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ESCRITORES DA LIBERDADE: MEMÓRIA DA BARBÁRIE OU VIDAS NA

BARBÁRIE?

Luciana Beatriz Carvalho


Universidade de Uberaba (UNIUBE).
lucianabeatrizcarvalho@yahoo.com.br

“O filme, imagem ou não da realidade, documento ou


ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é História”
(Marc Ferro)

“A educação sozinha não transforma a sociedade, sem


ela tão pouco a sociedade muda”. (Paulo Freire)

PALAVRAS-CHAVE: Memória; Ensino de História da Educação; Cinema.

INTRODUÇÃO.

A intenção deste texto é discutir a relação entre cinema, memória e história da


educação, a partir da análise do filme Escritores da Liberdadei, tendo como foco central o
ensino de história e, em particular, da disciplina de história da educação. Tal movimento que
buscamos realizar se ancora na possibilidade de trazer à tona, ou melhor, (re)discutir o sentido
ou o lugar da memória histórica nos cursos de formação de professores e como eles podem
incorporar essas reflexões no cotidiano da sala de aula. Levá-los a problematizar sobre esta
questão pode propiciar uma outra tessitura das narrativa históricas, ao produzir um
movimento (desencadeado pelos professores), mas feito de escolhas, cores e formas para
compor a trama e a urdidura do conhecimento histórico.
Para tanto, tomamos o referido filme Escritores da Liberdade como recurso didático,
mas também como uma fonte a ser explorada, visando promover um entrelaçamento de
combinações de processos de ensino, ou melhor, uma articulação entre o passado e presente
de forma viva, por meio de discussão dos principais aspectos que compõe a trama do referido
filme. É nesta perspectiva a
relação cinema/história/educação é possível porque entendemos que as
questões educacionais não podem ser compreendidas em sua profundidade
se não estiverem relacionadas ao contexto mais amplo da sociedade,
correspondendo aos interesses e necessidades materiais surgidas em cada
momento histórico da sociedade humana. (CARVALHO, 2003, p.02)
Nesse sentido, ao retomar e recriar um determinado real, por meio do trabalho com
filmes, podemos não somente discutir a própria a memória, mas ainda, estabelece um
movimento de introduzir o passado no presente, sempre atualizando o passado, porém não
necessariamente modificando-o, pois o tempo passado trazido à tona, ao tempo presente, tem
função prospectiva e projetiva de lançar-se ao futuro, isto é, fazer emergir a memória da
barbárie, mas também avidas na barbárieno mundo contemporâneo.
MEMÓRIA E HISTÓRIA: QUESTÕES PRELIMINARES.
No intuito de produzir o movimento de análise e reflexão do que é Memória, com
atenção voltada à sua complexidade, propomos, no diálogo com autores, perceber a matéria-
prima e os fios de suas definições, concepções, usos e apropriações. Não temos a intenção de
esgotar as abordagens teóricas, mas abrir possibilidades de conhecer, distinguir, entender,
para um processo de fiação constituído de constante diálogo e entrecruzamento de ideias,
tempos e espaços, em que a memória e a oralidade tenham o merecido lugar na composição e
na escrita de um fato. Rever os pré-conceitos, os pré-valores e as pré-noções atribuídos à
memória como fonte e como objeto e a metodologia da história oral como uma forma
confiável de se encontrar a verdade dos fatos, se revelam imperativos condicionantes do fazer
historiográfico. Isto porque a verdade não existe. O que temos são representações do fato e
assim sendo, por que não considerar a escuta da memória como sendo um procedimento
significativo para a construção do campo historiográfico?
Contudo, os grupos sociais determinam o que será lembrado, porque rememoram
aquilo que é significante para o grupo. Para o teórico, a memória é seletiva, construída pela
representação individual do passado, apoiada nas percepções produzidas pela memória do
grupo. Halbwachs não nega a memória individual, porém acredita que esta existe sempre a
partir de uma memória coletiva, que é para ele questão central:
Diríamos voluntariamente que cada memória individual é um ponto de vista
sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar
que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que
mantenho com os meios. (HALBWACHS, 1990, p. 51)
Seguindo o caminho de Halbwachs,Pierre Nora aponta também para a separação entre
memória e história, provocada pela ruptura do equilíbrio no processo de mundialização,
porque desaparecem as experiências artesanais da tradição e, com isso, os meios de
comunicação de massa fazem imperar meios de memória. Por essa formatação, a memória
torna-se esfacelada, representada e consagrada por lugares, que seguram os vestígios de um
passado, no sentido de guardar ou, talvez, opor-se aos efeitos desintegradores da rapidez da
contemporaneidade. Para Nora, é o fim da história-memória.
A história se acelera e o fato é demarcado pela notícia que assinala a sua duração
efêmera. Para Nora, o tempo altera-se e é representado pela duração da notícia, pelo novo,
pelo imediato. No entanto, a sensação que fica é a de um presente contínuo sem vínculos com
os sentidos do passado. Na expressão usada por Nora, “aceleração” trata-se do fenômeno que
distancia a memória da história, a mundialização. Pelo tempo vivido na imediatez torna-se
possível, então, a ameaça da perda de identidade dos grupos que não mais produzem
memórias causadas pelas rupturas constantes das ligações frágeis de convivência. (NORA,
1993, p.8)
Esse efeito desestruturador promovido pela “aceleração da história” levou Nora a
promover a ruptura entre os conceitos de História e Memória. Nas palavras do autor:
“Memória, história: longe serem sinônimos, tomamos consciência que tudo opõe uma à outra”
(NORA, 1993, p.9). Nesta frase, nota-se a aproximação entre Nora e Halbwachs, pois esse
último já havia afirmado que a memória coletiva não pode se confundir com a história porque
a história começa quando a memória termina, ou seja, termina porque não possui mais o
suporte do grupo. (HALBWACHS, 1990). Para Nora:
A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela
está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do
esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a
todos os usos e manipulações, suceptível de longas latências e de repentinas
revitalizações. (NORA, 1993, p.9)
Em contraposição, a história é construída por operação intelectual e laicizante; é
reconstrução problemática e incompleta de um passado que requer análise crítica. Assim,
organiza sentidos dicotômicos para memória e história, provocando rompimento de relações
entre os termos. Enquanto a memória vincula-se com as formas artesanais da tradição de um
tempo não industrial, a história está intimamente ligada com a modernidade. Então, para o
historiador Pierre Nora, o que chamamos hoje de memória não é mais, “é história”. (NORA,
1993, p. 14). Essa tensão, expressada na escrita de Nora, está intimamente ligada aos
rompimentos provocados pelos movimentos de globalização, da perda de referências, da
própria desritualização da história. Então, há um empenho pela preservação das marcas do
tempo na sagração dos lugares de memória.
Qual o movimento próprio da Memória? Qual a matéria-prima que compõe os seus
fios? Trata-se de trazer à tona um passado que “continua vivo e atual e, portanto, muito mais
do que reencontrado, ele é retomado, recriado, reatualizado” (SEIXAS, 2001, p. 49, grifo do
autor). Nesse sentido, ao retomar e recriar um determinado real, a memória estabelece um
movimento de introduzir o passado no presente, sempre atualizando o passado, mas não
necessariamente modificando-o. O tempo passado trazido à tona, ao tempo presente, tem
função prospectiva e projetiva de lançar-se ao futuro. Portanto, a ação inscrita no movimento
da Memória traz em si uma dimensão prática e interessada em agir e não simplesmente de
conhecer e entender o passado.
No movimento de percepção da matéria-prima que compõe os fios da Memória,
sentimos que esta é carregada de conhecimentos, é combativa ao esquecimento e plena de
esquecimentos, é individual e coletiva, é movida no entrecruzamento de espaços e tempos.
Não é na história apreendida, é na história vivida que se apoia nossa memória. Pela Memória
a vida é (re)significada pela experiência de alguém que traz a sua história em relação a uma
história mais ampla. Assim, é pela memória vivida que ocorre a (re)significação pela
experiência de alguém (professores e alunos no caso em estudo) que traz o compromisso da
memória com a ação, pois atravessa, vence obstáculos, emerge, irrompe.
CINEMA, MEMÓRIA E HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: UMA ARTICULAÇÃO
POSSÍVEL.
É com esse horizonte teórico-metodológico e tendo em mente também que o
historiador deve, para ser fiel ao seu ofício, se resguardar de qualquer conclusão ou
julgamento a priori; que seus questionamentos ao passado são determinados e condicionados
pela sua inserção no presente; que suas abordagens sempre estarão sujeitas a revisões, e por
isso, não se alcança a suposta objetividade a partir de estudos concebidos como definitivos,
mas sim quando tem a convicção da necessidade de rever seus procedimentos e suas
concepções. Somente assim, ancorado nestes princípios, terá condições de compreender e
explicar as situações e os problemas investigados, mesmo que estejam localizados em espaços
e temporalidades distantes de onde o historiador desenvolve seu ofício.
Portanto, recursos didáticos e metodológicos, como os filmes, são importantes para se
ensinar História da Educação, pois trazem em si uma dimensão prática e interessada em agir e
não simplesmente de conhecer e entender o passado. Por outro lado, esta “dupla genética”
(teórica e prática) permite encetar interpretações sobre os movimentos contemporâneos
histórico-educacionais, desenvolvidos sob a forma de revolução, reforma ou resistência,
constituídos por princípios inseparáveis das circunstâncias históricas. Nessas condições
aeducação integra uma constelação de fundamentos teórico-práticos, conferindo nexo às
transformações individuais, grupais e sociais.
Estudos ancorados no referencial teórico e metodológico da história cultural francesa e
social inglesa têm legitimado a memória enquanto objeto de análise, bem como legitima
novas narrativas históricas abri a possibilidade de se trabalhar com outras ferramentas teórico-
metodológicas, necessárias à construção de objetos de estudo, sobretudo, os que compõem a
história do tempo presente.
Então, buscamos estabelecer diálogos e entrelaçamentos de imagens percebidas e
concebidas, pela aventura do movimento produzido no momento da relação feita na diluição,
na inteireza do sujeito e sujeitos, do sujeito com o “material didático”, no caso do filme
Escritores da Liberdade. Desta forma, as imagens cinematográficas podem se constituir num
rico manancial de documento histórico, no qual o movimento de percepção da matéria-prima,
que compõe os fios da memória, possam despertar sentimentos carregados de conhecimentos
e, ao mesmo tempo, possam servir de entrecruzamento de espaços e tempos. Não é na história
apreendida, é na história vivida que se apóia a memória histórica. Em síntese,as proposições
desta pesquisa de estabelecer um diálogo com autores e atores que tecem os fios,
entrelaçando-os no “tear da história” pelo movimento do rolo urdidor, do pente e da cala, por
onde se deslocam os fios da trama. Fios compostos de experiências vividas, sentimentos,
reflexões, concepções e olhares.
Neste sentido, é importante firmar e esclarecer o conceito de educação, arte e
conhecimento para que possamos compreender o porquê trabalhar com cinema nas nossas
aulas de História da Educação. Segundo Caimi, Lamberti e Ferreira,
muitas inovações metodológicas, não obstante terem sido concebidas com
ótimas intenções, conseguiram tão-somente dar um caráter mais lúdico e
atrativo à História escolar, sem necessariamente desafiar os conteúdos
selecionados, a perspectiva cronológico-linear, a narrativa protagonizada
pelo professor e o papel pouco ativo do estudante. Ensinar/aprender História
de modo a problematizar a realidade, a percebê-la como uma construção
histórica, não como um dado natural, e, com base nisso, fazer escolhas
pessoais, profissionais, sociais é um desafio ainda presente. (2011, p. 02),
Asociedade brasileira contemporânea tem sido marcada por desigualdades profundas
que diferenciam as classes sociais. O Brasil é um dos países que apresenta uma das mais
elevadas concentrações de renda do mundo, considerado uma das maiores na economia
mundial. Contudo, esta mesma sociedade sofre por grandes desigualdades, principalmente no
que diz respeito às condições de vida da grande maioria da população, interferindo nos
direitos que são fundamentais para a sobrevivência do ser humano como direitos: à
subsistência, à saúde, habitação, segurança, lazer e principalmente a educação.
Grande parte destes brasileiros que sofrem com a falta desses direitos, afetando
principalmente as crianças e adolescentesii de classe baixa. Estes cidadãos brasileiros ganham
as ruas mais cedo em busca de renda para ajudar suas famílias, isso faz com que elas acabam
caindo no universo do crime e nas drogas. É importante lembrar que muitas destas crianças e
adolescentes que não conseguiram estruturar uma conduta digna, hoje são os indivíduos
adultos desprovidos de liberdade pelos seus atos e que lotam os presídios do Brasil.
Mesmo tomando uma ficção, no caso o filme Escritores da Liberdade, podemos a
partir da “realidade” retratapela sua trama, como por exemplo, a formação de gangues
violentasno interior das escolas americanas; as etnias que entram em conflito no espaço
escolar, pois a estrutura didática-pedagógica das instituições escolares não oferecem
condições de se debater e, assim, diminuir as tensões entre esses mesmosgrupos. O que
podemos pôr em relevo em relação ao referido filme, em termos de metodologia e filosofia
educacional, adotadas pela professora desenvolveu, é sua capacidade de promover a discussão
em torno das diversidades e como cada aluno pode modificar suaprópria vida. Nesse, sentido
incentivou-os a pensar, criticar, avaliar as opiniões estereotipadas de parte da sociedade
americana de origem saxônica, ou seja, trabalhou a questão da alteridade que muitos alunos
deixaram relegada a um plano secundário. Em verdade, buscou despertar em seus alunos a
perspectiva do futuro, construído pelas ações postas em andamento por eles mesmos, isto é,
coloca em desenvolvimento a “metodologia” da “quebra de estereótipos”. Claro que não
podemos deixar de considerar os clichês americanos apresentados pelo filme, mas, por outro
lado, também é importante destacar suas contribuições ao trabalho docente, à medida que
possibilita tratar das questões multiculturais ou a ausência delasnas salas de aulas.
Pela análise dessa obra cinematográfica,de início, nos remete a pensar sobre as
incertezas e ideais de uma professora recém-formada, que procurar mergulhar, talvez, projetar
suas perspectivas de mundo para sua profissão: de ser uma educadora ciente da importância
do trabalho docente, e não apenas uma professora repetidora de conteúdos propostos pelas
manuais didáticos. Determinada e, acima de tudo, motivada pela situação conflituosa dos seus
alunos, assume aquela sala de aluna imbuída de todos os seus ideais, mas logo toma
consciência da rela dimensão da “turma problema”, pois logo percebe as dificuldades da
tarefa de ensinar adolescentes rebeldes, intolerantes, indomáveis e, o pior em sua visão,
desacreditados pelo próprio sistema educacional, sendo que este não abria possibilidades para
aplainar as inúmeras diferenças presentes no universo daquela turma de alunos, composta
marcada não somente pela diversidade étnica-cultural, mas também por realidades sociais
bem distintas.
Diante dessa situação, a professora decide, num primeiro momento, realizar um
trabalho para conhecer sua turma, ou seja, seus problemas, tendo no horizonte prospectar as
várias realidades históricas que deram origem as suas vidas. A partir das primeiras
constatações trazidas por este trabalho inicial, decide adotar uma nova metodologia de ensino
com seus alunos, pois já havia identificado boa parte dos chamados alunos “problemas” e a
atenção especial necessária a ser prestada a eles.
Uma de suas estratégias foi propor a adoção de um livro que fosse capaz de motivá-los
a pensar o mundo da barbárie, no caso suas próprias realidades, mas que trouxesse à tona as
imagens do “retratoda memória da barbárie”.
Assim, propõe a leitura do O diário de Anne Frank (1958), escrito por uma
adolescente judia que vive cerca de dois anos, com sua família, escondida dos nazistas
durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e que foi publicada posteriormente, esta obra
que pinta em branco e preto os horrores praticados pelos nazistas durante a guerra. Anne
Frank (1958), em seu diário ressalta:
já te tenho dito muitas vezes que o ambiente aqui depende da nossa
disposição. E eu, a tal respeito, estou cada vez pior. Pode aplicar-se-me o
dito: "alegria celeste, tristeza mortal". Sinto uma "alegria celeste" quando me
lembro como estou bem aqui em comparação com outros judeus. "Tristeza
mortal"... invade-me, sim, quando ouço contar que a vida lá fora continua.
(FRANK, Anne 1958, p.163-164)
As palavras de Anne Frank retratam a ambiência mórbida do genocídio nazista contra
os judeus e as outras minorias (negros, ciganos, homoxessuais, etc). Seu diário se constitui na
ponta do diamante que estiola a carapaça vítrea dos crimes praticados pelo nazismo, por que
este não considerava a humanidade enquanto portadora de diversidade étnica e cultural, ou
seja, composta pela multiplicidade. Com isso, o regime nazista procura impor a perversidade
da técnica a serviço do racismo e do genocídio, num mundo que perdeu a ética e aboliu o
respeito à diferença e o direito à vida.
Assim, por meio da leitura da referida obra, a professora objetivoudespertar em seus
alunos as memórias sobre os horrores provocados pela intolerância de todos origens e ordens
e, sobretudo, a importância da convivência na diversidade, ou seja, pretendia fazer emergir
discussões em torno da ausência das políticas multiculturais, as quais esbarram nas
dificuldades impostas, num primeiro momento,pela situação macroestrutural da sociedade
(fatores políticos e econômicos)já, num segundo momento, observa-se uma “razão cultural”,
sendo que estase consolida em um conjunto de valores capazes de reafirmar os perspectivas
culturais já existentes, como fossem monolíticos e estáticos.
A necessidade à tolerância se impõe como elemento angular, visto que se o respeito às
diversidades não prevalecer haverá a continuidade e persistência das inúmeras barbáries, isto
é, das vidas na barbárie, como aconteceram num passado recente e ainda acontece mundo
atual. É nesse sentido, que tanto o livro (O diário de Anne Frank) como o filme (Escritores da
Liberdade) são relevantes às reflexões sobre a possibilidade de articular cima e história da
educação, tendo em vista recuperar a memória histórica, a qual “guarda” elementos essenciais
da constituição da sociedade.
Nesta linha de pensamento Severino vê a educação como fundamental para individuo
(1995) mediante a prática, o humano vai se construindo no tempo histórico e no espaço social.
Isso quer dizer que não nascemos prontos, nem como uma essência eterna, nem como um ser
programado por seu código genético. Se esse código é condição necessária de minha vida
biológica, ele não é condição suficiente para me tornar humano. “Por isso mesmo, seremos
aquilo que nós nos fizermos, e só nos faremos fazendo as coisas, agindo, no decorrer do
tempo histórico e no convívio social”. (SEVERINO, 1995, p.21)
A nossa intenção, ao introduzir as abordagens de Severino (1995), consiste em
defender que a educação é legitima, enquanto mediadora, damemória histórica, mas não como
abstração e sim em sua dimensão concreta, ou seja:
[...] enquanto ela nos prepara para exercermos sem degradação nossas
relações de trabalho, para participarmos ativamente da vida social, sem a
opressão política, para praticarmos nossa atividade simbólica, sem nos
alienarmos pelo enviesamento ideológico. Educar significa, pois, investir na
implementação desses três universos de nossa prática: o trabalho, a
sociabilidade e a cultura simbólica.(SEVERINO, 1995, p.23).
Dada a condição histórica da existência humana, é importante ressaltar aqui a
formação de um profissional da educação, pois o mesmo não pode ser formado como se fosse
um robô programado. A sua atividade é também marcada pela historicidade, uma vez que ela
é contemporânea de uma leitura continuada da realidade social.
Nesta perspectiva, só dispomos de um único instrumento para explicar o sentido de
nossa existência e, consequentemente, para estabelecer as referências históricas de nossas
ações, inclusive daquelas da educação: o conhecimento. É pela nossa prática teórica, pelo
próprio exercício da subjetividade, que podemos intencionalizar o nosso agir, ou seja, criar
um sentido, traçar um rumo, ou seja, uma finalidade à vida.
Todavia, é bom frisar que o conhecimento não apenas especulação abstrata, cerebral,
desvinculada de compromissos com a vida. Ao contrário, o conhecimento surgiu na espécie
humana como um equipamento para a ação, caindo no desvario quando dela se afasta. Ele
deve ser visto e assumido como uma dimensão de nossa prática simbólica, pela qual somos
capazes de representar o real e seus diversos aspectos mediante conceitos de nossa
experiência.
É desse modo que podemos fazer com que nossa prática não seja somente mecânica,
puramente transitiva, como vemos nos seres não humanos. Essa postura se explica não mais
pelas forças que a tornam viável, mas pela sua finalidade; nós agimos em função de fins, que
são construídos com base nos conceitos e valores que atribuímos a todos aqueles elementos
envolvidos em nossa existência. É o que se quer dizer quando falamos da intencionalidade de
nossa ação, o que a distingue das atividades de outras espécies de seres.
A educação não pode ser realizada de qualquer forma, ela precisa ser construída e
desenvolvida de modo a se tornar investimento nas forças construtivas dessas mediações. Daí
a necessidade do conhecimento sistemático e crítico. Uma maneira interessante de se realizar
este processo é através da utilização de algumas obras do cinema, onde as mesmas ilustrem o
conteúdo trabalhando e dê margem para um amplo debate.
ARTE, MEMÓRIA E EDUCAÇÃO.
A educação brasileira, no contexto histórico que atravessa sua atualidade, precisa ser
fundamentalmente de um investimento com vistas à construção da cidadania, de modo direto,
e da democracia, de modo indireto. Ela deve tornar-se instrumento para transformar o
educando brasileiro num cidadão, entendido como um sujeito construtivamente inserido no
mundo do trabalho, na trama das relações sociais e na esfera da cultura simbólica.
Transformá-lo num sujeito concreto que possa reivindicar e dispor dos bens naturais de que
necessita para a conservação e reprodução de sua existência material, dos bens políticos de
modo a compartilhar das tomadas de decisão que alocam o poder na sociedade, e dos bens
simbólicos, tornando-se um sujeito produtor e membro participante dessa cultura.
Assim, entendemos a educação como um processo que atinge todos os seres humanos
independente de seu acesso à escola, já a arte também está presente em todas as criações e
manifestações culturais. A importância da arte na educação tem sido um tema muito debatido
nas escolas pois, através dela é possível desconstruir para reconstruir, selecionar e
desenvolver a capacidade crítica do sujeito, permitindo analisar a realidade percebida,
desenvolver a criatividade de maneira a mudar a realidade vivida.
No sistema educacional brasileiro foi definido no Art.26, Parágrafo 2º, da LDB - Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - Lei nº 9394/96 – a presença da Arte como “[...]
componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da Educação Básica, de forma a
promover o desenvolvimento cultural dos alunos”. Os PCNs - Parâmetros Curriculares
Nacionais de 1997 realçam o fato da “[...] arte também está presente na sociedade em
profissões que são exercidas nos mais diferentes ramos de atividades; o conhecimento em arte
é necessário no mundo do trabalho e faz parte do desenvolvimento profissional do cidadão”.
(PCNs, 1997, p.20)
As citações acima fortificam mais a convicção de que o indivíduo que está dentro de
um sistema prisional, precisa receber estes nortes, na disciplina de Arte, que conduz o
indivíduo para uma vida profissional digna de um ser humano que vai abusca de uma vida
nova.
O conhecimento adquirido nos projetos, nas oficinas, na disciplina de Arte abre
perspectivas para que o nosso aluno tenha um entendimento maior do mundo no qual a
dimensão poética está sempre presente. A arte transforma o ser humano e o leva a ser flexível,
pois, criar e conhecer são indissociáveis e a flexibilidade é condição fundamental para
aprender. No documento dos PCNs (1997) esta é uma ideia clara:
O aluno poderá compreender a realidade dos valores que estão
enraizados nos seus modos de pensar e agir, que pode criar um campo de
sentido para a valorização do que lhe é próprio e favorecer abertura à riqueza
e à diversidade da imaginação humana. Além disso, torna-se capaz de
perceber sua realidade cotidiana mais vivamente, reconhecendo objetos e
formas que estão à sua volta, no exercício de uma observação crítica do que
existe na sua cultura, podendo criar condições para uma qualidade de vida
melhor. (PCNs, 1997, p.19).
Neste sentido, entendemos que a Arte propicia às pessoas momentos únicos de expressão
que deverão ser valorizados como experiências, sonhos e possibilidades. Mais uma vez
citando os PCNs (1997):
O ser humano que não conhece arte tem uma experiência de aprendizagem
limitada, escapa-lhe a dimensão do sonho, da força comunicativa dos objetos
à sua volta, da sonoridade instigante da poesia, das criações musicais, das
cores e formas, dos gestos e luzes que buscam o sentido da vida. (PCNs,
1997, p.21).

Ao assumir esses princípios evidencia-se que a Arteiii teve e terá papel fundamental na
“sobrevivência cultural humana”. Foi por meio das práticas artísticas que o ser humano
desenvolveu sua mente, sua cultura, bem com a ciência e a tecnologia, agrupando-asem
atividades que funcionam como elementos agregadores dos seres humanos, ao
alinhar/aproximar comportamentos em processos de interação/integração social.A realização
de atividades artísticas mobiliza e integra áreas do cérebro em aprendizagem e domínios da
vida cotidiana, no estudo e no trabalho. Com esse olhar sobre a dimensão da arte ( como os
filmes), podemos pensá-la no âmbito da na escola, tendo em vista não somente afirmar seus
valores estéticos, mas refletir sobre os inúmeros contextos sociais, onde estão presentes as
contradições de todas as ordens. Por outro lado, pela e através da arte é possível questionar os
valores estéticos das culturas hegemônicas e elitistas, impostos às minorias sociais, ou mesmo
a alguns grupos majoritário, porém sem ter hegemonia político-econômica na sociedade.
Portanto, visando romper com o “monoculturalismo” é fundamental possibilitar e
proporcionar aos alunos a experiências de leituras e, por meio delas, firmar a importância do
trabalho com filmes, dado que são capazes de abordarem as diversas formas de linguagens e
estéticas sociais, de modo a compreendê-las e respeitá-las, reconstruindo-as conforme sejam
trabalhados pelos professores, como o fez a protagonista principal do filme Escritores da
Liberdade, a professora que propôs aos alunos a escrita de um diário sobre suas vidas, ou seja,
desuas visões de mundo.
Sobre o papel dos diários na adolescência, Lima e Santiago afirmam:
A adolescência é o momento paradigmático da escrita de um diário. As
meninas, no despertar da puberdade, costumam ser presenteadas com diários
fechados com cadeados, para a escrita de suas experiências pessoais e
pensamentos íntimos. A escrita do diário, como uma prática privada e
confessional, é mantida, por vezes, durante todo o período da
adolescência.(2012, p. 2)
No decorrer do tempo, os alunos vão se engajando na elaboração de seus diários,
comentando sobre sua vida, suas perspectivas e correlacionando com os livros propostos pela
professora. Desenvolvem um espírito crítico, pois tiveram condições de melhor reconhecer,
sentir, pensar e refletir sobre seus próprios ideais de vida e de sociedade. Assumem outra
atitude: de responsabilidade para com o outro. Desta forma, uma motivação para o futuro
melhor, a necessidade de expressão seus sentimentos e o reconhecimento de que sua
identidade é forjada por eles mesmos, enquanto sujeitosque “produzem”suaspróprias
histórias. A professora, ao despertar nos alunos a possibilidade da “educação
transformadora”, trouxe à tona o “espírito” do cidadão crítico, conhecedor de seus direitos e
deveres, mas além disso, a necessidade de conviverem na diversidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Num mundo cada vez mais globalizado, onde o aqui e agora ocupam todas as atenções
e a informação se tornou mais atraente que o próprio conhecimento, onde visões imediatistas
naturalizam o social, onde o passado é desconsiderado enquanto experiência para o presente,
ou seja, a memória história passa a ser mais um “artefato” dos arquivos e dos museus. Por
isso, é imperativo pensar o fenômeno educacional, bem como conhecê-lo em suas múltiplas
dimensões, com todos os problemas inerentes ou produzidos no âmbito da educacional. Neste
sentido, ganha relevo nas últimas décadas as discussões sobre a formação continuada dos
profissionais que lidam com ensino, pois não basta somente formar professores capazes de
operacionalizar os mais modernos recursos e técnicas, didáticos e pedagógicos. Estes são sim
relevantes ao ensino, porém desde que sejam “ferramentas” com as quais possam “evocar” a
capacidade reflexiva dos alunos, como bem pôde ser evidenciado no filme Escritores da
Liberdade, no momento em que a memória dos alunos foi “despertada” pela leitura do livro O
diário de Anne Frank, fez emergir a brutalidade da barbárie do holocausto de Auschwitz, em
outras palavras, por meio do cinema (que se constitui numa arte) é possível ensinar a história
da educação melhor articulada com as questões centrais que norteiam as dimensões e
discussões que envolvem memória histórica.
É nestaperspectivaque os propositores das políticas públicas deveriam projetar os
novos conteúdos (supostamente de interesse dos alunos) nos programas curriculares. No
entanto, a questão se mantém: considerar que os sujeitos envolvidos, no caso os professores,
detém saberes especializados, e também os produzem e reproduzem ao adequá-los ao grau de
compreensão dos alunos. Esquecem que as situações de ensino e aprendizagem se renovam
continuamente, que o simples domínio de técnicas e conteúdos a serem ensinados e se tornam
insuficientes para os alunos, bem com a própria formação continuada dos professores.
É necessário então articular as políticas de formação continuada com as reais carências
e anseios da sociedade, uma vez que apenas assim serão capazes de estabelecer um
conhecimento pedagógico, cujo objetivo principal seja proporcionar uma formação autônoma
e sem as interferências dos organismos internacionais. É com este perspectiva que pensamos o
presente artigo, no qual sinalizaremos para os impactos da globalização no campo
educacional, num primeiro momento e, posteriormente discutiremos sobre as ações
governamentais para a formação continuada de professores no Brasil do século XXI. Portanto,
no cinema e na literatura encontramos fios compostos de experiências vividas, sentimentos,
reflexões, concepções eolhares, alinhavados pelo “tear da história”, em seu movimento do
rolo urdidor, do pente e da cala, por onde se deslocam os fios da trama das memórias e com
os quais a História da Educação pode recuperar enquanto “artefatos” do passado educacional
e elementos formadores do presente.

BIBLIOGRAFIA.
BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. 7ed. Ática: São Paulo: 2004.
CAIMI, Flávia Eloisa Caimi, LAMBERTI, Mayara HemannLamberti e FERREIRA, Mariluci
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Pedagógica: Filosofia da Educação. p.20-28. Set/out. 1995.

i
O filme "Escritores da Liberdade" de 2007, com direção e roteiro de Richard LaGravenese, aborda, de uma
forma comovente e instigante, o desafio da professora Erin (Hilary Swank) em ensinar Língua Inglesa e
Literatura para um grupo de adolescentes oriundos de um contexto social, problemático e violento de meados de
1990. Ao mesmo tempo, a trama retrata o desprendimento desta professora para superar suas próprias
dificuldades, bem como promover a integração dos alunos com o contexto norte americano marcado pela
indiferença e preconceitos quanto às minorias sociais.
ii
O artigo 277 da Constituição Federal, promulgada em 1988, define como prioridade absoluta o atendimento à
criança e ao adolescente: “É dever da família, da sociedade, o direito à vida, à saúde, a alimentação, à educação,
ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão.”
iii
Quando se trata da área curricular, grafa-se Arte; nos demais casos, arte.

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