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Rev. do Museu de A rqu eologia e Etnologia, São Paulo, Suplem ento 3: 303-317, 1999.

ETNICIDADE E TRADIÇÕES CERAMISTAS:


ALGUMAS REFLEXÕES A PARTIR DAS ANTIGAS ALDEIAS
BORORO DO MATO GROSSO

Irmhild Wüst*

Introdução As investigações lingüísticas, biológicas e


etnohistóricas, no entanto, mostram que as so­
Uma vez que não existe uma correlação sim­ ciedades nativas do Brasil Central sofreram sig­
plista entre cultura material e grupos étnicos, nificativos deslocamentos territoriais, mudanças
como já foi salientado, entre outros, por Hodder culturais, bem como complexos processos de fu­
(1978, 1982) e Jones (1997), a pesquisa arqueoló­ são e fissão e que se acentuaram em conseqüên­
gica, em áreas nas quais ocorre uma continuida­ cia do contato direto e indireto com a sociedade
de entre grupos etnográficos e o registro arqueo­ nacional (cf., entre outros, Castro e Cunha 1993,
lógico, representa um desafio no estudo de pro­ Cunha 1992, Neves 1991, Verzwijver 1978). Por
cessos que envolvem continuidades, rupturas, sua vez, as pesquisas arqueológicas no Brasil
manutenção ou abandono de tradições e/ou fron­ Central dos últimos 25 anos contribuíram, até
teiras estilísticas. Isto vale sobretudo para o con­ certo ponto, para modificar este quadro distorci­
texto do impacto entre sociedades nativas e os do (cf., Heckenberger 1996, Schmitz et al. 1982;
colonizadores, como é o caso dos Bororo Orien­ Wüst 1983, 1990; Wüst e Carvalho 1996). Toda­
tais do Mato Grosso. via, as abordagens teóricas dos trabalhos pio­
Apesar das inúmeras investigações etnográ­ neiros estavam ainda fortemente calcadas nos
ficas entre sociedades indígenas no Brasil Cen­ conceitos da História Cultural e da subjacente
tral, (cf., entre outros, Nimuendajú 1942, 1946; idéia normativa da cultura. Encontramos, assim,
Maybury-Lewis 1979), são perpetuadas ainda uma na literatura arqueológica desta área ainda uma
série de idéias errôneas a respeito das sociedades freqüente correlação entre fases cerâmicas e so­
pré-coloniais que ocuparam esta área e que são ciedades etnográficas atuais, sem que, todavia,
especialmente apreensíveis na opinião pública, uma continuidade cultural entre o presente e o
em livros didáticos do ensino básico e mesmo em passado seja claramente demostrada (cf., sobre­
alguns círculos arqueológicos (cf. sobretudo tudo, Schmitz et al. 1982).
Meggers 1991,1995; Miller etal. 1992). A raiz des­ Neste artigo serão explorados alguns dos
tas idéias deve ser procurada no interesse de jus­ dados arqueológicos e etnohistóricos das aldei­
tificar a expansão da sociedade brasileira sobre as Bororo do passado para discutir a natureza das
aqueles territórios ainda ocupados por grupos continuidades e descontinuidades culturais no
indígenas e podem ser resumidas da seguinte for­ sudeste do Mato Grosso e as suas implicações
ma: os grupos indígenas atuais do Brasil Central para o debate da etnicidade versus cultura ma­
seriam legítimos representantes dos seus ante­ terial, sobretudo no que tange aos artefatos
passados anteriores ao contato; seriam predomi­ cerâmicos. Com base nestes dados empíricos ar­
nantemente caçadores/coletores; ocupariam al­ gumentarei que:
deias pouco populosas; e, não por último, possui­
riam uma homogeneidade cultural e étnica. 1 - uma associação entre grupos etnográ­
ficos específicos e cultura material é apenas viá­
vel se há uma comprovada continuidade entre
o presente etnográfico e o passado arqueoló­
(*) Museu Antropológico, Universidade Federal de Goiás. gico;

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2 - tradições ceramistas distintas podem Schmitz (1987) associa a uma economia de caça e
estar relacionadas a povos que, do ponto de coleta generalizada. No período subseqüente, in­
vista êmico, se consideram pertencentes a uma clusive durante o optimum climaticum, regis­
mesma sociedade; tram-se nos abrigos do sudeste do Mato Grosso
indústrias líticas locais, ainda pouco definidas,
3 - grupos indígenas atuais podem ser
uma vez que nesta categoria de sítios o lascamento
resultado de fusões étnicas e culturais, inclu­
se restringiu predominantemente à curadoria de
sive posterior à Conquista, de modo que não
instrumentos, como é atestado para o abrigo MT-
deverão ser considerados como entidades ho­
SL-71, cuja ocupação acerâmica recua ao redor de
m ogêneas;
5.000 a.C. e perdura até a era cristã (cf. Wüst 1990).
4 - as sociedades nativas sofreram mu­ As primeiras práticas agrícolas parecem ini-
danças culturais significativas devido ao ciar-se no sudeste do Mato Grosso ao redor de
contato com as sociedades de origem euro­ 800 a.C. e antecedem o período cerâmico, como é
péia e africana, de modo que o presente etno­ atestado por mudanças significativas nos pa­
gráfico não deverá ser projetado de forma sim­ drões de assentamento dos sítios a céu aberto,
plista para o passado; identificados com a tradição Tombador. Esta in­
dústria caracteriza-se por grandes lascas de quart-
5 - os dados etnoarqueológicos nos pa­
zito obtidas por percussão dura e ocasionalmen­
recem ser mais úteis quando apenas contras­
te pela técnica bipolar. Os instrumentos apresen­
tados com o contexto pré-contato.
tam um reduzido trabalho secundário e foram pre­
dominantemente empregados para raspar, cortar
e perfurar (Wüst 1990: 347-8,1992). Os primeiros
A ocupação pré-colonial no
grupos ceramistas, cujos vasilhames apresentam
tradicional território Bororo
uma certa semelhança com a tradição Una (cf. Wüst
e Schmitz 1975) se fazem presentes ao redor da era
A pesquisa etnoarqueológica entre os Bo­ cristã e ocuparam predominantemente abrigos.
roro foi realizada entre 1983 e 1984 nas aldeias As grandes aldeias anulares dos ceramistas
de Tadarimana e Córrego Grande e as prospec- da tradição Uru, cujos diâmetros podem atingir 500
ções e escavações arqueológicas se estenderam metros, formando as suas unidades residenciais
na área do rio Vermelho (sudoeste do Mato Gros­ um, dois ou mesmo três anéis concêntricos, marcam
so) até 1994.1 Esta região pode ser considerada a sua presença a partir aproximadamente de 900
o coração do território Bororo e se caracteriza por d.C. Apesar de uma certa continuidade no lasca­
um complexo mosaico fito-geográfico que abran­ mento da pedra, característico da tradição Tomba­
ge cerrados e florestas, sendo estas últimas mais dor (cf. Wüst 1990), o aparecimento relativamente
abundantes ao longo dos principais cursos d’água. repentino deste novo modo de vida indica não ape­
Um resumo das ocupações pré-coloniais, com uma nas profundas mudanças no modo de subsistên­
seleção das respectivas datações absolutas, en­ cia e na organização sociopolítica, mas também
contra-se na Tabela 1. significativos “inputs” populacionais, eventual­
As primeiras evidências da ocupação huma­ mente oriundos da região amazônica ou do nor­
na na bacia do Rio Vermelho recuam a aproxima­ deste brasileiro (cf. Robrahn-González 1996, Wüst
damente 10.000 anos, como é atestado pelo mate­ e Barreto, no prelo). Tanto as estimativas demográ­
rial lítico das camadas inferiores do abrigo MT- ficas e a localização dos seus assentamentos, quan­
SL-31 e que se assemelha à tradição Itaparica. Tra­ to os utensílios cerâmicos, que englobam grandes
ta-se de um amplo horizonte cultural cujos sítios bacias, assadores e jarros (cf. Wüst 1990), indicam
se estendem do nordeste ao Brasil Central e que que a agricultura, sobretudo da mandioca, desem­
penhou um papel importante no sistema de abas­
tecimento. A camada arqueológica destes assen­
tamentos geralmente não ultrapassa 30 cm de pro­
(1) A pesquisa arqueológica e etnoarqueológica foi em
grande parte financiada pela FAPESP (Fundação de Am­
fundidade, apontando para um relativo curto tem­
paro à Pesquisa do Estado de São Paulo) e contou com po de ocupação. No entanto, a densidade e o espa­
a colaboração de Renate B. Viertler (Universidade de çamento dos sítios remete, sobretudo, a micro-des-
São Paulo). locamentos, de modo que fatores ambientais, tais

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TABELAI

Datações absolutas selecionadas para o território Bororo

Sítios arqueológicos Datação absoluta A.P. Data absoluta calibrada* N° do laboratório Culturas arqueológicas

M T -S L -1 1 230±70 1660 AD B eta -2 7 4 2 7 Cerâmica Bororo

Tradição Uru (sítio em


M T-SL-51 590±60 1400 AD B e ta -2 7 4 3 2
situação defensiva)
T radição T upiguarani
M T-SL-62b 680±60 1300 AD B eta -3 1 0 3 3
P olicrôm ica
Tradição Uru (primeiras
M T -SL-29 1 150± 65 890 AD N -5 1 1 4
aldeias anulares)

M T-SL-71 1990±70 20 AD B e ta -3 1 0 3 6 Tradição lítica local

Aparecimento da cerâmi­
M T -SL-72 2390±60 400 a.C. B e ta -7 8 2 5 6
ca Una em abrigos
Sítios Líticos: Tombador
M T-SL-37 2570±70 790 a.C. B eta -2 7 4 2 8
(transição para agricultura)
M T-SL-71 5750±80 4580 a.C. B e ta -3 1037 Tradição lítica local

M T-SL-31 10080±80 9650 a.C. B e ta-78253 Tradição Itaparica

(*) Calibrado com 1 sigma, segundo Stuiver and Reimer 1993.

como esgotamento de solos, não devem ser res­ pelo menos a partir do século XH3 da nossa era, uma
ponsabilizados por este tipo de mobilidade, como certa tendência em ocupar de forma mais sistemáti­
já foi constatado, por exemplo, por Carneiro (1983) ca os vales principais onde os solos apresentam uma
e Gross (1983). As diferenças consideráveis, no maior fertilidade e o acesso aos abundantes recur­
tamanho e na morfologia dos assentamentos dos sos aquáticos é facilitado. Esta mudança na apro­
portadores da tradição Uru, parecem indicar uma priação do espaço foi interpretada em termos de
hierarquia relativamente fluida, bem como freqüen­ uma certa intensificação das estratégias de capta­
tes processos de cisão e fusão de comunidades ção de fontes protéicas alternativas, motivada por
locais. Uma correlação estatística entre sítios mai­ um aumento demográfico e uma certa circunscrição
ores e uma maior quantidade de artefatos líticos e (Wüst 1992: 418-419). A partir do final do século
cerâmicos “intrusivos” sugere uma certa hierar­ x n i e o início do século XIV, o Brasil Central foi
quia de assentamentos, mas sem que haja qual­ cenário de pressões demográficas não apenas in­
quer evidência para uma centralização do poder, ternas, mas também externas, provavelmente oriun­
especialização econômica ou artesanal em nível das das do oeste e do norte. No alto Xingu, são atesta­
comunidades locais (Wüst 1990). No entanto, a das pela construção de imponentes valetas de na­
análise espacial do sítio MT-RN-32 sugere a ocor­ tureza defensiva (cf. Heckenberger 1996) e, na ba­
rência de uma certa divisão de trabalho entre uni­ cia do rio Vermelho, pela instalação de assenta­
dades residenciais, especialmente no que tange ao mentos Uru nos topos de elevados morros testemu­
processamento da mandioca. Constatou-se, adicio­ nhos de difícil acesso, como é o caso do sítio MT-
nalmente, que também nem todas as unidades re­ SL-51, e uma maior diversidade das tradições cerâ­
sidenciais participaram das redes de troca que, por micas (Wüst 1990:418). Entre os grupos que podem
exemplo, envolveram artefatos cerâmicos tempera­ ter contribuído para o surgimento destas estraté­
dos com cauixi de origem distante (Wüst 1990:440). gias defensivas, parecem ter figurado os portadores
Estes dados fornecem os primeiros indicadores pa­ da tradição policrômica Tupiguarani. Os seus as­
ra uma certa complexidade organizacional interna. sentamentos, embora numericamente reduzidos, re­
Apesar de algumas variações estilísticas tem­ cuam pelo menos ao século X m e perduram até o
porais e regionais, no que se refere às formas dos período histórico, quando os seus artefatos apa­
recipientes e aos atributos decorativos, observa-se, recem em algumas aldeias Bororo.

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Os portadores da tradição Uru apresentam Viertler (1989). Os membros de aldeias próximas


uma continuidade cultural até a segunda metade mantinham redes de relações sociais relativa­
do século XVII e o início do século XVIII, quan­ mente estreitas, especialmente durante os rituais
do são substituídos, e talvez parcialmente incor­ funerários e as migrações sazonais em cujas ro­
porados aos Bororo etnográficamente conheci­ tas figuravam também aldeias vizinhas. As histó­
dos. Trata-se de um período que se caracteriza por rias de vida e os censos demográficos revelaram
uma acentuada descontinuidade cultural no que adicionalmente um elevado fluxo demográfico en­
tange aos artefatos cerâmicos e líticos, permane­ tre os assentamentos, favorecido pela organiza­
cendo, contudo, a forma anular dos assentamen­ ção social. Este fluxo populacional foi interpre­
tos e a ocupação preferencial ao longo dos maio­ tado por Viertler (1986) em termos de uma eco­
res cursos d ’água. A mudança no repertório tec­ nomia redistributiva, motivada por uma constan­
nológico pode ser associada à presença dos Bo­ te busca de prestígio. Tais relações entre os mo­
roro etnográficos que estabelecem a sua primei­ radores das aldeias se distinguem fortemente
ra aldeia na bacia do rio Vermelho (MT-SL-11) ao daquelas de outros grupos do Brasil Central, en­
redor de AD 1660. Trata-se do assentamento que, tre os quais a animosidade, bem como cisões,
pela tradição oral e a mitologia (Albisetti e Ven- em decorrência de disputas pelo poder, são fre­
turelli 1967: 257-261), foi identificado como a al­ qüentes, como no caso dos Xavante (Maybury-
deia de Arigao Bororo. Lewis 1974).
Os primeiros contatos diretos dos Bororo
com a sociedade brasileira remontam a 1649, quan­
Dados etnohistóricos e etnográficos do bandeirantes paulistas atingem a região de
Cuiabá à procura de ouro. Relações hostis entre
Segundo Albisetti e Venturelli (1962: mapa), estes índios e os brancos permanecem até mea­
o tradicional território dos Bororo Orientais dos do século XIX, período em que a maioria foi
abrange uma área de 230.000 quilômetros qua­ assentada em missões salesianas. A região do
drados e se estendia desde o Araguaia até o Para­ rio Vermelho representou, no entanto, o último
guai e do rio das Mortes até o Taquari (vide Figura refúgio para os Bororo “Livres” que apenas no
1). Durante os primeiros contatos a sua popula­ final do século XIX e nos primeiros anos do sé­
ção foi estimada em tomo de 10.000 pessoas, das culo XX entraram em contato direto e contínuo
quais restam hoje apenas aproximadamente 800 com a sociedade brasileira ao se iniciar a cons­
indivíduos que vivem em quatro reservas (Viertler trução da linha telegráfica de Goiás a Cuiabá.
1990). Segundo a tradição oral e a interpretação do
Os Bororo pertencem lingüisticamente ao corpo mitológico (Viertler 1986, 1987; Crocker
tronco Macro-Gê e se caracterizam por um siste­ 1969), os Bororo se concebem como descenden­
ma dual e ciánico, predominantemente matrilocal tes de grupos locais distintos. Um mapa êmico,
e matrilinear, desempenhando as metades, espa­ predominantemente elaborado a partir do nosso
cialmente localizadas, um papel exogâmico. As informante Bororo Cirilo, indica, por meio de um
unidades residenciais das mulheres da metade rol de 50 antigas aldeias com privacidade ciánica,
Tugarege se situam na parte sul da aldeia, enquan­ aquelas áreas nas quais proto-clãs parecem ter
to as da metade Eceráe ocupam a parte norte (Al­ exercido uma certa hegemonia política (vide Fi­
bisetti e Venturelli 1962: 434-437)2 (vide Figura gura 2 e Wüst 1990: 125-126). Dados adicionais
2). Apesar de atualmente as comunidades locais desta visão êmica, segundo a qual os Bororo se
serem econômica e politicamente independen­ consideram descendentes de grupos locais ou
tes, há indicadores de que no passado existia uma mesmo étnicos distintos, podem ser encontra­
certa forma de integração regional por meio de dos em Viertler (1987), onde os episódios míticos
influentes chefes políticos, como foi ressaltado por são interpretados em termos de um processo em
que as disputas iniciais entre comunidades locais
de proto-clãs específicos, foram gradualmente
(2) Para uma descrição e análise mais detalhada da com ­
substituídas por alianças e casamentos exogâmi-
p lexa estrutura so c ia l Bororo vide: C rocker (1 9 6 7 ), cos. A consolidação final do sistema social atu­
Lévi-Straus (1 9 7 3 ), Viertler (1976). al parece ter ocorrido na região do baixo ou médio

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ÁREA DE PESQUISA
TERRITÓRIO TRADICIONAL BORORO
FRONTEIRA NACIONAL
FRONTEIRA DE ESTADO
CIDADES
ALDEIAS BORORO 1997

Fig. 1 - Território Bororo, aldeias atuais e localização da área de pesquisa.

São L ourenço, na localidade A rua B ororo deias parece ter sido relativamente curta sendo
(Albisetti e Colbacchini 1967: 127-137). Uma al­ que as razões principais do deslocamento das
deia posterior, e a primeira na região do rio Ver­ mesmas devem ser procuradas na deterioração
melho, é Arigao Bororo, identificada com o sítio das casas, condições sanitárias, freqüentes mor­
MT-SL-11. Segundo o mesmo relato mítico, o tes, e não no esgotamento dos solos, como já foi
aumento demográfico nesta aldeia levou ao sur­ observado por Gross (1983: 436).
gimento de sete novos assentam entos. Estes
distam entre 23 a 60 km da aldeia mãe e alguns
ainda estão sendo lembrados pelos Bororo da As evidências arqueológicas
atualidade, como é o caso de Pobojari, Jarudore, das antigas aldeias Bororo
Aijere, Itubore e Kejari, que foram ocupados até
meados do século XX. Padrões de assentamento
Como a nomeação de uma aldeia se refere a
toda uma região e não a um assentamento espe­ A prospecção sistemática em 5 áreas-piloto
cífico, a tradição oral proporcionou em alguns (20 x 15 km) e o levantamento extensivo nas áre­
casos informações sobre a seqüência cronológi­ as adjacentes resultou no registro de 155 sítios
ca daqueles sítios que pertenciam a uma mesma arqueológicos dos quais 26 puderam ser identi­
comunidade local e que se situam muito próxi­ ficados como antigas aldeias Bororo e dois como
mos. Anterior ao contato, a permanência nas al­ sítios de atividades específicas articuladas (vide

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ÁREA DE ALDEIAS PROTO-CIÃ

| METADE ECERÁE

| METADE TUGAREGE

• FRONTEIRA NACIONAL

Fig. 2 - Mapa emico dos territorios das antigás aldeias Bororo com hegemonía dos proto-clás.

Figura 3). A relação destes sítios, suas respecti­ aldeias do rio Verinelho é bastante regular e va­
vas características ambientais e morfológicas, bem ria entre 18 e 23 km (vide Figura 4). Na primeira
como a sua posição cronológica, encontram-se metade do século XX, no entanto, ocorrem mu­
na Tabela 2, juntamente com a cultura material, danças significativas, não apenas no que tange
fornecerão os subsídios para a interpretação dos aos aspectos demográficos, mas também em re­
processos e das mudanças culturais. Para 12 des­ lação à localização e à morfologia das aldeias.
tas aldeias dispomos de coletas sistemáticas que As tradicionais aldeias anulares foram substituí­
abrangem um total de 3037 fragmentos cerâmicos, das por pequenos acampamentos de poucas ca­
227 peças líticas e 134 objetos industrializados. sas irregularmente dispostas (MT-RN-19, MT-
O padrão tradicional dos assentamentos Bo­ GA-04, MT-GA-05), situando-se em relevo mais
roro é linear. As aldeias mais antigas se encontram acidentado e altitudes maiores. Mesmo quando
exclusivamente ao longo dos maiores cursos d’água, a forma anular foi ocasionalmente mantida, es­
que favorecem a pesca, a defesa do território con­ tes assentamentos se encontram longe dos rios
tra grupos canoeiros, como, por exemplo, os Gua­ e em áreas pouco favoráveis à agricultura, como
to (Koslowsky 1895), e onde os solos das matas- no caso das sucessivas ocupações de Tori Paru
galerias permitem o desenvolvimento de uma agri­ nas proximidades de Guiratinga (MT-SL-13, MT-
cultura predominantemente baseada no milho (cf. SL-14, MT-SL-15). Em todas estas localidades as
Serpa 1988). Durante os primeiros contatos com práticas agrícolas tradicionais foram amplamente
a sociedade brasileira, o espaçamento entre as substituídas pela caça e coleta, bem como pela aqui-

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Fig. 3 - Os sítios arqueológicos na área do rio Vermelho e alto rio São Lourenço.

Fig. 4 - Aldeias Bororo no rio Vermelho e alto rio São Lourenço, primeira metade do século XX.

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TABELA2

Antigas aldeias Bororo, cronologia, tamanho e aspectos ambientais

Sigla Nom e do sítio Período de ocupação Tamanho (m) Vegetação Altitude

M T -G A -04 CAJANGO 1 1919 1943 AD 50 x ? cerrado 670

M T -G A -05 CAJANGO 2 ± 1950 AD cerrado 680

M T -R N -1 2 KEJARI 1 prim eiros contatos cerrado 180

M T -R N -13 KEJARI 2 1950 1963 AD cerrado 170

M T -R N -15 GOMES CARNEIRO 1910 1950 AD cerrado 185

M T -R N -19 ALDEIA BOCODORO 1918 1948 AD 50 x 35 cerrado 370

M T -R N -34 JARUDORE 1 ± 1950 AD 180 x 110 mata ciliar 270

M T -R N -35 JARUDORE 2 ? 1982 AD 60 x 35 mata ciliar 26 5

M T -R N -36 ROÇA DO WALDEMAR ± 1900 AD 128+ x ? mata ciliar 240

M T -R N -47 ANA SARAIVA p ré-con tato 155+ x ? mata ciliar £35

M T -S L -02 TAD ARIM ANA 2 1974 1979 AD 345 x 80 mata ciliar 210

M T -SL-04 A ROÇA COMUNITÁRIA 1 p ré-con tato 205 x ? cerrado 210

M T -SL -08 PABORE 1 ± 1900 AD cerrado 220

M T -S L -09 PABORE 2 1910 1940 AD mata ciliar 210

M T -SL-10 B PABORE 3 1949 1974 AD 90+ x 60+ mata ciliar 210

M T -S L -1 1 ARIGAO BORORO 1660 ± 70 AD 450 x ? mata ciliar 240

M T -SL -13 TORI PARU 1 ± 1920 AD cerrado 330

M T -S L -14 TORI PARU 2 1929 1935 AD 110 x 85 cerrado 340

M T -SL -15 TORI PARU 3 1960 1978 AD cerrado 330

M T -SL -17 ITUBORE mata ciliar 320


? 1940 AD
M T -S L -20 TAD ARIM ANA 1 1979 1983 AD 220 x 40 mata ciliar 220

M T-SL-21 B CARRAPICHO 2* mata ciliar 245


após 1900 AD

M T -SL -25 KUOGO I GURU mata ciliar 210


p ré-con tato
M T -SL-26 A PABOJARE 2 ? 1973 AD 100+ x 100+ mata ciliar 270

M T-SL-26 B PABOJARE 3 1973 1980 AD 25 x 8 mata ciliar 270

M T-SL-27 B PABOJARE 1 p ré-con tato 105+ x ? mata ciliar 273

M T -SL-31 MORRO DA JANELA 1** p ré-con tato 102 x 4 mata ciliar 320

M T -SL -47 SÍTIO DA LAGOA p ré-con tato 100+ x 110+ mata ciliar 245

(*) Sítio de atividade limitada a céu aberto


(**) Abrigo sob rocha

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sição de bens junto às fazendas, onde os Bororo to no sítio mais antigo desta seqüência (MT-SL-
foram ocasionalmente engajados como mão-de- 11), que recua à segunda metade do século XVII,
obra. Esta mudança drástica na localização dos os artefatos da tradição Uru atingem quase 80%,
assentamentos e no sistema de subsistência levou no sítio MT-RN-36, ocupado ao redor de 1900, os
vários autores a caracterizar os Bororo, de forma artefatos cerâmicos da tradição Uru são represen­
errônea, como predominantemente caçadores/co­ tados por menos de 1%. Em quatro antigas aldeias
letores (cf. Baldus 1979, Bordignon 1986, Lowie Bororo registra-se adicionalmente a presença da
1946). tradição Tupiguarani que alcança no sítio MT-RN-
12 dos primeiros contatos 18%, enquanto no sí­
tio MT-RN-36 apenas 0,5%. Nos assentamentos
Heterogeneidade cultural
mais recentes, todavia, há uma clara tendência
para uma homogeneização do repertório cerâmico
Apesar de uma relativa homogeneidade tec­
e que poderia ser interpretada em termos de uma
nológica e morfológica dos artefatos cerâmicos dos
imposição estética pelos portadores originais da
Bororo etnográficos, encontramos, em graus va­
tradição ceramista Bororo, com o objetivo de for­
riados, em 11 das 26 antigas aldeias, material cerâ­
talecer a identidade grupai. No entanto, uma certa
mico que pode ser identificado como as tradições
continuidade do uso de caco moído como tem­
Uru3 e Tupiguarani Policrômica4 (vide Figura 5).
pero (característico da tradição Tupiguarani) em
A repetição deste fenômeno, bem como a associa­
vasilhames externamente identificáveis como
ção estratigráfica das diferentes tradições ceramis­
aqueles dos Bororo, poderia indicar uma resistên­
tas, tomam a hipótese de uma reocupação dos mes­ cia sutil em relação à imposição deste novo pa­
mos locais pouco provável. Por este motivo, sugeri­ drão, e que em alguns sítios perdura até o final
mos não apenas a existência de redes de troca, mas, da primeira metade do século XX. Por sua vez,
particularmente, um processo de possíveis fusões com a crescente adoção de implementos indus­
culturais e étnicas, como é indicadq por meio da trializados (vidro, metal e plástico), a confecção
troca mútua entre os aspectos estilístico e tecnoló­ cerâmica caiu em rápido declínio, sendo totalmen­
gico de tradições ceramistas distintas. Desta forma, te abandonada nos anos 70.
encontramos não apenas recipientes cerâmicos Bo­ Apesar desta clara descontinuidade na tec­
roro temperados com caco moído (tempero típico da nologia cerâmica e lítica na bacia do rio Vermelho
tradição Tupiguarani), mas também recipientes a partir do final do século XVII e o início do sécu­
policrômicos Tupiguarani temperados com cariapé lo XVIII, quando se estabeleceram os Bororo et­
(antiplástico característico das cerâmicas Bororo e nográficamente conhecidos, encontramos algu­
Um). Como não há nenhuma aparente explicação de mas continuidades culturais, sobretudo no que
natureza tecnológica para estas modificações, es­ tange aos aspectos morfológicos dos assenta­
tou inclinada a atribuir a este fenômeno uma cono­ mentos e à estratégia de sua localização. As uni­
tação simbólica, eventualmente relacionada a ques­ dades residenciais, tanto dos sítios Uru quanto
tões que envolvem a identidade grupai. Bororo, são organizadas em dois ou mesmo três
Como se pode observar na Tabela 3 e no Grá­ anéis concêntricos ao redor de uma praça cen­
fico 1, a heterogeneidade da cerâmica é maior nos tral. Enquanto nos sítios da tradição Uru apenas
sítios mais antigos do período pré-contato e con­ ocasionalmente foi registrada uma estrutura cen­
tato inicial que nas aldeias mais recentes. Enquan­ tral (equivalente à casa dos homens), no contex­
to etnográfico Bororo, esta sempre está presen­
te, podendo ser considerada um indicador para
uma vida ritual mais elaborada, bem como para
(3) Esta tradição ceramista foi inicialmente descrita por uma maior divisão entre sexo e idade que no perío­
Schmitz et al. 1982 para Goiás e, até o atual estado do do anterior. No que se refere à localização das pri­
nosso conhecim ento, apresenta uma ampla distribuição meiras aldeias Bororo, privilegiaram-se as mar­
geográfica entre os paralelos 11 a 16 desde o rio Tocantins gens dos rios principais, uma vez que o milho e
(Goiás) até o rio São Lourenço (Mato Grosso).
o peixe figuraram como as principais fontes de abas­
(4) Para uma síntese desta tradição cerâmica e as teorias
de sua dispersão, vide Brochado (1984, 1989). No Brasil tecimento.
Central e, sobretudo, no sudoeste de Goiás, foi primeira­ Como já foi observado por Hodder (1978,1982),
mente descrita por Fensterseifer e Schm itz (1975). não se pode estabelecer a priori nenhuma corre-

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Rev. do M useu de A rqu eologia e Etnologia, São Paulo, Suplemento 3: 303-317, 1999.

Fig. 5 - Os artefatos cerâmicos na antigas aldeias Bororo. 1 a 5: Cerâmica Bororo; 6 a 8: Cerâmica


da Tradição Uru; 9 a 14: Cerâmica da Tradição Tupiguarani Policrômica.

lação entre estilos cerâmicos específicos e unida­ ficas e etnohistóricas, não há dúvida de que os
des sociológicas. Neste estudo de caso, no entan­ sítios aqui discutidos foram predominantemente
to, o repertório cerâmico, pelo menos no nível das ocupados por pessoas que se consideraram Bo­
grandes tradições, parece indicar diferentes ma­ roro. Desta forma, estamos inclinados a interpre­
trizes culturais. Diante das informações etnográ­ tar a heterogeneidade da cerâmica nestes sítios,

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W ÜST, I. Etnicidade e tradições ceramistas: algumas reflexões a partir das antigas aldeias Bororo do Mato Grosso.
Rev. do M useu de A rqu eologia e Etnologia, São Paulo, Suplem ento 3: 303-317, 1999.

TABELA3

Tradições cerâmicas nas antigas aldeias Bororo

Sítio Período* Tradições cerâmicas Cerâmica L itico Industrial

U% U/T% B% BT% T% C% T otal T otal T otal

M T -S L -1 1 1 80 ,6 5 19,35 62 6
(0-20 cm)

M T -S L -1 1 7 4 ,0 7 2 5 ,9 3 27 18
(2 0 -4 0 cm) 1

M T -R N -47 1 8 4 ,8 9 2 ,4 7 12 ,6 4 364 12

M T-SL-04 A 1 4 ,7 6 8 7 ,3 0 7 ,9 4 63 8

M T-SL-27 B 1 8 7 ,3 3 12,67 150

M T -R N -12 2 3 6 ,5 2 1,22 4 3 ,6 5 18,61 575 48 2

M T -SL -09 3 8 6 ,2 9 13,71 124 19 13

M T -R N -15 3 9 2 ,7 5 4 ,3 5 2 ,9 0 69 1 4

M T -R N -36 3 0 ,0 7 9 8 ,1 8 1,19 0 ,4 9 0 ,0 7 1428 102 8

M T -R N -19 3 1 0 0 ,0 0 37 3 3

M T -SL -14 3 1 0 0 ,0 0 13 6 X

M T -R N -34 4 1 0 0 ,0 0 101 6

M T -R N -35 4 1 0 0 ,0 0 6 X

M T -SL -20 4 1 0 0 ,0 0 11 3 54
(0-40 cm)

M T-SL-26 B 4 1 0 0 ,0 0 7 1 44

Total 3037 227 134

* A breviação para os períodos: A breviações para as Tradições C erâm icas:


1 = Período pré-contato U = Uru; U/T = Ura e Tupiguarani
2 = Primeiros contatos diretos T = Tupiguarani; B = Bororo
3 = Primeira metade do século XX B/T = Bororo e Tupiguarani
4 = Segunda metade do século XX C = Tradição cerâmica não identificada
x = Presença de artefatos industrializados

e o subseqüente processo de homogeneização, consideraram e/ou foram considerados de fato


em termos de um complexo processo de simbiose Bororo autênticos, foge do alcance interpretativo,
entre pessoas de origens culturais, e provavelmen­ exclusivamente baseado em evidências arqueoló­
te étnicas, distintas. Até que ponto, no entanto, os gicas. Na medida em que aceitamos um processo
portadores das tradições ceramistas distintos se simbiótico na formação desta sociedade, ceramis-

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GRÁFICO 1
TRADIÇÕES CERÂMICAS NAS ANTIGAS ALDEIAS BORORO

AD 1982
1 Não Identif.
AD 1979-83 1 Tupig.
AD 1973-80 ■ Uru/Tupig.
□ Uru
AD 1950
□ Bororo/Tupig.
AD 1929-35 ■ Bororo
AD 1918-48
AD 1910-50
AD 1910-40
AD 1900
Pré-contato
Pré-contato
Pré-contato
9

AD 1660

0% 20% 40% 60% 80% 100%

tas com origens culturais e étnicas distintas, po­ meça a fazer sentido: “Cosa curiosa: antaño, la
deriam ter adotado este novo padrão estilístico, alfarería bororo parece haber sido decorada, pe­
seja para mascarar diferenças sociais, promover ro quizás una prohibición religiosa relativamente
a comunicação ou, mesmo, expressar um senti­ reciente eliminó esta técnica. ” Estaríamos, assim,
mento de uma nova etnicidade emergente. diante de um fenómeno de um dominio político de
Usarei aqui o termo simbiose para designar um dos antigos grupos locais, inicialmente mino­
um processo, segundo o qual comunidades locais ritários, semelhante ao daquele descrito, por exem­
com origens culturais e/ou étnicas semelhantes plo, por Hodder (1979) e que certamente envolveu
ou distintas se agregam, dando origem a uma no­ de forma especial o segmento feminino, diretamente
va formação sociocultural. Este fenômeno pode engajado na confecção ceramista.
se dar em sociedades tanto igualitárias quanto Adicionalmente, a análise de alguns mitos Bo­
fortemente hierarquizadas, podendo a cultura ma­ roro mostra que esta sociedade se concebe como
terial ser manipulada para reforçar ou suprimir resultado de uma fusão de grupos locais distin­
etnicidades, como Ramos (1980) descreve, por tos e que, inclusive, antigos inimigos foram incor­
exemplo, para diferentes contextos brasileiros. porados em clãs específicos, caso alguma reci­
Os dados arqueológicos aqui apresentados pa­ procidade estivesse garantida (cf. Viertler 1986).
recem indicar que, no início deste processo, dife­ A tendência para uma maior homogeneidade nos
rentes tradições ceramistas foram mantidas, mas artefatos cerâmicos nas aldeais Bororo mais re­
que ao longo do tempo deram lugar a um repertó­ centes pode ser interpretada ultimamente em ter­
rio mais homogêneo. Neste contexto também a se­ mos de um processo no qual um grupo minoritá­
guinte observação de Lévi-Strauss (1973: 217) co­ rio (segundo Viertler 1986 relacionado à atual me­

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tade dos Tugarege) entrou na área e começou a do centro-oeste Brasileiro parecem ter sido o re­
dominar os grupos ali estabelecidos, impondo no­ sultado de um processo relativamente recente de
vos padrões estéticos e culturais, entre os quais a incorporações de matrizes culturais e étnicas.
produção da cerâmica, com o objetivo de conso­ 2 - Como grupos étnicos podem aparecer em
lidar e reforçar a etnicidade de comunidades lo­ contextos sociais específicos e se caracterizam por
cais no limiar do contato direto com a sociedade uma maior ou menor estabilidade (cf., por exemplo,
brasileira. Cordell e Yanni 1991: 107), qualquer relação entre
As aldeias anulares podem ser consideradas culturas arqueológicas e grupos etnográficos es­
como um desenvolvimento cultural autônomo do pecíficos precisa basear-se em uma clara evidência
Brasil Central (cf. Wüst e Barreto, no prelo) e apre­ de uma continuidade cultural, podendo a visão êmi-
sentam, no caso Bororo, uma forte relação com ca sobre processos históricos fornecer subsídios
aspectos sóciopolíticos e cosmológicos (Fabian valiosos na formulação de hipóteses.
1992, Viertler 1976). A continuidade desta mor­ 3 - Mesmo que a formação dos Bororo etno­
fología dos assentamentos, também característi­ gráficos possa ser explicada parcialmente como
ca para os ocupantes anteriores desta região, ape­ resultado da pressão exercida pelo contato dire­
sar da ruptura nos quadros tecnológicos, parece to e indireto do colonizador europeu, o surgimen­
reforçar a idéia de uma simbiose cultural. Os nos­ to das aldeias anulares no centro-oeste brasilei­
sos dados, todavia, indicam, em primeiro lugar, que ro não pode ser responsabilizado por isso, como
este processo parece ter sido muito mais complexo foi sugerido por Gross (1979).
que aquele descrito por Zerries (1953), segundo 4 - 0 contato direto com a sociedade brasi­
o qual o sistema dual Bororo teria surgido a partir leira provocou profundas mudanças culturais no
da fusão de dois grupos étnicos distintos; e, em que tange à demografía, à localização de assen­
segundo lugar, que os sistemas duais parecem ter tamentos, às estratégias de subsistência e à cul­
existido, no sudeste do Mato Grosso, bem antes tura material. Desta forma, os grupos indígenas
da existência dos Bororo etnográficamente docu­ atuais não devem ser considerados como mode­
mentados. los para interpretar o estilo de vida dos seus
Para corroborar estas hipóteses, futuras pes­ ancestrais, como já foi ressaltado, entre outros,
quisas se tomam necessárias, especialmente na­ por Roosevelt (1994) e Whitehead (1992).
quelas áreas nas quais os antigos proto-clãs te­ 5 - 0 presente exemplo mostra também que
riam exercido a sua influência política. Mesmo se possa esperar, para o período pré-colonial do
se parece utópico encontrar indicadores arqueo­ Brasil Central, movimentos migratórios signifi­
lógicos para grupos étnicos auto-conscientes cativos, principalmente a partir do século XIV da
(como foi apontado por Jones 1997: 127), a nos­ nossa era e que se intensificaram a partir do con­
sa interpretação das continuidades e descontinui­ tato direto e indireto com a sociedade brasileira.
dades na cultura material, em termos de um pro­ Desta forma, diferentes tradições ceramistas po­
cesso de origem pluri-étnico e cultural, é passível dem constituir a base para o quadro tecnológico
de testes independentes por meio de evidências de grupos indígenas etnográficos. Isto significa
lingüísticas e biológicas. que esquemas classificatórios êmicos e arqueo­
lógicos não expressam necessariamente a mes­
ma coisa (cf. Dongoske et al. 1997). Assim, dife­
Conclusões rentes tradições culturais arqueológicamente iden­
tificadas podem estar relacionadas a uma socie­
Os dados aqui apresentados têm algumas dade que se concebe como um único grupo, ou
implicações para a pesquisa arqueológica, sobre­ que culturas arqueológicas, aparentemente ho­
tudo naquelas áreas nas quais se possa estabe­ mogêneas, possam ter sido produzidas por mem­
lecer uma continuidade entre o registro pré-his­ bros de grupos culturais e/ou étnicos distintos.
tórico e grupos indígenas específicos: 6 - Uma vez que processos de natureza sim­
1 - Os dados etnohistóricos, etnoarqueoló- biótica ocorrem em comunidades locais específi­
gicos e arqueológicos, em uma pequena parte do cas e não necessariamente em todos os assenta­
território tradicional Bororo, mostram que pelo mentos de um mesmo período, a interpretação de
menos algumas das sociedades indígenas atuais suas implicações na construção da etnicidade exi-

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Rev. do Museu de A rqu eologia e Etnologia, São Paulo, Suplemento 3: 303-317, 1999.

ge prospecções sistemáticas regionais, dando- padrões de assentamento e, sobretudo, à variabi-


se ênfase especial à morfologia dos sítios, aos lidade da cultura material inter e intra-sítio.

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