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“OLHARES NEGROS”,
DE BELL HOOKS
Na coletânea de ensaios críticos reunidos em Olhares Negros (2019), bell hooks interroga narrativas e discute a
respeito de formas alternativas de observar a negritude, a subjetividade das pessoas negras e a branquitude. Ela foca
no espectador – em especial, no modo como a experiência da negritude e das pessoas negras surge na literatura, na
música, na televisão e, sobretudo, no cinema –, e seu objetivo é criar uma intervenção radical na forma como nós
falamos de raça e representação. Em suas palavras, “os ensaios de Olhares Negros se destinam a desafiar e
inquietar, a subverter e serem disruptivos”.
“Eu não terei a minha vida reduzida. Eu não vou me curvar ao capricho ou à ignorância de outra pessoa.” – bell
hooks
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Elementos do resumo:
● bell hooks é uma aclamada intelectual negra, teórica feminista, crítica cultural, artista e escritora. Seu nome
de registro é Gloria Jean Watkins, o uso do pseudônimo bell hooks é uma homenagem a sua bisavó, Bell
Blair Hooks, um legado às mulheres fortes de sua vida. O uso das letras minúsculas no nome é um ato
político, para que o foco seja para as suas ideias.
● bell hooks já publicou mais de 30 livros e dezenas de artigos acadêmicos sobre as relações de gênero, raça
e classe, mais especificamente sobre como essas relações são usadas para garantir a perpetuação dos
sistemas de opressão. Entre as influências da autora, além de Martin Luther King, Malcom X e Eric
Fromm, figuram as teorias de educação defendidas pelo brasileiro Paulo Freire.
● De família numerosa – cinco irmãs, um irmão –, pertencente ao que os norte-americanos chamam de classe
trabalhadora, bell hooks usou a própria vida, a vizinhança e a escola como fontes dos seus primeiros
estudos sobre raça, classe e gênero, sempre buscando nesses três elementos os fatores da perpetuação dos
sistemas de opressão e dominação. Seja de brancos contra negros; de homens (mesmo negros) contra
mulheres; de ricos contra pobres.
● Assim como outras mulheres negras, hooks apontou que o feminismo mainstream focava em um grupo
seleto de mulheres brancas, com ensino superior, de classe média e alta, centradas em ideais românticos de
liberdade e igualdade. Ela percebeu que as mulheres negras se encontravam em um dilema: apoiando o
movimento feminista, precisavam abdicar das discussões raciais, e lutando pelos direitos civis estavam à
mercê do patriarcado que o dominava.
● Publicado originalmente em 1992, Olhares Negros foi relançado nos Estados Unidos em 2015, e agora, em
2019, finalmente chega ao Brasil.
● Mais do que uma ideia linear de progresso, o século XX mostrou, pelo triunfo do capitalismo e da
tecnociência, que o projeto de modernidade carrega em seu cerne um projeto de perpétua crise que se fez
sentir por todos os terrivelmente outros, não contemplados por uma concepção de humano e humanismo:
negros, indígenas, asiáticos e africanos. Já o século XXI está sendo marcado por uma época de embates da
ordem do imaginário, uma guerra de imagens e signos, por uma sede de representação e visibilidade da
sociedade do espetáculo. Numa sociedade capitalista inundada por imagens – do cinema à publicidade –
como a norte-americana, hooks teve um material extenso para observar, analisar, criticar e imaginar
narrativas alternativas.
● Considerando essa nova configuração do mundo, bell hooks se dedica a empreender uma crítica dos
produtos e dispositivos da indústria cultural (filmes, livros, programas televisivos, ícones da cultura pop)
que circulam na atmosfera das trocas comunicativas por força das redes de comunicação e expressão.
● Segundo a própria bell hooks, Olhares Negros (2019) trata-se de reflexões que levam a questionar os
pontos de vista, as perspectivas que cortam e recortam nossas visões de mundo, principalmente quando as
telas são emolduradas por pessoas negras e pelos signos da negritude. O foco se desloca das práticas
costumeiras que se dedicam a pensar apenas nos bons e maus conjuntos de imagens. Em suma, o livro
volta-se aos espectadores. Talvez um dos maiores objetivos do livro, ao se voltar para o espectador, seja
implodir as formas de organização do olhar que esculpiram as pessoas negras e os símbolos da
negritude como objetos que se prestam à espoliação e ao consumo.
● Ao apontar o caráter traumático da experiência colonial, realçando o laço indissolúvel entre dominação e
representação, hooks nos oferece o lugar dos gestos de desobediência, da atitude revolucionária para
elaborarmos em prol da emergência de outras ordens de representação que supõem a adoção de outros
olhares. bell hooks não apenas reivindica uma transformação nos modos de ver, mas questiona que olhar é
esse que vê.
● Cada capítulo do livro se mostra como uma plataforma potente pra fazer surgir outro olhar e outros
sujeitos. Os ensaios críticos reunidos em Olhares Negros (2019) oferecem ferramentas teóricas e práticas
para reescrever a história dos dominados; são gestos de desobediência que representam a luta política de
hooks para ampliar as fronteiras da imagem, são ensaios sobre identidade.
4. IDEIAS CENTRAIS DE OLHARES NEGROS:
● Gestos de desobediência.
hooks afirma que, para aqueles que ousam pensar diferente, a questão da raça e da representação não se
restringe a apenas criticar o status quo. É também uma questão de transformar imagens, criar alternativas,
questionar quais tipos de imagens subverter, apresentar alternativas críticas e transformar visões de mundo
afastando-se de pensamentos dualistas acerca do bom e do mau. Abrir espaços para imagens transgressoras
é essencial em qualquer esforço para criar uma transformação. E, se houve pouco progresso, é porque
transformamos as imagens sem alterar os paradigmas, sem mudar as perspectivas e modos de ver.
● O “turista cultural”.
A autora alega que andar com pessoas negras e expressar prazer com a cultura negra se tornou “legal” para
as pessoas brancas, mas a maioria delas não sente que esse prazer deveria estar associado a desaprender o
racismo: “Na realidade, existe com frequência um desejo de aprimorar o status do sujeito no universo da
‘branquitude’, ainda que o indivíduo se aproprie da cultura negra”. hooks afirma que o capitalismo “se
apaixonou” pela diferença à medida que a publicidade prospera vendendo coisas que aprimorem nossas
próprias individualidades (como, por exemplo: férias em locais exóticos do “Terceiro Mundo”, refeições
étnicas congeladas, acessórios culturais diferentes etc.). Por isso, faz sentido que pessoas negras ou
não-brancas se autossegreguem com frequência para se proteger desse tipo de interação objetificante do
que hooks chama de “turistas culturais”.
● Nostalgia do primitivismo.
Massas de jovens insatisfeitos com o imperialismo dos Estados Unidos, com o desemprego, com a falta de
oportunidades econômicas, sofrendo da doença pós-moderna da alienação, sem senso de origens e base,
sem identidade redentora, podem ser manipulados por estratégias culturais que oferecem a Outroridade
como apaziguamento. A crise de identidade contemporânea no Ocidente, especialmente vivida pelos jovens
brancos, é amenizada quando o “primitivo” é recuperado pelo foco na diversidade e no pluralismo que
insinuam que o Outro pode fornecer alternativas que deem sentido à vida. Ao mesmo tempo, diversos
grupos étnicos/raciais também podem aceitar essa noção de distinção, de que as histórias e experiências
uma vez vistas como dignas apenas de desprezo podem ser examinadas como reverência. A apropriação
cultural do Outro alivia os sentimentos de privação e de vazio que assaltam a psique da juventude branca
radical que opta por trair a civilização ocidental. Encontros com a Outroridade são claramente marcados
como mais excitantes, mais intensos e mais ameaçadores. O fascínio está na combinação de prazer e
perigo. No mercado cultural, o Outro é codificado como quem tem a capacidade de ser mais vivo,
guardando um segredo que permite a quem ousa e se aventura romper com a anedonia cultural e
experimentar renovação sensual e espiritual.
● Choque branco ao ver que pessoas negras pensam criticamente acerca da branquitude.
Geralmente brancos reagem com uma incredulidade ingênua quando pessoas negras avaliam criticamente
(a partir de um olhar etnográfico) a branquitude por acreditar que essa forma de olhar, que destaca a
diferença, subverte a crença liberal de uma subjetividade universal (somos todos iguais) que, pensam eles,
fará o racismo desaparecer. Muitos ficam chocados ao ver que pessoas negras pensam criticamente a
respeito da branquitude porque o pensamento racista perpetua a fantasia de que o Outro que é subjugado,
que é sub-humano, não tem habilidade de compreender, de entender, de ver os feitos dos poderosos.
● Já não há um excessivo número de obras e críticas sobre a representação equivocada dos negros nos
órgãos midiáticos? Para que mais um livro como Olhares Negros (2014)?
Segundo bell hooks, há, de fato, um corpus crescente de crítica cultural que explora e desconstrói a
associação entre o auto-ódio internalizado pelas pessoas negras e o consumo constante de representações
odiosas, em especial nos domínios da cultura popular. Só que, apesar da existência desses trabalhos, que
estimulam todos a se manterem criticamente vigilantes em relação às imagens das quais nos cercamos, as
imagens que consumimos na mídia de massa continuam a apresentar ao público global as mesmas velhas
representações prejudiciais. Ironicamente, embora muitas pessoas negras tenham se tornado produtoras,
diretoras e roteiristas, muito do que elas produzem segue os mesmos padrões da cultura dominante
imperialista, supremacista branca, capitalista e patriarcal. hooks afirma: “Nós, que militamos em favor da
causa antirracista, continuamos insistindo que a supremacia branca e o racismo não terão fim enquanto não
houver uma mudança fundamental em todas as esferas da cultura, em especial no universo de criação de
imagens. (...) Infelizmente, parece que não só houve pouco progresso em relação às questões de raça e
representação, mas se aumentou a quantidade de mensagens odiosas. (...) A ausência de mudanças
progressistas gerais na representação racial torna um livro como Olhares Negros atual, necessário”.
● Por que ainda há resistência das pessoas em acreditarem que as imagens reproduzem estereótipos?
Muita gente resiste à ideia de que as imagens têm uma intenção ideológica. Isso também é verdade para o
público negro. Um questionamento crítico implacável às vezes é a única prática capaz de perfurar a barreira
de negação que os consumidores de imagens constroem para não ter que encarar o quanto o mundo real da
criação de imagens é político (e que a política de dominação influencia a forma como a grande maioria das
imagens que consumimos é elaborada e comercializada). Grande parte das pessoas negras não quer pensar
criticamente sobre os motivos pelos quais são capazes de sentar no escuro do cinema e sentir prazer com
imagens que ridicularizam e zombam da negritude. É por isso que os ensaios de Olhares Negros se centram
nos espectadores. Ainda nesse raciocínio, hooks faz um paralelo com Pecola, no romance O Olho Mais
Azul, de Toni Morrison: “as pessoas negras se afastam da realidade porque a consciência é dolorosa
demais. No entanto, só nos tornamos mais conscientes quando começamos a ver com clareza”.
● Em que medida o debate promovido pelo livro da bell hooks não é especificamente norte-americano?
Como pode ser transferido para a realidade brasileira?
É claro que as experiências estadunidenses são diferentes das nossas, mas a gente também pode aprender
muito com as trajetórias de lá. O livro da bell hooks é um clássico e, por ser um clássico, permite que se
fale a partir de uma perspectiva muito diferente da demonstrada na obra pois ele ilumina uma questão que é
geral. E eu diria que não é um problema estadunidense porque a bell hooks vai trabalhar com a imagem da
representação da destituição do olhar de todos os escravizados, então é um livro que pensa toda a diáspora
africana. Então se você pensar, a gente pode dizer “ah, os exemplos são estadunidenses”, mas é esse o lugar
que ela vê o mundo. Agora, dos exemplos que ela dá, ela apresenta chaves explicativas, analíticas e práticas
pra pensar esse fenômeno que é comum a todos os escravizados de pele negra da escravidão transatlântica:
como a subjugação do olhar aconteceu? Então eu acho que a gente nem pode enveredar por esse caminho.
Não é que a gente vá transportar um exemplo ao outro. O problema não são os exemplos, o que importa
para além dos exemplos é como eles podem servir de base para uma dinâmica que é a mesma no Brasil,
que é a mesma em Barbados, que é a mesma em qualquer país que sofreu escravidão. Eu lembro quando
teve a ascensão do rap entre os negros brasileiros e diziam que era uma coisa norte-americana. Só que não,
é nosso. Porque é de todos os negros da diáspora, é uma experiência comum (até porque se fosse por isso o
samba não seria brasileiro, o samba seria africano).
● Poderíamos afirmar que já está acontecendo uma mudança de representação das negritudes na
mídia brasileira?
As indústrias criativas e culturais, para além de perpetuar racismo nas imagens, também continuam se
apropriando da negritude de forma desrespeitosa, sem um engajamento real com a luta anti-racista e sem ao
menos questionar seu papel, importância e responsabilidade. Para a indústria da moda parece ainda mais
difícil aprender com seus repetidos erros e mudar a linguagem que oprime mulheres. Mas encarar os
fantasmas é a única forma de transcender as estruturas atuais. Então o que é que mudou? De fato, muitas
coisas mudaram. Por exemplo: nós temos muito mais conjuntos de imagens. E agora a gente tem um
desafio maior porque os racistas reagiram e reagiram das piores formas: matando do ponto de vista
corpóreo (a mortalidade da juventude negra está aumentando cada vez mais) e também reagiram do ponto
de vista simbólico, das imagens (com o que a gente vê em cada filme, em cada representação). Todos os
dias o governo nos diz “bem vindos ao século XIX”. Então eu acho que esse “bem vindo ao século XIX”
tem uma dimensão racial pois esse retorno se dá por meio de tensões e brigas.
● Em que medida a discussão promovida por hooks não é muito estetizada? A representação não fica
um pouco desequilibrada em relação à política, ao social?
É preciso lembrar que, na concepção de hooks, a estética é política. A representação significa partilha do
sensível. O que se diz quando se fala em partilha do sensível: é que cada um de nós teria a possibilidade de
partilhar o comum e ser sujeito dos destinos de uma coletividade. Isso, mais do que a noção corrente de
estética (que é a arte do belo), é uma operação estética, isso é estetização. Portanto, chamar a obra de bell
hooks como muito estetizante não é nenhum demérito se a gente tomar estética no seu sentido radical. Será
demérito se a gente achar que estética é reducionista, apenas a arte do belo. Mas se a estética for tomada no
seu sentido político, radical, dessa partilha do comum. É pela estética que o jogo político se decide, é pela
estética que se tem corpos ministeriais só com homens brancos, é pela estética que se diz que meninos
usam azul, meninas usam rosa; é ela que aciona qualquer proposta e ação política.
● O que torna bell hooks tão essencial para uma discussão social?
bell hooks é uma feminista, negra, estadunidense, que vem pautando não só questões do feminismo negro,
mas aquelas para pensar uma outra teoria social e política, as pessoas, as nossas subjetividades. Ela e sua
obra caleidoscópica são essenciais em um tempo como o nosso, em que todo o tradicionalismo e o saber
ocidental macho-branco-hétero não comporta mais as emergências de novas subjetividades. Existe uma
reivindicação histórica das mulheres negras do que é o saber e do que é o conhecimento. Racismo,
feminilidades, masculinidades, crítica cultural, educação, descolonização, são tratados por ela de uma
maneira extremamente sensível e acessível, raridade em textos teóricos. Isso amplia e incentiva o acesso ao
tema por parte de pesquisadores, militantes, artistas e todos aqueles que já estão refletindo sobre racismo,
feminismo e descolonização no país. Quando bell nos convoca à reflexão, ela nos propõe uma nova forma
de fazer teoria, ação política, porque, veja, a experiência escravocrata no mundo afetou negros e brancos,
todos nós estamos marcados pela tragédia da escravidão. Se a gente não consegue pensar no capitalismo
hoje pensando também na escravidão, nós não sabemos pensar o capitalismo. Ela nos leva, inclusive, a
entender o presente e suas mazelas a partir do que é o nosso passado, a nossa história. bell hooks é um farol
para renovarmos não só a ação política como militantes, mas como seres humanos: que tipo de humanidade
queremos defender?
● Curiosidade: por que bell hooks escreve seu nome em letras minúsculas?
Para ela, nada tem mais importância do que as ideias e o conhecimento: “o mais importante em meus livros
é a substância e não quem sou eu”. Por isso, bell hooks escreve seu nome desta forma: somente com letras
minúsculas.
“Não fomos vencidas pela anulação social, sobrevivemos à ausência na novela, no comercial. O sistema
pode até me transformar em empregada, mas não pode me fazer raciocinar como criada. Enquanto
mulheres convencionais lutam contra o machismo, as negras duelam pra vencer o machismo, o
preconceito e o racismo.” – Yzalú