Você está na página 1de 77

"Toda relação com o espaço é afetiva", diz Jasper

Johns. E, de fato, é muito mais desafiador para um


artista identificar e dar forma espacial a seus afetos,
nomeados e inomináveis, do que aplicar docilm~nte
os conceitos visuais hegemôilicos de seu tempo. O
espaço real e presente é interrogação constante, e se
prolonga de mcido distinto em cada olhar.
O conhecimento confere capacidade não só para
erguer novos conceitos, mas também transgredi-los,
quando o mundo real demonstra suas limitações.
Os artistas inaugurais da perspectiva ocidental es-
tiveram entre os primeiros a superá-la, já que seu
conhecimento era tanto abstrato quanto fruto da
experiência concreta. Masaccio, Dürer, Leonardo e
tantos outros, foram capazes de usar poeticamente
a perspectiva sem se tornarem dependentes da mera
aplicação - ou imposição - de conceitos. Desde
as primeiras experiências, a paisagem, incontrolável
e caótica, contestou com as nuvens os limites de uma
construção geométrica do espaço.
A partir do Renascimento, as novas ideias e o
novo status do artista, agora socialmente superior ao
artesão, alteraram as formas de aprendizado e aper-
feiçoamento artístico, associando ao conhecimento
artesanal os estudos teóricos. Estes, no entanto, tem
um papel mais relevante do que fornecer argumen-
tos para deslizar sem atrito na periferia do centro
desejante da realização. Como fazem as nuvens, de-
vem alargar a capacidade de reconhecer os preciosos
obstáculos. É frutífero introduzir dúvidas nos pro-
gramas de ensino. Em artes visuais, dúvidas sempre
assumem configurações espaciais.
A figura de Pável Floriênski - matemático, teó-
logo, físico, historiador da arte, padre ortodoxo - é
mais dissonante no conformismo atual do que em
épocas revolucionárias. Tentou compreender melhor
o espaço do passado para apreender melhor o espaço
dp presente. Tal como a perspectiva, qualquer noção
contemporânea de espaço p-ode ser comodamente
rebaixada a um patamar instrumental: uma aplica-
ção que gera resultados previsíveis, justificáveis de
antemão. Através da análise da perspectiva inversa
empregada pelos pintores russos de ícones, Floriên-
ski nos adverte que entre o processo de construção
do espaço e as aspirações do artista não se traçam
fronteiras. Entre espaço, corpo, mente, lápis, câmera
e pincel, teoria e prática, não existem demarcações
claras. Mas é somente na tentativa de realizar a obra
que a situação desvela toda a sua complexidade: as
hierarquias se embaralham, as consequências tor-
nam-se imprevisíveis, as interpretações proliferam,
as ações materiais apontam para novas tentativas.
O saber plural de Floriênski contestava a especia-
lização imposta à formação do conhecimento. Um
foco excessivamente estreito torna mais difícil per-
ceber que a maior carga poética, na pintura russa de
ícones, se encontra na perspectiva inversa, dissonante
em relação ao espaço estabelecido.
Reconhecer qualidades exige presença e atenção
- e o que há na arte senão qualidades? Uma de-
las é não haver garantia nenhuma. Numa época de
quantidade e resultados, abundam os argumentos
procurando forjar qualidades, e obras ditas de arte
sem cardter, à espera de qualquer ficção legitimado-
ra. O encontro com a obra de Pável Floriênski, até
este momento ausente da bibliografia em lfngua por-
tuguesa, pode turvar com rigor e paixão as nossas
plácidas perspectivas,

MarcoButi
Professor do Departamento de Artes Plásticas
da Universidade de São Paulo
16 3 2 13
5 10 11 ,8
9 6 7 12
4 15 14 1
Pável Floriênski

A PERSPECTIVA
INVERSA

Tradução
Neide }allageas e Anastassia Bytsenko

Apresentação
Neide jallageas
Editora 34 Lrda.
Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000
São Paulo- SP Brasil Tel/Fax (11) 3811-6777 www.editora34.com.br

Copyright ©Editora 34 Ltda., 2012


Tradução © Neide Jallageas e Anastassia Bytsenko, 2012
Apresentação© Neide Jallageas, 2012

A fotocópia de qualquer folha deste livro é ilegal e co nfigura uma


apropriação indevida dos direitos intelectuais e patrimoniais do autor.
A PERSPECTIVA
Título original:
INVERSA
Obrdtnaia perspektiva

Imagem da capa:
A perspectiva violada, Neide ]allageas ..... ............... ... 7
Andriêi Rublióv, A Santa Trindade, 1427,
pintura s/ madeira, 142 x 114 em, Galeria Tretiakov, Moscou.

Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica: A PERSPECTIVA INVERSA


Bracher & Malta Produção Grdjica
1. Observações históricas ................. .. .............. ....... . 17
Revisão:
2. Premissas teóricas .......... ....... .... .......... ........... ..... . 91
Alberto Martins, Lucas Simone, Camila Boldrini

ra Edição- 2012
Dados biográficos de Floriênski .... ...... ... ..... ............ . 127
Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro
Bibliografia ........ ....... .. ............ ........... ............... .. .... . 137
(Fundação Biblioteca Nacional, RJ, Brasil) Agradecimentos .............. .... ............. ... .. .. ..... ........ ... . 141
Sobre as tradutoras ........ ... ............. ........ ...... .. ... ...... . 143
Floriênski, Pável, 1882-1937
F696p A perspectiva inversa I tradução de Neide
Jallageas e Anasrassia Bytsenko; apresentação de
NeideJallageas. r São Paulo: Ed ito ra 34,2012
(I ' Edição) .
144 p.

Tradu ção de: O brámaia perspekt iva

ISBN 978-85-7326-499-9

1. Artes plásticas- Crítica e história.


2. Filosofia -Estética. I. Jallageas, Neide.
li. Byrsen ko, Anastassia. III. Título.

CDD -750.1
A perspectiva violada
Neide ]allageas

Oito anos antes da publicação do livro de Panofsky,


A perspectiva como forma simbólica (1927), obra que setor-
naria um marco nos estudos sobre a representação espa-
cial e temporal nas artes, uma outra teoria começava a ser
sistematizada no contexto da Rússia revolucionária, mais
precisamente em 1919, sob um ponto de vista talvez mais
abrangente, que não se limitava à interpretação da perspec-
tiva linear própria do sistema euclidiano.
Em seu breve ensaio A perspectiva inversa, o matemá-
tico, teólogo, físico, geólogo, historiador da arte e padre
ortodoxo Pável Aleksándrovitch Floriênski (1882-1937)
tratava de maneira profundamente inovadora os proble-
mas da percepção estética, dos modelos de representação
estabelecidos ao longo da história, e colocava em xeque
a perspectiva linear, contrapondo a esta outras formas de
representação, tal como a perspectiva inversa, tema central
(porém não único) deste livro.
Floriênski redigiu A perspectiva inversa originalmente
como um relatório a ser apresentado à Comissão para a
Conservação dos Monumentos e Antiguidades do Monas-
tério da Santa Trindade de São Sérgio, em 1919, ano de
grande efervescência e de tremendos contrastes. Se por um
lado a Guerra Civil, desencadeada pela Revolução de Ou-
tubro de 1917, tornava caótica a vida dos russos, por outro,
chegava-se ao final de duas décadas em que os movimentos
artísticos se articulavam com liberdade, abrindo largo cam-

A perspectiva violada 7
po de experimentação nas artes visuais, na música, no teatro
formas e princípios distintos daqueles canonizados por co-
e na literatura. Além disso, uma antiga manifestação russa, a
nhecimentos advindos do Renascimento e do Iluminismo.
pintura de ícones, era redescoberta e estudada pela primeira
A obra de Floriênski pauta-se por essa visão. Seus es-
vez na Rússia como obra de arte.
critos sobre arte, história, religião, filosofia, poesia - bem
Característica própria desse momento é a polêmica em
como suas atividades e inventos no campo da física, da geo-
torno do conceito de "realismo", sobretudo nas artes visuais,
logia, da matemática, da arqueologia - , 2 têm sido cada
lócus de disputas ferrenhas entre os artistas e intelectuais que
vez mais valorizados, com traduções publicadas no mundo
viriam a integrar as hoje denominadas "vanguardas" e aque-
inteiro.
les que eram chamados, já naquele período, de "pintores de
Floriênski foi um daqueles sábios que, no início do
cavalete", ou seja, aqueles que em suas telas davam conti-
século XX, como observam os eslavistas norte-americanos
nuidade à pintura de representação, tal como compreendida
Michael Holquist e Katerina Clark, foram educados no en-
até então. Em busca de alternativas para a arte imitativa,
tendimento de que a experiência humana deveria conjugar
os artistas recorriam às raízes russas, pesquisando a pintura
a religião e as ciências consideradas duras. 3 No entanto, a
popular e a pintura de ícones com o intuito de afastar sua
despeito da qualidade de seus trabalhos desenvolvidos a ser-
arte dos modelos europeus.
viço do Estado soviético, a obra de Floriênski permaneceu
Para alcançar esses objetivos, uniam-se em grupos, or-
fora do alcance do público durante décadas.
ganizavam e dirigiam museus, editavam revistas e, ao mes-
Isso se explica porque o período conturbado, mas cria-
mo tempo, participavam da concepção de metodologias
tivo, durante o qual o autor desenvolveu as ideias contidas
de ensino, atuando em escolas de arte, como na mais co-
em A perspectiva inversa e se ocupou das aulas nos VKhU-
nhecida delas, os Ateliês Superiores VKhUTEMAS , 1 onde
TEMAS, foi seguido de outro, em que as experimentações
Floriênski foi professor. Essas iniciativas, em sua maioria,
estéticas foram interrompidas à força, e artistas e intelectuais
almejavam forjar uma arte e um mundo organizados por
de todas as áreas foram exilados, presos ou mortos, e suas
obras, escritos literários ou científicos, relegados ao esqueci-
mento por determinação do governo 'soviético. Os nomes de
1
Os Ateliês Superiores de Arte e Técnica [VKh UTEMAS - Víschie muitos desses autores e artistas foram literalmente apagados
Khudójesrvenno-Tekhnítcheskie Masterskíe] foram criados oficialmente
da história oficial russa. Alguns viriam a conhecer um rápido
em 1920 por Vladímir Lênin (1870-1924), em Moscou, com o objetivo
de substituir o velho modelo de ensino "acadêmico", burguês, por méto-
dos pedagógicos alinhados aos objetivos da Revolução Russa. Acolheram e 2
Dentre as invenções de Floriênski destaca-se aquela realizada por ele
concentraram as mais radicais propostas desse curto e efervescente período nos campos de trabalhos forçados de Solovkí, onde esteve preso e conduziu
da arte russa, como o suprematismo, o produtivismo, o construtivismo e pesquisas sobre a extração e produção de iodo a partir de algas. Os rendimen-
o abstracionismo, através de seus expoentes Aleksandr Ródtchenko (1891- tos com a patente dessa invenção viabilizam financeiramente a manutenção
1956), Kasimir Maliévitch (1878-1935) e Vassíli Kandínski (1866-1944), do museu que leva o seu nome, em Moscou.
os quais cultivavam entre si conceitos muitas vezes divergentes, expressos
3 Cf. Katerina Clark e Michael Holquist, Mikhai! Bakhtin, Carn-
inclusive em acaloradas discussões públicas.
bridge, Harvard University Press, 1984.

8 Neide Jallageas A perspectiva violada 9


e passageiro ressurgimento nos anos 1960, para logo serem acerca de suas investigações para extrair iodo de algas ma-
abafados novamente pelo regime. rinhas. A partir de 1937, sua família deixou de ter notícias,
Para se ter ideia da dificuldade de trazer à luz as produ- e apenas em 1958 foi informada de que ele teria morrido
ções artísticas e intelectuais silenciadas durante esse período, em 1943. Após grandes esforços, o Memorial dos Direitos
vale notar que a primeira publicação de A perspectiva inversa Humanos na Rússia, órgão que luta pela investigação sobre
na Rússia se daria apenas em 1967, graças aos esforços dos o paradeiro e a reabilitação de milhões de russos mortos nes-
semioticistas da Escola de Tartu-Moscou, reunidos em torno se período, obteve uma informação mais segura: Floriênski
de Iuri Lotman (1922- 1983). Sobre essa edição, um dos teria sido executado juntamente com outros prisioneiros no
netos de Floriênski, o geólogo Pável Vassílievitch, declarou dia 8 de dezembro de 1937, no auge do Terror stalinista, em
em 2006 o seguinte: uma floresta nas proximidades de São Petersburgo, então
Leningrado. Em visita ao Museu Floriênski, em Moscou, os
"A primeira grande publicação [de Floriên- mantenedores do mesmo informaram-me que o local onde
ski] após 35 anos de silêncio foi A perspectiva in- o extermínio se deu é hoje ocupado por uma grande usina,
versa. Eu me lembro muito bem como falavam e que, portanto, não há qualquer possibilidade de recuperar
sobre isso, discretamente, A. A. Dórogov, V V e identificar seus restos mortais.
Ivánov e B. A. Uspiênski - que a publicaram O longo silêncio em torno de Floriênski não impede
com um prefácio bastante competente em 1967 que hoje pesquisadores do mundo todo se acerquem de seus
na cidade de Tartu - e também como eles fica- textos para traduzi-los e divulgá-los, e dar assim seguimento
ram orgulhosos com seu feito, que naquela épo- às suas pesquisas.
ca podia ser comparado a um ato heroico. Pro- Apesar de ser um ensaio relativamente curto, A pers-
vavelmente, apesar de tudo, eles tiveram algum pectiva inversa funda o centro dos interesses de Floriênski
tipo de 'censor interno' e fizeram alguns cortes no campo da arte e da filosofia: a análise do espaço e do
no texto que hoje, para nós, são absolutamente tempo. Os primeiros capítulos abrem com a apresentação
incompreensíveis." 4 histórica da perspectiva linear, questionando sua hegemonia
como sistema de representação. A seguir, são colocados em
Quando imaginamos que Floriênski foi , por indicação discussão os fundamentos do modelo euclidiano: a visão
de Trótski, um dos responsáveis pela eletrificação da Rússia monocular, e estática, na apreensão do objeto e a projeção
no período de Lênin, então podemos ter uma ideia de sua da imagem resultante dessa visão sobre uma superfície pla-
importância no contexto científico e social da época. Suas na. Ao aprofundar sua crítica, da mesma forma que busca
pesquisas continuaram, mesmo após sua prisão em um Gu- desconstruir o discurso hegemônico da perspectiva linear
lag, na Sibéria, de 1933 até sua morte. Durante todo esse pe- enquanto modelo geométrico cuja pretensão é representar
ríodo ele manteve correspondência com a família e escreveu a realidade espaço-temporal, Floriênski discute as relações
entre o corpo e o espaço, as aproximações e os distancia-
4 Nóvi f urna!, 2006, n° 242, p. 7. mentos no tempo, com o corpo em movimento, nunca

10 Neide Jallageas A perspectiva violada 11


imóvel, através de interações que levam a uma apreensão dos, quanto de um cineasta do porte de Andriêi Tarkóvski
mais íntegra da experiência humana no mundo. (1932-1986).
Longe de postular a primazia da perspectiva inversa so- Este deixou claro o quanto se apoiava em Floriênski
bre a perspectiva linear, o que Floriênski faz é demonstrar a em suas pesquisas para filmar Andriêi Rublióv, durante os
impossibilidade de que um único sistema geométrico possa anos 1960, e sintetizou assim seu pensamento:
objetivar a experiência da realidade - daí, segundo ele, a
necessidade de se estudar também outra perspectiva, uma "[Floriênski] diz que a perspectiva inversa
que possibilite o ingresso na realidade intangível das coisas, das obras daquele período [Idade Média] não
baseada na estrutura invisível de sua realidade metafísica, decorria do fato de os pintores russos de ícones
e que se faz evidente na pintura dos ícones russos. Para desconhecerem as leis da óptica que haviam sido
ele, até mesmo grandes mestres da perspectiva linear, como assimiladas pelo Renascimento italiano depois
Michelangelo ou Dürer, violam necessariamente suas regras. de terem sido elaboradas, na Itália, por Leon
Contra uma teoria linear, progressiva, da História da Battista Alberti. Floriênski argumenta, de modo
Arte, e contra as correntes que desconsideram a inteligência convincente, que não era possível observar a na-
medieval, Floriênski se defronta com a complexidade das tureza sem vir a descobrir a perspectiva, estando
estruturas espaciais forjadas pelo olhar do medievo. Nesse esta, portanto, destinada a ser descoberta. Na-
sentido, observa como os procedimentos utilizados pelos quele momento, porém, ela podia não ser neces-
pintores de ícones estavam longe de serem fortuitos ou in- sária - podia-se ignorá-la. Assim, a perspectiva
gênuos, e como esses artistas se norteavam por elaborados inversa na antiga pintura russa, a rejeição da pers-
cálculos formais para alcançar um alto grau de plasticidade, pectiva renascentista, expressa a necessidade de
levando em conta a distância entre o quadro e a pessoa que lançar luz sobre certos problemas espirituais que
dele se aproximasse, por vários ângulos que não apenas o os pintores russos se colocavam, ao contrário dos
frontal. artistas do Quattrocento italiano. (A propósito,
A experiência de percepção tratada por Floriênski só é afirma-se que Andriêi Rublióv teria realmente
alcançada quando o observador está diante de tais ícones, visitado Veneza, e, neste caso, ele deve ter tomado
ou seja, para que a experiência artística se efetive, o corpo e conhecimento do que os pintores italianos esta-
o ícone necessitam estar no mesmo espaço. Curiosamente, vam fazendo em termos de perspectiva.)" 6
tal entendimento do espaço e do tempo tem vários pontos
de contato com a arte de nossos dias. Esse dado de con-
temporaneidade aproxima os escritos de Floriênski tanto de
um pesquisador de novas mídias e tecnologias como o ar-
to Computer (Ph.D. Dissertation, Visual and Cultural Studies, University of
tista visual russo Lev Manovich, 5 radicado nos•Estados Uni- Rochester, 1993; disponível em http://www.manovich.ne t).
6 Andrei
Tarkôvski, Esculpir o tempo, tradução de Jefferson Luiz Ca-
5 Ver, de Lev Manovich, The Engineering ofVision
from Constructivism margo, São Paulo, Martins Fontes, 1990.

12 Neide Jallageas A perspectiva violada 13


O olhar que Tarkóvski lança sobre Floriênski se reflete
em toda a sua construção fílmica, não apenas em Andriêi
Rublióv. Em todo o seu cinema é possível observar como
a tradição da pintura de ícones russa se faz presente, como
Tarkóvski a resgata e a atualiza, fazendo uso de uma tecno-
logia inteiramente diversa daquela que tinham à disposição
os artistas medievais. 7
Esse é um exemplo de como é possível se movimen-
tar no tempo, encontrar frestas, fissuras e entremeios, esca-
par das interpretações totalitárias do mundo e explorar tan-
to os limites como as potencialidades de outras matrizes
teóricas.

Moscou, 2012 A PERSPECTIVA


INVERSA

7 A propósito, ver, de Neide Jallageas, Estratégias de construção no


cinema de Andriêi Tarkóvski: a perspectiva inversa como procedimento (tese de
Doutoramento em Comunicação e Semiótica, Programa de Estudos Pós-
-Graduados em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, São Paulo, 2007).

14 Neide Jallageas
1

Observações históricas 1

Aquele que se depara pela prime ira vez com os ícones


russos dos séculos XIV, XV e alguns de meados do século

1 O presente artigo foi escrito no mês de outubro de 1919 como


relatório à Comissão para a Conservação dos Monum entos e Antigui
dades
do Monasrério da Santa Trindade de São Sérgio. No entanto ,
por diversas
circunstâncias externas, não foi apresen tado à Comissão, senão
em 29 de
outubro de 1920, quando da reunião do departa mento de
Bizâncio do
Insriruro de Investigações Hisrórico-Arrísricas e de Museografia
de Moscou,
subordinado à Academia Russa de História da Cultura Materia
l do Comitê
Popular de Educação. Os debates acerca do comunicado se estende
ram mui-
to; do que me recordo, deles participaram: P. P. Murárov, B. A.
Kúfrin, N. I.
Románov, A. A. Sídorov, N. A. Mrikánov, N. M. Schókorov, M.
I. Fabrikanr
e N. D. Lange. A intensidade das discussões me assegurou que
a questão do
espaço é uma das mais importantes na arte e, direi mais, na
compreensão
do mundo em geral. No enranro, a questão do espaço nas artes
plásticas
não é abordada no presente artigo, constitu indo o rema de
minhas aulas
sobre a análise da perspectiva, que estão sendo preparadas para
a publicação
e que foram lidas nos anos de 1921 e 1922 nos Ateliês Superio
res de Arte
e Técnica de Moscou , também chamad os VKhUT EMAS, na
Faculdade de
Arres Gráficas; já o presente artigo oferece rão somente uma
aproximação
histórica concreta à noção orgânica do mundo. O autor não pensa,
de forma
alguma, em construir uma teoria da perspectiva inversa, rão somente
gostaria
de sublinhar, com energia suficiente, a existência do pensamento
orgânico
em um campo concreto. Como conclusão desse comentário,
gostaria de
recordar, com gratidão, Aleksandra Mikháilovna Buriáguina, já
falecida, que
anotou a primeira parte deste artigo, que a ela direi. (N. do A.)

A perspectiva inversa
17
XVI, geralmente fica espantado diante de suas inesperadas
construções perspécticas, principalmente quando se trata da
representação de objetos de faces planas e arestas retilíneas,
como no caso de edifícios, mesas e cadeiras e principalmente
de livros, como os Evangelhos com os quais são retratados
habitualmente o Salvador e os Santos. Tão singulares cons-
truções se opõem de maneira gritante às regras da perspecti-
va linear, de cujo ponto de vista não podem ser consideradas
senão como um ordinário analfabetismo do desenho.
Quando contemplamos os ícones com maior atenção
não é difícil notar que os corpos limitados por superfícies
curvas também são representados em ângulos que excluem
as regras da perspectiva. Frequentement e os ícones mostram,
tanto nos corpos curvilíneos, quanto nos corpos facetados,
partes e superfícies impossíveis de serem vistas ao mesmo
tempo, o que qualquer um poderia consultar no mais ele-
mentar dos manuais de perspectiva. Assim, do ponto de
vista comum dirigido à fachada dos edifícios representados,
pode-se observar as duas paredes laterais ao mesmo tempo.
Do Evangelho vemos três ou até mesmo quatro lombadas
ao mesmo tempo. Um rosto é representado com o alto da
cabeça, as têmporas e as orelhas voltadas para a frente como
se estivessem estendidas sobre a superfície plana do ícone
e com aqueles planos que não deveriam ser mostrados, tais
como o do nariz e os de outras partes do rosto, voltados para
o espectador; enquanto por outro lado, fazem retroceder
aqueles planos que naturalmente estariam posicionados para
a frente. São ainda características as corcundas das figuras in-
clinadas no nível da déesis, 2 que mostram simultaneamen te
Dionissi, O metropolitaAiiéksi, c. 1500, têmpera s/ madeira,
197 x 152 em, Galeria Tretiakov, Moscou.
2 Déesis (do grego ÕÉT)otç, "súplicà') era inicialmente, na Igreja Orto-
doxa, um ícone que fazia parte da iconóstase, a parede- ou biombo- que,
na igreja, separa a nave principal do santuário reservado ao clero. Somente
mais tarde, a partir de meados do século XIV, começam a surgir iconóstases

18 Pável Floriênski
as costas e o peito de São Procópio escrevendo sob a orienta-
ção de São João Evangelista, e outras semelhantes junções de
superfícies de rostos de perfil e de frente, de planos dorsais e
frontais etc. Com relação a esses planos complementares, as
linhas paralelas que não estão no plano do ícone ou que são
paralelas a ele, as quais perspectivamente deveriam ser repre-
sentadas convergind.o até a linha do horizonte, no ícone são
representadas inversamente, como linhas divergentes. Re-
sumindo, estas e similares infrações da unidade perspéctica
daquilo que está representado no ícone são tão evidentes e
concretas, que seriam as primeiras a serem apontadas pelo
mais medíocre estudante de perspectiva, mesmo a tendo
experimentado somente de passagem e de terceira mão.
Mas, o estranho é que essas "ignorâncias" do dese-
nho, que talvez deixassem furioso qualquer espectador que
entendesse a "evidente incongruêncià ' de tal imagem, ao
contrário, não causam qualquer sensação desagradável e são
percebidas como algo obrigatório e até agradam. Além dis-
so: se conseguirmos colocar lado a lado dois ou três ícones,
de períodos próximos e de mestria pictórica semelhante, o

altas, que sustentam vários níveis de ícones em sua superfície. A déesis, então,
transforma-se num conjunto de ícones que podem chegar a dois metros de
altura. Teologicamente, Floriênski explica que a "iconóstase é uma fronteira
entre o mundo visível e o invisível" e se constitui na "manifestação dos an-
jos e santos - angelophania - , na aparição de testemunhas celestiais: em
primeiro lugar, da Mãe de Deus e do próprio Cristo" (Floriênski, 1993, p.
40). O semioticista russo Boris Uspiênski conceitua a déesis como sendo a
parte da iconóstase (geralmente a terceira fileira) localizada acima das Portas
Reais e que tem como imagem central a do Cristo Pantocrátor (vide nota
7), com a Virgem Maria a seu lado direito, São João Batista à esquerda e a
seguir arcanjos, apóstolos e santos. Todas as figuras que fazem parte da déesis Andriêi Rublióv, O apóstolo Paulo, c. 1415, pintura s/ madeira,
têm seus rostos virados para o Cristo e as mãos em posição de súplica pela 160 x 110 em, Galeria Tretiakov, Moscou.
humanidade (Lázarev, 1970, p. 32, pp. 108-9; Pravoslávnaia Entsiklopiédia;
Uspiênski, 1976, p. 9). (N. da T.)

20 Pável Floriênski
Corre e vista intern a de uma igreja russa indica Gravura medieval em que as paredes frontais
ndo e laterais
a nave (1), a iconó stase (2) e o altar (3). podem ser vistas simultaneamente.

UOOUUDOOUOO
oo~oo 1

D D D D
Esquema da iconó stase indicando o nível inferi
or (1), o imediatamente
superior (déesis) (2), e a posição do Cristo Panto Esquemas indicando a perspectiva linear e a
crátor (3). perspectiva inversa.
espectador percebe com toda plenitude a enorme superio- _ E~sa im~ressão de que ditas violações da perspecti-
ridade artística naquele ícone onde a violação das regras da va sao mtencwna is é extremam ente reforçada pela ênfase
perspectiva é maior, ao passo que os ícones cujo desenho é dada aos ângulos especiais em questão, através da aplicação
"mais correto" parecem frios, sem vida e carentes de uma ~e uma col~ração especial ou, como falam os pintores de
3
relação mais próxima com a realidade neles retratada. Os l~on~, raskrzchka: as peculiaridades do desenho aqui não
ícones mais criativos para a percepção artística direta sempre so nao passam despercebidas pela consciência, através do
revelam algum "defeito" de perspectiva. Os ícones que mais uso em partes correspon dentes de algumas cores neutras ou
atendem a um manual de perspectiva não têm alma e são atenuadas pelo efeito cromático geral, como, pelo contrário,
maçantes. Se nos permitirm os simplesme nte esquecer, por sobressaem com ar de desafio, quase gritando sobre 0 fundo
um tempo, as exigências formais da perspectiva, a sensibi- geral colorido. Assim, por exemplo, os planos adicionais dos
lidade artística direta nos dirigirá ao reconheci mento da
d"fí . 4
e I 1c1os - palata - não só não se escondem na sombra
superiorid ade dos ícones que violam a perspectiva. co_mo, ao contrário, frequentem ente são pintados em core;
Aqui pode surgir a hipótese segundo a qual o que real- bnlhantes e além disso de forma absolutam ente diferente
mente agrada não é a maneira da representação como tal, dos pla~os das fachadas. Nesses casos, chama a atenção,
mas a inocência e o estado primitivo da arte, despreocu pada com maior persistência, o objeto que mais se destaca através
como uma criança em matéria de alfabetização artística: há ~e v~rias técnicas e tende a ser o centro pictórico do ícone,
apreciadores inclinados a declarar que o ícone é um meigo Isto e, o Evangelho . Sua lombada, normalme nte pintada
balbucio infantil. Mas não: os ícones com fortes violações
às regras da perspectiva pertencem aos grandes mestres, ao
passo que a violação menor dessas regras é peculiar prin- 3
Termo técnico da pintura de ícones russos. Trata-se de um esboço de
cipalment e aos mestres da segunda e terceira categorias, o
cores por mew do qual o pintor dá início ao processo de coloração do fundo ,
que induz a pensar que a ideia de ingenuidade de ícones seja das figuras e acessórios, mas sem o uso de meios-tons e sombras. Floriênski
pueril. Por outro lado, essas violações às regras da perspectiva ~~nserva em seu texto as palavras correspondentes ao processo da pintura
são tão persistentes e frequentes, eu diria tão sistemáticas, Icomca. Neste caso, ele redimensiona o sentido de raskríchka, remetendo ao
persistent emente sistemáticas, que involuntar iamente nasce ~erbo raskrivát, que lhe é cognato e tem a acepção de "abrir" e também de
a suspeita de uma não aleatoried ade dessas infrações, da . revelar" (Fioriênski, 2000, p. 138). O semioticista russo Boris Uspiênski
existência de um sistema especial de representação e percep- mterpret~, len.do F.loriênski, a ação do pintor de ícones afirmando que 0
ção da realidade representa da nos ícones. mesmo nao crza a pmtura, e sim a revela (Uspiênski, 1976, p. 16). (N. da T)
4
Logo que esta ideia surgiu entre observadores de íco- , . A palavra russa palata (do latim pafatium) designa um grande edi-
ficw com um rico conjunto de quartos. Em português utiliza-se termo
nes, nasceu e gradualme nte tornou-se mais firme a crença 0

"palácio" (da mesma origem latina), e é exatamente esse o sentido assumido


de que tais infrações às leis da perspectiva fazem parte da
nesta frase: os edifícios em que, na Idade Média, residiam os nobres. Em
aplicação consciente de um procedime nto artístico da pin- russo também existem as acepções de "câmara", "sal a" e "quarro" que o au-
tura de ícones e que, boas ou ruins, são considerav elmente tor utilizará em outros momentos desse texto (http://feb-web.ru; Houaiss;
deliberadas e conscientes. Aurélio). (N. da T)

24 Pável Floriênski A perspectiva inversa


25
. b 5 e' a part e de cores mais vivas ferente, isto é, com seu próp rio e especial
d e ema re, do ícone, o que cent ro de perspec-
acen tua de man eira extr ema men te agu l tiva; às vezes com seu próp rio horizont
da os seus P anos e, e além disso, outras
adicionais. partes são representadas com o uso da
perspectiva inversa.
Esses são os proc edim ento s de ênfas~. d" Este desenvolvimento complexo de esco
Esses pr~ce 1- rços em perspectiva
. d , d da
men tos são mais conscientes am a a me 1 . que estao em acontece não só na pint ura de edifícios
- palá tnoí e písm ó
cont radi ção com a coloração com um dos - , mas tam bém na pint ura de semblan
obJetos e, p_or tes de san tos - líkí
~ pod em ser explicados pela imitação naturalistatan- - , 6 emb ora norm alm ente ele, nest
e caso, seja realizado sem
to, nao da
.d de Nor mal men te os Evange lhos nao ~ uíam lom - mui ta frequência, mod erad ame nte e
real1 a · poss disc reta men te, e por
badas de cinabre e as paredes laterais dos d" f · ~ ram isso pod e parecer um "erro" do dese nho
e 1 lClOS nao e . . Em compensação,
intadas em cores diferentes às das fachadas em outr os casos, todas as regras acadêmic
P , podrtandt~ a ordl- as são derr ubad as
inalidade de sua coloraça~ o nos Kon
, não po e e1xar e com tant a ousa dia e a sua violação é
~videnciar a aspiração de acentuar a essuplementaç~~
tão imp erio sam ente
o ~esses realçada, e o respectivo ícon e fala tant
o por si só de suas
planos e sua desobediência aos ângulos realizações artísticas para a apreciação
da perspecnva hnear. espontânea, que não
resta nen hum a dúvida: os detalhes "inc
orretos" e cont radi tó-
rios do dese nho repr esen tam um complex
o cálculo artístico
li que, se se quiser, pod e ser cham ado de
audacioso, mas de
mod o algum de ingê nuo . O que dizer,
por exemplo, sobre
Os proc edim ento s citados levam o nom o ícon e do Cris to Tod o-P ode ros o-
. e com um _de Pan tocr átor7 - na
ers ectiva inve rsa ou reversa e, as , es de pers pecu va
~ez ' ~
P P c l Mas a perspectiva mversa nao esgota a
perversa ou 1a sa. .
diversidade de part icul and ades do dese h em de claro-
n o e_n . 6 Em seus escud os Floriênski uriliza o rerm
,
-escuro d os Kon s A presença do poli cent nsm o nas 1ma o lik (plural liki) como
e . - "semblanre" para referir-se à pintu ra dos
ens deve ser men cion ada com o uma das , . . . rostos dos sanros. O reólogo disrin-
prauca~ m~1S 1me~ gue "semblanre" -li k- de "face" -
~iatas de difusão dos procedimentos de perspecu litsó - , explicando que o primeiro
rermo refere-se à realidade ontológica, enqu
va mverlsha. anto o segun do significa apen as a
dese nho é con strm'do d e tal lOrm
c
a que é com o se o o o realidade objetiva. Essa quesrão foi aprofunda
da por Floriênski em lconostasis
:ud ass e de lugar para mira r as suas dife .
rente~ partes. Ahq;l, (Floriênski, 2000, pp. 50-1). (N. da T.)

al uma s partes d os ed 1.f'1Cl0


. s - pala ta - sao desen a as 7 Pantocrdtor é um tipo iconográfico do Crist
o, cujo nome, originá-
g. nos de acordo com as exigências da pers . rio do grego, significa "aquele que rudo
ma1s ou me pecnva rege". Apresenra sempre a figura
linear habi tual , poré m cada uma d e um de vista di- hisrórica do Crisro, em idade adulra, próxi
mo dos trinta anos, mas ressal-
pon to tando, com ourros traços, sua narureza
ao mesmo temp o huma na e divina.
Habirualmenre leva as Sagradas Escrituras
na mão esquerda, tendo a direira
.
5 Cina bre (HgS) é um miné no, d ercúrio e enxofre, de inclinada em posição de bênção "à mane
composto e m . . ira grega": com o polegar voltado
Chin a o uso de cinabre como ptgmento para si, os dedos médi o e indicador em
cor vermelha ou preta. N~ ' . d, r
em nnta posição oblíqua, quase vertical, e
vermelha apon ta para o mtc!O a ap tcaça- de mercúrio há três mil anos os demais dedos dobrados em direção
à palma da mão (Gharib, 1997, pp.
o
(Micaroni, Bueno e Jardim, 2000 ). (N. 91-102). (N. da T.)
da T.)

Pável Floriênski A perspectiva inversa


26 27
9
sacristia da Lavra, 8 cuja cabeça está voltada à direita, mas
cujo próprio lado direito tem um plano adicional, sendo
que o escorço do lado esquerdo do nariz é menor que o
direito etc.? O plano do nariz está voltado tão obviamen te
para o lado e a superfície da fronte e das têmporas tão des-
dobradas, que não seria difícil desaprovar tal ícone se, ape-
sar da sua "incorreção", não existisse uma assombrosa ex-
pressividade e plenitude. Esta impressão torna-se conscien-
te por completo se, na mesma sacristia da Lavra, dermos
10
uma olhada em um outro ícone com o mesmo nome do
ãnterior e de desenho, perevod, a dimensões e cores seme-
lhantes, mas realizado quase sem os menciona dos desvios
das regras da perspectiva, muito mais correto academica-
mente. Este último ícone, em comparaç ão com o primeiro,
parece pobre de conteúdo, inexpressivo, sem profundid ade

8 Lavra aqui refere-se ao Monastério da Santa Trindade de São Sérgio.


Lá, Andriêi Rublióv pintou, enrre 1425 e 1427, o mais comentado e visitado
ícone russo, A Santa Trindade, que se encontra hoje na Galeria Tretiakov. É
também nesse monastério que Floriênski escreverá o presente texto e viverá
com sua família até sua prisão. Na Rússia e no restante dos países em que
predomina a ortodoxia cristã, a palavra lavra ou !aura é utilizada para nomear
os monastérios (http://feb-w eb.ru; Houaiss; Aurélio). (N. da T.)
9 Ícone n° 23/328, séculos XV-XVI; dimensões: 32 x 25,5 em. Foi
limpo em 1919. Doação de Nikita Dmítrievitch Veliamínov em memória da
tsarina Olga Boríssovna em 1625 (Cf "Inventário de ícones do Monastério
da Santa Trindade de São Sérgio", Sérguiev Possad, 1920, edição da Comis-
são para a Conservação do Monastério, pp. 89-90). (N. do A.)
10 Ícone n° 58/160, século XVI; dimensões: 31,5 x 25,5 em. Doação
de Ivan Grigórievitch Nagoi em 1601 (Cf "Inventário de ícones do Mo-
Cristo Pantocrátor, século XVI ' 30 ' 3 x 22 , 8 CITI,
nastério da Santa Trindade de São Sérgio", Sérguiev Possad, 1920, edição
da Comissão para a Conservação do Monastério, pp. 102-3). (N. do A.) têmpera s/ madeira, Museu Russo, São Petersburgo.
11 Perevod significa "tradução" ou "transferência". No âmbito da pin-
tura de ícones, designa a transferência ou cópia a partir de um modelo para
outro ícone (Uspiênski, 1976, p. 8). (N. da T.)

28 Pável Floriênski
e sem vida, portanto não resta dúvida de que, mesmo ha- que o pintor de ícones está conscientemen te chamando
vendo notável semelhança entre os dois, as violações das a atenção para elas, embora a razdiélka não corresponda
regras da perspectiva não se constituem em qualquer tole- a nenhum objeto fisicamente visível, isto é, por exemplo,
rável debilidade do pintor de ícones, mas na sua força posi- não corresponde a nenhum sistema semelhante de linhas
tiva; isso deve-se ao fato de que o primeiro dos ícones exa- sobre a roupa ou o assento. Porém, só existe um sistema
minados está infinitamente acima do segundo, ou seja, o de linhas potenciais, ou seja, de linhas construtivas de um
errado é superior ao correto. determinado objeto que sejam semelhantes, por exemplo,
Além disso, se voltarmos à questão do claro-escuro, às linhas de força de um campo elétrico ou magnético, ou
também encontraremos uma distribuição original de som- aos sistemas equipotenciais, isotérmicos e outras curvas si-
bras que acentua e destaca a discrepância entre um ícone e milares. Linhas de razdiélka revelam com maior força 0
uma representação exigida pela pintura naturalista. A au- esquema metafísico e a dinâmica do objeto em questão do
sência de um determinado foco de luz, o caráter contradi- que as linhas visíveis, mas por si só elas são completamente
tório da iluminação em diferentes partes de um ícone, a invisíveis e, sendo traçadas em um ícone, estabelecem, de
aspiração para destacar aquelas massas que deveriam estar acordo com a ideia do pintor, um conjunto de tarefas que
sombreadas, novamente não são acidentais e nem são falhas se apresentam ao olho do observador como trajetórias que
de um mestre primitivista, mas são cálculos artísticos que este deveria seguir ao contemplar um ícone. Essas linhas
proporcionam o máximo de plasticidade artística. são um esquema de reconstrução do objeto observado na
A esta série de métodos similares de representação, consciência e se fôssemos buscar suas bases físicas seriam li-
próprios da pintura de ícones, é necessário acrescentar as nhas de força, linhas de tensão, em outras palavras, não são
linhas da assim chamada razdiélka, realizadas com uma cor dobras que se formam por causa da tensão, ainda não são
diferente da cor da raskríchka do correspondente lugar do dobras, são somente possibilidades de dobras, dobras em
ícone, e que muitas vezes possuem um brilho metálico, por potencial- aquelas linhas onde deveriam estar abrigadas as
efeito da assistka 12 de ouro ou, muito raramente de prata. dobras, caso essas se formassem. As linhas traçadas em um
Ao realçar a cor das linhas de razdiélka 13 queremos dizer plano adicional da linha de razdiélka revelam à consciência
o caráter estrutural-cons trutivo desses planos, e consequen-
temente, por não se limitarem à contemplação passiva dos
12 Assistka ou assist (do latim assistere, "estar, manter-se junto de") é mencionados planos, ajudam a entender sua relação funcio-
uma substância aderente feita da infusão de malte ou suco de alho. N a pin-
nal com o todo e, portanto, oferecem o material necessário
tura de ícones bizantinos e russos antigos, assistka refere-se aos traços lineares
para que se entenda com clareza que semelhantes ângulos
e radiais feitos com folhas de ouro e coladas com a ajuda de assist sobre uma
camada colorida. Mais tarde, no lugar de folhas de ouro foi urilizada tinta
de representação não obedecem às exigências da perspectiva
linear.
dourada. Nos ícones, a assistka se parece com raios e simboliza a luz reflerida
da verdade divina nos trajes de santos, expressando a ideia da Luminosidade
de Cristo e de sua ligação com a Mãe de Deus. (N. da T.) desenho, urilizado para criar formas com volume. A palavra razdiélka deriva
13 Razdiélka é um método de iluminação de determinadas partes do do verbo russo razdelit, "dividir". (N. da T.)

30 Pável Floriênski A perspectiva inversa


31
Não vamos nos referir a outros procedimentos secun- I li
dários na pintura de ícones, com os quais ela realça a imu-
nidade às leis da perspectiva linear e o caráter consciente E agora, depois de tal recordação, surge à nossa frente
, . M . , , · 14 a questão sobre o sentido e a legitimidade dessas violações.
de suas violações perspecncas. enc10naremos so o opzs,
que contorna o desenho e por isso acentua extraordinaria- Em outras palavras, surge diante de nós uma questão seme-
mente todas as suas pecu11an ., ka, 15 a dVlj'"ka, 16
. "dades, a opv lhante sobre os limites do uso e do sentido da perspectiva.
a otmiétina 17 e também a probeld, 18 os quais ressaltam os Será verdade que a perspectiva expressa a natureza das coi-
volumes acentuando todas as irregularidades que não deve- sas, como pretendem seus adeptos, e por isso deve sempre e
riam estar visíveis etc. Pode-se pensar que o que já foi dito· é em qualquer lugar ser considerada a premissa incondicional
suficiente para lembrar, a quem observa um ícone, todo um da veracidade artística? Ou se trata apenas de um esquema,
conjunto de impressões preexistentes que demonstram q~e de um entre outros possíveis esquemas de representação que
esses desvios às leis da perspectiva não são fortuitos e, o ma1s corresponde não à percepção do mundo como um todo,
importante, que essas violações são esteticamente fecundas. mas somente a uma entre as possíveis interpretações do
mundo, ligada a um modo bastante determinado de sentir
a vida e entender a vida? Ou ainda: a perspectiva, a ima-
gem perspéctica do mundo, a interpretação perspéctica do
14 6pis possui, no ícone, o significado gráfico de volume. A antiga
mundo seria uma imagem natural, originada da essência da
pintura de ícones sempre tendia à sua própria compreensão de volume,
diferente do entendimento do mesmo na pintura artística. Nos ícones an-
perspectiva, a verdadeira palavra do mundo? Ou seria apenas
tigos, os volumes não possuem grande profundidade e pouco sobressaem. uma ortografia especial- uma das muitas construções tí-
E em constante desvio das leis da perspectiva observa-se que o ponto de picas para quem a criou- peculiar à compreensão da vida
convergência das linhas paralelas está colocado na frente e não atrás do e ao século de seus inventores e que expressa o estilo que
ícone, o que explica a presença da perspectiva inversa (Chneider; Fiodorov, lhes é próprio, mas que não exclui outras ortografias, outros
pp. 241-86). (N. da T.) sistemas de transcrição, pertinentes à compreensão da vida
15 Ojívka pode ser traduzido como "dar a vida''. Trata-se dos últimos e ao estilo de outros séculos? E ademais, não estariam essas
toques de luz aplicados preferencialmente sobre os rostos, mas também em ditas transcrições mais ligadas à essência do assunto, tan-
montanhas, árvores, nuvens (Floriênski, 2000, 139). (N. da T.) to quanto os erros de gramática na escrita de um homem
16 Dvíjka é outra técnica de claro-escuro que trabalha com traços santo podem perturbar a veracidade da experiência da vida
curtos de cores claras aplicados sobre as partes salientes do rosto ou partes narrada por ele?
descobertas do corpo em que se quer dar o volume. (N. da T.)
Para responder à nossa pergunta, vamos oferecer, em
17 Otmiétina é 0 último golpe de luz sobre uma superfície já iluminada
primeiro lugar, uma nota histórica, a saber: trataremos de
que se realiza com um branco puro. (N. da T.) entender historicamente até que ponto, na realidade, a re-
18 Probelá é a técnica de claro-escuro que, para clarear uma superfície
presentação e a perspectiva são inseparáveis uma da outra.
colorida, emprega sobre ela a mesma cor mesclada com o branco. Realiza-se
Os relevos planos babilônicos e egípcios não exibem
em várias etapas, aumentando a proporção do branco na medida em que se
sinais de perspectiva e tampouco revelam aquilo que no sen-
reduz a superfície para ser iluminada. (N. da T.)

Pável Floriênski A perspectiva inversa 33


32
tido próprio convém chamar de perspectiva inversa. Como o olho apurado do mestre egípcio não notou a perspectiva
se sabe, o policentrismo das imagens é extremamente ca- e como ele poderia não tê-la notado. Por outro lado, o fa-
nônico e frequente na arte egípcia: todos hão de se lembrar moso historiador da matemática Moritz Cantor20 assinala
que nos relevos e pinturas egípcias, enquanto os rostos e os que os egípcios já possuíam os pressupostos geométricos da
pés estão posicionados de perfil, os ombros e o peito estão representação em perspectiva. Conheciam, particularmen-
virados para a frente. Mas, de qualquer maneira, carecem te, a proporção geométrica e haviam avançado o suficiente
de perspectiva linear. 19 Entretanto, a assombrosa autentici- nessa direção, tanto que eram capazes, quando necessário,
dade das esculturas egípcias (tanto as de retrato como as de de aplicar a escala aumentada ou reduzida. "Por isso parece
gênero), demonstra a enorme capacidade de observação de tão incrível o fato dos egípcios não terem dado o próximo
seus artistas e, se as leis da perspectiva realmente fazem parte passo e não descobrirem a perspectiva. Como é sabido, na
da verdade do mundo, como repetem seus adeptos, então pintura egípcia não há qualquer rastro desta e, embora seja
seria completamente incompreensível o motivo pelo qual possível reconhecer fundamentos religiosos ou outros para
tanto, permanece reconhecido o fato geométrico de que os
19 Embora exista uma visão segundo a qual a representação de guer- egípcios não usavam esse procedimento para conceber uma
reiros ou cavalos- quando uma das figuras se sobressai em relação à outra, parede pintada como se ela estivesse inserida entre o olho
andando em uma linha perpendicular à direção do movimento - deva ser observador e o objeto representado, ligando os pontos de
interpretada como um estágio inicial da perspectiva. Certamente, isso é uma interseção deste plano com os raios dirigidos àquele objeto
projeção, uma espécie de projeção militar, axonométrica, ou uma projeção
através de linhas." 21
de um centro infinitamente afastado que possui significado por si mesmo,
A observação feita de relance por Moritz Cantor sobre
como tal.
os fundamentos religiosos da falta de perspectiva nas imagens
Ver nela o estágio inicial de algo diferente, isto é, uma perspectiva não
concebida por completo, significa perder de vista que qualquer representação
egípcias é digna de atenção. De fato, a arte egípcia, que tem
é uma correspondência e muitas representações são projeções, mas não de um passado milenar, adquiriu um caráter estritamente ca-
perspectiva, e muito menos estágios iniciais da perspectiva- assim como nônico e transformou-se em fórmulas hieráticas imutáveis.
a perspectiva inversa e muitas outras coisas - , mas a perspectiva, por sua É provável que o seu significado interno não esteja muito
vez, é que é a estrutura inicial da perspectiva inversa etc. distante das inscrições hieroglíficas, bem como as inscrições,
Deve-se pensar que, nesses casos, simplesmente falta aos pesquisado- por sua vez, ainda não tenham se distanciado da representa-
res a devida atenção para o lado matemático do problema, e por isso eles
ção metafísica. Certamente, a arte egípcia não necessitava de
dividem todos os métodos - incontáveis métodos - de representação em
nenhuma inovação e gradualmente se fechava cada vez mais
corretos (perspécticos) e incorretos (não perspécticos).
Entretanto, a ausência de perspectiva não significa, absolutamente,
incorreção, mas em relação às imagens egípcias faz-se necessário ter uma 20 Moritz Benedikt Cantor (1829-1920), matemático alemão. (N.
atenção especial, pois lá as sensações táteis prevaleciam sobre as visuais. Que da T.)
tipo de correspondência entre pontos do representado e da representação foi 21
Moritz Cantor, Vorlesungen über Geschichte der Mathematik [Curso
usado pelos egípcios? Esta é uma pergunta difícil e que até agora não obteve de história da Matemática], tomo 1, 3• edição, Leipzig, 1907, p. 108. (N.
uma resposta satisfatória. (N. do A.) doA.)

34 Pável Floriênski A perspectiva inversa 35


r 111 j 111 ·~ 1111 ,
Âs '0 1'1' ·la perspécticas, se fossem notadas, isso é, pintura de cenários teatrais. De acordo com o relato
11.10 N' l' itll11 a lm.itida no círculo fechado dos cânones da arte de Vitrúvio, 25 quando Ésquilo 26 encenava suas tragédias em
• dp ia. A ausência da perspectiva linear entre os egípcios, Atenas, por volta do ano 470 a.C., o famoso Agatarcus 27
assim como entre os chineses, embora em outro sentido, criou para ele os cenários e escreveu sobre estes um tratado,
demonstra mais a maturidad e e até uma maturidad e senil o Commentarius. Foi exatamen te nessa ocasião que Ana-
de sua arte, do que a sua inexperiência infantil; a liberação xágoras e Demócrit o 28 decidiram investigar a pintura de
da perspectiva ou a recusa inicial da sua autoridade , como cenários. A pergunta por eles colocada era: como as li-
veremos, é característica do subjetivismo e do ilusionismo, nhas devem ser traçadas sobre um plano para que, ao tomar
em favor da objetividade religiosa e da metafísica suprain- um determina do centro, os raios traçados a partir de um
dividual. Ao contrário, quando a estabilidade religiosa se olho correspon dam aos raios traçados a partir de um outro
desintegra da concepção do mundo e a metafísica sagrada da olho que se encontra no mesmo lugar na direção dos res-
consciência comum é corroída pelo ponto de vista particular pectivos pontos de um edifício, de maneira que a imagem
do juízo individual, e mais do que isso, de um ponto de vista do objeto real sobre a retina, falando de maneira moderna,
particular de um determinado momento histórico, é que correspon da às mesmas linhas do cenário que representa o
surge uma perspectiva característica para essa consciência dito objeto?
individual isolada. Além disso, no início essa perspectiva
não surge na arte pura, que na sua essência é sempre mais
ou menos metafísica, mas na arte aplicada, como uma fase (Vitrúvio, De architectura, livro I, cap. 2) - , o qual Panofsky sugere, em sua
de efeito decorativo, que tem como objetivo não a verdade interpretação, ser um "centro de projeção" que representa o olho de quem
da existência, mas a verossimilhança da aparência. vê e não um ponto de fuga existente no interior do quadro, pois tratava-se
É notável que tenha sido justament e Anaxágor as 22 ainda de um desenho preparatório para a perspectiva moderna (Panofsky,
- aquele mesmo Anaxágoras que tentou converter o Sol e 1993, p. 40). (N. da T.)
25
a Lua, deidades vivas por excelência, em pedras incandes- Vitruvius Pollio, De architectura libri decem, VII, 11. E o mesmo
centes, e substituir a divina criação do mundo por um tur- é relatado em A vida de Ésquilo (Cf Aeschyli Tragoediae, H. Wei l, Lipsiae

bilhão central no qual teriam surgido os astros - aquele a Teubneri, 1884, p.· 3 10). Mas, segundo assinala Aristóteles em sua Poética,
4, o primeiro a motivar a scaenografia foi Sófocles. Por outro lado, essas
quem Vitrúvio 23 atribui a invenção da perspectiva, e além
informações não divergem, pois temos que pensar que, mais que Ésquilo,
disso, da assim denomina da pelos antigos, scaenografia, 24
o naturalista Sófocles começou a exigir cenários mais ilusórios. (N. do A.)
26
Ésquilo (c. 525 a.C.-456 a.C.), primeiro dos grand~s dramaturgos
22
Anaxágoras (c. 500 a.C.-428 a.C.), filósofo grego do período pré- clássicos. (N. da T.)
-socrático. (N. da T.) 27 Agafarco,
Agatharchus ou ainda Agatharchid es foi um artista ate-
23 Marcus Virruvius Pollio (séc. I a.C.), arquiteto e engenheiro, autor niense que, segundo Vicrúvio, teria pintado cenários para as peças de Ésqui-
do célebre tratado De architectura. (N. da T.) lo (Vicrúvio, op. cit.; Smith, p. 61) . (N. da T.)
24 Vitrúvio utiliza scaenograjia para nomear a pintura em um plano 28
Demócrito (c. 460 a.C.-370 a.C.), filósofo grego do período pré-
cujas linhas laterais dirigem-se a um centro - em latim, circini centrum -socrático. (N. da T.)

36 Pável Floriênski A perspectiva inversa 37


IV - se nos permitem converter em categoria histórica este
pequeno fenômeno da vida russa - , eles necessitavam não
Deste modo, a perspectiva não surge da arte pura e, de da verdade da vida que torna possível o conhecimento pro-
acordo com seu objetivo inicial, não expressa a percepção fundo, mas da semelhança externa pragmaticamente útil
artística viva da realidade, mas tem sua origem na esfera para as ações vitais mais imediatas; necessitavam não das
da arte aplicada, mais precisamente no âmbito da técnica bases criativas da vida, mas da imitação de uma superfície
teatral que convoca a pintura a seu serviço e a subordina aos da vida. Antes disso, o palco grego era decorado somen-
seus objetivos. Correspondem esses objetivos aos objetivos te com "quadros e tecidos", 30 e então começou a surgir a
da pintura pura? Essa pergunta não necessita de resposta. O necessidade da ilusão. Aqui, supondo que o espectador ou
objetivo da pintura não é duplicar a realidade, mas oferecer o pintor de cenários esteja preso ao assento do teatro, tal
uma concepção mais profunda de sua arquitetônica, de seu como o prisioneiro da Caverna de Platão, e que não possa,
material, de seu sentido; e a concepção deste sentido, deste e igualmente não deva, ter a atitude vital imediata com a
material da realidade, de sua arquitetônica, só se faz possível realidade; supondo ainda que esteja separado do palco por
ao olho contemplador de um pintor em contato vivo com alguma divisória de vidro e exista apenas um olho imóvel
a realidade, adentrando e sentindo a realidade. Entretanto, que observa sem penetrar a própria essência da vida e, o
o cenário teatral pretende, na medida do possível, substituir mais importante, que esteja com a vontade paralisada (pois
a realidade pela sua aparência: a estética dessa aparência é a a essência do teatro laico exige que se olhe para o palco sem
conexão interna de seus elementos, mas não o significado vontade, como se se olhasse para algo "não de verdade", "não
simbólico do modelo original dado através de sua imagem na realidade", mas para um engano vazio). Esses primeiros
personificada por meio da técnica artística. O cenário é teóricos da perspectiva oferecem normas de como ludibriar
um engano, embora belo, mas a pintura pura é, ou pelo o espectador teatral. Anaxágoras e Demócrito substituem
menos deseja ser, antes de mais nada, a verdade da vida sem urna pessoa viva pelo espectador envenenado pelo curare e
substituí-la, mas só marcando-a simbolicamente em sua tornam claras as regras para iludir tal espectador. Nesse mo-
profunda realidade. Um cenário é um biombo que oculta a mento não há necessidade de contestar; por ora aceitaremos:
luz da existência, enquanto a pintura pura é uma janela in- para a ilusão visual desse enfermo, privado da maior parte
teiramente aberta para a realidade. Para as mentes racionais da vida dos demais seres humanos, esses procedimentos de
de Anaxágoras e Demócrito, as artes plásticas não podiam representação perspéctica realmente têm o seu sentido.
existir como símbolo da realidade, e nem eram necessárias: Em consequência, devemos reconhecer como estabe-
como para qualquer "peredvíjnitchestvo" 29 do pensamento lecido que, pelo menos na Grécia do século V a.C., a pers-

29 Referência ao grupo de artistas denominado "Itinerantes" (Pered-


víjniki), pintores realistas russos que, na segunda metade do século XIX, 30 G. Emigen, Griétcheski i rímski teatr [O teatro grego e romano],
rebelaram-se contra a Academia e passaram a organizar exposições itine- tradução de I. I. Semiónova, Moscou, E. Grebel, 1894, pp. 160-1. (N. do
rantes. (N. da T.) A.)

38 Pável Floriênski A perspectiva inversa 39


pectiva era conhecida e, se em um ou outro caso ela não
1613 denomina ria estereográfica) e também resolve outros
foi aplicada, isso não ocorreu evidentem ente por causa do
difíceis problemas projetivos .33 Será possível imaginar que,
desconhec imento de seus princípios , mas por outras ra-
nesse estágio do conhecim ento, tão simples procedime ntos
zões mais profundas , precisamente aquelas que provinham
da perspectiv a linear não fossem conhecido s? E de fato,
das exigências máximas da arte pura. Ademais, seria muito
quando não se trata de arte pura, mas de ilusões decorati-
improváve l e não correspon dente ao estado das ciências
vas, aplicadas para a expansão enganosa do espaço do palco
matemáticas e ao avançado grau de observação geométric a
teatral ou para a extinção do plano da parede de uma casa,
do olho apurado dos antigos presumir que eles não haviam
invariavelmente nos deparamo s com a utilização da pers-
notado a natureza perspéctica da imagem do mundo, supos-
pectiva linear que correspon de a um objetivo estabelecido.
tamente inerente à visão normal, ou que não conseguiram
Isto é observado especialm ente nos casos em que a
deduzir correspon dentes aplicações simples de teoremas
vida, afastando-se de suas origens profundas , flui nas águas
elementar es da geometria . Seria muito difícil duvidar de
rasas do epicurismo volátil, na atmosfera leviana do espírito
que, quando eles não aplicavam as regras da perspectiva,
burguês de homenzin hos gregos - graeculorum, como eles
era simplesme nte porque não queriam aplicá-las, pois con-
foram chamados por seus contempo râneos romanos - ,
sideravam-nas supérfluas e antiartísticas.
aqueles homenzin hos privados da profundid ade numênica
do gênio grego e que não tiveram tempo para adquirir o
alcance majestoso, universal, do pensamen to político-moral
v do povo romano. Aqui nos referimos às pinturas elegan-
temente vãs das casas de Pompeia, aos cenários arquite-
Realmente, Ptolomeu , em sua Geograifia 31 escnta.
no tônicos dos murais das vilas pompeian as. 34 Trazidos para
século II a.C., aborda a teoria cartográfica da projeção de
uma esfera sobre um plano, e no seu Planisfério discute
33 N. A. Rínin, Natchertátel naia gueomiétria: miétodi izobrajénia
diferentes maneiras de projeção, principalm ente aquela a
[Geometria descritiva: métodos de representação], Petrogrado, 1916. (N. do
partir do polo sobre o plano equatorial (que Aiguillion 32 em
A.)

34 Tanto as numerosas reproduções realizadas a partir de imagens


fotográficas e esboços de paisagens arquitetônicas greco-romanas, quanto
a exploração arqueológica desta paisagem podem ser encontradas na deta-
31 Claudius Ptolomaeus. Cf. M. Cantor, Vorlesungen über Geschichte
lhada pesquisa de M. Rostóvtsev, Paisagem arquitetônica greco-romana, São
der Mathematik [Curso de hist6ria da Matemática], tomo 1, 3• edição, Lei-
Petersburgo, 1908 (Cf. "Notas do Departamen to Clássico da Sociedade
pzig, 1907, p. 108 e 423. (N. do A.)
Arqueológica Imperial Russa" , v. 6, pp. 1-143). Mas, infelizmente, a obra
32 François d'Aiguillion (1566-1617) , padre jesuíta, filósofo e mate-
de M. Rostóvtsev não se refere, em absoluto, ao lado histórico-artístico e
mático belga, publicou em 1613 o tratado de óptica, ilustrado pelo pintor
aos estudos da arte e, em particular, tampouco aborda a espacialidade da
flamengo Peter Paul Rubens , Francisci Agvilonii Opticorum libri sex philo-
paisagem greco-romana. A propósito, observaremos que em uma parte das
sophis juxta ac mathematicis utiles, Antverpiae, Officina Planriniana, 1613,
paisagens reproduzidas por Rostóvtsev foi utilizada a perspectiva linear de
in-quarto (Mannoni, 2003, p. 37). (N. da T.)
forma não muito rigorosa e em outra parte diversas técnicas de projeção

40 Pável Floriênski
A perspectiva inversa 41
Roma, principalmente de Alexandria e de outros centros
da cultura helênica durante os séculos I e 11 a.C., esse bar-
roco do mundo antigo, encarregado de tarefas puramente
ilusionistas, aspirava justamente a ludibriar o espectador
que se supunha praticamente imóvel. Esse tipo de pintura
arquitetônica e paisagística talvez seja absurdo, no sentido
da impossibilidade da sua real execução, 35 mas apesar disso

relacionadas à perspectiva, como uma axonometria - uma projeção de


um ponto infinitamente afastado. De qualquer maneira, o caráter geral das
representações é bastante próximo da perspectiva. (N. do A.)
3 5 "Contudo, a questão sobre a paisagem arquitetônica greco-romana,

a sua origem e a sua história, o seu caráter real ou fantástico nunca foi
seriamente levantada pela ciência. Ela me interessa pessoalmente há muito
tempo, desde meu primeiro contato com Pompeia. De imediato, ficou
claro para mim que os limites da verdadeira fantasia, presente na paisagem
pompeiana, são extremamente estreitos, e que ela se restringe à transmissão
ilusionista, em parte por motivos da natureza circundante e, em parte, pela
paisagem e pela arquitetura originais, vindas de fora. Arquitetura fantástica
é um termo que geralmente não entendo muito bem: os detalhes de caráter
ornamental podem ser produzidos pela fantasia, a combinação de motivos
pode ser livre e incomum, mas os próprios motivos e o caráter geral serão
obrigatoriamente reais, caso contrário serão retratos fiéis em relevo (diante
de nós não estão os projetos de um arquiteto e nem fotografias), serão reais
como modelos. Deste ponto de vista, a pesquisa dos motivos arquitetônicos
que pareciam ser inteiramente fantásticos em um assim chamado estilo ar-
quitetônico de decoração mural já deu uma série de resultados inesperados e
extremamente importantes- verificou-se, ou está sendo verificada, a relação Afrescos da Casa dei Vettii, século I, Pompeia.
desta arquitetura 'fantásticà com a arquitetura do palco greco-romano-, e
a investigação posterior certamente dará ainda mais resultados, especialmente
agora quando se descobrem na Ásia Menor os monumentos da verdadeira
arquitetura helênica. A pesquisa de longos anos da arquitetura de paisagens
pompeianas me levou aos mesmos resultados. Tudo aqui se revela verdadeiro,
em um grau ainda maior que na decoração arquitetônica, tudo transmite
os tipos da arquitetura helenística verdadeira. Aqui, para a fantasia pura, há
menos espaço do que na arquitetura dos muros pompeianos" (Rostóvtsev,

42 Pável Floriênski
ele deseja enganar, parecer que está brincando e provocando dros famosos de artistas clássicos foram pintados da mesma
o espectador. Outros detalhes são criados com tanto natu- maneua.. ?"39 E
ssas o bras empregam modos aproximativos
ralismo, que o espectador somente pelo tato certifica-se do para solucionar problemas perspéctico.s, modos esses que os
engano óptico: esta impressão é reforçada através do uso artistas abordavam exclusivamente através do caminho da
magistral do claro-escuro, localizado conforme a fonte de experiência- diz Benois. No entanto, a grande pergunta é:
luz -janelas, aberturas no teto, portas - que ilumina essas características significam que as leis da perspectiva real-
o ambiente. 36 Merece uma grande atenção o notável fato mente eram desconhecidas dos antigos? "Não observamos"
de que, a partir desta paisagem ilusionista, estendem-se os -pergunta Benois- "atualmente, o mesmo esquecimento
fios de conexão à arquitetura do palco greco-romano. 37 A da perspectiva como ciência? Não está distante o tempo
raiz da perspectiva é o teatro, não só pelas razões histórico- quando alcançaremos nesse campo os disparates 'bizantinos'
-técnicas de que foi o teatro que pela primeira vez exigiu e manteremos a incapacidade e os modos aproximativos da
a perspectiva, mas também em virtude de uma motivação pintura clássica tardia. Será possível, com base nisso, ques-
mais profunda: a teatralidade da representação perspéctica tionar o conhecimento das leis da perspectiva da geração de
do mundo. Nisso consiste a percepção do mundo obtida artistas que nos precedeu? .. . "40
com um esforço mínimo, privada da sensação de realidade Realmente, talvez possamos em parte ver nessa impre-
e da consciência de responsabilidade, para a qual a vida é só cisão das realizações perspécticas os princípios do desmo-
um espetáculo e nunca um ato de coragem. E por esse mo- ronamento da perspectiva que logo após começa na Idade
tivo- voltando a Pompeia- é difícil procurar nessas pin- Média Oriental e Ocidental. Mas, penso eu, essas impreci-
turas autênticas obras da arte pura. De fato, a desenvoltura sões da perspectiva são um compromisso entre os objetivos
técnica desses cenários domésticos não permite esquecer propriamente decorativos da pintura ilusionista e os obje-
os historiadores da arte, 38 cenários nos quais encontramos tivos sintéticos da pintura pura: de fato, não podemos es-
"somente obras de virtuosos artesãos, em vez de artistas quecer que uma casa habitada, embora não esteja destinada
verdadeiramente inspirados". O mesmo acontece com os para o trabalho, não é um teatro, e que o habitante da casa
fundos paisagísticos nas pinturas de gênero, executados de não está tão preso ao seu lugar e não está tão limitado em
forma "sempre muito aproximada", esboçados de forma sua vida como um espectador teatral. Se a pintura mural de
rápida e hábil. "Cabe aqui perguntar se os fundos de qua- alguma Casa dei Vettii fosse obedecer com precisão às regras
da perspectiva, então ela, pretendendo enganar ou brincar,
atingiria esse objetivo somente quando o espectador estivesse
op. cit., pp. IX-X, prólogo). O auror relaciona esta paisagem com as vistas imóvel e posicionado num lugar do ambiente rigorosamente
de vilas romanas, com paisagens egípcias etc. (N. do A.) determinado. Por outro lado, qualquer movimento seu ou,
36 Aleksandr Benois, Istória jívopissi [A história da pintura], São Peters-
burgo, 1912, Chipóvnik, parte I, fase. I, p. 41 e ss. (N. do A.)
39
37 Ver nota 35. (N. do A.) Idem, pp. 45-6. (N. do A.)
40
3B Benois, op. cit., p. 45. (N. do A.) Idem, p. 43, nota 24. (N. do A.)

44 Pável Floriênski A perspectiva inversa 45


mais ainda, qualqu er mudan ça de lugar provo caria uma nunca tinham visto edifícios reais, mas tinham contat o so-
sensação repugn ante de estar sendo engan ado ou de estar mente com recortes planos de um brinqu edo. Tamp ouco se
diante de um truque revelado: Precisamente para evitar as
preocu pam com propo rções e, no decorrer do tempo , vão
graves violações de tais ilusões, um decora dor ren~ncia à se preocu par cada vez menos . Não existe nenhu ma relação
sua incond iciona l insistência para cada ponto de vtsta de- entre a altura das figuras e a dos edifícios destinados a elas.
terminado e por isso oferece uma certa perspectiva sintética, Temos que acrescentar a isso que no decorrer dos séculos,
dá ao proble ma uma certa solução aproximada, para cada nota-se um crescente afasta mento da realidade até nos de-
ponto de vista determ inado, mas que se expan de por rodo talhes. Ainda é possível estabelecer alguns paralelos entre
0
espaço do ambie nte: falando metafo ricame nte, tal deco- a arquit etura real e a pintur a arquit etônic a em obras dos
rador recorre ao modo tempe rado de um instru mento de séculos VI, VII e até dos séculos X e XI, mas daí em diante
teclas que seja bom o bastante dentro dos limites da precisão consolida-se na arte bizant ina aquele estran ho tipo de 'pin-
exigida. Em outras palavras, ele pr~ticamente renuncia à arte tura de câmaras', no qual tudo é arbitrário e condicional". 41
dos simulacros e ingressa, embor a em grau bem peque no, Esta característica da pintur a medieval foi empre stada
no camin ho da image m sintéti ca do mund o; isto é, o de- da obra A história da pintur a de A. Benois, mas por uma
corado r se transf orma um pouco em artista. Porém, repito, única razão: que esse livro estava à mão. É fácil notar nas
podem os reconhecer nele o artista não porqu e em parte (em queixas de Benois as críticas à arte medieval que há muito ,
grande parte) ele segue as regras da perspectiva, mas porqu e muito tempo já nos cansaram, em especial aquelas que se
e na medid a em que se afasta delas. relacionam ao "desco nhecim ento" da perspectiva. Essas crí-
ticas podem ser encon tradas em qualqu er livro de Histór ia
da Arte, sempr e se referindo à image m de casas "com três
VI frentes" (como as crianças desenh am), ao modo "arbitrário"
da coloração, à divergência das linhas paralelas na direção
A partir do século IV d.C., o ilusionismo se decom põe do horizo nte, à falta de propo rção e, em geral, a qualqu er
e a espacialidade perspéctica na pintur a desaparece: revela-se ignorâ ncia perspéctica e espacial. Para compl etar tal carac-
uma evidente rejeição das regras da perspectiva e as correla- terização da Idade Média é necessário acrescentar que ainda
ções proporcionais entre alguns objetos, e por vezes até mes- no Ocide nte, deste mesm o ponto de vista, a situação não
mo as correlações entre suas partes isoladas são ignoradas. era melhor, mas sim notave lmente pior: "Se compa rarmo s
Esta destruição da pintur a do períod o clássico tardio, pers- o que aconte cia na Europ a Ocide ntal, aprox imada mente
péctica na sua essência, aconte ceu com velocidade assam~ no século X, com aquilo que ocorri a na mesm a época em
brasa e aprofundou-se século após século, estendendo-se ate Bizâncio, este último parece rá o apoge u do refina mento
0
períod o inicial do Renascimento. Os mestres medievais
"não têm nenhu m conhe cimen to sobre a convergência de
linhas em um ponto ou sobre o significado de horizo nte.
Parece até que os pintor es roman os e bizant inos tardio s 41 Idem,
p. 70. (N. do A.)

46 Pável Floriênski A perspectiva inversa


47
artístico e da magnificência técnica''. 42 Essa mesma forma aproximação de seus fenômenos dos fenômenos da segunda
de entender Bizâncio está presente, obviamente, na síntese metade do século XIX. O mesmo ocorre com a História
elaborada por Benois - ou pela maioria dos outros, tanto da Arte: tudo o que se assemelha à arte deste tempo ou se
faz; afinal, já não nos cansaram as suas repetições incontá- aproxima dela é reconhecido como positivo, enquanto todo
veis, e juntamente a elas os brados ainda mais enfadonhos o resto é considerado decadente, ignorante e selvagem. Com
dos historiadores da cultura sobre "as trevas" da Idade Mé- essa avaliação, torna-se compreensível o louvor entusiástico
dia? Benois diz: que frequentemente escapa da boca de respeitáveis histo-
riadores: "bem ao modo moderno", "nem naquele tempo
"A história da pintura bizantina com todas poderiam ter feito melhor", sendo que assinala-se nessa ava-
as suas oscilações e apogeus temporais é a história liação alguma data próxima à época do próprio historiador.
do declínio, da volta ao estado selvagem e de uma Realmente, para aqueles que acreditaram na modernidade,
morte vagarosa. As obras dos bizantinos afastam- a confiança plena nos seus contemporâneos é inevitável,
-se cada vez mais da vida, suas técnicas tornam-se do mesmo modo como provincianos da ciência acreditam
cada vez mais servis, tradicionais e ar~esanais." 43 profundamente que um ou outro livro foi "considerado"
a verdade definitiva da ciência (como se existisse algum
O esquema da história das artes e da história do co- tipo de concílio universal para a formulação de dogmas da
nhecimento em geral, como se sabe, é, desde a época do ciência). E agora compreendemos que a arte antiga, que vai
Renascimento e quase até nossos dias, invariavelmente o dos santos arcaicos até a mediação do belo ao sensual e, por
mesmo; além disso, é extremamente simples. Na sua base fim, ao ilusionístico, parece a esses historiadores estar em
está uma fé inabalável no fato de que a civilização burguesa desenvolvimento. A Idade Média que decididamente rompe
da segunda metade do século XIX (que se identifica com com os objetivos do ilusionismo e estabelece como objetivo
a orientação kantiana, ainda que não seja originada dire- não a fabricação de simulacros, mas de símbolos da reali-
tamente de Kant) é absolutamente válida, definitivamente dade, lhes parece decadente. E finalmente, a arte da Idade
perfeita e, por assim dizer, pode ser canonizada, se não eleva- Moderna que começa com o Renascimento e, subitamente,
da ao campo da metafísica. É verdade que se há algum lugar como por um acordo tácito, seguindo quase um consenso
do qual é possível falar em superestruturas ideológicas sobre mútuo, decide substituir a criação de símbolos pela cons-
formas econômicas de vida, esse é precisamente o terreno trução de simulacros; essa mesma arte que através de uma
dos historiadores da cultura do século XIX, que acredita- ampla via chegou até o século XIX, parece aos historiadores
vam cegamente no caráter absoluto da pequena burguesia estar se aperfeiçoando de modo incontestável. "Como pode
e avaliavam a história mundial de acordo com o grau de ser ruim, se pela imutável lógica interna isso levou até vocês,
até mim?" - esse é o verdadeiro pensamento dos nossos
historiadores, se o expressamos sem reservas.
42 Idem, p. 75. (N. do A.) E eles estão profundamente certos em reconhecer um
43 Idem, p. 75. (N. do A.) vínculo direto e, além disso, não só externamente histórico,

48 Pável Floriênski A perspectiva inversa 49


mas internamente lógico, um vínculo transcendental entre por alguma ironia da história, em lemas denominados "na-
premissas da época do Renascimento e a concepção de vida turalismo" e "humanismo", e culminariam com a declaração
do passado mais recente. Da mesma maneira, eles estão formal dos direitos do homem e da natureza.
profundamente corretos em sua sensação de que há uma Aqui não é o lugar para estabelecer ou até explicar a re-
incompatibilidade absoluta entre as premissas medievais lação entre as doces raízes renascentistas e os amargos frutos
e aquela visão de mundo que acabamos de mencionar. Se kantianos. É bastante conhecido que o kantismo, em virtu-
fizermos um balanço de tudo o que foi dito, do ponto de de de seu páthos, é uma forma profundamente humanitária
vista formal, contra a arte medieval, podemos resumi-lo na e naturalista de compreensão do Renascimento, e por sua
seguinte crítica: "Não há compreensão do espaço", e essa amplitude e profundidade é a consciência daquele éon his-
crítica, expressa abertamente, significa que não há unidade tórico que se autodenomina de "novo Iluminismo europeu"
espacial, que não há um esquema de espaço euclidiano- e, não sem direito, vangloriava-se até há pouco da sua fac-
-kantiano que dentro dos limites da pintura se reduza à tua! soberania. Mas em tempos mais recentes nós já apren-
perspectiva linear e à proporcionalidade e, falando mais demos a entender a ilusória perfeição deste conhecimento e
exatamente, a uma única perspectiva, pois à proporcionali- sabemos que, tanto cientificamente e filosoficamente, como
dade é apenas a sua particularidade. historicamente e, em especial artisticamente, todos aqueles
Com isso, supõe-se (e o que é mais perigoso, de for- espantalhos que eram usados para provocar repulsa à Idade
ma inconsciente), ou como perfeitamente comprovado por Média foram inventados pelos próprios historiadores. Sabe-
alguém e em alguma parte, que na natureza não existe for- mos que na Idade Média flui um rio caudaloso e substancial
ma real alguma - como forma vivente encerrada em seu de verdadeira cultura, com sua ciência, com sua arte, com
pequeno mundo - , porque geralmente não existem reali- seu sistema de governo, e em geral com tudo o que pertence
dades que contenham em si um centro, e por esse motivo à cultura, mais precisamente com aquilo que lhe épróprio e
estejam submetidas a suas leis. E por isso, tudo que é visível próximo da verdadeira Antiguidade. E as condições prévias,
e compreensível é só um simples material para o preen- consideradas como imutáveis segundo a visão de mundo
chimento de algum esquema geral de ordenação, imposto da Idade Moderna, agora, bem como na Antiguidade (sim,
de fora, e para o qual serve o espaço euclidiano-kantiano. bem como na Antiguidade!), não apenas são consideradas
Consequentemente, todas as formas da natureza são apenas imutáveis, mas são rejeitadas, não por falta de consciência,
formas aparentes, impostas por um esquema de pensamento mas essencialmente por uma aspiração da vontade. O páthos
científico sobre um material impessoal e indiferente, isto é, do novo homem reside em desprender-se de qualquer rea-
são como quadriculados da vida e nada mais que isso. E, por lidade, ,para que o "eu quero" dite leis sobre uma realidade
fim, a primeira premissa em uma ordem lógica é a de um recém cons_truída, fantasmagórica, embora encerrada em
espaço qualitativamente homogêneo, infinito e ilimitado traços quadriculados. Ao contrário, o páthos do homem
sobre a sua, por assim dizer, ausência de forma e de indivi- antigo, bem como do homem medieval é a aceitação, o
dualidade. É fácil ver que essas premissas negam ao mesmo reconhecimento agradecido e a afirmação de qualquer rea-
tempo a natureza e o homem, embora estejam enraizadas, lidade como um bem, pois a vida é o bem e o bem é a vida.

50 Pável Floriênski A perspectiva inversa 51


O pdthos do homem medieval é a afirmação da realidade ainda, estar entre realidades nas quais necessita se apoiar:
dentro e fora de si, ou seja a objetividade. O ilusionismo ele é profundam ente realista e se mantém firme no chão,
é próprio da subjetividade do novo homem: ao contrário, ao contrário do novo homem que respeita somente as suas
não há nada mais distante das intenções e ideias do homem vontades e, por necessidade, os meios mais imediatos de
medieval (cujas raízes estão na Antiguida de) que a criação sua realização e satisfação. Do exposto fica claro que as pre-
de simulacros e a vida entre simulacros. Para o novo homem missas da concepção realista da vida existiram e sempre
(tomarem os o seu verdadeiro reconheci mento da Escola de existirão: há realidades, isto é, centros de existência, alguns
Marburgo ), a realidade existe somente na medida em que a coágulos da existência sujeitos a suas próprias leis e, por isso,
ciência faz o favor de permitir a sua existência, entregand o cada um deles tem sua própria forma. Em consequên cia,
sua permissão em forma de um esquema; este esquema, por nada do que existe pode ser considerad o como um mate-
sua vez, deve ser a solução de um caso jurídico, do porquê rial indiferent e e passivo para preencher qualquer esquema
do dito fenômeno poder ser considerado pertencen te por que seja, e menos ainda o espaço euclidiano -kantiano. Por
completo aos traços quadricula dos da vida e portanto ad- isso as formas devem ser compreen didas de acordo com a
missível. A patente da realidade só pode ser legitimada na sua vida, representadas através delas mesmas; conforme a
chancelaria de H . Cohen 44 e sem a sua assinatura e carimbo compreensão, e não em ângulos de perspectiva previamen te
é inválida. distribuída. E, finalmente, o próprio espaço não é só um lu-
O que os filósofos da -Escola de Marburgo expressam gar homogêne o e sem estrutura, não é uma simples coluna;
abertamen te constitui o espírito do pensamen to renascentis- ele mesmo é uma realidade peculiar, organizad a de ponta
ta, e toda a história do conhecim ento, em grande parte, está a ponta; em nenhum lugar é indiferent e, mas é provido de
tomada por uma luta contra a vida, para sufocá-la com um uma estrutura e de uma organização interna.
sistema de esquemas. Mas é digno de atenção e também de
um enorme riso interior que o homem moderno se esforce
por apresentar esta distorção (a perversão do modo natural VII
de pensar e sentir do homem), esta reeducação no espírito
do niilismo como um retorno à naturalida de e como se Desta forma, a presença ou a ausência da perspecti-
fosse a retirada dos grilhões a ele sobrepostos. Além do mais, va na pintura de todo um período histórico não podem
empenhan do-se para apagar da alma humana as escritas ser considera das como algo equivalen te à habilidad e ou
da história, o novo homem acaba na verdade rompendo a inabilidad e, mas estão radicadas mais profundam ente no
própria alma. significado da vontade primordia l, cujo impulso criativo
O homem antigo e o medieval sabem, em primeiro se dirige a uma ou outra direção. Nossa tese - à qual vol-
lugar, que para querer é necessário ser, ser uma realidade e, taremos novament e - afirma que o motivo pelo qual há
períodos da história da criação artística nos quais não se
44 Hermann Cohen (1842-1918) , filósofo alemão de origem judaica, aplica o uso da perspectiva não se deve ao fato de que seus
um dos fundadores da Escola neokantiana de Marburgo. (N. da T.) artistas figurativos "não sabiam" como empregá-l a, mas

52 Pável Floriênski A perspectiva inversa 53


porque decidiram ignorá-la. Ou, para sermos mais exatos, estão subordina das a um determina do sistema: as paralelas
preferiram utilizar outro princípio de representação, distinto sempre divergem na direção do horizonte e, além disso, fi-
daquele da perspectiva; e se esse era o seu desejo, é porque cam mais visíveis quanto mais for necessário destacar o obje-
o gênio de sua época percebia e compreen dia o mundo de to que delimitam . Se em particularidades de relevos egípcios
tal maneira que esse procedimento de representação lhe era observamos não o desconhec imento acidental, mas um mé-
imanente. Ao contrário, durante outros períodos, as pessoas todo artístico (pois essas peculiaridades não são encontrad as
esquecem o sentido e o significado de uma representação uma ou duas, mas milhares e dezenas de milhares de vezes,
não perspéctica, perdem sua sensibilidade para ela, já que a e por isso são deliberadas), então por semelhant e razão não
completa transformação da compreensão do tempo conduz podemos deixar também de reconhecer um método na pe-
à representação perspéctica do mundo. Tanto um quanto culiaridade das violações da perspectiva na arte medieval.
outro possui sua sequência interna, sua lógica obrigatória, Além do mais, é psicologicamente impossível imaginar que
elementar na sua essência, que se não vem rapidamen te com durante muitos séculos pessoas fortes e profundas , cons-
toda força, não é por causa da complexid ade desta lógica, trutoras de uma cultura original, foram incapazes de notar
mas sim por causa da oscilação ambígua do espírito da época um fato tão elementar e indubitáve l e, podemos dizer, tão
entre duas autodefinições mutuamen te excludentes. gritante, como a convergência de paralelas ao horizonte.
Pois, no final das contas, existem só duas experiências Mas, se isso parece pouco, aqui está mais uma prova:
do mundo - a experiência comum a toda a humanida de e os desenhos de crianças em relação à falta de perspectiva,
a experiência "científica" (isto é, kantiana) - , assim como mais precisame nte à presença da perspectiva inversa, lem-
há somente duas atitudes para com a vida- a interna e a bram vivamente desenhos medievais, apesar do esforço dos
externa - , como há também dois tipos de cultura - o professores para imporem às crianças as leis da perspecti-
contempla tivo-criati vo e o mecânico- predatório . Tudo se va linear. Apenas com a perda da atitude espontâne a para
reduz à escolha de um ou de outro caminho - da noite com o mundo as crianças perdem a perspectiva inversa e
medieval ou do iluminado dia da cultura, e a partir daqui submetem -se ao esquema imposto a elas. Todas as crianças
tudo fica definido como se estivesse escrito em uma se- agem desse jeito, independe ntemente uma da outra. Isso
quência completa. Mas as histórias alternadas (essas faixas significa que não se trata de um simples acidente e não é
da cultura) não se separam de imediato uma da outra por uma livre invenção de algum deles tentando bizantinizar,
conta da indetermin ação do próprio espírito nas respectivas mas um método de representação que surge do caráter da
épocas que, embora já cansado de um estado, ainda não se percepção sintética do mundo. Como a inteligência infantil
atreve a passar para o estado seguinte. não é uma inteligênc ia inferior, mas um tipo especial de
Sem avançar agora para o significado das violações pers- pensamen to 45 no qual cabe qualquer grau de perfeição,
pécticas, para poder voltar ao debate sobre esta questão pos-
teriormen te com maior persuasão psicológica, lembraremos
45 J. M . Baldwin,
Dukhóvnoie razvítie diétskogo indivíduuma i tchelo-
que na pintura medieval as violações da perspectiv a não
viétcheskogo roda [O desenvolvimento mental do indivíduo infontil e do gênero
aparecem só de vez em quando, de um ou outro modo, mas
humano], tradução da terceira edição americana, Moscou, Moskóvskoi e

54 Pável Floriênski A perspectiva inversa 55


inclusive a genialidade, seria necessário reconhecer que a n.esta cid.ade." Contudo, aquelas suas palavras, repetidas
perspectiva inversa na representação do mundo tampouco é amda hoJe, são obscenas e grosseiras, e muitas delas, além
simplesmente uma perspectiva linear errônea, mal entendi- disso, são impiedosas. Sob o manto de motivos religiosos é
da e pouco estudada, mas uma maneira peculiar de abarcar possível notar o espírito mundano, satírico, sensual e até
o mundo, a qual deve ser considerada como procedimento positivista, hostil ao ascetismo. Nutrindo-se do passado ma-
maduro e independente de representação. Podemos talvez duro que antecedeu a sua época, ele já respira, contudo, um
detestá-la como um procedimento hostil, mas de qualquer ar diferente. "Embora nascido em um século místico, não
maneira não é necessário falar dela com pesar ou com in- era um místico e, embora fosse amigo de Dante, não se
dulgente superioridade. parecia com ele" - escreve H. Tainé7 sobre Giott0 .48 On-
de Dante golpeia com ira sagrada, Giotto dá risadas e repro-
va não a violação de um ideal, mas o ideal em si. Ele mesmo,
VIII que pintara O matrimônio de São Francisco com a Senhora
Pobreza, zombava em um poema do próprio ideal de pobre-
Realmente, a nova compreensão do mundo no Oci- za. "Quanto a' po breza, aparentemente desejada e procurada
dente no século XIV foi marcada por uma nova atitude em (como claramente se vê na prática), observam-na ou não a
relação à perspectiva. observam, mas não por sua glorificação, já que não a acom-
Como se sabe, as primeiras e mais sutis emanações panham nem o refinamento intelectual, nem o conhecimen-
do naturalismo, do humanismo e da Reforma procedem to, nem a gentileza e nem a virtude. E, segundo me parece,
daquela inocente "ovelhinha de Deus", Francisco de Assis, é um tanto vergonhoso chamar de virtude aquilo que supri-
canonizado em prol da imunização, unicamente porque não me as boas qualidades, e ruim preferir algo animal às verda-
se deram conta de queimá-lo a tempo. E a primeira mani- deiras virtudes que trazem boa-venturança a qualquer ho-
festação do franciscanismo na arte foi o giottismo. mem inteligente e que são tais que quanto mais alguém se
A arte de Giotto é associada habitualmente com o con- delicia com elas, mais as valoriza." É difícil acreditar que
ceito de Idade Média, embora erroneamente. Giotto olha em esta declarada preferência pela glória mundana sobre a pro-
outra direção. Seu "gênio alegre e feliz, à maneira italiana'', eza da autodisciplina coube a um amigo de Dante. Mas é
fecundo e leve, era propenso a um olhar superficial sobre a assim. E, além de Dante, ele ainda tinha amigos epicuristas
vida, à maneira do Renascimento. "Ele era muito engenho- que negavam a Deus. Giotto criou para si um ideal de cul-
so" - diz Vasari 46 - , "muito agradável no trato e um gran- tura universal e humanista. Ele imaginava a vida segundo 0
de mestre de palavras afiadas, cuja memória ainda está viva
47
Hippolyte Adolphe Taine (1828-1893), crítico e historiador fran-
Knigoizdátelstvo, 1911. (N. do A.) [Título original: Mental Development in cês. (N. da T.)
the Child and the Race, 1896. (N. da T.) ] 48
H. Taine, Putechéstvie v ltáliu [Viagem à Itália], tradução de P. P.
46 Giorgio Vasari (1511-1574), arquiteto, pintor e escultor italiano. Pertsov, v. 2, Moscou, 1916, pp. 87-8 . (N. do A.) [Título original: Voyage
Bastante citado como biógrafo dos artistas renascentistas. (N. da T.) en ltalie, 1866. (N. da T.) ]

56 Pável Floriênski A perspectiva inversa


57
espírito dos livres-pensadores do Renasc imento, como a
felicidade terrena e o progresso humano , com a subordi na-
ção de tudo a um objetivo principal: desenvolvimento ple-
no e perfeito de todas as forças naturais. Aqui, o primeir o
lugar pertenc e aos inventores do útil e do belo. E ele mesmo
aspira ser igual ao protótip o de um gênio típico da época, a
Leonardo. "Ele foi muito ávido de saber - diz Vasari sobre
Giotto - , andava sempre mergulh ado em reflexões sobre
novas coisas e tentava aproximar-se mais da natureza, por
isso ele merece ser nomead o aluno da naturez a e de nin-
guém mais. Ele desenhava várias paisagens repletas de rochas
49
e árvores, o que era uma novidade no seu tempo." Ainda
pleno das nobres seivas da Idade Média e não sendo ele
mesmo um naturalista, já experim entava a primeir a brisa
do amanhe cer do naturali smo e se tornou o seu arauto.
Pai da paisagem modern a, Giotto faz uso do procedi -
mento trompe l'oeil e com surpree ndente êxito para o seu
tempo resolve "a olho" os mais ousados problem as de pers-
pectiva. Historia dores da arte questio nam o conheci mento
das regras da perspectiva por parte de Giotto. Se assim era,
aqui temos a prova de que, quando o olho começo u a ser
direcion ado pela busca interna da perspectiva, ele a encon-
trou quase de imediat o, embora em formato pouco elabo-
rado. Giotto não só não comete violações graves de perspec-
tiva, como, ao contrári o, parece estar brincan do com ela,
estabelecendo para si problem as de perspectiva complexos
e resolvendo-os com perspicácia e plenitud e; em particular,
as linhas paralelas que convergem em direção a um ponto Giotto, Inocêncio li! aprova a regra franciscana,
único no horizon te. Além disso, nos afrescos da Igreja Su- c. 1497, afresco, 230 x 270 em,

perior de São Francisco de Assis, Giotto concebe u a pintu- Igreja Superior de São Francisco de Assis, Assis.

ra como possuid ora de um "significado indepen dente que


rivalizara inclusive com a arquitetura''. O afresco "não é uma

49 A. Benois, op. cit., p. 100. (N. do A.)

58 Pável Floriênski
decoração de parede com um temà' , mas "a visão de certos É natura l pensa r que Giott o desenvolveu o hábito e o
acont ecime ntos através da parede" . É merec edor de aten- gosto pelas ilusões ópticas da perspectiva na cenografia
ção que mais tarde Giott o raram ente recorresse a este tea-
pro- tral: já havíamos visto um prece dente semel hante no relato
cedim ento dema siadam ente corajoso para sua época, tanto de Vitrúvio sobre a encenação das tragédias de Ésquilo
ea
quant o seus seguidores mais próximos, ao passo que duran participação de Anaxágoras nelas. No desen volvim ento
- do
te o século 'XV semel hante arqui tetura se torna uma regra teatro mode rno, os misté rios- que deram origem ao novo
comu m, levando nos séculos XVI e XVII ao enriqu ecime dram a - apres entam també m uma transição da teurgi
n- aà
to enfático da pintu ra arquit etônic a de ambie ntes absol visão mund ana tal e qual foram na Grécia Antig a as tragé-
uta-
mente planos e simples, desprovidos de qualq uer tipo dias de Ésquilo, depois as de Sófocles e, finalmente, as
de de
decoração arquit etônic a real. 5° Por conse guinte , se o pai Eurípides, quand o aos pouco s se distan ciaram da realid
da ade
pintu ra mode rna não recorre poste riorm ente a semel hante mística e, mais precisamente, mistérica. Para os historiadore
proce dimen to, isso não acontece porqu e o desconhecia, s
mas da arte parece provável que a paisagem de Giott o realm
porqu e o gênio artístico se fortaleceu. Em outras palavr ente
as, surgiu do cenário, daquilo que foi cham ado de "mistérios",
toman do consciência de si na esfera da arte pura, esse gênio e
conse quent emen te não podia, digo de minh a parte, desob
artístico se distan ciou da perspectiva enganosa ou ao meno e-
s decer ao princí pio do decorativismo, isto é, da perspectiva.
da sua imper tinênc ia, da mesm a mane ira que o seu huma Para que não pareça falta de funda mento s, confir marem
- os
nismo racionalista atenu ou-se nas gerações seguintes. nossas considerações com a opini ão de algué m alheio
ao
pensa mento de um histor iador da arte: "Com o a paisag
em
de Giott o depen dia dos cenários de mistérios?" -perg unta
-
IX -se A. Benois, para a seguir respo nder - ·"Parc ialme
nte,
essa depen dênci a manif esta-se em grau tão forte (em forma
Mas então , de onde partia Giott o? Ou, em outra s de peque nas casas e pavilhões 'falsos', em forma de rocha
palavras, de onde surgiu a sua habili dade de usar a pers- s
planas que parecem recortadas de papelão, como se fossem
pectiva? As analogias históricas e o significado intern o bastidores) que se torna simpl esmen te impossível duvid
da ar
perspectiva na pintu ra sugerem uma resposta que já sabe- da influência que os espetáculos religiosos exercem sobre
mos. Quan do se come ça a suspeitar do caráter indub itável sua pintur a: em alguns afrescos, possivelmente, assisti
do teoce ntrism o, e junto à músic a das esferas soa a músic mos
a a cenas retiradas direta mente desses espetáculos. Contu
da· terra (enten do "a terrà' no sentid o de autoafirmação do,
do é necessário dizer que nos quadr os indub itavel mente
"eu" huma no), então come ça a tentat iva de pôr no lugar per-
tencentes a Giott o esta depen dênci a manif esta-se meno
das realidades turvas e obscuras os simulacros e os fantas se
- de mane ira cada vez mais fortem ente reelaborada de acord
mas; no lugar da teurgi a a arte ilusionista; no lugar da ação o
com as norm as da pintu ra monu menta l" .51
divina o teatro .

50 Ibidem. (N. do A.) 51 Idem, pp. 107-8. (N. do A.)

60 Pável Floriênski A perspectiva inversa


61
Em outras palavras, amadure cendo como um artista que a teoria da perspectiva, quando compara da à geometri a
puro, Giotto gradualm ente afasta-se do cenário teatral, que elementar, não era grande novidade, como também não era
é um trabalho de artiél, 52 de realização individu al pouco nova na consciência das pessoas daquele tempo: "Profun-
provável. A inovação de Giotto não estava, portanto , na damente compene trado, Euclides expôs os fundame ntos da
perspectiva como tal, mas no uso pictórico deste procedi- geometria" - es~reve Dürer - "e, para aqueles que já os
mento, empresta do do ramo da arte aplicada e popular, da conhecem , o escnto aqui será dispensável" .55
mesma forma como Petrarca e Dante transferiram a língua Assim, a perspectiva elementa r era conhecid a há mui-
popular à poesia. Afinal, surge a conclusão de que o conhe- to tempo, embora esse conhecim ento não fosse acessível à
cimento ou, pelo menos, a habilidad e de usar os procedi- grande arte para além da antessala.
mentos da perspectiva, na qualidad e de uma "ciência secre- Mas à medida que a visão religiosa do mundo da Idade
ta sobre a perspectiva'', 53 segundo expressão de A. Dürer, M.éd~a. é secul~rizad~, a ação religiosa pura regenera-se em
sempre existiu entre os mestres que pintavam cenários de mistenos semiteatrais e um ícone transform a-se na assim
mistérios , embora a pintura no sentido rigoroso evitasse chamada pintura religiosa, na qual o tema religioso torna-se
esses procedim entos. Mas poderia a pintura desconhe cê- cada vez ~ais um pretexto para a representação de um corpo
-los? É difícil imaginar o contrário , já que os Elementos de e um~ paisagem. Uma onda de mundane idade propaga-se
geometria de Euclides eram conhecidos. Já Dürer, em sua a .partir de Flor~nç~, .onde o~ giottistas encontra m e depois
4
Instrução para medições,5 publicad a no ano de 1525 e que difundem os pnncipw s da pintura naturalis ta como mode-
los primário s de arte.
contém um estudo sobre a perspectiva, começa o primeiro
livro desse tratado com palavras que mostram claramen te O próprio Giotto, e depois dele Giovann i di Mila-
56
no, e especialmente Altichiero e Avanzo, criam atrevidas
5Z Espécie de associação cooperativa na Rússia. (N. da T.) co~s~ruções perspécticas. É natural que essas experiências
artlstlcas, bem como as tradições, em parte hauridas de tra-
53 Cf Aleksei Mirónov. Albrekht Diúrer, egó jizn i khudójestvennaia
diéitelnost [Albrecht Dürer, sua vida e atividade artística], Moscou, 1901, p.
balhos de Vitrúvio e Euclides, formassem a base do sistema
375 (Utchônie Zapíski Imperátorskogo Moskóvskogo Universitiéta. Istóri- teórico onde a doutrina sobre a perspectiva deveria estar re-
ko-filologuírcheski ordiél, n° 31). (N. do A.) digida plena e fundame ntalmen te. Aquelas bases científicas
54 Underweisung der Messung mit dem Zirkel und Richtscheit in Linien, que depois de um século de desenvol vimento produzir am
Ebnen und gantzen Corporen durch Albrecht Dürer zusammengezogen und z u a "arte de Leonard o e Michelangelo" foram encontra das e
Nutz a/ler Kunstliebhabenden mit zugehorigen Figuren in Druck gebracht im
]ahr MDXXV. Gedruckt zu Nürnberg im 1525 Jahr. [Instrução para medições
a régua e a compasso em linhas, planos e corpos inteiros, composto por Albrecht 55 A M. , .
· 1ronov, op. czt., p. 380, nota 1. (N. do A.)
Dürer para benefício de todos que gostam da arte, com figu ras apropriadas e h. d .
56 AI .
impresso em Nuremberg no ano de 1525] . O tratado foi parcialmente impresso . nc 1ero a Zevw (1330-1390), pintor italiano de estilo gótico,
no livro: A . Diúrer. Dnevnikí. Písma. Traktáti [A. Dürer. Diários. Cartas. segmdor de Giotto. Foi o possível fundador da escola de Verona. Trabalhou
Tratados], v. II, Leningrado-Moscou, Iskússtvo, 1957, pp. 43-93. Além disso, junto com Jacopo Avanzo decorando com afrescos a Capela de San Felice e
San Giorgio di Padova. (N. da T.)
há mais de cinco edições posteriores. (N. do A.)

Pável Floriênski A perspectiva inversa 63


62
desenvolvidas em Florença. As obras de dois teóricos daque-
57
le período, Paolo dell'Abbaco (1366) e depois Biagio da
Parma, 58 não chegaram até nós. Mas é provável que tenham
sido eles que prepararam o terreno onde, desde o começo do
século XV, trabalhar am os principais teóricos da doutrina
da perspectiva: 59 Filippo Brunelleschi (1377-14 49) e Paolo
Uccello (1397-14 75), depois ,Leon Battista Alberti, Piero
della Francesca (cerca de 1420-14 92) e, finalmente, uma
série de escultores entre os quais temos que destacar espe-
cialment e Donatell o (1386-14 66) . O poder de influênci a
desses pesquisadores foi condicio nado pelo fato de que eles
não desenvolviam as regras da perspectiva só teoricam ente,
mas também aplicavam suas conquistas na pintura ilusio-
nista. Assim, os afrescos em forma de monume ntos foram
executados com enorme domínio da perspectiva sobre as
paredes do Duomo de Florença - no ano de 1436 por
Uccello, e em 1435 por Castagno -,bem como o afresco-
-cenário de Andrea dei Castagno (1390-14 57) em Santa
Apolônia de Florença. "Todo o seu adorno rigoros o- o
axadrezado do chão, os caixilhos no teto, as rosetas e pai-
néis nas paredes - é representado com obsessiva precisão
para conseguir uma impressão mais plena de profundi dade
(podemo s dizer, 'estereoscopismo'). Esta impressão é obtida

5? Paolo Dagomari (1281/8-13 67/8), matemático e astrônomo ita-


liano. Ficou conhecido como Paolo Dell'Abaco porque foi mestre de ábaco,
tendo ensinado mais de seis mil alunos. (N. da T.)
5S Biagio Pelacani da Parma (1347-141 6), filósofo, astrólogo e mate-
mático italiano. Professor da Universidade de Pádua e da Universida de de
Parma. (N. da T.)
59 Em língua russa, extratos de alguns desses tratados estão no livro
Paolo Uccello, Monument o fonerdrio a Giovanni Acuto
de Allesch, Renessans v Itdlii [Renascença na Itdlia], tradução de E. I. Grigo- [Sir John Hawkwood], 1436, afresco, 732 x 404 em,
róvitch, M. e S. Sabachnikov, Moscou, 1916. (N . do A.) [Título original: Igreja de Sama Maria del Piore, Florença.
Die Renaissance in Italien, Weimar, Gustav Kiepenheuer, 191 2. (N. da T.)]

64 Pável Floriênski
a tal ponto que toda a cena, em sua imobilidade, aparenta temáticos e já ficou distante dos interesses imediatos da
'
estar exposta ' . 60 - certamente "um pa-
em um panopnco arte. Um pouco do que foi ligeiramente esboçado aqui não
61
nóptico engenhoso" --, como nota, de maneira cáustica teve como objetivo transmitir fatos históricos geralmente
porém equivocada, um adepto da perspectiva e do Renas- conhecidos como tais, mas, ao contrário, procurou lem-
cimento. Piero também deixa um manual de perspectiva brar exatamente a complexidade e duração deste processo
intitulado De perspectiva pingendi. Leon Battista Alberti concluído somente no século XVIII por Lambert, 62 e que
(1404-1472) em sua obra de três volumes Sobre a pintura, mais adiante, graças aos trabalhos de Lo ria, 63 Aschieri 64
escrita antes de 1446 e publicada em Nuremberg em 1511, e Enriqueé 5 na Itália, Chasles 66 e Ponceleé7 na França,
desenvolve as bases de uma nova ciência e as ilustra apli- Staudt, 68 Fiedler, 69 Wiener,7° Kupfer 71 e Burmester72 na
cando-as à pintura arquitetônica. Masaccio (1401 -1429) e Alemanha, Wilson 73 na América e outros, entrou como um
seus discípulos Benozzo Gozzoli (1420-1498) e Fra Filippo dos capítulos da geometria descritiva na corrente geral dessa
Lippi (1406-1469) aspiram a utilizar na pintura a mesma
ciência da perspectiva, enquanto, finalmente, Leonardo da
Vinci (1452-1519) encarrega-se na teoria e na prática dos 62
Johann Heinrich Lambert ( 1728-1777), matemático francês radi-
mesmos problemas, até que Rafael Sanzio (1483-1520) e cado na Alemanha. Foi um dos criadores da fotometria e autor de trabalhos
Michelangelo Buonarroti (1475-1564) concluem o desen- inovadores sobre a geometria não euclidiana. (N. da T.)
volvimento da persp~ctiva. 63
Gino Loria (1862-1954), matemático italiano. Em 1914 publicou
Le scienze esatte nell'antica Grecia (N, da T.)
64
Ferdinando Aschieri (1844-1907), matemático italiano. Em 1896
X publicou Lezioni di geometria descrittiva. (N. da T.)
6
5 Federigo Enriques (1871-1946), matemático, historiador e filosofo
Deixaremos de assinalar daqui para a frente as eta- italiano. (N. da T.)
pas do desenvolvimento teórico e pictórico da perspectiva 66
Michel Chasles (1793-1880), matemático francês. (N. da T.)
no período histórico anterior ao nosso, tanto mais porque 6
7 Jean-Victor Poncelet (1788-1867), matemático francês. (N. da T.)
o seu estudo passou principalmente para as mãos de ma- 68
Karl Georg Christian von Staudt (1798-1867), matemático alemão.
(N. da T.)
69
Otto William Fiedler (1884-1947), matemático alemão. (N. da T.)
60 Embora o termo panóptico esteja mais associado, contemporanea-
70
mente, ao conceito de disciplinaridade- a partir da construção carcerária de Norbert Wiener ( 1894-1964), matemático norte-americano, con-
mesmo nome concebida pelo filósofo inglês Jeremy Bentham (17 48-1832) siderado o fundador da cibernética. (N. da T.)
no final do século XVIII e estudada pelo francês Michel Foucault (1926- 71
Karl Heinrich Kupfer (1789-1838), físico e matemático alemão.
1984) -,no presente caso, Floriênski utiliza a palavra "panóptico" segundo (N. da T.)
outra acepção desta palavra na Rússia, que é a exposição de objetos de cera, 72
Ludwig Burmester (1840-1927), matemático alemão. (N. da T.)
raridades, objetos estranhos. (N. da T.) 73
Trata-se, possivelmente, do matemático norte-americano Edwin
6! A. Benois, op. cit., I, p. 381. (N. do A.) Bidwell Wilson (1879-1964). (N. da T.)

66 Pável Floriênski A perspectiva inversa 67


disciplina matemática extremamente importante e vasta: a contra suas exigências! Mas o estudo de tais obras revela que
geometria projetiva.7 4 a sua força está exatamente nesses "erros" e nessas "falhas" .
Consequentemente, por mais que valorizemos a pers- É aqui quando, realmente, und predigen offintlich Wízsser. 75
pectiva em sua essência, não temos nenhum direito de en- Agora não há tempo para uma análise detalhada de
tendê-la como um modo de ver o mundo de maneira sim- obras de àrte e há de se contentar apenas com alguns poucos
ples, natural e espontaneamente peculiar ao olho humano exemplos típicos que comprovem essa ideia e, além disso,
como tal. Durante vários séculos, grandes mentes e pintores tomá-los de forma superficial, o que esteticamente significa
dos mais experientes, junto a proeminentes matemáticos, analisar a sua discrepância do esquema perspéctico. Mas, em
sentiram a necessidade de forjar uma doutrina sobre a pers- benefício da mais completa clareza, lembraremos, e ademais
pectiva. Além disso, após ter observado os atributos básicos com palavras alheias, que o objetivo dos perspectivistas é a
da projeção perspéctica do mundo é forçoso pensar que a famigerada "unidade perspécticà'.
ação histórica do desenvolvimento da perspectiva nunca Durante o florescimento da crença na perspectiva e do
tratou da mera sistematização já inerente à psicofisiologia seu culto nos anos setenta do século XIX, foi composto o
humana, mas sim da reeducação forçada desta psicofisiolo- manual da perspectiva de Cuido Schreiber/6 cuja segunda
gia, dentro de um contexto de exigências abstratas de uma edição foi revisada pelo arquiteto e professor de perspectiva
nova compreensão do mundo, consideravelmente antiartís- da Academia de Belas Artes de Leipzig, A. F. Viehweger,
tica e que exclui de si a arte, em especial, as artes plásticas. munida de prefácio77 do professor e diretor da mesma Aca-
Mas a alma do Renascimento, como a alma da Idade demia, Ludwig Nieper.7 8 Parece incontestável e altamen-
Moderna em geral, é uma alma partida, dividida, fragmen- te prestigioso! E assim, neste manual, no capítulo sobre a
tada em suas ideias. Neste aspecto, a arte obteve vantagem. "unidade perspécticà', encontramos o seguinte: "Qualquer
Felizmente, a criatividade viva não se submeteu às exigên- desenho que se pretenda ação perspéctica deve tomar como
cias da razão e a arte, de fato, tomou caminhos distantes base um determinado lugar do desenhista ou do espectador.
daqueles anunciados nas declarações abstratas. Eis uma Desse modo, o desenho deve ter só um ponto de vista, só
circunstância digna de atenção e risada: ainda que os pró-
prios artistas e teóricos descrevessem de várias maneiras as
75 Em alemão, no original: "e pregam abertamente a água". Citação
regras da perspectiva que eles mesmos haviam recomendado
imprecisa do poema "Alemanha: um conto de inverno", de Heinrich Heine
e, embora já conhecessem seus segredos, todos sem exceção
(1797-1856). (N. da T.)
entregavam-se ao sentido artístico espontâneo ao retratar 76 Cuido Schreiber (1799-1871), matemático e teórico alemão. (N.
o mundo, ou seja, cometiam "falhas" e "erros" grosseiros
da T.)
77 C uido Schreiber, Lehrbuch der Perspective mit einen Anfang über
den Gebrauch geometrischer Grundrisse [Manual de perspectiva com princípios
74 É possível encontrar vasta literatura sobre essas questões no livro de desenhos geométricos], 2a edição, Leipzig, 1874. Edição revisada por A. F.
de N. A. Rinin, Miétodi izobrajénia [Métodos de representação], pp. 245-64. Viehweger e com introdução de L. Nieper. (N. do A.)
(N.doA.) 78 Ludwig Nieper (1826-1906), artista alemão. (N. da T.)

68 Pável Floriênski A perspectiva inversa 69


um horizonte, só uma escala. A propósito, o recuo de todas não haveria afinal ceia alguma. E Leonardo acentua o valor
as linhas que partem perpendicularmente para o fundo das especial do acontecimento através da violação da unidade
imagens deve ser direcionado a partir desse único ponto de da escala. Um exame simples demonstrará facilmente que
vista. Nesse único horizonte devem estar situados igualmen- a sala tem apenas o dobro da altura de um homem, com o
te os pontos de fuga de todas as outras linhas perpendicula- triplo de largura. Assim, o ambiente não corresponde, de
res; a proporção correta das medidas deve predominar em modo algum, nem à quantidade de pessoas que estão pre-
toda a representação. Isto é o que deveria ser entendido por sentes nele, nem à grandeza do acontecimento. Contudo,
unidade perspéctica. Se o quadro é desenhado do natural, é o teto não parece oprimi-las e o tamanho reduzido da sala
preciso ter apenas um pouco de atenção em relação a essas proporciona intensidade dramática e sensação de plenitude.
posições e tudo se dará, até certo ponto, por si mesmo". 79 De modo imperceptível, mas preciso, o mestre recorreu
Isso significa então que: à violação 80 perspéctica, bem conhecida desde os tempos
A violação da unidade do ponto de vista, do horizonte egípcios: empregou diferentes unidades de medida para os
e da escala, é a violação da unidade perspéctica da repre- personagens e o ambiente e, tendo reduzido sua escala de
sentação. maneira distinta em diferentes direções, fez sobressair os
Agora: personagens e conferiu a um modesto jantar de despedida
Se existe algum perspectivista, esse certamente é Leo- a importância de um acontecimento histórico universal e,
nardo. Sua Última ceia, fermento artístico de pinturas tar- além disso, fez dele o centro da História. A unidade pers-
dias e teológicas sobre a vida d.e Jesus, tem como objetivo péctica foi violada, a dualidade do espírito renascentista se
retirar a diferenciação espacial daquele mundo evangélico e revelou, mas em compensação o quadro adquiriu persuasão
desse, mundano; e busca mostrar Cristo como alguém que estética.
tem um determinado valor, mas não uma realidade singular. É conhecida a impressão grandiosa causada pela ar-
O que está no afresco é uma realização cênica, mas não é quitetura na Escola de Atenas de Rafael. 81 Ao descrever de
um espaço singular que possa ser comparado ao nosso. E memória a impressão causada por suas abóbadas, dá vontade
esta cena não é mais do que uma continuidade do espaço da de compará-las, por exemplo, às da catedral moscovita do
sala; o nosso olhar, e atrás dele todo o nosso ser, está sendo Cristo Salvador: as abóbadas dão a impressão de ser da mes-
absorvido por essa perspectiva em retrocesso que conduz até ma altura daquelas da catedral. Mas a medição mostra que
o olho direito do personagem principal. O que vemos não é a altura das colunas é só um pouco maior que o dobro da
uma realidade, mas experimentamos um fenômeno visual; e altura das figuras, portanto o edifício inteiro, aparentemente
como por uma fresta espionamos fria e curiosamente, sem tão suntuoso, seria bastante ínfimo, insignificante, se assim
veneração, nem piedade e muito menos com o páthos de dis- fosse de fato construído. A técnica do artista neste caso
tanciamento. Nessa cena reinam as leis do espaço kantiano
e da mecânica newtoniana. Sim. Mas se fosse somente isso,
80 Idem, parágrafo 34, p. 56. (N. do A.)
79 81 Idem, p. 57. (N. do A.)
Op. cit., parágrafo 32, p. 51. (N. doA.)

70 Pável Floriênski A perspectiva inversa 71


também é bastante simples. "Ele considerou dois pontos
de vista localizados em dois horizontes. Do ponto de vista
superior foi pintado o chão e todo o grupo de pessoas, e do ·
inferior, as abóbadas e toda a parte superior do quadro. Se as
figuras humanas tivessem o mesmo ponto de convergência
das linhas do teto, as cabeças das pessoas que estão no fundo
do quadro estariam mais abaixo e ocultas pelas figuras que
estão no primeiro plano, o que prejudicaria o quadro. O
ponto de convergência das linhas do teto está na mão direita
da figura central (Aristóteles), que segura um livro na mão
esquerda e com a direita parece estar apontando para o chão.
Se traçarmos uma linha até esse ponto a partir da cabeça
de Alexandre (a primeira figura à direita de Platão, o qual
está com a mão levantada), fica fácil notar como a última Leonardo da Vinci, A última ceia, 1498, afresco, 460 x 880 em,
figura deste grupo deveria ser menor. O mesmo vale para Refeitório da Igreja de Santa Maria delle Grazie, Milão.
os grupos que estão à direita do espectador. Para esconder
este erro perspéctico, Rafael colocou personagens no fundo
do quadro e assim mascarou as linhas do chão que vão para
o horizonte." 82
Dentre os outros quadros de Rafael mencionaremos
A visão de Ezequiel. Aqui há vários pontos de vista e vários
horízontes: o espaço da visão não está coordenado com o
espaço do mundo terreno e coordená-los era decididamen-
te imprescindível, caso contrário, aquele que está sentado
sobre os querubins pareceria ser apenas uma pessoa que, a
despeito das leis da mecânica, não cai do alto. (Neste qua-
dro, bem como em muitos outros de Rafael, o equilíbrio
entre dois princípios, o perspéctico e o não perspéctico, é
correspondente à coexistência tranquila entre dois mundos,
entre dois espaços. Isto não surpreende, mas comove. É
como se a cortina que separa um mundo do outro se abris-
se silenciosamente à nossa frente e diante de nossos olhos
Rafael, Escola de Atenas, 151 O, afresco, 500 x 700 em,
Palácio Apostólico, Vaticano
82
Rinin, op. cit., parágrafo 8, pp. 72-3 . (N. do A.) (as linhas brancas indicam o ponto de convergência).

72 Pável Floriênski
surgisse não uma cena, não uma ilusão desse mundo, mas Rafael, A visão de
Ezequiel, 1518,
a verdadeira, embora invasora, outra realidade. Na Sistina,
óleo sobre pâinel,
é por meio das cortinas abertas que Rafael sugere tal carac-
407 em x 295
terística de sua espacialidade.)
em, Palazzo Pitti,
Como um total oposto da Vísão de Ezequiel pode ser Florença.
mencionado, por exemplo, um quadro de Tintoretto que
está na Academia Veneziana, O apóstolo Marcos libertando
um escravo da morte aflitiva. 83 A aparição de São Marcos é
apresentada no mesmo espaço no qual estão todos os perso-
nagens e a visão celestial parece ser uma massa corpórea que
tende a cair sobre as cabeças das testemunhas do milagre.
Aqui não é possível deixar de lembrar das técnicas natura-
listas do trabalho de Tintoretto, que suspendia pequenas fi-
guras de cera no teto para reproduzir seus escorços de forma
naturalisticamente mais precisa. E a visão celeste mostrou
ser nada mais do que uma peça de cera suspensa, igual aos
querubins nas árvores de Natal. Assim é o fracasso artístico
que ocorre ao se fundir espaços heterogêneos.
Mas o uso de dois espaços, perspéctico e não perspécti-
co ao mesmo tempo, também pode ser encontrado com bas-
tante frequência, especialmente na representação de visões
e fenômenos milagrosos. Assim são algumas obras de Rem-
brandt, embora possamos falar sobre o caráter perspéctico,
mesmo de seus componentes, apenas com muitas ressalvas.
Este procedimento compõe a marcante peculiaridade de
Doménicos Theotokópoulos, chamado El Greco. O sonho

83 A tela de Tinroretto aqui referida é citada, geralmente, com o


título de I! miracolo di San Marco. Porém, em livros de referência existem
variações. O Dizionario Larousse Del/a Pittura oferece o título Miracolo de!
schiavo liberato (Gremese Editore, 1998). Já o volume 36 dos Classici dell'arte
nomeia esse quadro como San Marco libera lo schiavo (Rizzoli, 1978). A tela,
conforme citado por Floriênski, encontra-se na Gallerie dell'Accademia de Tintoretto, O apóstolo Marcos libertando um escravo, 1548,
Veneza. (N. da T.) óleo sobre tela, 416 x 544 em, Gallerie dell'Accademia, Veneza.

74 Pável Floriênski
de Filipe !!, O enterro do Conde Orgaz, Pentecostes, A vista corpo. Ainda que seja visível, ele é transcendental a nós que
de Toledo e outras de suas obras, onde cada um dos espaços pensamos segundo Kant e Euclides. Mesmo que vivendo
se decompõe claramente . em vários (não menos que dois), na época do Barroco, Michelangelo foi, tanto em relação
sendo que o espaço da realidade espiritual definitivamente ao passado quanto ao futuro, um homem da Idade Média:
não se funde com o espaço da realidade sensual. Isto é o que _ contemporâneo e, certamente ao mesmo tempo, não con-
confere aos quadros de El Greco uma persuasão especial. temporâneo de Leonardo.
Entretanto, seria um erro pensar que somente temas
místicos requerem a violação da perspectiva. Tomaremos
como exemplo a Paisagem flamenga de Rubens, na galeria XI
Uffizi: a parte central é aproximadamente perspéctica e o
espaço a absorve, enquanto as laterais são inversamente pers- Quando alguém se depara pela primeira vez com o
pécticas e seus espaços lançam para fora a visão aperceptiva. desvio das regras da perspectiva, normalmente percebe a
Como resultado, obtém-se dois poderosos redemoinhos vi- ausência da unidade perspéctica como uma falha casual do
suais que preenchem de forma admirável um tema prosaico. artista, como um tipo de doença do próprio trabalho. Mas
Tal e qual é o equilíbrio entre dois princípios espaciais basta um mínimo de atenção para descobrir rapidamente
em A conversão do apóstolo Paulo de Michelangelo. Mas há essa falha em quase todas as obras, e a não perspectividade
uma espacialidade absolutamente diferente em seu juízo começa a ser avaliada não como uma patologia, mas sim
Final. O afresco representa uma superfície inclinada: quan- como a fisiologia das artes plásticas.
to mais alto se encontra um ponto na pintura, tanto mais Aqui uma pergunta é inevitável: será que a arte pode
distante do espectador fica o ponto por ela representado. abrir mão da reorganização da perspectiva? Pois o objetivo
Consequentemente, ao levantar os olhos, esses dev~riam desta é criar uma certa integridade espacial, um mundo sin-
encontrar figuras cada vez menores, em virtude da redução gular, fechado em si, não mecânico, mas contido nos limites
perspéctica. Isto, a propósito, torna-se visível porque as fi- da moldura por suas forças internas. Entretanto, a fotogra-
guras que estão abaixo ocultam as que estão acima. Mas, fia, sendo o recorte do espaço natural, ou seja, uma parte
quanto às dimensões, o tamanho das figuras aumenta à do espaço, pela sua própria essência não pode deixar de nos
medida que ascendem no afresco, isto é, à medida que se conduzir para fora das suas fronteiras, para fora dos limites
distanciam do espectador. Eis a propriedade daquele espaço da moldura, já que é uma parte mecanicamente separada de
espiritual: quanto mais afastada alguma coisa, maior ela fica; um todo maior. Consequentemente, a primeira exigência
quanto mais próxima, menor resulta. Esta é a perspectiva feita pelo artista é reorganizar um fragmento do espaço que
inversa. Uma vez reconhecida e, além disso, traçada tão ele selecionou em um todo encerrado em si mesmo, ou seja,
coerentemente, começamos a sentir nossa plena incomen- anular as correlações perspécticas, cuja função essencial é a
surabilidade com relação ao espaço do afresco. Nós não nos unidade kantiana da experiência total, que se expressa na
introduzimos neste espaço; ao contrário, ele nos expulsa necessidade de passar de uma experiência para outra e na
para fora de si, como um mar de mercúrio expulsaria nosso impossibilidade de encontrar-se com a área autodominante.

76 Pável Floriênski A perspectiva inversa 77


Mas se de fato a perspectiva existe na experiência, esta é uma
outra pergunta cuja resposta não cabe aqui. Porém, se ela
existe ou não, a sua finalidade é determinada e esta finali-
dade contradiz significativamente a atividade da pintura,
desde que essa última não tenha se vendido a alguma outra
atividade que necessite da "arte do simulacro", da ilusão da
continuidade imaginária da experiência sensitiva, que na
realidade não existe.
A partir do que já foi dito, não ficaremos surpresos ao
observar a presença de dois pontos de vista e dois horizontes
no Banquete na casa de Simão de Paolo Veronese, bem como
ao menos dois horizontes em sua Batalha de Lepanto e tam-
bém os vários pontos de vista localizados ao longo de um
único horizonte em Captura do séquito de Abd-El-Kader de
Horace Vernet e ainda as numerosas discrepâncias perspéc- Paolo Veronese, Banquete na casa de Simão, 1560 (detalhe),
ticas em paisagens de Swanevelt, e também de Rubens e em óleo sobre tela, 315 x 451 em, Galleria Sabauda, Turim.
muitos outros quadros. Assim entenderemos por que ainda
os mais sérios manuais de perspectiva oferecem conselhos
de como violar a unidade perspéctica sem que isso fique
muito evidente (até mesmo para os adeptos de tal unidade
perspéctica) e em quais situações é necessário recorrer a· tal
"ilegalidade". 84 Recomenda-se, em particular, situar os pon-
tos de convergência das linhas perpendiculares em relação
ao plano do quadro ao longo de alguma curva, por exemplo,
seguindo as normais 85 que rodeiam alguma elips~. 86 Mesmo
os artistas mais distantes dos problemas estabelecidos pela Paolo Veronese,
arte puramente verdadeira, aplicavam semelhantes violações ALegoria da
à unidade perspéctica há muito tempo. bataLha de
Lepanto, 1571
(detalhe),
84 Rínin, óleo sobre tela,
op. cit., pp. 70-82, 89. G. Schreiber, op. cit. (N. do A.)
169 X 137
85 Na geometria, normal é a reta perpendicular a uma curva ou su-
em, Gallerie
perfície (Houaiss). (N. da T.)
deli'Accademia,
86 Rínin, op. cit., p. 75, croquis 144. (N. do A.) Veneza.

78 Pável Floriênski
Assim é, por exemplo, a famosa pintura Bodas de Caná,
de Paolo Veronese (1528-1588), que está no Louvre: ela
possui, segundo indicação de especialistas, sete pontos de
vista e cinco horizontes. 87 Bossuet88 tentou fazer um esboço
"corrigido" da arquitetura deste quadro, ou seja, tentou fazer
uma imagem que fosse estritamente perspéctica e concluiu
que ela preservou "em essencial a mesma ordem e a mesma
beleza". 89 Note-se o bom conceito que se tem das grandes
obras de arte que podem ser "corrigidas" com tanta facilida-
de! E não seria melhor comprovar e corrigir as nossas con-
cepções estéticas baseando-se nos objetos de arte históricos?
E se é verdade que a submissão rigorosa à perspectiva de um
quadro não perspéctico, por si só, não viola a sua beleza,
será que isso não significaria que tanto a presença quanto
a ausência da perspectiva (ao menos esteticamente) não é Horace Vernet, Captura do séquito de Abd-E!-Kader, 1844 (detalhe),
tão importante como acreditam os adeptos da perspectiva? óleo so bre tela, 489 x 2139 em,
Lembre-se de como, no final de 1506, Albrecht Dürer Museu Nacional do Palácio de Versalhes, Versalhes.
partiu apressadamente de Florença a Bolonha para lá ave-
riguar "a arte secreta da perspectiva'' . Mas os segredos da
perspectiva estavam zelosamente protegidos. Lamentando-
-se da falta de receptividade dos bolonheses, Dürer teve que
partir, ainda que tenha aprendido muito pouco e, em sua
casa, passou a se dedicar por sua própria conta à descoberta
· dos mesmos procedimentos e a escrever um tratado sobre
eles (o que, contudo, não o impediu de cometer "erros"
perspécticos).

87 Friedrich Schilling. Über die Anwendungen der darste!lenden Ge-


ometrie insbesondere über die Photogrammetrie [Sobre os usos da geometria
explicativa, especialmente em fotometria], Leipzig, Berlim, 1904. pp. 152-3.
Rínin, op. cit. (N. do A.)
88 François Bossuet (1798-1889), artista e desenhista belga. (N. da T.) Paolo Veronese, As bodas de Caná, 1563, óleo sobre tela,
89 Schilling, op. cit., pp. 152-3. (N. do A.) 666 x 990 em, Museu do Louvre, Paris.

80 Pável Floriênski
Sem entrar no mérito de sua atividade artística em
geral, recordemos sua obra-prima, sobre a qual Kugler 90
escreveu em um ensaio (reconhecido pelos especialistas em
Dürer como "a mais completa e feliz descrição" 91 desta
obra), que "o artista que leva a cabo semelhante obra pode
se despedir desse mundo, pois o seu objetivo na arte já foi
alcançado: essa obra coloca-o na mesma altura dos maiores
mestres que, com justiça, fazem o orgulho da história da
arte". Aqui certamente subentende-se o díptico conhecido
como Os quatro apóstolos, criado em 1526, isto é, depois da
publicação de Instrução para medições e apenas dois anos
antes de sua morte (Dürer faleceu em 1528). Nesse díptico,
as cabeças das duas figuras que ficam atrás são maiores do
que aquelas das figuras que estão à frente. Em consequência
disso preserva-se o mesmo plano básico do relevo grego,
embora as figuras não estejam colocadas neste plano. De
acordo com a pertinente observação de um crítico de arte:
"obviamente, aqui estamos diante da assim chamada pers-
pectiva inversa, segundo a qual os objetos que estão atrás
são representados como sendo maiores do que os que estão
na frente". 92

9° Franz Kugler, Rukovódstvo k istórii jívopissi so vriémeni Konstantina


Velíkogo [Manual da história da pintura desde os tempos de Constantino, o
Grande], 3a edição, Moscou, 1874, p. 584. (N. do A.) [Título original:
Handbuch der Geschichte der Malerei in !talien seit Konstantin dem Grofem,
1837. (N. da T.))
9! Mirónov, op. cit., p. 347. (N. do A.)
92
Albrechr Dürer, Os quatro apóstolos, 1526, óleo s/ madeira,
A. A. Sídorov, "Tchetírie apóstola" Albrechta Diúrera i svidzannie s
215 x 76 em cada painel, Alte Pinakothek, Munique.
nim spórnie vopróssi ["Os quatro apóstolos" de Albrecht Dürer e as discutíveis
questões ligadas a ele], Petrogrado, 1915 (impressão avulsa das "Notas do
Departamento de Estudos C lássicos da Sociedade Arqueológica Imperial
Russa"), p. 15. (N. do A.)

82 Pável Floriênski
Certamente, esta perspectiva inversa dos Apóstolos sempre tensionada, não cometamos erros contra as regras
não é um lapso, mas a coragem de um gênio que derruba descobertas? Será que essas regras, mais convencionais, não
com sua intuição teorias mais racionais, inclusive as suas, lembram uma conspiração empreendida em nome de planos
pois elas exigiam um ilusionismo plenamente consciente. teóricos contra a percepção natural do mundo, um quadro
Os ensinamentos de Dürer sobre claro-escuro começam da fictício do mundo que deve ser visto segundo a percepção
seguinte maneira: "Se você deseja pintar quadros em relevo humanística do mundo, mas que apesar de todo o treina-
para que até a própria visão seja enganada ... ". 93 De fato, mento o olho humano nunca consegue ver, sendo que o
o que pode ser mais preciso do que isso? Assim prescreve artista reconhece a sua ignorância somente quando ele passa
a sua teoria ilusionista; porém a sua obra não é ilusionis- das construções geométricas para aquelas que realmente
ta. Em Dürer, a contradição (típica das pessoas em épocas percebe?
de transição!) entre a teoria e a arte era assinalada por sua Até que ponto o desenho perspéctico não é algo di-
predisposição ao estilo medieval e por seus princípios espiri- retamente compreendido, mas sim o resultado de muitas
tuais provindos da Idade Média diante de uma nova ordem condições artificiais complexas, fica evidenciado de forma
de pensamento. convincente através dos dispositivos do próprio Dürer, es-
plendidamente representados por ele nas xilogravuras de
seu Instrução para medições. Mas, quanto melhores forem
XII as próprias gravuras com seu espaço fechado em si mesmo,
mais antiartístico será o sentido das instruções produzido
De qualquer maneira, mesmo os teóricos da perspecti- por elas.
va não seguiam e nem achavam necessário seguir "a unidade A finalidade dos dispositivos é oferecer a um desenhista
perspéctica da imagem". Como, depois disso, podemos falar menos habilidoso a possibilidade de reproduzir qualquer
sobre a naturalidade da imagem perspéctica do mundo? objeto de maneira puramente mecânica, isto é, sem o ato da
Que tipo de naturalidade é essa, se precisamos interceptá- síntese visual, e, em um caso particular, absolutamente sem
-I~ para que depois, com grandes esforços e a consciência os olhos. Dürer explica sem rodeios, através de seus disposi-
tivos, que a perspectiva pode ser a ação de qualquer coisa,
menos da visão.
Assim é um desses dispositivos: ao final da mesa, em
93 Um dos manuscritos de Dürer, propriedade do Museu Britânico, forma de um retângulo alongado fixa-se, perpendicularmen-
que apresentam os esboços do artista para suas publicações propostas para te ao seu plano, um chassi retangular com um vidro. Do
o futuro. Publicado por A. von Zahn em 1868, W M. Conwey em 1889,
lado oposto, o mais estreito da mesa, paralelamente ao chas-
reeditado por K. Lange e F. Fuchs, Dürers schriftliche Nachlass aufGrund
si, fixa-se uma pequena barra de madeira com uma cavidade
der Original Handschriften und theilweise neu entdeckter a/ter Abschriften
[Patrimônio escrito de Dürer, publicado com base em manuscritos originais
no meio contendo um parafuso longo. Com a ajuda deste
e, parcialmente, em cópias antigas recém-encontradas], Halle, 1893, p. 326. parafuso move-se a pequena barra perpendicular ao plano
(N. doA.) da mesa, e dentro deste último movimenta-se uma haste de

84 Pável Floriênski A perspectiva inversa 85


madeira capaz de se fixar em diferentes alturas com a ajuda
de dentes e que possui em seu topo uma tabuinha com um
pequeno orifício. Está claro que esse artifício oferece, até
certo ponto, o modelo de uma projeÇão perspéctica através
do orifício da tabuinha para a superfície da folha de vidro e,
olhando para o objeto através desse orifício é possível traçar
a sua projeção no vidro.
Em outro dispositivo o ponto de vista é estabelecido de
modo fixo, também com ajuda de uma outra haste especial,
e o plano da projeção é realizado por uma rede vertical na
qual os fios se cruzam em ângulo reto, sendo que, além do
mais, o desenho é traçado num papel igualmente quadri-
culado, colocado sobre a mesma mesa entre a haste e a rede
vertical. Medindo em quadrados as coordenadas dos pontos
de projeção é possível encontrar os respectivos pontos no
papel quadriculado.
Já o terceiro dispositivo de Dürer tem pouco a ver
com a visão: o centro de projeção é realizado aqui não por
um olho (ainda que este seja artificialmente conduzido até
a imobilidade), mas por um ponto na parede, no qual está
fixado um pequeno anel amarrado em um longo fio. Este Albrechr Dürer, gravura do livro Instrução p ara m edições... , 1a edição,
último quase atinge o chassi com o vidro colocado verti- Nuremberg, 1525 (primeiro disposirivo).
calmente na mesa. O fio é esticado e atado a um tubo que
dirige "um raio visual" sobre um ponto do objeto, que é
projetado do local em que o fio está fixado. Então, é fácil
marcar com uma pena ou um pincel sobre o vidro o respec-
tivo ponto de projeção. Olhando sucessivamente diferentes
pontos do objeto, o desenhista vai projetando-os no vidro,
mas não do "ponto da visão", e sim do "ponto da parede".
A visão desempenha, assim, um papel auxiliar.
Finalmente, o quarto dispositivo de desenho não tem
qualquer necessidade da visão, pois apenas o tato é suficien-
te. Sua estrutura é a seguinte: na sala onde será realizada a
Albrechr Dürer, gravura do livro Instrução p ara medições... , I> edição,
reprodução do objeto, fixa-se na parede um gancho com
Nuremberg, 1525 (segundo disposirivo).

86 Pável Floriênski
um largo orifício. Um pesinho é suspenso numa ponta do
longo e resistente fio próximo à parede. Em frente à pare-
de coloca-se uma mesa com um chassi retangular apoiado
verticalmen te. Em uma das laterais deste chassi fixa-se uma
pequena porta que pode ser aberta e fechada; no interior
do chassi esticam-se fios entrecruzados. O objeto a ser re-
presentado localiza-se sobre a mesa, em frente ao chassi.
Com um prego atado na sua extremidade, o fio mencionado
acima é passado através do chassi. Eis o dispositivo. O modo
de utilização deste dispositivo é o seguinte: encarrega-se o Albrechr Dürer, gravura do livro Instrução para m edições... , 2• edição,
assistente de segurar na mão o prego que estica o longo fio Nurernberg, 1538 (rerceiro disposirivo).

e tocar com sua extremidade todos os pontos importan-


tes do objeto a ser representado. Então "o artistà' move os
fios entrecruzad os do chassi até a sua coincidência com o
fio longo, e marca com cera o ponto de sua convergência.
Depois disso, o assistente afrouxa o fio longo e "o artista",
fechando a porta do chassi, marca o lugar na porta onde os
fios se cruzam. Procedendo dessa maneira repetidas vezes
é possível marcar na porta os pontos mais importantes da
reprodução.
Depois de examinar esses dispositivos, haveria neces-
sidade de maiores provas de que a imagem perspéctica do
mundo nunca é um meio natural de contemplação? Seriam
necessários mais de quinhentos anos de educação social para
acostumar um olho e uma mão à perspectiva; mas nem o
olho, nem a mão de uma criança, tanto quanto os de um
adulto sem um preparo anterior, submetem-s e a este trei-
namento, e tampouco levam em consideração as regras da
unidade perspéctica. Até as pessoas com formação especial
cometem erros grosseiros assim que ficam sem o auxílio do
desenho geométrico e passam a confiar na visão, na cons-
ciência de seus olhos. E, finalmente, grupos inteiros de
artistas expressam conscientem ente seu protesto contra a Albrechr Dürer, gravura do livro Instrução para medições ... , 2• edição,
obediência à perspectiva. Nurernberg, 1538 (quarro disposirivo).

88 Pável Floriênski
Depois dessa experiência malsuced ida de meio milê- 2
nio de história, só cabe a nós reconhecer que a imagem pers-
péctica do mundo não é um Jato da percepção, mas somen~e
Premissas teóricas
uma exigência em nome de algumas razões provavelmente muz-
to fortes, porém decididamente abstratas.
E se recorrermos a dados psicofisiológicos, faz-se ne-
cessário também reconhecer que os artistas cuja principa l
tarefa seja a fidelidade à percepção não só não possuem qual- XIII
quer fundame nto, como também não ousam representar o
mundo segundo o esquema da perspectiva. No exposto acima compara mos uma série de interpre-
tações históricas. É chegada a hora de fazer um balanço e
entrar no mérito do assunto, embora deixaremos para outro
livro o desenvolvimento das questões relacionadas à análise
do espaço nas imagens.
Deste modo, os historiadores da pintura, assim como
os teóricos das artes plásticas, aspiram ou, pelo menos ain-
da há pouco tempo, aspiravam persuadi r aqueles que os
escutam de que a imagem perspéctica do mundo é a única
correta, a única que correspo nde à percepção original, pois
presume -se que a percepçã o natural seja perspéctica. De
acordo com essa premissa, o desvio da unidade perspéctica é
considerado como uma traição à verdade da percepção, isto
é, como uma distorção da própria realidade, seja por causa
da ignorânc ia gráfica do artista, seja em prol da subordin a-
ção do desenho a objetivos predeterm inados: ornamen tais,
decorativos ou, na melhor das hipóteses, compositivos. De
uma ou de outra maneira, de acordo com as considerações
mencion adas, o desvio das normas da unidade perspéctica
resulta em irrealismo.
Todavia, tanto a palavra como o conceito de realidade
possuem peso suficiente para que os defensores de uma ou
de outra concepção do mundo fiquem indiferentes se a dita
realidade permane ça em suas mãos ou passe para as mãos
de seus oponente s. Há de se pensar muito antes de fazer tal

90 Pável FloriênskÍ A perspectiva inversa 91


concessão, caso ela se comprove inevitável. E o mesmo se Então o desenhista representa não o que vê fora ou dentro
aplica à palavra natural. Quem não ficaria lisonjeado por de si mesmo (formas imaginadas, no entanto, concretas
considerar o que é seu como real e natural, isto é, originário e não abstratamente pensadas), mas aquilo que requer o
da própria realidade, sem intervenção proposital? Os adeptos cálculo de construções geométricas; o que, na opinião de
da concepção renascentista da vida tomaram e desgastaram tal desenhista, que se baseia no significado demasiadamen te
essas preciosas palavras depois de tê-las roubado do plato- limitado da geometria, é um cálculo natural e por isso o
nismo e de seus herdeiros medievais. Mas para nós isso não único admissível. Será possível chamar de naturais aqueles
justifica deixar os tesouros da língua rios lábios de quem procedimentos de representação cujo domínio ninguém
faz mau uso deles: a realidade e a naturalidade devem ser aprende sem as muletas geométricas do desenho técnico,
mostradas na prática e não com declarações pretensiosas e mesmo quem por muitos anos severamente treinou com
infundadas. O nosso propósito é devolver essas palavras aos eles o seu olho e a sua compreensão do mundo? E não será
netos dos seus legítimos proprietários. que esses erros de perspectiva mostram às vezes, não a fra-
Como havíamos esclarecido acima, para desenhar e queza do artista, mas a sua força, a força da sua percepção
pintar "naturalmente", isto é, perspectivamente, é necessário autêntica que rompe as amarras do condicionamen to social?
que tanto povos e culturas inteiras quanto determinados A aprendizagem da perspectiva é um adestramento. Mesmo
indivíduos aprendam a faz~-lo. Uma criança não desenha quando um principiante esforça-se voluntariament e para su-
perspectivamente, tampouco um adulto que pega um lápis bordinar o seu desenho a suas regras, isso raramente significa
pela primeira vez até que esteja adestrado em determinados que ele entendeu o significado, isto é, o sentido pictórico-
padrões. E mesmo aquele que havia estudado, e muito, -representacion al das exigências perspécticas. Voltando à
comete erros com facilidade, e para ser exato, a franqueza época de sua infância, será que muitos não lembrarão que
da espontaneidade às vezes supera os modos pomposos da consideravam a perspectividade do desenho uma convenção
unidade perspéctica. Em particular, poucos irão representar incompreensível, embora por algum motivo universalmente
a imagem de uma esfera através de um contorno elíptico ou imposta, um usus tyrannus, 95 que deve ser obedecido não
de uma colunata que se afasta paralelamente ao plano do por ser verdadeiro, mas porque todos fazem assim?
quadro através de colunas que se alargam sucessivamente, A perspectiva, no entender de uma criança, é uma
94
embora exatamente isso exija a projeção perspéctica. Se- incompreensível e frequentement e absurda convencionali-
rão raras as acusações aos grandes pintores por seus erros dade. ''A vocês parece uma coisa sem importância observar
perspécticos? É possível cometer tais erros sempre, especial- um quadro e captar a sua perspectivà', diz Ernst Mach.96
mente em desenhos de composição mais complexa, e de fato
são evitados somente quando o desenho à mão é substituído 95
Em latim, no original: "costume tirano". (N. da T.)
pelo desenho técnico, com o traçado de linhas auxiliares. 96
E. Mach, D!iá tchegó tche!ovieka dva glaza [Para que um homem
precisa de dois olhos], "Ensaios científico-populares", tradução de G. A. Ko-
94 Rínin, Perspektiva [Perspectiva], parágrafo 8, pp. 75-8. Rínin; Geo- tliar, Obrazovánie, 1909, p. 64. (N. do A.) [Título original: Wozu hat der
metria descritiva, parágrafo 15, pp. 113-7. (N. do A.) Mensch zweiAugen?, 1866. (N. da T.)]

92 Pável Floriênski A perspectiva inversa 93


Contudo, milênios se passaram antes da humanidade ter "semelhança" podemos falar que há entre, por exemplo,
aprendido essa coisa sem importância, e muitos de nós con- uma mesa e a sua representação perspéctica, já que os con-
seguiram chegar até ela somente graças à educação. "Eu me tornos evidentemente paralelos são representados por linhas
lembro bem"- continua Mach- "que com a idade de convergentes; os ângulos retos como agudos e obtusos; os
aproximadamente três anos os desenhos que obedeciam às segmentos e os ângulos iguais entre si como tendo dimen-
leis da perspectiva me pareciam uma imagem distorcida sões desiguais e as dimensões desiguais como iguais? A re-
dos objetos. Eu não podia entender por que o pintor havia presentação é um símbolo. Qualquer representação, tanto
representado uma mesa tão larga de um lado e tão estreita perspéctica quanto não perspéctica, qualquer que seja, é um
do outro. Uma mesa de verdade me parecia tão larga no seu símbolo. E as imagens das artes visuais sempre diferem umas
lado mais distante 'q uanto no seu lado mais próximo, por- das outras, não porque algumas são simbólicas e outras são
que o meu olho fazia seus cálculos sem a minha colaboração. supostamente naturalistas, mas porque sendo igualmente
Que a representação de uma mesa sobre um plano não deve não naturalistas, no fundo, são símbolos de diferentes lados
ser observada como se observa uma superfície plana coberta de um objeto, diferentes percepções do mundo, diferentes
pelas tintas, que tal representação significa uma mesa e deve graus de síntese. As diversas formas de representação distin-
ser representada prolongando-se até o fundo, era uma coisa guem-se uma da outra não como um objeto se diferencia da
sem importância que eu não entendia. Eu me consolava sua representação, mas sim no plano simbólico. Algumas são
pensando que populações inteiras não a entendiam". mais grosseiras, outras menos; algumas são mais perfeitas,
Esse é o testemunho do positivista dos positivistas, que outras menos; algumas são mais humanas, outras menos,
ao que parece não podia de modo algum estar sob suspeita mas a natureza de todas elas é simbólica.
de propensão ao "misticismo". A perspectividade das representaÇões não é, de modo
Assim, a questão é que a representação de um objeto algum, a qualidade de todos os objetos, como se pensa no
está longe de ser, na qualidade de uma representação, tam- naturalismo vulgar, mas constitui-se apenas em um proce-
bém o próprio objeto. A representação não é uma cópia dimento de expressividade simbólica. Trata-se de um dentre
do objeto, ela não duplica um cantinho do mundo, mas os possíveis estilos simbólicos cujo valor artístico está sujeito
aponta para o original como o seu símbolo. O naturalismo a uma discussão especial, mas exatamente como tal, está
no sentido da autenticidade externa, como imitação da rea- além das assustadoras palavras sobre a sua verossimilhança e
lidade, como fabricação de duplicatas de objetos, como da pretensão ao "realismo" patenteado. Por esse motivo, na
um fantasma do mundo, não só é desnecessário, segundo discussão da questão da perspectiva linear ou inversa, mono
as palavras de Goethe sobre o cachorrinho da amada e a ou policêntrica, torna-se obrigatório, desde o princípio,
representação do cachorrinho, como é simplesmente impos- partir das ações simbólicas da pintura e de outras categorias
sível. A verossimilhança perspéctica, se é que de fato existe a das artes plásticas para entender que lugar a perspectividade
verossimilhança, assim o é não por causa da sua semelhança ocupa entre os procedimentos simbólicos, o que ela significa
externa, mas por causa do desvio de si mesma, isto é, no seu exatamente e para quais realizações espirituais conduz. O
sentido interno, pois ela é simbólica. Ademais, sobre qual objetivb da perspectiva junto aos outros meios artísticos

94 Pável Floriênski A perspectiva inversa 95


só pode ser uma certa excitação espiritual, um impulso que gráfica numa gravura não é entendido como uma cor preta,
desperta a atenção para a realidade. Em outras palavras, a mas só como um sinal da energia do escultor ou ao contrá-
perspectiva, se ela tiver algum valor, será o de ser uma lin- rio, a ausência de tal energia. Mas psicofisiologicamente,
guagem, uma testemunh a da realidade. isto é, na base da percepção estética, trata-se de uma cor.
Em que relação encontram -se as ações simbólicas da Para simplificar o raciocínio, podemos imaginar que há só
pintura e as premissas geométricas de suas possibilidades? A uma tinta preta ou um lápis. A tarefa do pintor é representar
pintura e outras categorias das artes visuais submetem -se sobre o plano menciona do, com as tintas especificadas, uma
obrigatori amente à geometria , já que se relacionam com realidade que ele percebe ou imagina ser percebida.
imagens e símbolos estendidos. Então, aqui não se trata de O que, do ponto de vista geométric o, significa repre-
admitir a priori a perspectiva linear através de um raciocínio sentar alguma realidade? .
simples: Significa colocar pontos do espaço percebido em cor-
respondência com os pontos de algum outro espaço, neste
Se a geometria for exata, então a perspectiva caso- um plano. Mas a realidade é no mínimo tridimen-
é irrefutável. sional - mesmo se esquecermos a quarta dimensão, a do
A geometria é exata. tempo, sem a qual não existe a arte - , e o plano, apenas
Portanto, a perspectiva é irrefutável. bidimensi onal. Será possível este tipo de correspondência?
Será possível representar uma imagem de quatro dimensões
Na questão acima ambas as premissas provocam mi- ou, para simplificar, de três dimensões, sobre uma superfície
lhões de reflexões, e em algumas delimitações de sua aplica- bidimensional? Terá essa última pontos correspondentes aos
ção, em algumas explicações de seu funcionam ento, é neces- pontos da primeira, ou falando matematic amente: pode-se
sário estabelecer com precisão as premissas geométricas da comparar a potência da imagem tridimensi onal com aque-
pintura, se quisermos que a legitimidade, o sentido interno la da imagem bidimensional? - A resposta que natural-
e os limites da aplicação de um ou de outro procedime nto mente surge à mente é: "Certame nte não". "Certame nte
e meio de representa ção possam obter uma base para se não, pois uma imagem tridimensi onal possui uma quanti-
estabelecer. dade infinita de recortes bidimensi onais e, consequen te-
Deixando uma análise mais profunda para um livro mente, a sua potência é infinitame nte maior do que a po-
específico, sobre as premissas geométricas da pintura, por tência de cada recorte isolado". Mas uma análise atenta da
enquanto notaremo s apenas o seguinte: à disposição do questão estabelecida na teoria da multiplici dade de pontos
pintor está um recorte de superfície plana - tela, tábua, demonstra que a questão não é tão simples como se apre-
parede, papel etc. - e tintas, isto é, uma possibilidade de senta à primeira vista e, além disso, que a resposta dada
dar diferentes colorações aos diversos pontos da superfície acima, aparentem ente natural, não pode ser considera da
menciona da. Pela ordem de importância, essa última - a correta. Decididam ente: a potência da imagem tri ou até
cor - pode não ter um sentido sensorial e deve ser entendi- pluridime nsional é igual à potência de qualquer imagem bi
da abstratamente; assim, por exemplo, o negro da tinta tipo- ou até mesmo, unidimen sional. Não é apenas sobre um

96 Pável Floriênski A perspectiva inversa 97


plano que é possível representar uma realidade quadri ou permanece sem ser representado, e nenhum ponto da repre-
tridimensional, mas também sobre qualquer segmento de sentação ficará vazio, c01-respondendo a nada: o quadrado
uma linha reta ou curva. Assim, é possível estabelecer tal será projetado sobre seu lado. Do mesmo modo um cubo,
representação através da quantidade infinita de correspon- um hipercubo e, em geral, uma forma geométrica quadrada
dências, tanto aritméticas ou analíticas, quanto geométricas. (um poliedro ou um prisma), de qualquer quantidade ou
Como modelo das primeiras pode servir o procedimento de até mesmo de um número infinito de dimensões, pode ser
George Cantor, e das segundas, a curva de Peano ou a cur- representado sobre o lado do quadrado ou sobre o mesmo
va de Hilbert.97 quadrado. E em termos gerais: qualquer formação ininter-
Para esclarecer a essência dessas investigações e seus rupta de qualquer número de dimensões e com qualquer
resultados surpreendentes, nos limitaremos ao caso da repre- restrição pode ser representada em qualquer outra formação,
sentação de um quadrado tomando um de seus lados como também com qualquer número de dimensões e também
unidade de longitude em segmento retilíneo que é igual a com qualquer delimitação. Em geometria, qualquer coisa
um lado do quadrado mencionado, isto é, trata-se de um pode ser representada onde se queira.
caso da representação do quadrado todo sobre seu próprio Por outro lado, diferentes curvas geométricas podem
lado; todos os outros casos podem ser tratados com bastante ser construídas de tal modo que a curva passe por qualquer
facilidade segundo este exemplo. E assim, George Cantor ponto do quadrado escolhido ao acaso (se voltarmos ao
apontou um procedimento analítico que ajuda a estabelecer nosso exemplo inicial), e assim fica estabelecida geometri-
a correspondência entre cada ponto de um quadrado e cada camente uma correspondência entre os pontos do quadrado
ponto do seu lado. Isso significa que se determinarmos com e os pontos da curva. Fazer com que os pontos dessa última
duas coordenadas x e y uma localização em qualquer ponto correspondam aos pontos do lado do quadrado como espa-
do quadrado, então com um procedimento uniforme en- ços unidimensionais já não é difícil, e com isso os pontos
contraremos a coordenada z que determina o ponto de um do quadrado serão representados sobre seu lado. A curva
lado do quadrado, ou seja, a representação do mencionado de Peano e a curva de Hilbert têm uma vantagem essen-
ponto do próprio quadrado; e ao contrário, dado um ponto cial diante do número incontável de outras curvas com as
livre em um segmento da representação do quadrado, en- mesmas propriedades (por exemplo, a trajetória de uma
contraremos então, por esse ponto, o ponto representado bola de bilhar lançada a partir do ângulo contra o rebordo,
do próprio quadrado. Assim, nenhum ponto do quadrado incomensurável com um ângulo reto; as epicicloides não
fechadas, quando os raios de ambas as circunferências são
incomensuráveis; as curvas de Lissage; rodôneas 98 etc. etc.).
97 Uma explicação elementar dos termos das "teorias das multiplici-
A correspondência entre os pontos das imagens bidimensio~
dades" - utilizados aqui como "multiplicidade" , "correspondência" , "po-
tência", "equivalêncià', "semelhançà' ou "conformidade" etc.- pode ser
encontrada no artigo: P. A. Floriênski, "O símvolakh beskoniétchnosti" 98
Em matemática, rodônea (do grego rhodon, "rosa") ou rosa polar é
["Sobre os símbolos de infinidade"), Nóvi Put, 1904, setembro, pp. 173- o nome que recebe qualquer membro de uma família de curvas de equação
235 . (N. do A.) por assemelhar-se a uma flor com pétalas. (N. da T.)

98 Pável Floriênski A perspectiva inversa 99


nal e unidimensiona l é realizada por eles na prática, assim os dências reciprocamente iguais, ela não preserva relações de
pontos correspondente s encontram-se facilmente, ao passo proximidade entre os pontos, não poupa sua ordem e suas
que por outras curvas a correspondênc ia é estabelecida so- relações, isto é, não pode ser contínua. Se nos movemos
mente a princípio, mas na realidade seria difícil encontrar muito pouco no interior de um quadrado, a representação
que ponto corresponde a outro. Sem entrar em detalhes do caminho percorrido já não pode mais ser contínua, e o
técnicos das curvas de Peano, Hilbert e outros, notaremos ponto que reproduz pula por toda a área da representação.
apenas que a sinuosidade em forma de meandros de se- A impossibilidad e de oferecer a correspondênc ia de pontos
melhantes curvas preenche toda a superfície do quadrado. do quadrado e de seu lado de um modo reciprocament e
Assim, qualquer ponto do quadrado, através de um ou de unívoco e ao mesmo tempo contínuo foi demonstrada por
outro número finito de meandros desta curva sistemati- Thomé, Netto e G. Cantor, mas devido a algumas objeções
camente acumulados, ou seja, segundo um determinado de Lüroth 99 foi demonstrada novamente em 1878 por E.
procedimento uniforme, será inevitavelmente tocado pela ··
Jurgens. 100 E
ste u' 1ttmo . na "proposta so bre o va1o r
. se base1a
sinuosidade da curva. Conforme foi explicado acima, se- intermediário". "Supondo que o ponto P de um quadrado
melhantes processos são aplicados para a representação de e P' de um segmento retilíneo correspondam um ao ou-
qualquer coisa sobre qualquer coisa. tro, então a uma linha AB de um quadrado que contém
Pois bem, as multiplicidades contínuas são todas equi- o ponto P deve corresponder um segmento inteiro sobre
valentes entre si. Mas, tendo a mesma potência, elas não um segmento retilíneo que contém, por sua vez, um ponto
possuem os mesmos números "inelegíveis" ou "ideais" no P'. Consequentem ente, em virtude do suposto significado
sentido que lhes dava Cantor, isto é, não são "semelhantes" único da correspondênc ia de outros pontos de um qua-
entre si. Em outras palavras, não é possível representá-las drado em torno do ponto P, já não lhes pode corresponder
uma dentro da outra sem tocar a sua estrutura. Ao estabe- nenhum ponto na linha nas proximidades do ponto P',
lecer essa correspondência, a continuidade da imagem re- de onde claramente e evidentemente segue a impossibili-
presentada é violada (isso quando se quer manter um único dade da representação unívoca e contínua entre os pontos
significado mútuo do representado e da representação) ou o da linha e do quadrado." Assim é a prova de Jürgens. Por
único significado mútuo entre uma e outra é violado (quan- outro lado, a correspondênc ia de Peano, Hilbert etc. não
do é mantida a continuidade do representado). pode ser reciprocament e unívoca como foi comprovado
Com o procedimento de Cantor a imagem é transfe- por Lüroth, Jürgens 101 e os demais, de modo que o ponto
rida ponto por ponto, de maneira que qualquer ponto da de uma linha nem sempre é representado com um ponto
imagem corresponda apenas a um ponto da representação
e, por outro lado, cada ponto dessa última reproduza ape-
99
nas um ponto daquilo que é representado. Neste sentido, Jacob Lüroth (1847-1910) , matemático alemão. (N. da T.)
a correspondênc ia cantoriana atende à noção habitual de 100""
Hata-se, posstve .
. Imente, d o arquiteto ..
russo EmmanUJ.I Jurgen~
representação. Mas a sua outra propriedade é extremamen- (1827-1880) . (N. da T.)
te distante dessa última: como todas as outras correspon- 101
Rínin, Geometria descritiva. (N. do A.)

100 Pável Floriênski A perspectiva inversa 101


I
único de um quadrado e, além do mais, esta conformi- Em resumo: é possível representar o espaço sobre um
dade nem é contínua por completo. Em outras palavras, plano, mas somente destruindo a forma do representado. En-
a representação de um quadrado sobre uma linha ou de tretanto, exatamente a forma e só a forma é que interessa
um volume sobre uma superfície transfere todos os pontos, às artes visuais. E, consequentemente, pronuncia-se um
mas é incapaz de transmitir a forma do representado como veredicto final para a pintura e as artes em geral, pois elas
um todo, como um objeto internamente definido na sua pretendem oferecer um simulacro da realidade: o naturalismo
estrutura: transmite-se o conteúdo do espaço, mas não a sua de uma vez por todas é impossível.
organização. Para representar um espaço com todo o seu Então tomamos de vez o caminho do simbolismo e
conteúdo de pontos é necessário, falando metaforicamente, renunciamos a todo conteúdo de pontos triplamente esten-
ou triturá-lo em pó ilimitadamente fino e, ao misturá-lo dido, por assim dizer, ao recheio das imagens da realidade.
cuidadosamente, espalhá-lo sobre o plano da representação Distanciamo-nos, com um único golpe, da essência mais
de maneira que da sua organização inicial não sobre nem espacial das coisas e concentramo-nos (pois estamos falando
um rastro, ou cortá-lo em múltiplas camadas, de maneira sobre a transferência do espaço por pontos) em sua pele: já
que sobre algo da forma, sendo, no entanto, essas camadas que sob as coisas estão não as próprias coisas, mas somente
arranjadas por um lado com a . repetição dos mesmos ele- as suas superfícies que diferenciam as áreas do espaço. Pela
mentos da forma, e, por outro, com a penetração mútua ordem naturalista isto certamente é a traição definitiva da
desses elementos, um através do outro, cujo resultado será palavra de ordem da verossimilhança: substituímos a reali-
a encarnação de alguns elementos da forma nos mesmos dade por sua casca, que tem somente a importância simbó-
pontos da imagem representada. Não é raro ouvir que por lica, que só alude ao espaço, sem oferecê-lo de imediato
trás das considerações matemáticas expostas acima estão os ponto por ponto. Será possível agora representar tais "coisas"
"princípios" do divisionismo, complementarismo etc., que ou, mais precisamente, as peles das coisas em um plano? A
foram encontrados pelas correntes da arte de esquerda 102 resposta, afirmativa ou negativa, dependerá do que é enten-
independentemente da matemática. Por meio deles a arte dido pela palavra representar. É possível estabelecer a cor-
de esquerda destruía a forma e a organização do espaço, respondência reciprocamente unívoca entre os pontos de
sacrificando-as ao volume e à materialidade. uma imagem e os pontos da representação, de maneira que,
com isso, a continuidade de um ou de outro será, falando
em termos gerais, preservada; mas só em termos gerais, isto
10 2 LEF (Frente Esquerda das Artes) foi um grupo artístico e literário é, para "a maioria dos pontos". Não seria oportuno. entrar
que surgiu em Moscou entre 1922 e 1929, liderado pelo poeta Vladímir no sentido exato dessa expressão. Mas com esta correspon-
Maiakóvski. O artista construtivista Aleksandr Ródtchenko (1891-1956) e
dência, qualquer que seja a maneira pela qual ela foi inven-
o teórico da OPOiaZ (Sociedade de Estudos da Linguagem Poética) Vikror
tada, são inevitáveis algumas rupturas assim como algumas
Chklóvski (1893-1984) também fizeram parte do grupo. Os teóricos do
violações da univocidade recíproca das conexões em pontos
LEF afirmavam que o Futurismo não era só uma escola de arte, mas um
movimento social. Os adeptos mais ardorosos do Futurismo relacionavam- que estão separados ou que compõem algumas formações
-no diretamente com o Marxismo. (N. da T.) contínuas. Em outras palavras, a sequência e a correspon-

102 Pável Floriênski A perspectiva inversa 103


dência da maioria dos pontos da.imagem numa representa- ou baseados em cálculos numéricos. Entretanto, cada um
ção serão mantidas, mas isto está longe de significar a inva- desses procedimentos, buscando transferir para um mapa
riabilidade de todas as propriedades do representado, até alguma propriedade do território traçado, com seus objetos
mesmo as geométricas, quando ele é transferido através da geográficos, deixa escapar e distorce muitas outras proprie-
correspondência sobre um plano. Na verdade, ambos os dades não menos importantes. Cada procedimento serve
espaços, tanto o representado quanto o representante, são a um objetivo estritamente definido, mas torna-se inútil
bidimensionais e, neste aspecto, afins entre si; mas a sua quando os objetivos estabelecidos são diferentes. Em outras
curvatura é variável, e, além disso, no representado ela não palavras, o mapa geográfico é e não é uma representação
é constante, modificando-se de um ponto a outro; é impos- como tal. Ele não substitui a verdadeira imagem da terra,
sível sobrepor um ao outro, até mesmo desdobrando um nem em abstração geométrica; serve apenas para indicar
deles, e a tentativa de tal sobreposição levará a inevitáveis alguns de seus atributos. Ele representa, já que através dele
rupturas e pregas de uma das superfícies. Não é possível e por sua mediação nos dirigimos espiritualmente ao repre-
colocar a casca de ovo ou até um fragmento dela sobre o sentado, e como não conduz para fora de seus limites, não
plano de uma mesa de mármore: para conseguir isso será representa, mas retém a atenção para si como se fosse uma
necessário deformá-la, reduzindo-a a um pó fino . Pelo mes- falsa realidade, um simulacro da realidade, e tem a pretensão
mo motivo é impossível representar com precisão um ovo de possuir uma importância autônoma.
sobre um papel ou uma tela. Aqui trata-se de um caso mais elementar. Porém, as
A correspondência de pontos em espaços de curvaturas formas da realidade são infinitamente mais diversas e com-
diferentes pressupõe necessariamente o sacrifício de algumas plexas do que uma esfera; respectivamente, os procedimen-
propriedades do representado. Certamente, aqui estamos tos de representação de cada uma dessas formas podem ser
falando apenas sobre a transferência de algumas proprie- infinitamente mais variados. Se forem levadas em consi-
dades geométricas para a representação: todo um conjunto deração a complexidade e a diversidade da organização de
de propriedades geométricas do representado não pode estar uma ou de outra área espacial no mundo real, então a nossa
presente na representação de modo algum e, sendo apenas mente se perde nas incontáveis possibilidades de transmissão
parcialmente semelhante ao original, a sua representação desta área pela representação: perde-se no abismo da própria
é inevitavelmente diferente em muitas outras partes. A re- liberdade. Normalizar matematicamente os procedimentos
presentação sempre se diferencia mais do original do que da representação do mundo: essa é uma tarefa de excessi-
a ele se assemelha. Mesmo o caso mais elementar, como a va autoconfiança. E quando tal normalização, como di-
representação de uma esfera sobre o plano que reproduz zem, tem a pretensão de ser matematicamente provada e,
um esquema geométrico da cartografia, resulta ser extre- além disso, aspira ser única e excepcional e é aplicada sem
mamente complexo e permitiu a invenção de dezenas de posteriores considerações para a mais particular das corres-
procedimentos diferentes, tanto projetivos, com a ajuda pondências, será que isso não provoca o riso? A imagem
de raios retilineos que partem de algum ponto, quanto não perspéctica do mundo nada mais é do que um dos métodos
projetivos, realizados através de construções mais complexas de desenho técnico. Se alguém deseja protegê-lo em nome

104 Pável Floriênski A perspectiva inversa 105


dos interesses da composição ou de alguns outros sentidos sequentemente, diferentes princípios são aplicáveis, cada
puramente estéticos, entraremos em outra discussão; embo- um a seu modo, com suas vantagens e suas falhas, sem que
ra, a propósito, não saibamos de tentativas para proteger a nenhum deles tenha qualquer possível (e única) prioridade
perspectiva neste aspecto. para ser um princípio de adequação. Dependendo da neces-
Mas não há que se referir nem à geometria nem à psi- sidade interna da alma, não pressionada por forças externas,
cofisiologia; nessa defesa, exceto pela refutação da perspec- um certo princípio de correspondência é escolhido pela épo-
tiva, nada pode ser encontrado. ca ou até pela criatividade individual conforme os objetivos
de determinada obra, e logo, automaticamente, decorrem
dele todas as suas características, tanto positivas quanto
XIV negativas. Um conjunto dessas características estratifica a
primeira formação daquilo que denominamos em arte estilo
Pois bem, qualquer que seja o princípio para se esta- e maneira. Na escolha dos princípios de correspondência
belecer a correspondência entre os pontos do objeto repre- influi o caráter primário que determina a atitude do artista
sentado e os pontos da representação, inevitavelmente are- criador para com o mundo e, consequentemente, determina
presentação só significa, aponta e irtsinua a ideia do original, também a profundidade da sua compreensão do mundo e
mas nunca oferece essa imagem no formato de cópia ou de seu sentido da vida.
modelo. Da realidade no quadro, no sentido da semelhança, A representação perspéctica do mundo é um dos inú-
não há nenhuma ponte: aqui o hiato é transposto pela pri- meros possíveis caminhos para estabelecer a mencionada
meira vez através da mente criativa do artista e, depois, pela correspondência e, além disso, é um caminho muito estrei-
mente que reproduz criativamente em si mesma o quadro. to, extremamente restrito, limitado por incontáveis con-
Este último, repetimos, não só não é nenhuma dupli- dições adicionais que determinam a sua possibilidade e os
cação da realidade em sua plenitude, como também não limites de sua aplicação.
é capaz de oferecer a semelhança geométrica da pele das Para entender a orientação vital onde nasce necessaria-
coisas: ele é necessariamente um símbolo do símbolo, pois mente a perspectividade das artes plásticas, é necessário ex-
a própria pele é só um símbolo da coisa. De um quadro o por, enumerando, as premissas do artista perspectivista que
observador passa para a pele da coisa, e da pele da coisa para estão subentendidas silenciosamente em cada movimento
a própria coisa. do seu lápis. Eis a essência:
Mas, com isso, para uma determinada pintura abre- Em primeiro lugar: a crença de que o espaço do mun-
-se um campo ilimitado de oportunidades. Esta amplitude do real é o espaço euclidiano, isto é, isotrópico, homogê-
depende da liberdade para estabelecer a correspondência neo, infinito e ilimitado (no sentido da diferenciação de
entre os pontos da superfície das coisas e os pontos da tela, Riemann), 103 de curvatura nula, tridimensional, que oferece
por motivos bem diferentes. Mas nenhum princípio de cor-
respondência oferece uma representação adequada, ainda
que do ponto de vista geométrico, ao representado e, con- 103
Riemann sugeriu distinguir as propriedades do ilimitado e do in-

106 Pável Floriênski A perspectiva inversa 107


a possibilidade de traçar um único paralelo para qualquer concepção, em sua essência, são lugares sem qualidade e
linha reta, única, através de qualquer um de seus pontos. igualmente sem cor, exceto este único, que é absolutamente
Um artista perspectivista está convencido de que todas as predominante, premiado para ser a residência do centro
construções da geometria que ele estudou durante a infância óptico do olho direito do artista. Este lugar é nomeado de
(e desde então felizmente esquecidas) são não apenas um centro do mundo: ele pretende representar espacialmente
dentre outros possíveis esquemas abstratos, como constru- o significado kantiano, absoluto e gnosiológico do pintor.
ções do mundo físico, não só realmente existentes, mas, Em verdade, ele vê a vida "do ponto de vistà', mas sem a
inclusive, observáveis. O tipo de artista que examinamos posterior definição, pois esse ponto elevado ao absoluto em
acredita na retidão do feixe de raios que vai do olho até nada se diferencia de todos os outros pontos do espaço, e a
o contorno do objeto. Essa é uma ideia que, a propósito, sua elevação acima dos outros não tem justificativa, como
provém de uma visão da Antiguidade segundo a qual a luz também, pela essência de toda a visão de mundo analisada,
não vem do objeto até o olho, mas parte do olho até o ob- não pode ser justificada.
jeto. Ele acredita, ademais, na invariabilidade da régua de Em terceiro lugar: este rei e legislador da natureza "do
medição ao transferi-la no espaço de um lugar para outro e seu ponto de vistà' é considerado caolho como um ciclope,
ao virá-la numa ou noutra direção etc. etc. Resumindo, ele pois seu segundo olho, competindo com o primeiro, trans-
acredita na organização euclidiana do mundo e na percep- gride a singularidade e, consequenteme nte, o caráter abso-
ção kantiana do mundo. Isso está em primeiro lugar. luto do ponto de vista, revelando dessa maneira a falsidade
Em segundo lugar: o artista, a despeito da lógica e do quadro perspéctico. Em essência, o mundo todo nem se
de Euclides, mas conforme o espírito kantiano da com- relaciona com o artista observador, mas só com o seu olho
preensão do mundo, onde o sujeito ~ranscendental reina direito e, além do mais, apresentado por um único ponto:
sobre o mundo ilusório da subjetividade (e pior, de manei- o centro óptico. Este centro é quem dita as leis do universo.
ra forçada), pensa, dentre todos os pontos absolutamente Em quarto lugar: o legislador acima mencionado é
iguais do espaço infinito, segundo Euclides, em um ponto assim concebido para toda a eternidade e indissoluvelmente
exclusivo, único, especial por seu valor, por assim dizer, um preso ao seu trono: se ele descer deste lugar absoluto ou até
ponto monárquico. Mas a única definição deste ponto é se mover nele, toda a unidade de construções perspécticas
que ele é o lugar onde se encontra o próprio artista ou, irá ruir e toda a perspectividade se despedaçará. Em outras
mais precisamente, o seu olho direito, o centro óptico do palavras, o olho que vê, nesse sentido, não é o órgão de
seu olho direito. Todos os lugares do espaço, em semelhante um ser que vive e trabalha nesse mundo, mas uma lente da
câmera escura.
Em quinto lugar: o mundo inteiro é concebido como
finito. A ilimitabilidade do espaço não implica a sua infinitude. Por exemplo,
absolutamente imóvel e bastante imutdvel. Nem a história,
os espaços de curvatura positiva constante (espaços de Riemann) são ilimi-
tados, mas são finitos. A esfera é um exemplo de tal espaço. Ver Bernhardt
nem o crescimento, nem dimensões, nem movimentos, nem
Riemann, Über die Hypothesen, welche der Geometrie zugrunde liegen [Das biografia, nem desenvolvimen to da ação dramática, nem
hipóteses que se baseiam na geometria], 1868. (N. da T.) jogo de emoções no mundo sujeito à representação perspéc-

108 Pável Floriênski A perspectiva inversa 109


tica, podem e devem existir. Caso contrário , a unidade pers- Mas suponha mos tempora riamente que as condiçõe s
péctica do quadro novamen te se rompe. Esse é um mundo da perspect ividade foram plename nte satisfeitas e, por con-
morto ou dominad o pelo sono eterno, invariave lmente o seguinte, a unidade perspécti ca da obra foi executad a com
mesmo quadro em sua imobilid ade congelada. precisão. A imagem do mundo, dada nessas condições, iria
Em sexto lugar: todos os processos psicofisiológicos do ato parecer uma fotografia que reproduz iu instantan eamente a
de ver são excluídos. O olho mira imóvel e impassível, se- correspo ndência entre a placa fotossensível da câmera e a
melhante à lente óptica. Ele não se mexe, não pode, não tem realidade. Deixand o de lado a questão das características do
nenhum direito de se mexer, a despeito da condição básica próprio espaço e dos processos psicofísicos da visão, pode-
da visão - a atividade, a reconstru ção ativa da realidade na mos dizer que, em relação à contemp lação efetiva da vida
visão como atividade de um ser vivo. Além disso, esse mirar real, esta fotografia instantân ea é um diferencial e, ademais,
não é acompan hado nem pelas memória s, nem por esforços um diferencial de um grau superior ou pelo menos de se-
espirituais e nem pelo reconhec imento. Esse processo apa- gunda ordem. Se queremo s obter através dele uma imagem
rentemen te mecânico , em último caso físico-químico, nun- verdadei ra do mundo, será necessário integrá-l o repetidas
ca é aquilo que se chama de visão. Todo o moment o psíqui- vezes- segundo o tempo variável do qual depende m tanto
co e até fisiológico da visão está decidida mente ausente. as alterações da própria realidade quanto os processos de ob-
E assim, se todas as seis condições mencionadas foram servação e, segundo outras variáveis - à massa apercept iva
cumpridas, então, e só então, torna-se possível a correspon- mutável etc. No entanto, mesmo se tudo isso fosse feito a
dência entre os pontos da pele do mundo e os pontos da imagem integral obtida não coincidir ia com a rigorosame~­
represen tação que o quadro perspécti co deseja proporci o- te artística, por causa da falta de correspo ndência entre a
nar. Se pelo menos uma dessas seis condiçõe s citadas aci- concepçã o de espaço e o espaço da obra de arte, organizados
ma não for cumprid a plename nte, então essa espécie de como_uma unidade autolimi tada e completa .
correspo ndência torna-se impossív el e a perspect iva será E fácil reconhec er em tal artista perspectivista a encar-
inevitave lmente destruída em um grau maior ou menor. O nação do pensame nto passivo e condena do a toda passivida-
quadro se aproxima da perspectividade na medida em que as de, pensame nto este que num instante olha o mundo como
mencion adas condiçõe s são cumprida s. E se elas não forem se estivesse espionan do de maneira ladina, furtiva, através
cumprid as, pelo menos parcialm ente, e se a legalidade de da fresta dos limites subjetivos, inanimad o e imóvel, incapaz
sua violação até mesmo local é admitida , a perspecti vidade de capturar o movimen to, mas que pretende que seu lugar
deixa de ser uma exigência incondic ional imposta sobre o e seu moment o de espia tenham caráter divino e incondi-
artista e torna-se somente um procedim ento aproximado de cional. Esse é o observad or que de si próprio nada traz para
representação da realidade, um entre muitos outros; além o mundo, nem mesmo pode sintetiza r todas as suas impres-
disso, o grau e o local da sua utilização em uma determin ada sões isoladas, que sem entrar em contato vivo com o mun-
obra é definido pelos objetivos específicos dessa obra e de seu do e sem viver nele, não tem consciên cia da própria reali-
determinado local, porém não se aplica a todos os aspectos dade, embora em seu arrogant e isolamen to do mundo jul-
de qualquer obra como tal. gue-se a última instância e por sua experiên cia furtiva cons-

Pável Floriênski A perspectiva inversa 111


110
XV
trua toda uma realidade sob o pretexto da objetividade ,
encaixando -a dentro do próprio diferencial observado.
Precisamente assim nasce, no solo renascentista, a concep- Mas a pergunta é: em que medida podemos duvidar do
ção de mundo de Leonardo, Descartes e Kant, como tam- caráter fundamenta l das seis premissas da perspectividade
bém surge o equivalente artístico e plástico dessa concepção citadas acima? Em outras palavras: será que a representação
de mundo: a perspectiva. Aqui, os símbolos artísticos devem perspéctica, embora seja apenas uma entre as possíveis ma-
ser perspécticos porque esse é o modo de unificar todas as neiras abstratas de representar o mundo, é na prática a úni-
concepções do mundo, de maneira que este é entendido ca (devido à existência das condições expostas para torná-la
como uma rede única, indissolúvel e impenetrável de rela- possível)? Ou seja, é vital a concepção kantiana renascentis-
ções kantiano-eu clidianas, concentrada s no EU que con- ta do mundo? Se descobríssemos que as condições da pers-
templa o mundo, mas de maneira que esse EU seja inerte e pectividade são violadas na experiência real, a importância
espelhado, um certo foco imaginário do mundo. Em outras vital desta compreensã o seria refutada.
palavras, a perspectividade é um procedimen to que obriga- Pois bem, examinarem os passo a passo as condições
que apresentamos.
toriamente resulta dessa concepção de mundo onde se re-
conhece como verdadeiro fundamento dos objetos-ideias Em primeiro lugar: acerca da questão do espaço do
semirreais uma subjetividade desprovida de realidade. A pers- mundo temos a dizer que no próprio conceito de espaço
pectividade é expressão do meonismo
104 e do impersonali s- distinguem-se três camadas que estão longe de ser idênticas.
mo. Esta corrente de pensamento é normalmen te chamada Isso é, a saber: o espaço abstrato ou geométrico, o espaço
de naturalismo e humanism o- aquilo que surgiu com o físico, e o espaço fisiológico, sendo que neste último, por sua
fim do realismo e do teocentrism o medieval. vez, diferenciam-se o espaço visual, o espaço tátil, o espaço
auditivo, o espaço olfativo, o espaço gustativo, o espaço do
sentido orgânico geral etc., com as suas subsequentes divi-
104Meonismo [meonizm] é um conceito cunhado pelo poeta e escri- sões mais sutis. Sobre cada uma dessas divisões do espaço,
tor russo Nikolai Minski, pseudônimo de Nikolai Maksímovich Viliénkin
grandes e fragmentadas, é possível, falando abstratamen te,
(1855-1937) em sua obra A luz da consciência: reflexões e sonhos sobre a fi-
pensar bem diferente. Imaginar que um conjunto inteiro
nalidade da vida [Pri sviétie sóvesti: mísli e metchti o tséli jízm1, publicada em
Petersburgo em 1890. A palavra deriva de "meone" (do grego 1-!lÍ óv, "não
de questões extremamen te complexas pode ser desviado
ente" ou "não existente") e traduz a ideia de que o desígnio da vida humana por uma simples referência à doutrina geométrica sobre a
encontra-se fora do mundo dos fenômenos e que este não pode satisfazer a semelhança das figuras no espaço tridimension al euclidia-
necessidade do absoluto que caracteriza a alma humana. Este absoluto foi no significaria sequer tocar nas dificuldades do problema
nomeado "meone" por se caracterizar na negação de tudo o que pode ser estabelecido. Antes de mais nada, deve ser destacado que as
compreendido pelo pensamento. O que o homem poderia fazer seria somen- respostas para diferentes itens da pergunta aventada sobre
te aspirar a viver o êxtase. "Meone" também era identificado com a origem o espaço resultam ser, como é natural, bem variadas. Em
da criatividade humana. Tal termo e seus derivados ("meonismo", "meônico"
termos abstratamen te geométricos, o espaço euclidiano é
etc.) alcançaram grande sucesso entre os representantes da Sociedade Reli-
apenas um caso particular entre os variados espaços hete-
giosa e Filosófica de Moscou, à qual pertencia Floriênski. (N. da T.)

Pável Floriênski A perspectiva inversa 113


112
rogêneos com características que são inesperadas dentro do simos traços comuns"- diz Mach.- "Tanto um quanto
ensino elementar da geometria, mas muito explicativas em outro representam uma multiplicidade de três dimensões.
sua relação direta com o mundo. A geometria de Euclides é A cada ponto do espaço geométrico A, B, C, D ... corres-
uma entre incontáveis geometrias, e não temos fundamentos pondero A:, B', C', D' ... do espaço fisiológico. Se C está
para dizer que o espaço físico, o espaço de processos físi- entre B e D, então C' está entre B' e D'. É possível também
cos é um espaço euclidiano. Esse é só um postulado, uma dizer assim: ao movimento contínuo de algum ponto no
exigência para pensar assim o mundo e então conformar a espaço geométrico corresponde um movimento contínuo
esta exigência todas as outras ideias. A própria exigência de um ponto dentro do espaço fisiológico. Já comprovamos
deriva da sua ft predeterminada nas ciências naturais físico- em outro lugar que esta continuidade adotada por comodi-
-matemáticas de uma certa compleição, isto é, com um dade não deve ser necessariamente uma continuidade real
princípio de continuidade, com um tempo absoluto, com nem para um, nem para o outro. Caso se aceite que o espa-
corpos absolutamente sólidos etc. ço fisiológico nos é inerente, ele revela pouquíssimas seme-
Mas suponhamos temporariamente que de fato o es- lhanças com o espaço geométrico que possibilitem observar
paço físico satisfaça a geometria de Euclides. Disso não re- uma base suficiente para o desenvolvimento a priori da geo-
sulta ainda que um observador imediato do mundo o per- metria (no sentido de Kant). Com esse embasamento é
ceba dessa mesma maneira. Independentemente de como possível, no máximo, construir uma topologia. Se esta falta
aquele que habita o espaço físico gostaria de concebê-lo, de semelhança entre o espaço fisiológico e o geométrico não
ainda assim o espaço fisiológico não faz parte dele, por mais salta aos olhos das pessoas que não se ocupam especialmen-
que considere necessário construir o restante de suas ideias te dessas pesquisas, se o espaço geométrico não lhes parece
de acordo com a composição euclidiana do espaço externo, algo monstruoso, alguma falsificação do espaço inato, isso
ajustando o espaço fisiológico ao esquema euclidiano. Sem pode ser explicado ao observar de perto as condições de vida
falar nos espaços olfativos, gustativos, térmicos, auditivos e e desenvolvimento de uma pessoa." 106 Mas "mesmo quan-
táteis que não têm nada em comum com o espaço de Eucli~ do há uma aproximação maior do espaço de Euclides, o
des, pois, neste sentido, sequer estão sujeitos à discussão. E espaço fisiológico ainda diferencia-se muito dele. Uma pes-
impossível evitar o fato de que até o espaço visual, o menos soa ingênua supera facilmente a diferença entre direita e
distante do euclidiano, revela-se profundamente diferente esquerda, dianteiro e traseiro, mas não supera tão facilmen-
dele; mas precisamente este está nas bases da pintura e da te as diferenças entre alto e baixo, devido à resistência que
gráfica, embora em casos diferentes possa submeter-se a exerce neste sentido o geotropismo" . 107
outros tipos de espaço fisiológico e então o quadro será uma
. ~ v1sua
transpos1çao . 1 de percepçoes~ ~
nao . . 105* "S e per-
v1sua1s. 106E. Mach, Poznánie i zablujdiénie: ótcherki po psikhológui issliédo-
guntarmos agora o que, de fato, o espaço fisiológico tem em
vania. [O conhecimento e o equívoco: ensaios sobre a psicologia da pesquisa],
comum com o espaço geométrico, encontraremos pouquís-
1909, p. 346. (N. do A.) [Título original: Erkenntnis und Irrtum: Skizzen
zur Psychologie der Forschung, 1883. (N. da T.)]
lOS* Início do trecho censurado na edição russa de 1967. (N. da T.) 107 Mach, idem, p. 349. (N. do A.)

114 Pável Floriênski A perspectiva inversa 115


Em outra obra, o mesmo pensador esboça alguns tra- algo visível por força das exigências teóricas. Entretanto,
ços desta diferença. "Já foi assinalado mais de uma vez o o trabalho do pintor não é escrever tratados abstratos, mas
quão fortemente se diferencia o sistema das nossas percep- pintar quadros, isto é, representar aquilo que ele realmente
ções espaciais, ou por assim dizer, o espaço fisiológico, do vê. Mas o que ele vê, pelo próprio funcionamento do órgão
espaço geométrico, do espaço de Euclides. [... ] O espaço visual, não é absolutamente o mundo kantiano e, conse-
geométrico em todo lugar e em todas as direções é igual; ele quentemente, deve representar algo que de forma alguma
é ilimitado e infinito (no sentido de Riemann). 108 * O espa- obedece às leis da geometria euclidiana.
ço visual é limitado e finito e até, como mostra a observação Em segundo lugar: nenhuma pessoa em sã consciência
da plana 'abóbada celeste', possui uma extensão desigual considera seu ponto de vista como único e reconhece cada
em todas as direções. A redução das dimensões dos corpos lugar, cada ponto de vista, como um bem que oferece um
quando do afastamento, assim como a sua ampliação quan- aspecto particular do mundo que não exclui, mas confirma
do da aproximação, mais relaciona o espaço visual com al- outros aspectos. Alguns pontos de vista são mais substan-
gumas representações metageométricas do que com o espa- ciais e característicos, outros menos, e ainda cada um à sua
ço de Euclides. A diferença entre 'alto' e 'baixo', 'frente' e maneira, mas não há nenhum ponto de vista absoluto. Em
'trás' e, para ser exato, 'direita' e 'esquerda', existe tanto para consequência, o pintor tenta olhar o objeto por ele repre-
o espaço tangível quanto para o visual. Para o espaço geo- sentado a partir de pontos de vista diferentes, enriquecendo
métrico tal diferença não existe". 109 O espaço fisiológico sua observação com novos aspectos da realidade e reconhe-
não é homogêneo, não é isotrópico. Isso se manifesta nas cendo-os como mais ou menos equivalentes.
diversas avaliações das distâncias angulares, nas diversas dis- Em terceiro lugar: tendo o segundo olho, isto é, tendo
tâncias a partir do horizonte, na estimativa variável de com- ao mesmo tempo pelo menos dois pontos de vista diferen-
primentos subdivididos e não subdivididos, na mutável tes, o pintor possui um constante corretivo do ilusionismo,
sutileza da percepção realizada pelas diferentes partes da pois o segundo olho sempre demonstra que a perspectivi-
retina etc. etc. 110 dade é uma fraude, e além do mais uma fraude malograda.
Deste modo, pode-se e deve-se duvidar que o nosso Além disso, com dois olhos o pintor vê mais do que pode
mundo encontra-se no espaço euclidiano. Mas mesmo se ver coin um e, ainda: com cada olho vê de forma distinta,
eliminarmos essa dúvida, ainda assim provavelmente não de modo que na sua consciência a imagem visual se com-
vemos e, em geral, tampouco percebemos o mundo eucli- põe sinteticamente como binocular o que, em todo caso,
diano-kantiano. Nós só pensamos sobre ele como sendo é uma síntese psíquica, mas que não pode assemelhar-se à
fotografia monocular e mono-objetiva sobre a retina. Não
108 * Final do trecho censurado. (N. da T>.) cabe nem aos defensores da perspectiva, nem aos adeptos da
109 Idem, p. 354. (N. do A.) teoria da visão de Helmholtz, 111 referir-se à insignificância
110 E. Mach, Andliz oschuschénii [A andlise das sensações], Moscou,
111
1908, pp. 157-8. (N. do A.) [Título original: Die Analyse der Empjindungen Hermann Ferdinand Ludwig von Helmholtz (1821-1894), mé-
und das Verhaltnis des Physischen zum Psychischen, 1886. (N. da T.)] dico e fisiologista alemão. (N. da T.)

116 Pável Floriênski A perspectiva inversa 117


da diferença entre os quadros oferecidos por um ou por
s
outro olho: esta diferença, segundo a sua própria teoria, é X = - - -- - --
bastante suficiente para se ter a sensação de profundidade, 2 1 are cos r
e sem tal diferença não seria possível reconhecer a profun-
-didade. Em consequência, notando uma diferença entre
representações no olho direito e esquerdo, esses defensores Em quarto lugar: o pintor, ainda que sentado num lu-
e adeptos destroem a razão pela qual o espaço é percebido gar, move-se o tempo todo, movimenta sem parar os olhos,
como tridimensional. a cabeça, o tronco e o seu ponto de vista muda incessante-
Todavia, esta diferença não é tão pequena como pode mente. Aquilo que deveria ser chamado de imagem artística
parecer à primeira vista. Por exemplo, fiz o cálculo de um visual é a síntese psíquica de uma infinidade de percepções
caso em que uma esfera de 20 em de diâmetro é observada visuais de distintos pontos de vista e, além do mais, a cada
a uma distância de meio metro, sendo que a distância hipo- vez são duplicadas; esse é o resultado integral de duas ima-
tética entre as pupilas é de 6 em. Supondo que o centro da gens em uma. Pensar nele como um fenômeno puramente
esfera encontra-se na altura dos olhos, então aquela adição físico significa nada entender sobre os processos da visão e
do arco equatorial da esfera que está invisível para o olho confundir, quadrata rotundis, 112 o mecânico com o espiri-
direito, mas visível para o esquerdo, é aproximadamente tual. Aquele que não assimilou como um axioma a natureza
igual a um terço do arco do mesmo equador visível para espiritualmente sintética das imagens visuais da natureza,
o olho direito. Durante a observação imediata da esfera, nem sequer chegou perto da teoria da visão, principalmente
a relação daquilo que o olho esquerdo vê é adicionado ao da teoria da visão artística.
que está visível ao olho direito, e será maior do que só um Por outro lado, em quinto lugar, as coisas variam, mo-
terço. Esses valores, com os quais temos que lidar nas con- vimentam-se, voltam os seus diferentes lados para o especta-
dições normais da visão, por exemplo, quando observamos dor, crescem e diminuem. O mundo é a vida e não a imobi-
o rosto humano, mesmo em menores graus de precisão, lidade glacial. E, por conseguinte, aqui novamente o espírito
não podem ser considerados como valores passíveis de ser artístico do pintor deve sintetizar, formando integrais dos
menosprezados. aspectos particulares da realidade, seus cortes instantâneos
Em geral, se denominamos a distância entre os olhos na coordenada do tempo. O artista não representa uma coi-
de s, o raio da esfera observada de r e a distância do centro sa, mas a vida de uma coisa segundo a sua impressão dela. E
da esfera até o centro da distância entre os olhos de f, então por isso, falando em termos gerais, é um grande preconceito
a relação x do arco equatorial adicional somado ao mesmo pensar que a contemplação deve produzir-se na imobilida-
arco do olho direito pelo olho esquerdo, observado pelo de e com o objeto contemplado em sua imobilidade. Pois
olho direito, se expressa com bastante precisão pela seguinte trata-se do tipo de percepção do objeto que é necessário
equação:

112 Em latim, no original: "o quadrado com o redondo". (N. da T.)

118 Pável Floriênski A perspectiva inversa 119


representar, em um ou em outro caso, seja a partir da fenda diferentes páginas do seu álbum. Mas tanto um quanto
na parede de uma prisão ou a partir de um automóvel. Por outro atestam -somente a passividade do pensamento que
si só, nenhum tipo de atitude frente à realidade pode ser se dispersa em impressões elementares, incapazes de captu-
rejeitado a priori. A percepção é definida pela atitude vital rar com um único ato contemplativo - e, portanto, com
frente à realidade, e se o pintor deseja representar o resultado a única forma que lhe corresponde - alguma percepção
daquela percepção obtida enquanto ele próprio e os objetos complexa, fracionando-a cinematografic amente em instan-
se movem mutuamente, é necessário somar as impressões tes e momentos. Contudo, há casos em que não é possível
durante o movimento. Entretanto, essa é a mais habitual e evitar essa síntese e então o mais fervoroso perspectivista
a mais vital percepção da realidade e aquela que oferece, ri- é obrigado a renunciar às suas posições. Nenhum pintor
gorosamente, o mais profundo conhecimento da realidade. naturalista congelará em sua imaginação os giros de um
A expressão pictórica de tal cognição é uma tarefa natural pião, a roda de um trem em marcha ou a ligeira bicicleta
do pintor. Será que ela é possível? em movimento, uma cascata ou uma fonte, mas transmitirá
Sabemos que o movimento é representável, ainda que a percepção sumári'a do jogo de impressões que confluem
seja o galope de um cavalo, o jogo de emoções sobre um e encadeiam-se umas com as outras. Porém, a fotografia
rosto ou o desenvolvimen to da ação de eventos. Conse- instantânea ou a visão, ao esclarecer esses processos ilumi-
quentemente, não há nenhuma base para reconhecer como nando-os, evidenciará algo completament e diferente do
irrepresentável a percepção vital da realidade. A diferença é que foi representado pelo pintor, e aqui será revelado que a
que, em um caso mais comum, os objetos em movimento impressão única detém o processo e oferece um diferencial,
são representados com mais frequência estando o pintor mas a percepção comum integra esses diferenciais. Porém,
relativamente imóvel, enquanto aqui pressupõe-se um mo- se todos estão de acordo com a legitimidade de tal integra-
vimento mais significativo do pintor, ao mesmo tempo em ção, onde está o obstáculo para a aplicação de algo equiva-
que a própria realidade pode ser quase ou até absolutamente lente em outros casos, quando a velocidade do processo é
imóvel. Isso resulta nas representações de uma casa com três um pouco menor?
ou quatro fachadas, nas superfícies complementare s de uma E finalmente, em sexto lugar: os defensores da perspec-
cabeça e em outros fenômenos semelhantes que conhecemos tiva esquecem que a visão artística é um processo psíquico
na arte antiga. Tal representação da realidade correspon- bastante complexo de fusão de elementos psíquicos, acom-
derá ao monumentalis mo imóvel e ao peso ontológico do panhado por ressonâncias psíquicas: à imagem reconstruída
mundo, junto à atividade do espírito cognitivo que vive e no nosso espírito acrescentam-se as memórias, as respostas
trabalha nesses baluartes da ontologia. emocionais para os movimentos internos e, próximo das
As crianças não sintetizam a imagem imediata de uma partículas daquilo que é obtido sensorialmente, cristaliza-
pessoa, mas colocam os olhos, o nariz, a boca etc. separa- -se o conteúdo psíquico efetivo da personalidade do pintor.
damente e de forma descoordenada sobre o papel. O pintor Todo este conjunto se expande e possui um ritmo próprio,
perspectivista não sabe sintetizar uma sequência de impres- através do qual se manifesta a reação do pintor à realidade
sões instantâneas e as coloca de forma descoordenada nas por ele representada.

120 Pável Floriênski A perspectiva inversa 121


Para ver e examinar um objeto, e não somente olhar literalmente nada. Não de imediato, mas seguramente aca-
para ele, é necessário transferir gradualmente, e em partes baremos por obter a imagem de uma casa de três ou quatro
separadas, a sua representação sobre a mancha sensível da paredes, tal e qual a imaginamos. Na imaginação viva ocorre
retina. Isso significa que a imagem visual não é dada à cons- um Buxo contínuo, transbordamento, alteração e luta. Tal
ciência como algo simples, obtido sem trabalho e esforço, Buxo incessantemente joga, cintila, pulsa, mas nunca se de-
mas é construída por partes sucessivamente anexadas umas tém na contemplação interna do esquema morto da coisa. E
às outras, sendo que cada uma delas é percebida mais ou é precisamente com essa pulsação interna, brilho, jogo, que
menos de seu próprio ponto de vista. Além disso, uma face vive na nossa imaginação uma casa. O pintor deve e pode
é somada à outra face através de um ato psíquico particular representar sua ideia de casa e não transferir a própria casa
e, em geral, a imagem visual é formada sucessivamente e não para uma tela. Esta vitalidade de sua ideia, seja ela de uma
vem pronta. Na percepção, a imagem visual não é obser- casa ou de um rosto humano, ele capta, escolhendo entre as
vada a partir de um só ponto de vista, mas, na essência da partes da ideia a mais expressiva e, em vez da ebulição psí-
visão, é uma imagem de perspectiva policêntrica. Somando quica contínua, ele nos oferece um mo~aico imóvel de seus
ainda aqui as superfícies adicionais unidas pelo olho es- momentos isolados mais impressionantes. Durante a con-
querdo a uma imagem do olho direito, devemos reconhecer templação de um quadro, o olho do espectador, transitando
a semelhança de qualquer imagem visual com as câmaras sucessivamente por esses traços característicos, reproduz em
de arquitetura antiga, e de hoje em diante só pode haver seu espírito a imagem da representação temporal prolonga-
discussão sobre a medida e o grau desejável desse policen- da que brilha e pulsa, mas agora mais intensa e mais coesa
trismo, mas não mais sobre a sua aceitação generalizada. A do que a imagem da própria coisa, pois aqui os momentos
seguir inicia-se a exigência de uma mobilidade ocular ainda mais reluzentes observados em diferentes momentos são
maior por causa da sintetização forçosamente condensada dados em estado puro e compacto e não requerem o esforço
ou a exigência de manter imóvel o olho quando se busca psíquico para eliminar suas arestas. Como sobre um rolo
uma visão fracionada, sendo que a perspectiva atrapalha essa gravado de um fonógrafo, a visão aguçada desliza ao longo
análise visual. Contudo, a pessoa, enquanto viva, não pode das linhas e superfícies de um quadro com seus sulcos, e
caber por completo nesse esquema perspéctico, e o próprio em cada parte dele o espectador sente a incitação de suas
ato de ver com o olho imóvel e fixo (esqueçamos do olho próprias vibrações. Exatamente essas vibrações compõem o
esquerdo) é psicologicamente impossível. objetivo de uma obra de arte.
Dirão: "Mas não é possível ver ao mesmo tempo três
paredes de uma casa!". Se esta objeção fosse correta, haveria Esse é o caminho mental aproximado das premissas do
de ter continuidade e ser consequente. Não é só impossível naturalismo até as características perspécticas da pintura de
ver três, mas também não é possível ver duas paredes de ícones. Talvez essa compreensão da arte seja completamente
uma casa e até mesmo ver uma. De imediato nós vemos diferente do caminho do naturalismo, mas para o autor,
somente um ínfimo e insignificante fragmento de parede, e pessoalmente, a compreensão da arte mais próxima é aquela
nem a esse vemos imediatamente, o que vemos de pronto é que deriva de um preceito fundamental sobre a indepen-

122 Pável Floriênski A perspectiva inversa 123


dência espiritual. No terreno dessa compreensão nem se
levanta a questão sobre a perspectiva, e ela permanece tão
alheia à consciência artística como todos os outros tipos e
procedimentos do desenho técnico. Nas presentes reflexões,
deveríamos superar, a partir do seu interior, o caráter limi-
tado do naturalismo e mostrar como jàta volentem ducunt,
nolentem trahunt113 até a libertação e a espiritualidade.

11 3 Em latim, no original: "O destino guia os que querem ser guiados


e arrasta os que não querem". Trata-se de um preceito estoico, de autoria
de Sêneca, filósofo romano do primeiro século depois de Cristo, e consta
das Cartas Morais a Lucílio [Epistulae morales ad Lucilium] (107, 11, 5). Há
teóricos que afirmam que Sêneca teria traduzido para o latim a frase grega
atribuída a Cleante (c. 330 a.C.). (N. da T.)

124 Pável Floriênski


Dados biográficos de Floriênski
Neide ]allageas

PávelAleksándrovitch Floriênski (1882-1937), padre orto-


doxo, filósofo, matemático, historiador e teórico da arte, foi
um dos mais influentes pensadores da denominada Idade de
Prata Russa, que, no início do século XX, reuniu filósofos,
artistas e poetas tais como Nikolai Gumiliov, Marina Tsve-
táieva, Andrei Biéli, Serguei Diáguiliev, Marc Chagall, Alek-
sandr Blok e Óssip Mandelstam, quase todos perseguidos
pelo regime. O legado de Floriênski constitui-se de tratados
científicos na área da física e matemática, ensaios filosóficos,
teológicos e sobre a arte e, ainda, vasta correspondência com
escritores, artistas, filósofos e cientistas de seu tempo.

!882
Pável Aleksándrovitch Floriênski nasce em levlakh (Azer-
baijão) em 9 de janeiro (21 de janeiro, pelo calendário gre-
goriano), primeiro dos seis filhos do engenheiro ferroviário
Aleksandr lvánovitch Floriênski ( 18 50-1908), de ascendên-
cia russa, e de Olga Pávlovna (1859-1951), de linhagem
armênia, cuja sensibilidade artística estimulará as três filhas
a tornarem-se pintoras (um irmão de Pável será geólogo e
o outro engenheiro).

!892
Ingressa no liceu clássico de Tiflis (capital da Geórgia) onde
tem por amigos o futuro teólogo Aleksandr leltchanínov
(1881 -1934), o futuro filósofo Vladímir Ern (1882-1917)

Dados biográficos de Floriênski 127


e aquele que será o fundador do cubofuturismo, David Bur- 1905
liúk (1882-1967). Escreve "Hamlet", ensaio sobre a peça de Shakespeare, de-
dicado a Serguei Tróitski. Traduz para o russo e comenta
1897 Monadologia physica de Immanuel Kant.
Viaja para a Alemanha, onde se interessa por instrumentos
1906
da física.
Traduz o livro Direito da Igreja, do jurista alemão Rudolph
1900 Sohm ( 1841-1917). Início da correspondência com o mate-
Conclui o liceu com distinção (primeiro dentre os alunos) . mático Nikolai Lúzin (1883-1950). Em 23 de março, é pre-
Ingressa na Faculdade de Matemática e Física da Univer- so após a publicação de uma versão do seu sermão "Clamor
sidade de Moscou. Torna-se aluno do matemático Nikolai por sangue", um dos primeiros protestos públicos contra a
Bugáiev (1837-1903), fundador da aritmologia. Estuda pena de morte na Rússia, dois anos antes do famoso artigo
paralelamente filosofia antiga na Faculdade de História e "Não posso ficar em silêncio" de Lev Tolstói. É liberado
Filologia. Torna-se amigo do poeta simbolista Andrei Biéli sete dias depois.
(1880-1934), filho de Bugáiev, e conhece outros poetas do
1908
mesmo círculo: Aleksandr Blok ( 1880-1921) e Viatcheslav
Ivánov (1866-1949), entre outros. Morre seu pai. Frequenta as reuniões promovidas pelo com-
positor Aleksandr Scriabin (1872-1915). Gradua-se em teo-
1904 logia.
Conclui os estudos universitários com tese supervisiona-
1910
da por Bugáiev: Ob ossóbennostiakh plóskikh krivikh kak
mestakh naruchénii prerívnosti [Sobre as peculiaridades das Casa-se com Anna Mikháilovna Guiatsíntova (1889-1973),
curvas planas como lugares de descontinuidades]. Frequenta com quem terá cinco filhos: Vassili (1911-1956), Kirill
os círculos de literatura simbolista. Seus interesses giram (1915-1982), Olga (1918-1997), Mikhail (1921-1961) e
em torno da filosofia do conhecimento, da história, da ar- Maria (1924-).
queologia, da língua hebraica e das ciências naturais. No
I9II
mesmo ano é convidado a assumir a cadeira de matemática
na Universidade de Moscou. Recusa a proposta e matricula- É ordenado sacerdote.
-se no Seminário Teológico de Moscou, em Sérguiev Possad
(Monastério da Santa Trindade de São Sérgio). Começa a se 1912
corresponder com o filósofo Serguei Tróitski (1881-191 O) e, Inicia os estudos pós-graduados em teologia. Mantém ativa
através dessa correspondência, a escrever Stolp i utverjdiénie correspondência com filósofos ortodoxos, inclusive Ieltcha-
ístini [O pilar e o fUndamento da verdade]. nínov e Ern, seus colegas de liceu. Frequenta, até 1914, a
casa da artista plástica Liubóv Popova (1889-1924), onde se

128 Neide Jallageas D ados biográficos de Floriênski 129


reuniam diversos artistas e teóricos da esquerda, como Vla- nado "Ikonostás" ["lconóstase"]. Inicia colaboração com os
dímir Tátlin (1885- 1953), Vassili Toporkov (1889-1970) simbolistas moscovitas, entre eles o artista Vladímir Favórski
e Fiódor Stepun (1884-1965). Mantém intenso contato (1886- 1964). É convidado a dar aulas de arte bizantina no
com escritores e filósofos, entre eles Maksimilian Volóchin MIKhiM [Moskóvski lnstitut lstóriko-Khudójestvennikh
(1877-1932) e Serguei Bulgákov (1871-1944). lziskanii i Muzeievediénia - Instituto de Museologia e
Pesquisas Históricas e Artísticas de Moscou].
1914
1919
Leciona teologia e história da filosofia. Conclui sua tese de
pós-graduação: Stolp i utverjdiénie ístini [O pilar e o fUnda - Escreve Obrdtnaia perspektiva [A perspectiva inversa]. Passa
mento da verdade]. Inicia a publicação dos ensaios "Rázum a trabalhar na usina de material plástico Karbolit como
i dialiéktika" ["Razão e dialética"] e "Privediénie tchísel" consultor, e logo depois como chefe de produção.
["Introdução aos números"] no jornal Bogoslovski Viéstnik
1920
[Boletim Teológico], do qual é editor.
Colabora junto a outros cientistas com o desenvolvimento
1915 do ultramicroscópio especial para o Instituto Histológico de
É enviado para o front na Primeira Guerra Mundial como Moscou. Dirige as pesquisas para utilização de resina sinté-
clérigo em um comboio médico. tica na usina Karbolit. Publica o ensaio "Stroiénie slovà' [''A
estrutura da palavra"] e "Maguítchnost slovà' [''A natureza
I9I7 mágica da palavrà'].
Intensifica suas atividades pedagógicas, colocando suas com-
1921
petências científicas a serviço da Revolução.
Funda a revista Mdkoviets -]urna! Iskússtv [Revista das Ar-
1918 tes] . Começa a desenvolver pesquisas para a GlavELEKTRO
Escreve Khramovóie diéistvo, kak síntez iskússtv [O rito orto- [Glávnoie Upravliénie Ekektrotekhnítcheskoi Promíchlen-
doxo como síntese das artes] e Antinómia iazikd [A antinomia nosti- Administração Central da Indústria Eletrotécnica],
da linguagem]. Passa a integrar a Comissão para a Conser- dirigida por Lev Trótski, colaborando com a GOELRO
vação dos Monumentos e Antiguidades do Monastério da [Gossudárstvennaia Komíssia po Elektrifikatsii Rossii -
Santa Trindade de São Sérgio. Inicia um esforço para preser- Comissão Estatal para a Eletrificação da Rússia]. Contribui
var as obras históricas guardadas no monastério dos ataques para a elaboração da Tekhnítcheskaia entsiklopiédia [En-
destruidores dos bolcheviques, obstinados em eliminar os ciclopédia tecnológica] . Inicia a realização de um dicioná-
focos de fé cristã em nome do ateísmo. Dá início às prepa- rio de símbolos, Simbolarium. É convidado a lecionar no
rações de um curso sobre a arte bizantina e a publicações VKh UTEMAS [Víschie Khudójestvenno-Tekhnítcheskie
sobre a arte russa antiga. Escreve um ensaio fundamental Masterskíe- Ateliês Superiores de Arte e Técnica], escola
sobre a espacialidade, a pintura e o ritual ortodoxo, denomi- de artes de Moscou com investigações e objetivos análogos

130 Neide Jallageas Dados biográficos de Floriênski 131


aos da Bauhaus, na Alemanha, existente no mesmo perío- 1924
do. Associa-se à RAKhN/GAKhN [Rússkaia Akadiémia Eleito membro do Conselho Central para a Eletrotécnica
Khudójestvennikh Naúk- Academia Russa de Ciências da GlavELEKTRO, para sistematizar as normas eletrotéc-
Artísticas], iniciada por Vassíli Kandínski (1886-1944), em nicas de Moscou. Publica uma monografia na área da físi-
Moscou, junto a historiadores da arte, físicos, filósofos, fi- ca sobre os isolantes e suas utilizações técnicas.
siologistas e matemáticos.
1925
1922 A partir desta data, até 1933, será diretor do Departamento
É publicado o seu livro Mnímosti v gueomiétrii [Dos ima- de Materiais do GEEI [Gossudárstvenni Eksperimentálni
ginários na geometria], que discute a perspectiva inversa na Elektrotekhnítcheski lnstitut- Instituto Nacional de Pes-
Divina comédia de Dante Alighieri (1265-1321) com base quisa Experimental da Eletrotécnica].
na teoria da relatividade e da teoria não euclidiana. O li-
vro desperta vivo interesse em Óssip Mandelstam (1891- 1927
1938), Maksim Górki (1868-1936), Ievguêni Zamiátin Inicia contribuição para a Tekhnítcheskaia entsiklopiédia [En-
(1884-1937) e Mikhail Bulgákov (1891-1940). O Glavlit ciclopédia tecnológica], na qual incluirá 127 entradas.
[Glávnoie Up~avliénie po Delam Literaturi i Izdátelstv-
Administração Central dos Assuntos de Literatura e Edi- 1928
toras] censura o trabalho e Floriênski publica uma carta Considerado socialmente perigoso e uma ameaça ao poder
defendendo a publicação. É lançado o primeiro número soviético, além de "obscurantistà', é preso no mês de maio
da revista de arte Mákoviets, dirigida por Favórski, que se e exilado em Níjni-Nóvgorod (cidade que se chamou Gór-
distingue por precioso trabalho gráfico, reunindo artistas ki, de 1932 a 1991), localizada às margens do rio Volga.
da Faculdade Poligráfica do VKhUTEMAS. Neste número, Durante a prisão, trabalha em um laboratório de rádio. Em
Floriênski publica Khramovóie diéistvo kak síntez iskússtv [O novembro é libertado, sob a intercessão da esposa de Mak-
rito ortodoxo como síntese das artes], no qual problematiza sim Górki. É publicado seu livro Karbolit, sobre a fabrica-
aspectos sinestésicos dos rituais da ortodoxia cristã. ção desse fenol e suas propriedades, conhecido no ocidente
como a resina sintética baquelite.
1923
Os artistas produtivistas, entre eles Aleksandr Ródtchenko 1930
(1891-1956), debatem as ideias de Floriênski na revista É nomeado diretor adjunto da área de ciências no Instituto
LEF - Liévi Front Iskússtv [Frente Esquerda das Artes], de Nacional de Pesquisa Experimental da Eletrotécnica.
Vladímir Maiakóvski (1893-1930). Inicia a escritura de
um tratado sobre a análise do espaço e do tempo nas artes. 1932
Publica Fízika na slújbie matemátiki [A flsica a serviço da

132 Neide Jallageas Dados biográficos de Floriênski 133


matemdtica], na revista Sotsialistítcheskaia Rekonstrúktsia i do que sua biblioteca, fotos e manuscritos, confiscados pelo
Naúka [Reconstrução Socialista e Ciência]. órgão durante uma busca em sua casa, fossem restituídos a
ele ou a sua família, afirmando que, para ele, a destruição
1933 do trabalho de toda a sua vida era muito pior que a morte
A despeito dos serviços prestados ao Estado soviético e de física.
sua reputação e prestígio como cientista, Floriênski é preso
em 23 de fevereiro por realizar "agitação contrarrevolucio- 1937
nária'', com base em acusação obtida através de interroga- Em 25 de novembro o NKVD [Naródni Komissariat Vnú-
tório feito pela polícia secreta OGPU, órgão antecessor do trennikh Diél - Comissariado do Povo para Assuntos In-
KGB [Komitiet Gossudárstvennoi Bezopásnosti - Comitê ternos] reafirma os crimes políticos que teriam sido cometi-
de Segurança do Estado], ao prisioneiro Pável Guduliánov, dos por Floriênski e o condena à morte. Em 8 de dezembro,
professor de direito da Universidade de Moscou. Em 26 de na região de São Petersburgo (cidade nomeada Leningrado
julho, Floriênski é condenado a dez anos de prisão em cam- de 1924 a 1991), é executado. Sua família terá a confir-
po de trabalhos forçados . No fim do ano é mandado para o mação de sua morte somente muitos anos mais tarde. Em
campo de Svobódni, na Sibéria Oriental, onde é designado 1958, o Tribunal de Moscou retira as acusações que haviam
para o setor de pesquisas científicas. pesado sobre Floriênski, declarando-o inocente.

1934
É enviado para uma estação experimental de pesquisas sobre
o solo congelado em Skovorodinó, onde realiza estudos que
posteriormente serão publicados por seus colegas Bíkov e
Kápteréva em Viétchnaia merzlotd i stroítelstvo na niéi (O
pergelissolo e a construção sobre ele, 1940). Em 1° de setem-
bro, é enviado para o campo do GULag [Glávnoie Uprav-
liénie Ispravítelno-Trudovikh Lageriéi i Kolonii - Admi-
nistração Central dos Campos e Colônias de Trabalho e de
Correção], no arquipélago de Solovkí, antigo monastério da
ortodoxia russa, fundado no século XV, e que as autoridades
soviéticas transformaram em campo de concentração, no
Mar Branco, extremo norte da Rússia. Apesar das privações,
Floriênski continua as atividades científicas em uma fábrica
de iodo de Solovkí e investiga a produção de iodo a partir
das algas marinhas. Elabora petições à OGPU reivindican-

134 Neide Jallageas Dados biográficos de Floriênski 135


Bibliografia

BOWLT, John E.; MATICH, Olga (orgs.). Laboratory ofDreams: The Rus-
sian Avant-Garde and Cultural Experiment. Sranford: Sranford Uni-
versity Press, 1999.
CHNEIDER, I. V.; FIODOROV, P. A. "Izlojénie tiékhniki íkonopissi"
("Uma exposição da técnica da pintura de ícones"]. In: VZDORNOV,
G . I.; ZALESKAIA, Z. E.; LELEKOVA, O. V. 6bchestvo '7kona" v
Parije. Moscou: Progress-Tradírsia, 2002.
DÓROGOV, A. A.; IVANOV, V. V.; USPIÊNSKI, B. A. "Floriênski i iegó
statiá 'Obrárnaia perspektiva"' ("Floriênski e seu artigo 'A perspectiva
inversa'"]. Trudi po Zndkovim Sistiémam: Utchônie Zapíski Tartúskogo
Universitiéta, n° 198, Tartu, 1967, pp. 378-380.
FLORIÊNSKI, Pável. "Obrárnaia perspekriva'' (''A perspectiva inversa"].
Trudi po Zndkovim Sistiémam: Utchônie Zapíski Tartúskogo Universi-
tiéta, n° 198, Tartu, 1967, pp. 380-416.
_ _ _ _ _ . "Obrátnaia perspektiva" [''A perspectiva inversa"]. In: Ikonos-
tds: ízbrannie trudi po iskússtvo [A iconóstase: trabalhos selecionados sobre
a arte]. São Petersburgo: Mifril, Rússkaia Kniga, 1993.
_ _ _ _ _ [FLORENSKY, Pavel]. Iconostasis. Tradução de Donald She-
ehan e Olga Andrejev. Nova York: St. Vladimir's Seminary Press,
2000.
_ _ _ _ _ [FLORENSKY, Pavel]. Beyond Vision, Essays on the Perception
ofArt. Organização de Nicoletta Misler. Tradução de Wendy Sal-
mond. Londres: Reaktion Books, 2002.
_ _ _ _ _ [FLORENSKIJ, Pavel]. La prospettiva rovesciata e altri scritti.
Organização de Nicoletta Misler. Tradução de Carla Muschio e Ni-
coletta Misler. Roma: Gangemi Editore, 2003.
_ _ _ _ _ [FLORENSKI, Pável]. La perspectiva invertida. Organização
de Felipe Pereda. Tradução de Xenia Egórova. Madri: Siruela, 2005.

Bibliografia 137
_____ . "Filossófia perepíski" ["Filosofia da correspondêncià'] . Nóvi DOCUMENT OS ELETRONIC OS
furna!, n° 242, 2006.
_ _ ___ [FLORENSKIJ, Pavel]. Lo spazio e i! tempo nell'arte. Organi- SMITH, William (org.). A Dictionary oJGreek and Roman biography and
zação de Nicoleta Misler. Milão: Adelphi, 2007. mythology. Boston: Little, Brown, and Company, 1867. Encontra-se
online na home page da University of Michigan Library. Disponível
GHARIB, Georges. Os ícones de Cristo: história e culto. Tradução de José
em: http://name.um dl.umich.edu/A CL3129.0001. 001.
Raimundo Vidigal. São Paulo: Paulus, 1997, pp. 91-102.
Encyclopedia Britannica Online. Disponível em: http:/ /www.britannica.com.
LÁZAREV, V. N. Rússkaia íkonopis ot istókov do natchala XVI v. [A pintura
russa de ícones das fontes ao início do século XVI]. Moscou: Iskússtvo, FEB - The Fundamental Di'gital Library of Russian Literature & Folklore
2000. [FEB- Fundamenrálnaia elektrónnaia bibliotieka "Rússkaia litera-
tura i folklor"]. Disponível em: http:/ /feb-web.ru/.
MANOVICH, Lev. The Language ofNew Media. Cambridge: MIT Press,
2001. MICARONI, Regina Clélia da Costa Mesquita; BUENO, Maria Izabel
Maretti Silveira; JARDIM, Wilson de Figueiredo. "Compostos de
_ _ _ _ _ (org.). Tekstura: Russian Essays on Visual Culture. Chicago:
mercúrio: revisão de métodos de determinação, tratamento e descar-
Chicago University Press, 1993.
te". Química Nova, São Paulo, v. 23, n° 4, agosto 2000 . Disponível
PANOFSKY, Erwin. A perspectiva como forma simbólica. Tradução de Eli- em: http:/ /www.scielo. br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=SO 100-
sabete Nunes. Lisboa: Edições 70, 1993 [original em alemão: Die -40422000000400011 &lng=en&nrm=iso.
Perspektive als "symbolische form'].
VITRÚVIO. De architectura. Disponível em: http://www.hs-augsburg.de/
TIKHOMÍRO V, ''Andriêi Rubliôv i iegó epokha" [''Andriêi Rubliôv e sua - harsch/Chronologia/LsanteO 1/Vitruvius/vit_ arO 1.html.
épocà']. Vopróssi Istóri, n° 1, 1961.
_____ . Rússkaia kultura X-XIII vekov [A cultura russa dos séculos X-
-XIII]. Moscou, 1968.
USPIÊNSKI, Boris A. [USPENSKY, Boris]. The Semiotics ofthe Russian
Icon. Organização de Steven Rudy. Lisse: Peter de Ridder, 1976.
_____ . Semiótika iskússtva [A semiótica da arte]. Moscou: Chkola
"laziki Russkoi Literaturi", 1995.
VALENTINI, Natalino. FavelA. Florenskij. Brescia: Morcelliana, 2004.
VITRUVE. LArchitecture. Tradução de L. Maufras. Paris: C. L. F. Panckou-
cke, 1847 [original em latim: De architectura].

DICIONÁRIO S

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo diciondrio da língua portu-


guesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, 2• edição.
Diciondrio Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

138 A perspectiva inversa Bibliografia 139


Agradecimentos

As traduroras gostariam de agradecer às seguintes pessoas e institui-


ções: A! berro Marrins, Arlete Cavaliere, Biblioteca da História da Filosofia e
da Cultura Russas "Casa de A. F. Lóssev" (Moscou), Ele na V ássina, Fapesp,
Lucas Simone, Marco Buti, Mária Trubarchova, Museu-Aparramenro do
Padre Pável Floriênski (Moscou), Natália Tolchennikova, Natacha Iniazvó-
rchka, Naum Kleiman, Nikolai Erofiéiev e Paulo Angerami.

Agradecimentos 141
Sobre as tradutoras

Neide Jallageas realiza pós-doutorado pelo Programa de Pós-Gra-


duação em Russo da Universidade de São Paulo, com estágio no Centro
Eisenstein de Pesquisa, em Moscou (projeto contemplado pela Fapesp),
investigando o cinema russo e, em especial, a obra de Serguei Eisenstein em
confluência com o cinema e as artes na Rússia do século XXI. É doutora
em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, com tese sobre o cinema de
Andriêi Tarkóvski, a partir dos estudos de Pável Floriênski. Mestre em Es-
tética do Audiovisual (ECA-USP), traduziu um conto de Clarice Lispector
para a linguagem do vídeo e da fotografia, trabalho que se encontra em
acervos públicos (MAM-SP, Coleção Pirelli/MASP, SESC-SP). Integra o
quadro de professores do Bacharelado em Artes Visuais do Centro Univer-
sitário Belas Artes. Concebeu e edita os cadernos de pesquisa sobre cinema
russo kinoruss.
Anastassia Bytsenko é tradutora e pesquisadora. Assina com Adriano
Carvalho Araújo e Sousa a tradução de O sacrifício de Andriêi Tarkóvski
(É Realizações, 2012). Verteu três textos de Lev Tolstói, dentre os quais
"Shakespeare e o dramà' e "O que é a arte?" para a coletânea Os últimos
dias (Companhia das Letras, 2011). Traduziu ainda artigos e ensaios em
periódicos especializados. Realizou pesquisa de mestrado sobre a imigração
russa no Brasil e atualmente desenvolve pesquisa de doutorado sobre o teatro
de Tolstói no Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Cultura
Russa da Universidade de São Paulo.

Sobre as tradutoras 143


Este livro foi composto
em Adobe Garamond pela Bracher & Malta
com CTP da New Print e impressão da Graphium
em papel Pólen Soft 80 g/m 2 da
Cia. Suzano de Papel e Celulose para a
Editora 34, em outubro de 2012.

Você também pode gostar