicas sem que se perca
aquela identidade; e hispânico é uma identidade etnorracial porque ela se
mantém mesmo que não se fale espanhol.
Assim, embora haja normas específicas de identificação, aquilo que os
membros de um grupo etnorracial devem fazer - e que pode ser especifica-
Identidade como ProPleiini

do em termos de padrões de comportamento a que todos, em princípio, po


dem se conformar - é entendido por muitos como não essencial Denomino
essas normas de normas comportamentais gerais. Porém, de todo aquele
que se identifica como membro de um grupo etnorracial - que leva sua par
ticipação a sério como razões fundamentais para sentir e reagir - espera-se
que se conforme às normas de solidariedade. Ao contrário do que se dá com
as normas comportamentais gerais, sem solidariedade não há etnicidade.
Com o que se parecem as normas de solidariedade? Em primeiro lugar,
elas têm determinada forma em que figura algum rótulo do grupo. Assim,
normas de solidariedade para a identidade x são normas que dizem o que
você deveria fazer com, fazer para e fazer por outros xs. Para que sejam de
solidariedade, aquilo que você faz tem como objetivo ou promover os in­
teresses dos xs com quem, para quem e por quem você atua ou proteger o
grupo em geral, muitas vezes protegendo seu bom nome. Assim, as normas
de solidariedade típicas para grupos etnorraciais exigem preferência pelos
companheiros xs, que exigem ação com outros xs para garantir os interesses
dos xs, além de que se evitem comportamentos que desmereçam os xs aos
olhos dos outros.
Devo dizer que uma identidade está mobilizada para a solidariedade em
uma sociedade quando suas normas de identidade incluem normas de so ­
lidariedade amplamente aprovadas desse tipo. As identidades etnorraciais
são sempre mobilizadas para a solidariedade, não importa que outra coisa
elas sejam ou façam. À medida que uma identidade etnorracial vai deixando
de ser claramente governada por normas de solidariedade, ela deixa de ser
uma identidade etnorracial importante. E isso faz que etnicidade e raça se­
jam recursos cujos portadores podem utilizá-los para a construção da coali
zão estratégica da vida política.
Na maioria das sociedades, grande parte das identidades religiosas tam­
bém se mobiliza para a solidariedade. Isso porque a associação religiosa
quase sempre requer mais do que crença. Claro que se pode ter crenças re­
ligiosas sem ter uma identidade religiosa. Essa é a situação de muitos ateus
metafísicos do Ocidente moderno. Mas uma identidade religiosa, ainda que
seus critérios de filiação sejam puramente de credo, terá normas de compor­
tamento associadas a ela, e estas, em geral, incluirão normas de solidarieda­
de. Não obstante, o papel das identidades religiosas na vida social e política
nem sempre é substancial: as normas da solidariedade religiosa podem ser
bastante frágeis. Assim, a meu ver, não é um traço constitutivo das identida •
des religiosas sua mobilização para a solidariedade.
Algumas identidades vêm com um programa: o romancista, que mencio
nei anteriormente, vem com algumas coisas a serem feitas. Essa é uma proíis
3 fJ Identidades

são exemplar. As identidades profissionais - que são essencialmente profissões


institucionalizadas - vêm com estruturas de carreira que indicam um padrão
a ser atingido no decorrer de toda uma vida. Monitor, assistente, professor,
primeiros artigos, talvez um ou dois livros, professor associado, estabilidade
etc. Muitas vezes, há ritos fundamentais de passagem - conseguir estabilidade,
tornar-se sócio, fazer exame da ordem ou do conselho profissional, obter a
primeira estrela em seu uniforme - que deixam marcas no caminho. Porém,
embora essas identidades programáticas sejam atualmente - como sugerem
os exemplos dados - um elemento importante da vida ética das pessoas, não
é frequente que-se mobilizem para a solidariedade. Resulta daí que muitas
vezes também não é importante que os portadores dessas identidades sejam
apreciados por outros, mediante atos de reconhecimento, fora dos contextos
em que orientam a vida prática. Claro que os soldados uniformizados e em
serviço reconhecem e apreciam suas identidades e seus postos militares - essa
é uma das razões para usarem uniformes -, mas, embora tenhamos meios de
dizer quem está no Exército (pelo corte do cabelo ou postura), não se espera
que os civis tratemos os militares de modo diferente de qualquer outra pessoa.
Analogamente, embora seja agradável ser reconhecido por nossa identidade
profissional - como romancista, filósofo ou poeta, digamos -, o prazer pro­
vém da ligação existente entre esse reconhecimento e o êxito ou a reputação
no desempenho profissional. O reconhecimento é importante, na maior parte
das vezes, para identidades que se mobilizam para a solidariedade. É fácil per­
ceber por quê. Se uma identidade se mobiliza para a solidariedade, será então
necessário que seu companheiro x seja capaz de dirigir-se a você como x. Ao
mesmo tempo, os não xs terão opinião a respeito dos xs e pensarão, sentirão e
reagirão a eles de diferentes maneiras.
Essa é uma razão por que identidades homólogas em sociedades diferen­
tes podem deslocar-se ao longo do eixo público-privado. “Intelectual”, nos
Estados Unidos, pode ser qualificado pelo adjetivo “público”, exatamente
porque, nesse país, ela não é uma identidade mobilizada para a solidarie­
dade. As pessoas, de modo geral, não operam nem reagem umas às outras
como intelectuais; nem os não intelectuais, de modo geral, reconhecem nor­
mas a respeito de como os intelectuais devemos ser tratados. Na França, ao
contrário, intelectual é uma identidade pública mobilizada para a solida­
riedade e reconhecida pelos outros como tal. Ser intelectual é desejar ser
reconhecido como tal. Nos Estados Unidos, os acadêmicos frequentemente
desejam permanecer no armário, o que, como sugere a ética do outing, sem
dúvida nenhuma, é um direito deles.
As identidades sociais, como afirmei no início, são nominais, normativas
e subjetivas. Funcionam mediante rótulos, associados a normas que mol-
Identidade como Problema li

dam tanto as atividades dos portadores dos rótulos como as dos que reagem
a estes. A aplicação dos rótulos e o conteúdo das normas são comumenlc
contestados, embora seja comum também haver exemplares inconlestados
e normas quase universalmente aceitas.
Temos grande quantidade de identidades porque elas são úteis para
a construção da vida, mesmo que o sejam de maneiras diferentes. Algu­
mas ajudam a determinar a medida de nossas vidas: o que representa para
nossas vidas ir bem. Uma patriota norte-arnericana tem uma vida que vai
melhor se o país for melhor, e pior em caso oposto. Essa é sua escolha.
Não é porque ela é não norte-americana - o que pode ter sido determi­
nado pelo nascimento - , mas porque escolheu que fosse assim, uma vez
que ela se identifica como norte-americana. Outras identidades - como
as de profissões e suas primas institucionalizadas, as profissões liberais -
oferecem projetos e metas. Identidades-padrão, as que recebemos de nos­
sas famílias, imputadas ou não, estritamente falando, são essenciais para
a moldagem de nossas escolhas e nossos planos. Nossas identidades por
filiação, estruturadas socialmente e proporcionadas pelas contribuições
conceituais, institucionais e materiais de outros, agregam-se às nossas
identidades- padrão à medida que crescemos.
Nossa construção de vida é tanto privada quanto pública. Algumas iden­
tidades desempenham seu papel principalmente em nossas vidas íntimas,
'»• vhs*'*;

em esferas de privacidade epistêmica e prática, as quais temos o direito de


impedir que os outros conheçam ou que nelas interfiram. Assim se dá com
passatempos: ninguém tem o direito de saber se sou romancista - posso es­
crever anonimamente, se assim o desejar. Ninguém tem o direito de regula
mentar como escrevo meus romances. Porém, ser romancista é parte impor
tante de quem sou; e há coisas que os romancistas deveríam fazer esc rever
romances, mas também mais coisas - e coisas que as pessoas esperam dos
romancistas. E há as identidades públicas. Aquelas para as quais a maioi ia
de nós exige reconhecimento: religião, raça e gênero, por exemplo. Nestas,
atuamos em púbico e esperamos que os outros atuem nas suas e também
reajam às nossas.
Em qual ponto do espectro público-privado uma identidade se em on
tra é algo que, em geral, não está embutido nas identidades. As ideiiiida
des religiosas podem viver em sua maior parte na vida privada, mas podem
mobilizar para a solidariedade em certas ocasiões. Uma identidade i alnlu a
que viveu durante muito tempo na vida privada pode vir a público poi estai
associada a normas -- a respeito do aborto, digamos - que o Estado pode s o
lapar ou manter. Nesse caso, a vida pública da identidade está ligada lutei ua
mente com suas normas. Pode, porém, vir apúblico às vezes por tei um mas
Llentuladcs

<le solidariedade que fazem dela a base natural para a perseguição de metas
que Iodos têm: compartilhamento de dinheiro, poder e estima socialmente
disponível - a conexão com suas normas aqui será externa.
Quão importante é o reconhecimento para uma identidade - quanto
desejamos ser publicamente reconhecidos e estimados sob seu rótulo - de­
pende de quanto consideramos que ela deve ser epistêmica e praticamente
pública, c, frequentemente, isso depende de ter havido histórico de não re­
conhecimento, um passado social em que o desprezo assomava.
No entanto, de que maneira uma identidade figurará em todos esses m o­
dos não está gravado em pedra, evidentemente. As identidades oscilam para
dentro e para fora da visão pública, alteram as próprias normas, empenham-
-se pela solidariedade por algum tempo, depois desistem. Em suma, elas são
históricas e orgânicas. Talvez, por isso, sejam tão variadas. A história de vida
produz diversidade: observemos a gama de organismos e de culturas. Hoje
em dia, estamos preocupados com a extinção de espécies e de culturas. Por
isso, talvez valha a pena lembrar que novas espécies e novas culturas - e n o­
vas identidades - também estão sendo geradas a cada momento.

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