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MarcoButi
Professor do Departamento de Artes Plásticas
da Universidade de São Paulo
16 3 2 13
5 10 11 ,8
9 6 7 12
4 15 14 1
Pável Floriênski
A PERSPECTIVA
INVERSA
Tradução
Neide }allageas e Anastassia Bytsenko
Apresentação
Neide jallageas
Editora 34 Lrda.
Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000
São Paulo- SP Brasil Tel/Fax (11) 3811-6777 www.editora34.com.br
Imagem da capa:
A perspectiva violada, Neide ]allageas ..... ............... ... 7
Andriêi Rublióv, A Santa Trindade, 1427,
pintura s/ madeira, 142 x 114 em, Galeria Tretiakov, Moscou.
ra Edição- 2012
Dados biográficos de Floriênski .... ...... ... ..... ............ . 127
Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro
Bibliografia ........ ....... .. ............ ........... ............... .. .... . 137
(Fundação Biblioteca Nacional, RJ, Brasil) Agradecimentos .............. .... ............. ... .. .. ..... ........ ... . 141
Sobre as tradutoras ........ ... ............. ........ ...... .. ... ...... . 143
Floriênski, Pável, 1882-1937
F696p A perspectiva inversa I tradução de Neide
Jallageas e Anasrassia Bytsenko; apresentação de
NeideJallageas. r São Paulo: Ed ito ra 34,2012
(I ' Edição) .
144 p.
ISBN 978-85-7326-499-9
CDD -750.1
A perspectiva violada
Neide ]allageas
A perspectiva violada 7
po de experimentação nas artes visuais, na música, no teatro
formas e princípios distintos daqueles canonizados por co-
e na literatura. Além disso, uma antiga manifestação russa, a
nhecimentos advindos do Renascimento e do Iluminismo.
pintura de ícones, era redescoberta e estudada pela primeira
A obra de Floriênski pauta-se por essa visão. Seus es-
vez na Rússia como obra de arte.
critos sobre arte, história, religião, filosofia, poesia - bem
Característica própria desse momento é a polêmica em
como suas atividades e inventos no campo da física, da geo-
torno do conceito de "realismo", sobretudo nas artes visuais,
logia, da matemática, da arqueologia - , 2 têm sido cada
lócus de disputas ferrenhas entre os artistas e intelectuais que
vez mais valorizados, com traduções publicadas no mundo
viriam a integrar as hoje denominadas "vanguardas" e aque-
inteiro.
les que eram chamados, já naquele período, de "pintores de
Floriênski foi um daqueles sábios que, no início do
cavalete", ou seja, aqueles que em suas telas davam conti-
século XX, como observam os eslavistas norte-americanos
nuidade à pintura de representação, tal como compreendida
Michael Holquist e Katerina Clark, foram educados no en-
até então. Em busca de alternativas para a arte imitativa,
tendimento de que a experiência humana deveria conjugar
os artistas recorriam às raízes russas, pesquisando a pintura
a religião e as ciências consideradas duras. 3 No entanto, a
popular e a pintura de ícones com o intuito de afastar sua
despeito da qualidade de seus trabalhos desenvolvidos a ser-
arte dos modelos europeus.
viço do Estado soviético, a obra de Floriênski permaneceu
Para alcançar esses objetivos, uniam-se em grupos, or-
fora do alcance do público durante décadas.
ganizavam e dirigiam museus, editavam revistas e, ao mes-
Isso se explica porque o período conturbado, mas cria-
mo tempo, participavam da concepção de metodologias
tivo, durante o qual o autor desenvolveu as ideias contidas
de ensino, atuando em escolas de arte, como na mais co-
em A perspectiva inversa e se ocupou das aulas nos VKhU-
nhecida delas, os Ateliês Superiores VKhUTEMAS , 1 onde
TEMAS, foi seguido de outro, em que as experimentações
Floriênski foi professor. Essas iniciativas, em sua maioria,
estéticas foram interrompidas à força, e artistas e intelectuais
almejavam forjar uma arte e um mundo organizados por
de todas as áreas foram exilados, presos ou mortos, e suas
obras, escritos literários ou científicos, relegados ao esqueci-
mento por determinação do governo 'soviético. Os nomes de
1
Os Ateliês Superiores de Arte e Técnica [VKh UTEMAS - Víschie muitos desses autores e artistas foram literalmente apagados
Khudójesrvenno-Tekhnítcheskie Masterskíe] foram criados oficialmente
da história oficial russa. Alguns viriam a conhecer um rápido
em 1920 por Vladímir Lênin (1870-1924), em Moscou, com o objetivo
de substituir o velho modelo de ensino "acadêmico", burguês, por méto-
dos pedagógicos alinhados aos objetivos da Revolução Russa. Acolheram e 2
Dentre as invenções de Floriênski destaca-se aquela realizada por ele
concentraram as mais radicais propostas desse curto e efervescente período nos campos de trabalhos forçados de Solovkí, onde esteve preso e conduziu
da arte russa, como o suprematismo, o produtivismo, o construtivismo e pesquisas sobre a extração e produção de iodo a partir de algas. Os rendimen-
o abstracionismo, através de seus expoentes Aleksandr Ródtchenko (1891- tos com a patente dessa invenção viabilizam financeiramente a manutenção
1956), Kasimir Maliévitch (1878-1935) e Vassíli Kandínski (1866-1944), do museu que leva o seu nome, em Moscou.
os quais cultivavam entre si conceitos muitas vezes divergentes, expressos
3 Cf. Katerina Clark e Michael Holquist, Mikhai! Bakhtin, Carn-
inclusive em acaloradas discussões públicas.
bridge, Harvard University Press, 1984.
14 Neide Jallageas
1
Observações históricas 1
A perspectiva inversa
17
XVI, geralmente fica espantado diante de suas inesperadas
construções perspécticas, principalmente quando se trata da
representação de objetos de faces planas e arestas retilíneas,
como no caso de edifícios, mesas e cadeiras e principalmente
de livros, como os Evangelhos com os quais são retratados
habitualmente o Salvador e os Santos. Tão singulares cons-
truções se opõem de maneira gritante às regras da perspecti-
va linear, de cujo ponto de vista não podem ser consideradas
senão como um ordinário analfabetismo do desenho.
Quando contemplamos os ícones com maior atenção
não é difícil notar que os corpos limitados por superfícies
curvas também são representados em ângulos que excluem
as regras da perspectiva. Frequentement e os ícones mostram,
tanto nos corpos curvilíneos, quanto nos corpos facetados,
partes e superfícies impossíveis de serem vistas ao mesmo
tempo, o que qualquer um poderia consultar no mais ele-
mentar dos manuais de perspectiva. Assim, do ponto de
vista comum dirigido à fachada dos edifícios representados,
pode-se observar as duas paredes laterais ao mesmo tempo.
Do Evangelho vemos três ou até mesmo quatro lombadas
ao mesmo tempo. Um rosto é representado com o alto da
cabeça, as têmporas e as orelhas voltadas para a frente como
se estivessem estendidas sobre a superfície plana do ícone
e com aqueles planos que não deveriam ser mostrados, tais
como o do nariz e os de outras partes do rosto, voltados para
o espectador; enquanto por outro lado, fazem retroceder
aqueles planos que naturalmente estariam posicionados para
a frente. São ainda características as corcundas das figuras in-
clinadas no nível da déesis, 2 que mostram simultaneamen te
Dionissi, O metropolitaAiiéksi, c. 1500, têmpera s/ madeira,
197 x 152 em, Galeria Tretiakov, Moscou.
2 Déesis (do grego ÕÉT)otç, "súplicà') era inicialmente, na Igreja Orto-
doxa, um ícone que fazia parte da iconóstase, a parede- ou biombo- que,
na igreja, separa a nave principal do santuário reservado ao clero. Somente
mais tarde, a partir de meados do século XIV, começam a surgir iconóstases
18 Pável Floriênski
as costas e o peito de São Procópio escrevendo sob a orienta-
ção de São João Evangelista, e outras semelhantes junções de
superfícies de rostos de perfil e de frente, de planos dorsais e
frontais etc. Com relação a esses planos complementares, as
linhas paralelas que não estão no plano do ícone ou que são
paralelas a ele, as quais perspectivamente deveriam ser repre-
sentadas convergind.o até a linha do horizonte, no ícone são
representadas inversamente, como linhas divergentes. Re-
sumindo, estas e similares infrações da unidade perspéctica
daquilo que está representado no ícone são tão evidentes e
concretas, que seriam as primeiras a serem apontadas pelo
mais medíocre estudante de perspectiva, mesmo a tendo
experimentado somente de passagem e de terceira mão.
Mas, o estranho é que essas "ignorâncias" do dese-
nho, que talvez deixassem furioso qualquer espectador que
entendesse a "evidente incongruêncià ' de tal imagem, ao
contrário, não causam qualquer sensação desagradável e são
percebidas como algo obrigatório e até agradam. Além dis-
so: se conseguirmos colocar lado a lado dois ou três ícones,
de períodos próximos e de mestria pictórica semelhante, o
altas, que sustentam vários níveis de ícones em sua superfície. A déesis, então,
transforma-se num conjunto de ícones que podem chegar a dois metros de
altura. Teologicamente, Floriênski explica que a "iconóstase é uma fronteira
entre o mundo visível e o invisível" e se constitui na "manifestação dos an-
jos e santos - angelophania - , na aparição de testemunhas celestiais: em
primeiro lugar, da Mãe de Deus e do próprio Cristo" (Floriênski, 1993, p.
40). O semioticista russo Boris Uspiênski conceitua a déesis como sendo a
parte da iconóstase (geralmente a terceira fileira) localizada acima das Portas
Reais e que tem como imagem central a do Cristo Pantocrátor (vide nota
7), com a Virgem Maria a seu lado direito, São João Batista à esquerda e a
seguir arcanjos, apóstolos e santos. Todas as figuras que fazem parte da déesis Andriêi Rublióv, O apóstolo Paulo, c. 1415, pintura s/ madeira,
têm seus rostos virados para o Cristo e as mãos em posição de súplica pela 160 x 110 em, Galeria Tretiakov, Moscou.
humanidade (Lázarev, 1970, p. 32, pp. 108-9; Pravoslávnaia Entsiklopiédia;
Uspiênski, 1976, p. 9). (N. da T.)
20 Pável Floriênski
Corre e vista intern a de uma igreja russa indica Gravura medieval em que as paredes frontais
ndo e laterais
a nave (1), a iconó stase (2) e o altar (3). podem ser vistas simultaneamente.
UOOUUDOOUOO
oo~oo 1
D D D D
Esquema da iconó stase indicando o nível inferi
or (1), o imediatamente
superior (déesis) (2), e a posição do Cristo Panto Esquemas indicando a perspectiva linear e a
crátor (3). perspectiva inversa.
espectador percebe com toda plenitude a enorme superio- _ E~sa im~ressão de que ditas violações da perspecti-
ridade artística naquele ícone onde a violação das regras da va sao mtencwna is é extremam ente reforçada pela ênfase
perspectiva é maior, ao passo que os ícones cujo desenho é dada aos ângulos especiais em questão, através da aplicação
"mais correto" parecem frios, sem vida e carentes de uma ~e uma col~ração especial ou, como falam os pintores de
3
relação mais próxima com a realidade neles retratada. Os l~on~, raskrzchka: as peculiaridades do desenho aqui não
ícones mais criativos para a percepção artística direta sempre so nao passam despercebidas pela consciência, através do
revelam algum "defeito" de perspectiva. Os ícones que mais uso em partes correspon dentes de algumas cores neutras ou
atendem a um manual de perspectiva não têm alma e são atenuadas pelo efeito cromático geral, como, pelo contrário,
maçantes. Se nos permitirm os simplesme nte esquecer, por sobressaem com ar de desafio, quase gritando sobre 0 fundo
um tempo, as exigências formais da perspectiva, a sensibi- geral colorido. Assim, por exemplo, os planos adicionais dos
lidade artística direta nos dirigirá ao reconheci mento da
d"fí . 4
e I 1c1os - palata - não só não se escondem na sombra
superiorid ade dos ícones que violam a perspectiva. co_mo, ao contrário, frequentem ente são pintados em core;
Aqui pode surgir a hipótese segundo a qual o que real- bnlhantes e além disso de forma absolutam ente diferente
mente agrada não é a maneira da representação como tal, dos pla~os das fachadas. Nesses casos, chama a atenção,
mas a inocência e o estado primitivo da arte, despreocu pada com maior persistência, o objeto que mais se destaca através
como uma criança em matéria de alfabetização artística: há ~e v~rias técnicas e tende a ser o centro pictórico do ícone,
apreciadores inclinados a declarar que o ícone é um meigo Isto e, o Evangelho . Sua lombada, normalme nte pintada
balbucio infantil. Mas não: os ícones com fortes violações
às regras da perspectiva pertencem aos grandes mestres, ao
passo que a violação menor dessas regras é peculiar prin- 3
Termo técnico da pintura de ícones russos. Trata-se de um esboço de
cipalment e aos mestres da segunda e terceira categorias, o
cores por mew do qual o pintor dá início ao processo de coloração do fundo ,
que induz a pensar que a ideia de ingenuidade de ícones seja das figuras e acessórios, mas sem o uso de meios-tons e sombras. Floriênski
pueril. Por outro lado, essas violações às regras da perspectiva ~~nserva em seu texto as palavras correspondentes ao processo da pintura
são tão persistentes e frequentes, eu diria tão sistemáticas, Icomca. Neste caso, ele redimensiona o sentido de raskríchka, remetendo ao
persistent emente sistemáticas, que involuntar iamente nasce ~erbo raskrivát, que lhe é cognato e tem a acepção de "abrir" e também de
a suspeita de uma não aleatoried ade dessas infrações, da . revelar" (Fioriênski, 2000, p. 138). O semioticista russo Boris Uspiênski
existência de um sistema especial de representação e percep- mterpret~, len.do F.loriênski, a ação do pintor de ícones afirmando que 0
ção da realidade representa da nos ícones. mesmo nao crza a pmtura, e sim a revela (Uspiênski, 1976, p. 16). (N. da T)
4
Logo que esta ideia surgiu entre observadores de íco- , . A palavra russa palata (do latim pafatium) designa um grande edi-
ficw com um rico conjunto de quartos. Em português utiliza-se termo
nes, nasceu e gradualme nte tornou-se mais firme a crença 0
28 Pável Floriênski
e sem vida, portanto não resta dúvida de que, mesmo ha- que o pintor de ícones está conscientemen te chamando
vendo notável semelhança entre os dois, as violações das a atenção para elas, embora a razdiélka não corresponda
regras da perspectiva não se constituem em qualquer tole- a nenhum objeto fisicamente visível, isto é, por exemplo,
rável debilidade do pintor de ícones, mas na sua força posi- não corresponde a nenhum sistema semelhante de linhas
tiva; isso deve-se ao fato de que o primeiro dos ícones exa- sobre a roupa ou o assento. Porém, só existe um sistema
minados está infinitamente acima do segundo, ou seja, o de linhas potenciais, ou seja, de linhas construtivas de um
errado é superior ao correto. determinado objeto que sejam semelhantes, por exemplo,
Além disso, se voltarmos à questão do claro-escuro, às linhas de força de um campo elétrico ou magnético, ou
também encontraremos uma distribuição original de som- aos sistemas equipotenciais, isotérmicos e outras curvas si-
bras que acentua e destaca a discrepância entre um ícone e milares. Linhas de razdiélka revelam com maior força 0
uma representação exigida pela pintura naturalista. A au- esquema metafísico e a dinâmica do objeto em questão do
sência de um determinado foco de luz, o caráter contradi- que as linhas visíveis, mas por si só elas são completamente
tório da iluminação em diferentes partes de um ícone, a invisíveis e, sendo traçadas em um ícone, estabelecem, de
aspiração para destacar aquelas massas que deveriam estar acordo com a ideia do pintor, um conjunto de tarefas que
sombreadas, novamente não são acidentais e nem são falhas se apresentam ao olho do observador como trajetórias que
de um mestre primitivista, mas são cálculos artísticos que este deveria seguir ao contemplar um ícone. Essas linhas
proporcionam o máximo de plasticidade artística. são um esquema de reconstrução do objeto observado na
A esta série de métodos similares de representação, consciência e se fôssemos buscar suas bases físicas seriam li-
próprios da pintura de ícones, é necessário acrescentar as nhas de força, linhas de tensão, em outras palavras, não são
linhas da assim chamada razdiélka, realizadas com uma cor dobras que se formam por causa da tensão, ainda não são
diferente da cor da raskríchka do correspondente lugar do dobras, são somente possibilidades de dobras, dobras em
ícone, e que muitas vezes possuem um brilho metálico, por potencial- aquelas linhas onde deveriam estar abrigadas as
efeito da assistka 12 de ouro ou, muito raramente de prata. dobras, caso essas se formassem. As linhas traçadas em um
Ao realçar a cor das linhas de razdiélka 13 queremos dizer plano adicional da linha de razdiélka revelam à consciência
o caráter estrutural-cons trutivo desses planos, e consequen-
temente, por não se limitarem à contemplação passiva dos
12 Assistka ou assist (do latim assistere, "estar, manter-se junto de") é mencionados planos, ajudam a entender sua relação funcio-
uma substância aderente feita da infusão de malte ou suco de alho. N a pin-
nal com o todo e, portanto, oferecem o material necessário
tura de ícones bizantinos e russos antigos, assistka refere-se aos traços lineares
para que se entenda com clareza que semelhantes ângulos
e radiais feitos com folhas de ouro e coladas com a ajuda de assist sobre uma
camada colorida. Mais tarde, no lugar de folhas de ouro foi urilizada tinta
de representação não obedecem às exigências da perspectiva
linear.
dourada. Nos ícones, a assistka se parece com raios e simboliza a luz reflerida
da verdade divina nos trajes de santos, expressando a ideia da Luminosidade
de Cristo e de sua ligação com a Mãe de Deus. (N. da T.) desenho, urilizado para criar formas com volume. A palavra razdiélka deriva
13 Razdiélka é um método de iluminação de determinadas partes do do verbo russo razdelit, "dividir". (N. da T.)
bilhão central no qual teriam surgido os astros - aquele a Teubneri, 1884, p.· 3 10). Mas, segundo assinala Aristóteles em sua Poética,
4, o primeiro a motivar a scaenografia foi Sófocles. Por outro lado, essas
quem Vitrúvio 23 atribui a invenção da perspectiva, e além
informações não divergem, pois temos que pensar que, mais que Ésquilo,
disso, da assim denomina da pelos antigos, scaenografia, 24
o naturalista Sófocles começou a exigir cenários mais ilusórios. (N. do A.)
26
Ésquilo (c. 525 a.C.-456 a.C.), primeiro dos grand~s dramaturgos
22
Anaxágoras (c. 500 a.C.-428 a.C.), filósofo grego do período pré- clássicos. (N. da T.)
-socrático. (N. da T.) 27 Agafarco,
Agatharchus ou ainda Agatharchid es foi um artista ate-
23 Marcus Virruvius Pollio (séc. I a.C.), arquiteto e engenheiro, autor niense que, segundo Vicrúvio, teria pintado cenários para as peças de Ésqui-
do célebre tratado De architectura. (N. da T.) lo (Vicrúvio, op. cit.; Smith, p. 61) . (N. da T.)
24 Vitrúvio utiliza scaenograjia para nomear a pintura em um plano 28
Demócrito (c. 460 a.C.-370 a.C.), filósofo grego do período pré-
cujas linhas laterais dirigem-se a um centro - em latim, circini centrum -socrático. (N. da T.)
40 Pável Floriênski
A perspectiva inversa 41
Roma, principalmente de Alexandria e de outros centros
da cultura helênica durante os séculos I e 11 a.C., esse bar-
roco do mundo antigo, encarregado de tarefas puramente
ilusionistas, aspirava justamente a ludibriar o espectador
que se supunha praticamente imóvel. Esse tipo de pintura
arquitetônica e paisagística talvez seja absurdo, no sentido
da impossibilidade da sua real execução, 35 mas apesar disso
a sua origem e a sua história, o seu caráter real ou fantástico nunca foi
seriamente levantada pela ciência. Ela me interessa pessoalmente há muito
tempo, desde meu primeiro contato com Pompeia. De imediato, ficou
claro para mim que os limites da verdadeira fantasia, presente na paisagem
pompeiana, são extremamente estreitos, e que ela se restringe à transmissão
ilusionista, em parte por motivos da natureza circundante e, em parte, pela
paisagem e pela arquitetura originais, vindas de fora. Arquitetura fantástica
é um termo que geralmente não entendo muito bem: os detalhes de caráter
ornamental podem ser produzidos pela fantasia, a combinação de motivos
pode ser livre e incomum, mas os próprios motivos e o caráter geral serão
obrigatoriamente reais, caso contrário serão retratos fiéis em relevo (diante
de nós não estão os projetos de um arquiteto e nem fotografias), serão reais
como modelos. Deste ponto de vista, a pesquisa dos motivos arquitetônicos
que pareciam ser inteiramente fantásticos em um assim chamado estilo ar-
quitetônico de decoração mural já deu uma série de resultados inesperados e
extremamente importantes- verificou-se, ou está sendo verificada, a relação Afrescos da Casa dei Vettii, século I, Pompeia.
desta arquitetura 'fantásticà com a arquitetura do palco greco-romano-, e
a investigação posterior certamente dará ainda mais resultados, especialmente
agora quando se descobrem na Ásia Menor os monumentos da verdadeira
arquitetura helênica. A pesquisa de longos anos da arquitetura de paisagens
pompeianas me levou aos mesmos resultados. Tudo aqui se revela verdadeiro,
em um grau ainda maior que na decoração arquitetônica, tudo transmite
os tipos da arquitetura helenística verdadeira. Aqui, para a fantasia pura, há
menos espaço do que na arquitetura dos muros pompeianos" (Rostóvtsev,
42 Pável Floriênski
ele deseja enganar, parecer que está brincando e provocando dros famosos de artistas clássicos foram pintados da mesma
o espectador. Outros detalhes são criados com tanto natu- maneua.. ?"39 E
ssas o bras empregam modos aproximativos
ralismo, que o espectador somente pelo tato certifica-se do para solucionar problemas perspéctico.s, modos esses que os
engano óptico: esta impressão é reforçada através do uso artistas abordavam exclusivamente através do caminho da
magistral do claro-escuro, localizado conforme a fonte de experiência- diz Benois. No entanto, a grande pergunta é:
luz -janelas, aberturas no teto, portas - que ilumina essas características significam que as leis da perspectiva real-
o ambiente. 36 Merece uma grande atenção o notável fato mente eram desconhecidas dos antigos? "Não observamos"
de que, a partir desta paisagem ilusionista, estendem-se os -pergunta Benois- "atualmente, o mesmo esquecimento
fios de conexão à arquitetura do palco greco-romano. 37 A da perspectiva como ciência? Não está distante o tempo
raiz da perspectiva é o teatro, não só pelas razões histórico- quando alcançaremos nesse campo os disparates 'bizantinos'
-técnicas de que foi o teatro que pela primeira vez exigiu e manteremos a incapacidade e os modos aproximativos da
a perspectiva, mas também em virtude de uma motivação pintura clássica tardia. Será possível, com base nisso, ques-
mais profunda: a teatralidade da representação perspéctica tionar o conhecimento das leis da perspectiva da geração de
do mundo. Nisso consiste a percepção do mundo obtida artistas que nos precedeu? .. . "40
com um esforço mínimo, privada da sensação de realidade Realmente, talvez possamos em parte ver nessa impre-
e da consciência de responsabilidade, para a qual a vida é só cisão das realizações perspécticas os princípios do desmo-
um espetáculo e nunca um ato de coragem. E por esse mo- ronamento da perspectiva que logo após começa na Idade
tivo- voltando a Pompeia- é difícil procurar nessas pin- Média Oriental e Ocidental. Mas, penso eu, essas impreci-
turas autênticas obras da arte pura. De fato, a desenvoltura sões da perspectiva são um compromisso entre os objetivos
técnica desses cenários domésticos não permite esquecer propriamente decorativos da pintura ilusionista e os obje-
os historiadores da arte, 38 cenários nos quais encontramos tivos sintéticos da pintura pura: de fato, não podemos es-
"somente obras de virtuosos artesãos, em vez de artistas quecer que uma casa habitada, embora não esteja destinada
verdadeiramente inspirados". O mesmo acontece com os para o trabalho, não é um teatro, e que o habitante da casa
fundos paisagísticos nas pinturas de gênero, executados de não está tão preso ao seu lugar e não está tão limitado em
forma "sempre muito aproximada", esboçados de forma sua vida como um espectador teatral. Se a pintura mural de
rápida e hábil. "Cabe aqui perguntar se os fundos de qua- alguma Casa dei Vettii fosse obedecer com precisão às regras
da perspectiva, então ela, pretendendo enganar ou brincar,
atingiria esse objetivo somente quando o espectador estivesse
op. cit., pp. IX-X, prólogo). O auror relaciona esta paisagem com as vistas imóvel e posicionado num lugar do ambiente rigorosamente
de vilas romanas, com paisagens egípcias etc. (N. do A.) determinado. Por outro lado, qualquer movimento seu ou,
36 Aleksandr Benois, Istória jívopissi [A história da pintura], São Peters-
burgo, 1912, Chipóvnik, parte I, fase. I, p. 41 e ss. (N. do A.)
39
37 Ver nota 35. (N. do A.) Idem, pp. 45-6. (N. do A.)
40
3B Benois, op. cit., p. 45. (N. do A.) Idem, p. 43, nota 24. (N. do A.)
perior de São Francisco de Assis, Giotto concebe u a pintu- Igreja Superior de São Francisco de Assis, Assis.
58 Pável Floriênski
decoração de parede com um temà' , mas "a visão de certos É natura l pensa r que Giott o desenvolveu o hábito e o
acont ecime ntos através da parede" . É merec edor de aten- gosto pelas ilusões ópticas da perspectiva na cenografia
ção que mais tarde Giott o raram ente recorresse a este tea-
pro- tral: já havíamos visto um prece dente semel hante no relato
cedim ento dema siadam ente corajoso para sua época, tanto de Vitrúvio sobre a encenação das tragédias de Ésquilo
ea
quant o seus seguidores mais próximos, ao passo que duran participação de Anaxágoras nelas. No desen volvim ento
- do
te o século 'XV semel hante arqui tetura se torna uma regra teatro mode rno, os misté rios- que deram origem ao novo
comu m, levando nos séculos XVI e XVII ao enriqu ecime dram a - apres entam també m uma transição da teurgi
n- aà
to enfático da pintu ra arquit etônic a de ambie ntes absol visão mund ana tal e qual foram na Grécia Antig a as tragé-
uta-
mente planos e simples, desprovidos de qualq uer tipo dias de Ésquilo, depois as de Sófocles e, finalmente, as
de de
decoração arquit etônic a real. 5° Por conse guinte , se o pai Eurípides, quand o aos pouco s se distan ciaram da realid
da ade
pintu ra mode rna não recorre poste riorm ente a semel hante mística e, mais precisamente, mistérica. Para os historiadore
proce dimen to, isso não acontece porqu e o desconhecia, s
mas da arte parece provável que a paisagem de Giott o realm
porqu e o gênio artístico se fortaleceu. Em outras palavr ente
as, surgiu do cenário, daquilo que foi cham ado de "mistérios",
toman do consciência de si na esfera da arte pura, esse gênio e
conse quent emen te não podia, digo de minh a parte, desob
artístico se distan ciou da perspectiva enganosa ou ao meno e-
s decer ao princí pio do decorativismo, isto é, da perspectiva.
da sua imper tinênc ia, da mesm a mane ira que o seu huma Para que não pareça falta de funda mento s, confir marem
- os
nismo racionalista atenu ou-se nas gerações seguintes. nossas considerações com a opini ão de algué m alheio
ao
pensa mento de um histor iador da arte: "Com o a paisag
em
de Giott o depen dia dos cenários de mistérios?" -perg unta
-
IX -se A. Benois, para a seguir respo nder - ·"Parc ialme
nte,
essa depen dênci a manif esta-se em grau tão forte (em forma
Mas então , de onde partia Giott o? Ou, em outra s de peque nas casas e pavilhões 'falsos', em forma de rocha
palavras, de onde surgiu a sua habili dade de usar a pers- s
planas que parecem recortadas de papelão, como se fossem
pectiva? As analogias históricas e o significado intern o bastidores) que se torna simpl esmen te impossível duvid
da ar
perspectiva na pintu ra sugerem uma resposta que já sabe- da influência que os espetáculos religiosos exercem sobre
mos. Quan do se come ça a suspeitar do caráter indub itável sua pintur a: em alguns afrescos, possivelmente, assisti
do teoce ntrism o, e junto à músic a das esferas soa a músic mos
a a cenas retiradas direta mente desses espetáculos. Contu
da· terra (enten do "a terrà' no sentid o de autoafirmação do,
do é necessário dizer que nos quadr os indub itavel mente
"eu" huma no), então come ça a tentat iva de pôr no lugar per-
tencentes a Giott o esta depen dênci a manif esta-se meno
das realidades turvas e obscuras os simulacros e os fantas se
- de mane ira cada vez mais fortem ente reelaborada de acord
mas; no lugar da teurgi a a arte ilusionista; no lugar da ação o
com as norm as da pintu ra monu menta l" .51
divina o teatro .
64 Pável Floriênski
a tal ponto que toda a cena, em sua imobilidade, aparenta temáticos e já ficou distante dos interesses imediatos da
'
estar exposta ' . 60 - certamente "um pa-
em um panopnco arte. Um pouco do que foi ligeiramente esboçado aqui não
61
nóptico engenhoso" --, como nota, de maneira cáustica teve como objetivo transmitir fatos históricos geralmente
porém equivocada, um adepto da perspectiva e do Renas- conhecidos como tais, mas, ao contrário, procurou lem-
cimento. Piero também deixa um manual de perspectiva brar exatamente a complexidade e duração deste processo
intitulado De perspectiva pingendi. Leon Battista Alberti concluído somente no século XVIII por Lambert, 62 e que
(1404-1472) em sua obra de três volumes Sobre a pintura, mais adiante, graças aos trabalhos de Lo ria, 63 Aschieri 64
escrita antes de 1446 e publicada em Nuremberg em 1511, e Enriqueé 5 na Itália, Chasles 66 e Ponceleé7 na França,
desenvolve as bases de uma nova ciência e as ilustra apli- Staudt, 68 Fiedler, 69 Wiener,7° Kupfer 71 e Burmester72 na
cando-as à pintura arquitetônica. Masaccio (1401 -1429) e Alemanha, Wilson 73 na América e outros, entrou como um
seus discípulos Benozzo Gozzoli (1420-1498) e Fra Filippo dos capítulos da geometria descritiva na corrente geral dessa
Lippi (1406-1469) aspiram a utilizar na pintura a mesma
ciência da perspectiva, enquanto, finalmente, Leonardo da
Vinci (1452-1519) encarrega-se na teoria e na prática dos 62
Johann Heinrich Lambert ( 1728-1777), matemático francês radi-
mesmos problemas, até que Rafael Sanzio (1483-1520) e cado na Alemanha. Foi um dos criadores da fotometria e autor de trabalhos
Michelangelo Buonarroti (1475-1564) concluem o desen- inovadores sobre a geometria não euclidiana. (N. da T.)
volvimento da persp~ctiva. 63
Gino Loria (1862-1954), matemático italiano. Em 1914 publicou
Le scienze esatte nell'antica Grecia (N, da T.)
64
Ferdinando Aschieri (1844-1907), matemático italiano. Em 1896
X publicou Lezioni di geometria descrittiva. (N. da T.)
6
5 Federigo Enriques (1871-1946), matemático, historiador e filosofo
Deixaremos de assinalar daqui para a frente as eta- italiano. (N. da T.)
pas do desenvolvimento teórico e pictórico da perspectiva 66
Michel Chasles (1793-1880), matemático francês. (N. da T.)
no período histórico anterior ao nosso, tanto mais porque 6
7 Jean-Victor Poncelet (1788-1867), matemático francês. (N. da T.)
o seu estudo passou principalmente para as mãos de ma- 68
Karl Georg Christian von Staudt (1798-1867), matemático alemão.
(N. da T.)
69
Otto William Fiedler (1884-1947), matemático alemão. (N. da T.)
60 Embora o termo panóptico esteja mais associado, contemporanea-
70
mente, ao conceito de disciplinaridade- a partir da construção carcerária de Norbert Wiener ( 1894-1964), matemático norte-americano, con-
mesmo nome concebida pelo filósofo inglês Jeremy Bentham (17 48-1832) siderado o fundador da cibernética. (N. da T.)
no final do século XVIII e estudada pelo francês Michel Foucault (1926- 71
Karl Heinrich Kupfer (1789-1838), físico e matemático alemão.
1984) -,no presente caso, Floriênski utiliza a palavra "panóptico" segundo (N. da T.)
outra acepção desta palavra na Rússia, que é a exposição de objetos de cera, 72
Ludwig Burmester (1840-1927), matemático alemão. (N. da T.)
raridades, objetos estranhos. (N. da T.) 73
Trata-se, possivelmente, do matemático norte-americano Edwin
6! A. Benois, op. cit., I, p. 381. (N. do A.) Bidwell Wilson (1879-1964). (N. da T.)
72 Pável Floriênski
surgisse não uma cena, não uma ilusão desse mundo, mas Rafael, A visão de
Ezequiel, 1518,
a verdadeira, embora invasora, outra realidade. Na Sistina,
óleo sobre pâinel,
é por meio das cortinas abertas que Rafael sugere tal carac-
407 em x 295
terística de sua espacialidade.)
em, Palazzo Pitti,
Como um total oposto da Vísão de Ezequiel pode ser Florença.
mencionado, por exemplo, um quadro de Tintoretto que
está na Academia Veneziana, O apóstolo Marcos libertando
um escravo da morte aflitiva. 83 A aparição de São Marcos é
apresentada no mesmo espaço no qual estão todos os perso-
nagens e a visão celestial parece ser uma massa corpórea que
tende a cair sobre as cabeças das testemunhas do milagre.
Aqui não é possível deixar de lembrar das técnicas natura-
listas do trabalho de Tintoretto, que suspendia pequenas fi-
guras de cera no teto para reproduzir seus escorços de forma
naturalisticamente mais precisa. E a visão celeste mostrou
ser nada mais do que uma peça de cera suspensa, igual aos
querubins nas árvores de Natal. Assim é o fracasso artístico
que ocorre ao se fundir espaços heterogêneos.
Mas o uso de dois espaços, perspéctico e não perspécti-
co ao mesmo tempo, também pode ser encontrado com bas-
tante frequência, especialmente na representação de visões
e fenômenos milagrosos. Assim são algumas obras de Rem-
brandt, embora possamos falar sobre o caráter perspéctico,
mesmo de seus componentes, apenas com muitas ressalvas.
Este procedimento compõe a marcante peculiaridade de
Doménicos Theotokópoulos, chamado El Greco. O sonho
74 Pável Floriênski
de Filipe !!, O enterro do Conde Orgaz, Pentecostes, A vista corpo. Ainda que seja visível, ele é transcendental a nós que
de Toledo e outras de suas obras, onde cada um dos espaços pensamos segundo Kant e Euclides. Mesmo que vivendo
se decompõe claramente . em vários (não menos que dois), na época do Barroco, Michelangelo foi, tanto em relação
sendo que o espaço da realidade espiritual definitivamente ao passado quanto ao futuro, um homem da Idade Média:
não se funde com o espaço da realidade sensual. Isto é o que _ contemporâneo e, certamente ao mesmo tempo, não con-
confere aos quadros de El Greco uma persuasão especial. temporâneo de Leonardo.
Entretanto, seria um erro pensar que somente temas
místicos requerem a violação da perspectiva. Tomaremos
como exemplo a Paisagem flamenga de Rubens, na galeria XI
Uffizi: a parte central é aproximadamente perspéctica e o
espaço a absorve, enquanto as laterais são inversamente pers- Quando alguém se depara pela primeira vez com o
pécticas e seus espaços lançam para fora a visão aperceptiva. desvio das regras da perspectiva, normalmente percebe a
Como resultado, obtém-se dois poderosos redemoinhos vi- ausência da unidade perspéctica como uma falha casual do
suais que preenchem de forma admirável um tema prosaico. artista, como um tipo de doença do próprio trabalho. Mas
Tal e qual é o equilíbrio entre dois princípios espaciais basta um mínimo de atenção para descobrir rapidamente
em A conversão do apóstolo Paulo de Michelangelo. Mas há essa falha em quase todas as obras, e a não perspectividade
uma espacialidade absolutamente diferente em seu juízo começa a ser avaliada não como uma patologia, mas sim
Final. O afresco representa uma superfície inclinada: quan- como a fisiologia das artes plásticas.
to mais alto se encontra um ponto na pintura, tanto mais Aqui uma pergunta é inevitável: será que a arte pode
distante do espectador fica o ponto por ela representado. abrir mão da reorganização da perspectiva? Pois o objetivo
Consequentemente, ao levantar os olhos, esses dev~riam desta é criar uma certa integridade espacial, um mundo sin-
encontrar figuras cada vez menores, em virtude da redução gular, fechado em si, não mecânico, mas contido nos limites
perspéctica. Isto, a propósito, torna-se visível porque as fi- da moldura por suas forças internas. Entretanto, a fotogra-
guras que estão abaixo ocultam as que estão acima. Mas, fia, sendo o recorte do espaço natural, ou seja, uma parte
quanto às dimensões, o tamanho das figuras aumenta à do espaço, pela sua própria essência não pode deixar de nos
medida que ascendem no afresco, isto é, à medida que se conduzir para fora das suas fronteiras, para fora dos limites
distanciam do espectador. Eis a propriedade daquele espaço da moldura, já que é uma parte mecanicamente separada de
espiritual: quanto mais afastada alguma coisa, maior ela fica; um todo maior. Consequentemente, a primeira exigência
quanto mais próxima, menor resulta. Esta é a perspectiva feita pelo artista é reorganizar um fragmento do espaço que
inversa. Uma vez reconhecida e, além disso, traçada tão ele selecionou em um todo encerrado em si mesmo, ou seja,
coerentemente, começamos a sentir nossa plena incomen- anular as correlações perspécticas, cuja função essencial é a
surabilidade com relação ao espaço do afresco. Nós não nos unidade kantiana da experiência total, que se expressa na
introduzimos neste espaço; ao contrário, ele nos expulsa necessidade de passar de uma experiência para outra e na
para fora de si, como um mar de mercúrio expulsaria nosso impossibilidade de encontrar-se com a área autodominante.
78 Pável Floriênski
Assim é, por exemplo, a famosa pintura Bodas de Caná,
de Paolo Veronese (1528-1588), que está no Louvre: ela
possui, segundo indicação de especialistas, sete pontos de
vista e cinco horizontes. 87 Bossuet88 tentou fazer um esboço
"corrigido" da arquitetura deste quadro, ou seja, tentou fazer
uma imagem que fosse estritamente perspéctica e concluiu
que ela preservou "em essencial a mesma ordem e a mesma
beleza". 89 Note-se o bom conceito que se tem das grandes
obras de arte que podem ser "corrigidas" com tanta facilida-
de! E não seria melhor comprovar e corrigir as nossas con-
cepções estéticas baseando-se nos objetos de arte históricos?
E se é verdade que a submissão rigorosa à perspectiva de um
quadro não perspéctico, por si só, não viola a sua beleza,
será que isso não significaria que tanto a presença quanto
a ausência da perspectiva (ao menos esteticamente) não é Horace Vernet, Captura do séquito de Abd-E!-Kader, 1844 (detalhe),
tão importante como acreditam os adeptos da perspectiva? óleo so bre tela, 489 x 2139 em,
Lembre-se de como, no final de 1506, Albrecht Dürer Museu Nacional do Palácio de Versalhes, Versalhes.
partiu apressadamente de Florença a Bolonha para lá ave-
riguar "a arte secreta da perspectiva'' . Mas os segredos da
perspectiva estavam zelosamente protegidos. Lamentando-
-se da falta de receptividade dos bolonheses, Dürer teve que
partir, ainda que tenha aprendido muito pouco e, em sua
casa, passou a se dedicar por sua própria conta à descoberta
· dos mesmos procedimentos e a escrever um tratado sobre
eles (o que, contudo, não o impediu de cometer "erros"
perspécticos).
80 Pável Floriênski
Sem entrar no mérito de sua atividade artística em
geral, recordemos sua obra-prima, sobre a qual Kugler 90
escreveu em um ensaio (reconhecido pelos especialistas em
Dürer como "a mais completa e feliz descrição" 91 desta
obra), que "o artista que leva a cabo semelhante obra pode
se despedir desse mundo, pois o seu objetivo na arte já foi
alcançado: essa obra coloca-o na mesma altura dos maiores
mestres que, com justiça, fazem o orgulho da história da
arte". Aqui certamente subentende-se o díptico conhecido
como Os quatro apóstolos, criado em 1526, isto é, depois da
publicação de Instrução para medições e apenas dois anos
antes de sua morte (Dürer faleceu em 1528). Nesse díptico,
as cabeças das duas figuras que ficam atrás são maiores do
que aquelas das figuras que estão à frente. Em consequência
disso preserva-se o mesmo plano básico do relevo grego,
embora as figuras não estejam colocadas neste plano. De
acordo com a pertinente observação de um crítico de arte:
"obviamente, aqui estamos diante da assim chamada pers-
pectiva inversa, segundo a qual os objetos que estão atrás
são representados como sendo maiores do que os que estão
na frente". 92
82 Pável Floriênski
Certamente, esta perspectiva inversa dos Apóstolos sempre tensionada, não cometamos erros contra as regras
não é um lapso, mas a coragem de um gênio que derruba descobertas? Será que essas regras, mais convencionais, não
com sua intuição teorias mais racionais, inclusive as suas, lembram uma conspiração empreendida em nome de planos
pois elas exigiam um ilusionismo plenamente consciente. teóricos contra a percepção natural do mundo, um quadro
Os ensinamentos de Dürer sobre claro-escuro começam da fictício do mundo que deve ser visto segundo a percepção
seguinte maneira: "Se você deseja pintar quadros em relevo humanística do mundo, mas que apesar de todo o treina-
para que até a própria visão seja enganada ... ". 93 De fato, mento o olho humano nunca consegue ver, sendo que o
o que pode ser mais preciso do que isso? Assim prescreve artista reconhece a sua ignorância somente quando ele passa
a sua teoria ilusionista; porém a sua obra não é ilusionis- das construções geométricas para aquelas que realmente
ta. Em Dürer, a contradição (típica das pessoas em épocas percebe?
de transição!) entre a teoria e a arte era assinalada por sua Até que ponto o desenho perspéctico não é algo di-
predisposição ao estilo medieval e por seus princípios espiri- retamente compreendido, mas sim o resultado de muitas
tuais provindos da Idade Média diante de uma nova ordem condições artificiais complexas, fica evidenciado de forma
de pensamento. convincente através dos dispositivos do próprio Dürer, es-
plendidamente representados por ele nas xilogravuras de
seu Instrução para medições. Mas, quanto melhores forem
XII as próprias gravuras com seu espaço fechado em si mesmo,
mais antiartístico será o sentido das instruções produzido
De qualquer maneira, mesmo os teóricos da perspecti- por elas.
va não seguiam e nem achavam necessário seguir "a unidade A finalidade dos dispositivos é oferecer a um desenhista
perspéctica da imagem". Como, depois disso, podemos falar menos habilidoso a possibilidade de reproduzir qualquer
sobre a naturalidade da imagem perspéctica do mundo? objeto de maneira puramente mecânica, isto é, sem o ato da
Que tipo de naturalidade é essa, se precisamos interceptá- síntese visual, e, em um caso particular, absolutamente sem
-I~ para que depois, com grandes esforços e a consciência os olhos. Dürer explica sem rodeios, através de seus disposi-
tivos, que a perspectiva pode ser a ação de qualquer coisa,
menos da visão.
Assim é um desses dispositivos: ao final da mesa, em
93 Um dos manuscritos de Dürer, propriedade do Museu Britânico, forma de um retângulo alongado fixa-se, perpendicularmen-
que apresentam os esboços do artista para suas publicações propostas para te ao seu plano, um chassi retangular com um vidro. Do
o futuro. Publicado por A. von Zahn em 1868, W M. Conwey em 1889,
lado oposto, o mais estreito da mesa, paralelamente ao chas-
reeditado por K. Lange e F. Fuchs, Dürers schriftliche Nachlass aufGrund
si, fixa-se uma pequena barra de madeira com uma cavidade
der Original Handschriften und theilweise neu entdeckter a/ter Abschriften
[Patrimônio escrito de Dürer, publicado com base em manuscritos originais
no meio contendo um parafuso longo. Com a ajuda deste
e, parcialmente, em cópias antigas recém-encontradas], Halle, 1893, p. 326. parafuso move-se a pequena barra perpendicular ao plano
(N. doA.) da mesa, e dentro deste último movimenta-se uma haste de
86 Pável Floriênski
um largo orifício. Um pesinho é suspenso numa ponta do
longo e resistente fio próximo à parede. Em frente à pare-
de coloca-se uma mesa com um chassi retangular apoiado
verticalmen te. Em uma das laterais deste chassi fixa-se uma
pequena porta que pode ser aberta e fechada; no interior
do chassi esticam-se fios entrecruzados. O objeto a ser re-
presentado localiza-se sobre a mesa, em frente ao chassi.
Com um prego atado na sua extremidade, o fio mencionado
acima é passado através do chassi. Eis o dispositivo. O modo
de utilização deste dispositivo é o seguinte: encarrega-se o Albrechr Dürer, gravura do livro Instrução para m edições... , 2• edição,
assistente de segurar na mão o prego que estica o longo fio Nurernberg, 1538 (rerceiro disposirivo).
88 Pável Floriênski
Depois dessa experiência malsuced ida de meio milê- 2
nio de história, só cabe a nós reconhecer que a imagem pers-
péctica do mundo não é um Jato da percepção, mas somen~e
Premissas teóricas
uma exigência em nome de algumas razões provavelmente muz-
to fortes, porém decididamente abstratas.
E se recorrermos a dados psicofisiológicos, faz-se ne-
cessário também reconhecer que os artistas cuja principa l
tarefa seja a fidelidade à percepção não só não possuem qual- XIII
quer fundame nto, como também não ousam representar o
mundo segundo o esquema da perspectiva. No exposto acima compara mos uma série de interpre-
tações históricas. É chegada a hora de fazer um balanço e
entrar no mérito do assunto, embora deixaremos para outro
livro o desenvolvimento das questões relacionadas à análise
do espaço nas imagens.
Deste modo, os historiadores da pintura, assim como
os teóricos das artes plásticas, aspiram ou, pelo menos ain-
da há pouco tempo, aspiravam persuadi r aqueles que os
escutam de que a imagem perspéctica do mundo é a única
correta, a única que correspo nde à percepção original, pois
presume -se que a percepçã o natural seja perspéctica. De
acordo com essa premissa, o desvio da unidade perspéctica é
considerado como uma traição à verdade da percepção, isto
é, como uma distorção da própria realidade, seja por causa
da ignorânc ia gráfica do artista, seja em prol da subordin a-
ção do desenho a objetivos predeterm inados: ornamen tais,
decorativos ou, na melhor das hipóteses, compositivos. De
uma ou de outra maneira, de acordo com as considerações
mencion adas, o desvio das normas da unidade perspéctica
resulta em irrealismo.
Todavia, tanto a palavra como o conceito de realidade
possuem peso suficiente para que os defensores de uma ou
de outra concepção do mundo fiquem indiferentes se a dita
realidade permane ça em suas mãos ou passe para as mãos
de seus oponente s. Há de se pensar muito antes de fazer tal
!882
Pável Aleksándrovitch Floriênski nasce em levlakh (Azer-
baijão) em 9 de janeiro (21 de janeiro, pelo calendário gre-
goriano), primeiro dos seis filhos do engenheiro ferroviário
Aleksandr lvánovitch Floriênski ( 18 50-1908), de ascendên-
cia russa, e de Olga Pávlovna (1859-1951), de linhagem
armênia, cuja sensibilidade artística estimulará as três filhas
a tornarem-se pintoras (um irmão de Pável será geólogo e
o outro engenheiro).
!892
Ingressa no liceu clássico de Tiflis (capital da Geórgia) onde
tem por amigos o futuro teólogo Aleksandr leltchanínov
(1881 -1934), o futuro filósofo Vladímir Ern (1882-1917)
1934
É enviado para uma estação experimental de pesquisas sobre
o solo congelado em Skovorodinó, onde realiza estudos que
posteriormente serão publicados por seus colegas Bíkov e
Kápteréva em Viétchnaia merzlotd i stroítelstvo na niéi (O
pergelissolo e a construção sobre ele, 1940). Em 1° de setem-
bro, é enviado para o campo do GULag [Glávnoie Uprav-
liénie Ispravítelno-Trudovikh Lageriéi i Kolonii - Admi-
nistração Central dos Campos e Colônias de Trabalho e de
Correção], no arquipélago de Solovkí, antigo monastério da
ortodoxia russa, fundado no século XV, e que as autoridades
soviéticas transformaram em campo de concentração, no
Mar Branco, extremo norte da Rússia. Apesar das privações,
Floriênski continua as atividades científicas em uma fábrica
de iodo de Solovkí e investiga a produção de iodo a partir
das algas marinhas. Elabora petições à OGPU reivindican-
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DICIONÁRIO S
Agradecimentos 141
Sobre as tradutoras