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Resumo:
O diálogo O livre-arbítrio de S. Agostinho apresenta a difícil questão sobre a origem do mal: de
onde provém o mal que fazemos? Se Deus é o autor de todas as coisas do mundo, ele não seria,
também, o autor do mal? O objetivo desta comunicação é investigar a formulação desse
problema, tal como aparece no livro I do diálogo O Livre-arbítrio. Agostinho não deixa de
reconhecer Deus como Criador, e o Mal será pensado ou como privação, ou como pecado. Está
no livre-arbítrio do homem a possibilidade da escolha do mal, mas ele não é em si mesmo a
causa do mal. Com isso, torna-se imprescindível a elucidação do papel desempenhado pela
vontade nas ações humanas, o que implicará numa responsabilidade dos homens pelos seus atos,
visto que, a escolha do mal é feita a partir do livre-arbítrio da vontade presente em cada um.
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segundo é a violação voluntária e livre da ordem desejada por Deus, o pecado.
Agostinho delimita sua busca apenas pela segunda acepção do termo, tarefa que o leva a
afirmar a natureza de Deus2. Toda a discussão se inicia sob os pressupostos da fé cristã3,
visto que, em momento algum se coloca em dúvida a natureza divina. Ora, temos então,
um imperativo para toda obra.
Neste contexto, Agostinho propõe a seguinte questão: “se o mal vem por ter sido
ensinado”4. Isto permite inferir sobre a necessidade de versar a respeito da disciplina
que parece ser, na verdade, mais uma forma de isentá-Lo da culpa do pecado. É através
da afirmação da instrução como uma dádiva de Deus aos homens que Agostinho nega a
possibilidade de provir Dele alguma forma de corrupção. Em linhas gerais, o que o
autor está dizendo é que Ele nos deu um bem maior, cujo objetivo é outro nobre bem,
despertar-nos a ciência. Com isso, não seria então contraditório que através desse bem
obtivéssemos algum mal? É nesta circunstância que vemos pela primeira vez a noção de
mal como o afastamento do caminho proposto por Deus. De onde se segue que, fazer o
mal, não seria outra coisa do que renunciar à instrução (pois a verdadeira instrução só
pode ser para o bem)5.
Após provar a benevolência da instrução, Agostinho mostra o papel de outro
bem que é a inteligência, mas ainda se tratando da impossibilidade de se ensinar o mal.
Esta demonstração é extremamente necessária, visto que, a ação efetiva do aprender não
depende tão somente da instrução, mas também da inteligência. Um silogismo ilustra a
veracidade de suas afirmações: toda a inteligência é boa; quem não usa da inteligência
não aprende; logo, todo aquele que aprende procede bem6. E desse modo, encerra a
discussão sobre a instrução afirmando a impossibilidade de uma ligação entre o mal e o
bem segundo a disciplinam. Ademais, se fosse real esta relação entre o pecado e a
instrução isso afastaria dos homens a culpa e os tornaria meros imitadores. Visto que, se
existisse algum mestre que ensinasse o mal ele mesmo seria o exemplo de seus alunos
que outrora não praticariam por si mesmos o pecado, mas sim, o imitariam.
2
O Livre-Arbítrio I. 1, 1.
3
Diferente do que se vê nas Confissões, onde Agostinho nos mostra sua passagem de uma concepção não
cristã (maniquéia), em busca dos princípios verdadeiros, reconhecidos por ele como cristãos.
4
O Livre-Arbítrio I. 1, 2.
5
O Livre-Arbítrio I. 1, 2.
6
O Livre-Arbítrio I. 1, 3.
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A segunda questão colocada pelo autor diz respeito ao motivo pelo qual agimos
mal7. Agostinho confessa seu antigo interesse nesta busca e remete o leitor ao seu
passado maniqueu. Neste momento, nos parece que Agostinho estaria apontando a falha
de tal doutrina e, ainda, demonstrando os critérios necessários para se chegar a alguma
solução por meio de sua experiência de vida. O que é possível supor através do próprio
relato de Agostinho.
7
O Livre-Arbítrio I. 2, 4.
8
O Livre-Arbítrio I. 2, 4.
9
Isaías 7,9.
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quanto criou, sem sentir necessidade de criar ser qualquer que seja como se não fosse
auto-suficiente10.
Na primeira parte do livro I Agostinho analisa o significado de uma má ação,
isto é, do que se trata, de fato, quando qualifica uma ação como má, e quais são os
critérios para tal qualificação. Segundo Agostinho, uma ação pode assim ser classificada
se aquilo que a motiva for uma paixão, como veremos adiante. Isso nos incita a uma
discussão sobre as leis, com intuito de tornar claro até que ponto pode-se considerar a
lei humana como juíza de nossas ações. Tratemos então, das duas formas de leis
propostas pelo autor: a lei temporal e a lei divina. Para Agostinho, e de acordo com a
concepção cristã, os homens são seres finitos, corruptíveis e mutáveis, por esse motivo é
necessário que sua lei seja da mesma maneira de modo que acompanhe as mudanças
humanas. Em contraponto, a lei eterna é o fundamento da retidão e jamais poderá ser
pensada como injusta e mutável. Devemos ter como regra geral que tudo aquilo que
possui existência justa e legítima na lei humana advém da lei eterna e é em virtude dela
que é justo que todas as coisas estejam perfeitamente ordenadas. É por isso que o
julgamento humano não pode servir de fundamento para qualificação das más ações. O
único meio para se reconhecer uma má ação é encontrando a paixão que reside nesta
ação.
O termo paixão, aqui utilizado, deve ser entendido como algo que inspira os
homens a um amor desordenado pelas coisas terrenas11, o que o faz ter desde o inicio
conotação negativa. Além disso, Agostinho nos diz que, erram todos aqueles que
buscam fora de si, nas coisas exteriores, o mal, pois, é na paixão que está a malícia do
adultério ou do sacrilégio. O que nos remete a mais uma noção de grande importância, a
interiorização. Para Agostinho, é quando o homem se afasta das coisas exteriores,
menos dignas de amor e apego, e entra na cela da tua mente12 que se estabelece um
maior contato com Deus, ou seja, de certo modo, está mais próximo e, como vimos, é
por este mesmo meio que também se afasta mais de seu Criador. Isto porque, a intenção
de uma ação, bem como as paixões, está no interior de cada homem, e não fora de si.
Esta discussão incidirá no papel da vontade humana, e conseqüentemente na real causa
do pecado.
10
O Livre-Arbítrio I. 2, 5.
11
O Livre-Arbítrio I. 4, 10.
12
Mt. 6,6.
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No entanto, ao tratar da vontade livre é de grande relevância que seja seguida a
mesma linha de raciocínio proposta pelo autor. Antes de elucidar a noção de vontade,
busca-se provar a soberania da razão humana e, com efeito, a superioridade dos homens
com relação às demais criaturas. A importância desta discussão está no papel que a
razão desenvolve no cristianismo e na filosofia cristã. A razão é, segundo Agostinho, o
princípio que constitui a excelência do homem, de modo que animal algum consiga
exercer sobre ele sua força13. É devido a essa dádiva de Deus que os homens podem ter
a consciência da vida, e o que é ter consciência de que se vive se não possuir uma vida
mais plena e mais feliz? É, pois, esta qualidade que mantêm, quando usada de maneira
correta, os homens, no mais alto grau da escala dos seres. Não obstante, a razão é
também responsável pelo afastamento da perfeição, isto porque pode ser ignorada por
alguns, ou seja, quando alguém se afasta dos bens e dos caminhos escolhidos por Deus,
este não estará mais tão perto de seu Criador, mas sim, como vimos, distanciando-se e
tendendo ao nada14. Desse modo, aquele que segue o caminho proposto por Deus e se
submete ao domínio da razão é, de fato, um homem perfeitamente ordenado. Além
disso, a razão mencionada aqui, não se refere apenas a uma faculdade por meio da qual
se obtêm algum conhecimento. Na verdade, esta razão possui fortes conotações cristãs.
Com isso quero dizer que a razão tratada por Agostinho não é tão somente um meio
para a busca do conhecimento, mas é pelo uso da razão que chegamos a Deus e, a partir
de então, temos a possibilidade de possuir um conhecimento verdadeiro sobre algo15.
Assim, aquele que possui inteligência, isto é, a faculdade de raciocinar, têm em suas
mãos a possibilidade de uma vida com mais perfeição e esplendor.
Neste sentido, o homem considerado por Agostinho como perfeitamente
ordenado é aquele que, com o uso correto da razão aproxima-se mais de seu Criador, e
estando nesta situação nada, nem mesmo Deus, poderá forçá-lo a submeter-se às
paixões. De acordo com o autor, sábio é aquele a quem a verdade manda assim ser
chamado. Isto é, aquele cuja vida está pacificada pela total submissão das paixões ao
domínio da mente. Logo, nenhuma alma viciada pode dominar outra munida de
virtudes, nem mesmo o Sumo Bem, mesmo que ultrapasse em excelência a mente
dotada de virtude não poderia de modo algum ser injusto. Tampouco, ainda que tivesse
esse poder, Ele não forçaria a mente a submeter-se às paixões. Deste modo, se nem o
13
O Livre-Arbítrio I. 7, 16.
14
A Verdadeira Religião. II. 11, 22.
15
O Livre-Arbítrio I. 11a, 21b.
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que lhe é superior e nem o que lhe é inferior pode trazer a mente virtuosa aos vícios,
resta-nos apenas um único fator capaz de fazê-lo, o livre-arbítrio da vontade.
Por conseguinte, alcançamos o ponto principal do livro I, é através do livre-
arbítrio que podemos realizar àquelas ações onde dominam as paixões. O que nos incita
a um exame das noções de liberdade e do arbítrio. Grosso modo, a liberdade é a
propriedade da vontade esclarecida pela razão, o arbítrio é uma decisão soberana, a
capacidade de produzirmos, como senhores, nossos próprios atos. A partir disso, surge a
necessidade de uma discussão acerca do conceito de boa vontade16. Para Agostinho, a
vontade é um princípio de atividade que reside na natureza humana, uma implicação
necessária pelo fato de o homem ser dotado de razão. Neste sentido, todas as afecções e
sentimentos são manifestações da vontade, tal como os afetos básicos da alma, a
aceitação e a negação. A boa vontade está situada no exercício da escolha das coisas a
serem amadas, e se entendermos que o fim último do ser humano é o regresso a Deus,
esta vontade deve abster-se dos bens menos dignos, para viver uma vida reta e honesta,
segundo os preceitos divinos. Como nos diz Agostinho, é a vontade pela qual desejamos
viver com retidão e honestidade, para atingirmos o cume da sabedoria17.
Outro fator que caracteriza a presença da boa vontade no homem é o uso das
virtudes cardeais, as principais entre as demais virtudes, a saber: a prudência, força,
temperança e justiça. A prudência é a virtude do conhecimento que possuímos das
coisas boas e más. A força é a disposição da alma pela qual são desprezados os
dissabores e a perda das coisas que não estão em nosso poder. A temperança é o que
reprime e mantém nosso apetite do lado oposto das coisas que são desprezadas pela
força. E por fim, a última das virtudes, porém não em ordem de demérito, é a justiça, a
virtude pela qual é dado a cada qual o que lhe é devido. Desse modo, o homem que
possui uma boa vontade conseqüentemente possui e usa tais virtudes, como nos diz
Evódio: confesso que encontramos facilmente naquela pessoa que tanto estima e ama a
sua boa vontade todas essas quatro virtudes, as quais há pouco descrevestes comigo18.
Concluí-se então, que é pela boa vontade que merecemos e levamos uma vida louvável,
e pela vontade que levamos uma vida vergonhosa e infeliz. Assim, todo aquele que quer
viver conforme a retidão e honestidade, se desejar pôr esse bem acima de todos os bens
16
O Livre-Arbítrio I. 11b, 25.
17
O Livre-Arbítrio I. 11b, 25.
18
O Livre-Arbítrio I. 13, 27.
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passageiros da vida, realiza conquista tão grande, com tanta facilidade que, para ele, o
querer e o possuir serão um só e mesmo ato19.
Surge uma dificuldade. Ora, se é pela vontade que levamos uma vida feliz,
porque alguém desejaria, então, viver uma vida infeliz e cheia de infortúnios? O que se
pretende com a introdução dessa questão nada mais é do que afirmar a responsabilidade
dos atos humanos. Agostinho nos dá o pressuposto básico para se alcançar a vida feliz,
ou seja, viver de maneira reta e honesta pelo caminho desejado pelo Criador, privar-nos
dos bens corporais e terrenos considerando-os como indignos de amor.
Há uma inclinação natural do homem para a busca da felicidade, ou seja, não
existe de maneira alguma um homem sequer que deseje uma vida infeliz. Além disso,
como nos diz Agostinho é a busca pela felicidade que move os homens e suas
atividades. É de maneira voluntária que alguns homens escolhem abster-se de
determinados prazeres e é do mesmo modo que outros escolhem opor-se ao desejo
divino. Como sabemos, toda a escolha voluntária implica em atos de justiça, isto é, em
recompensas ou castigos, de modo que ao escolher aproximar-se de Deus, o homem é
merecedor de uma vida feliz e, ao afastar-se dele, merece a desventura. Neste sentido, é
pertinente que sejam feitas algumas considerações sobre àquelas coisas as quais
Agostinho se refere como menos dignas.
Embora seja afirmado em certo aspecto, a existência do mal no âmbito das
criaturas, isso não implica, necessariamente, numa caracterização da natureza humana,
ou das coisas terrenas como más. Ao contrário, podemos confirmar através das palavras
de Agostinho, que nenhum ser vivo, enquanto tal, é mau20, e que todo ser mutável é
também susceptível de perfeição. Pois, assim como denominam mutável o que pode ser
mudado, do mesmo modo chamamos perfectível o que pode receber uma perfeição21.
Todos os seres vêm de Deus e por esse motivo possuem conseqüentemente harmonia e
equilíbrio, além disso, Deus criou todas as coisas muito boas22. Porém, o fato de o corpo
material estar sujeito à morte torna-o mais próximo do não-ser, enquanto a alma só
tende ao mal se abandona Deus em busca dos prazeres materiais.
19
O Livre-Arbítrio I. 13, 29.
20
A Verdadeira Religião. II. 11,21.
21
O Livre-Arbítrio II. 17, 46.
22
Confissões. VII. 12,18.
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Desse modo, o que podemos concluir após esta exposição da maneira pela qual
Agostinho formula a questão do mal, é que este, enquanto ação praticada em contrário
aos desejos divinos, origina-se no uso da vontade livre, do livre-arbítrio. Ademais, é de
considerar a importância que o termo liberdade exerce na filosofia agostiniana, os
problemas que gerados a partir de tal noção, de maneira especial quando se trata da
discussão a respeito dos homens e suas ações. Ora, se temos como pressuposto para a
compreensão de todo sistema filosófico proposto pelo autor devemos crer em um Deus
cristão, ou seja, em uma natureza divina que é reconhecida e afirmada através de seus
atributos, então de que modo podemos considerar o termo liberdade na filosofia de
Agostinho no momento em que esta noção se esbarra com um dos atributos de Deus que
é a presciência?
Referências
______. A Verdadeira Religião. Tradução de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Edições
Paulinas, 1987.
______. A Vida Feliz. Tradução de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Edições Paulinas,
1993.
______. Deus e a Filosofia. Tradução de Aida Macedo. Lisboa: Edições 70, 2003.
______. A filosofia na Idade Média. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 1995.
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