CENA 1
Sabiás no exílio
Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá
exige que se leia a alta cultura e a cultura de massas como fenômenos objetivamente
relacionados e dialeticamente interdependentes:
CENA 1
A comédia como documento e caricatura
Na loja improvisada, vendem-se cédulas eleitorais (votos), porretes, revolveres, espadas e rifles. Para os
compradores interessados, o cartaz informa que, neste “bazar eleitoral”, “não se fia”, isto é, não há
crédito. As armas à venda na charge, mostram o clima de violência das eleições da época do segundo
reinado, confirmada pela frase “não se fia”, isto é, o processo eleitoral não é confiável.
O caricaturista desenhou Pedro II como o eixo de um carrossel no qual giram os cavalinhos. Na barra do
vestido da dama no cavalinho, lê-se “Partido Liberal”. Em oposição, o homem da charge representa o
Partido Conservador. Quem gira o carrossel é uma idosa em cujo vestido está escrito “diplomacia”. Tal
como um carrossel, os partidos políticos giravam, isto é, revezavam-se no poder ao redor de D. Pedro II. A
diplomacia se limitava a uma troca de favores e de distribuição de títulos, cargos e pensões.
5
Carregando sacos de dinheiro, clientes compram medalhas e títulos de nobreza que estão expostas na vitrine
atrás do balcão. O vendedor na charge é o primeiro-ministro, observado pelo imperador, atrás dele. Aos pés
deste, um indígena, símbolo da nação brasileira, esconde o rosto entre as mãos. A charge possui a seguinte
legenda: “Pobre país! A corrupção alimenta a vaidade, para dar vida ao patriotismo!”. A venda de comendas
(títulos de nobreza, cargos políticos e pensões para políticos e seus filhos), feita sob anuência do imperador,
era uma forma de manipulação política e de aumentar as receitas do governo no segundo reinado, O QUE
ENVERGONHA A NAÇÃO, REPRESENTADA PELO INDÍGENA.
(fonte das imagens: http://www.ensinarhistoriajoelza.com.br/caricaturas-do-segundo-
reinado-critica-com-humor-e-ironia/ )
CENA 2
Tentativa de definição
A comédia de costumes tem suas raízes fincadas na Grécia Clássica,
especificamente na Comédia Nova, que insere características cotidianas no modelo
clássico de Aristófanes. Segundo John Gassner, a Comédia Nova seria marcada “pela
repetição de rapazes apaixonados por moças, rapazes perturbados pelo comportamento
dos filhos, servos intrigantes que assistem a um ou outro lado e parentes perdidos há
muito tempo”( GASSNER, Mestres do teatro I, p. 105-106), além da presença do amor
romântico, inexistente no teatro cômico até então.
A comédia de costumes teria sido inventada no Brasil por Martins Pena, que soube
adaptar peças estrangeiras para o gosto local. Esse tipo de espetáculo predominou no
Brasil, “dando origem à nossa única tradição teatral: a comédia de costumes”, conforme
sintetiza Décio de Almeida Prado em História concisa do teatro brasileiro.
Tragédia e drama haviam sido tragados pelas sucessivas ondas do teatro musicado.
Nesse sentido, o naturalismo, corolário do realismo, nunca chegou a existir no Brasil.
Restava, portanto, para os autores nacionais, como gênero comercialmente viável, a
comédia. Esta, de acordo com a poética clássica encarnada por Molière, podia
inclinar-se seja para o estudo psicológico (O avarento), seja para a descrição de
costumes (As preciosas ridículas), seja para as complicações do enredo (As
artimanhas de Scapin). Em Martins Pena encontrava-se, em germe, um pouco dessas
três possibilidades dramatúrgicas, que, evidentemente, não se excluem. Foi a
6
segunda que predominou no Brasil, dando origem à nossa única tradição teatral: a
comédia de costumes. (grifo nosso, p. 119)
CENA 3
Tomaremos a comédia de costumes de Martins Pena não como uma forma teatral
superficial ou apenas documental, mas como uma espécie, bastante particular, de
“dispositivo óptico” (como diria Jonathan Crary), que reflete, expressa mas distorce, por
suas lentes, a forma do drama burguês. Em vez de enquadramento e de formação do olhar,
como no drama burguês original, há distorção e deformação. Precisamente por sua
esquisitice e superficialidade – quando comparado ao modelo original europeu – a
comédia de costumes de Martins Pena, em vez de apenas contribuir para a adaptação do
observador à ordem da racionalidade burguesa e, por fim, à era da indústria avançada,
adaptação realizada pelo olhar quando se habituou a perceber a realidade como uma
realidade de objetos e, portanto, formada por mercadorias, em Os dois ou o inglês
maquinista o que rasura e perfura o olhar do observador brasileiro é a presença da
escravidão, que nega a força ideológica (propagada pelo drama europeu burguês) que
animou os mitos dos direitos do homem, o direito à igualdade e à felicidade como
fantasmagorias universais.
Ao inserir escravos e um traficante de escravos – chamado Negreiro – no sistema
importado do drama burguês, Martins Pena destrói o panorama de equivalência e de
equalização dos conflitos e, mesmo após o desfecho feliz de sua peça, ao terminar de
observá-la temos os olhos de Édipo, vazados em sua antiga cegueira para fazer entrar a
luz negativa das sombras. Não por acaso, os escravos expostos em cena não agem e não
falam: este, um óbvio procedimento mimético, não acomoda - se à representação óptica
dramática, mas a destrói: como é possível construir um diálogo entre sujeitos iguais e
autônomos com um escravo em cena? A escravidão corrói a ideologia liberal e o modo
de produção capitalista, no plano maior do país, assim como impossibilita também o
reflexo de uma realidade passível de ser superada por meio do diálogo e da ação: a
escravidão despedaça a lente dramática e expõe a realidade brasileira como pura
negatividade, como contradição insuperável.
Este equilíbrio dramatúrgico é trincado, no instrumento óptico brasileiro, quando
no drama de Martins Pena vemos surgir os escravos, mudos, imóveis, mas aptos a romper,
8
pelo dissenso de sua existência antiliberal, a estrutura linear, que busca o consenso, do
diálogo e da ação:
ENTRA NEGREIRO ACOMPANHADO DE UM PRETO DE
GANHO COM UM CESTO Á CABEÇA COBERTO COM UM
COBERTOR DE BEATA ENCARNADA.
NEGREIRO - Boas noites!
CLEMÊNCIA- Oh, pois voltou? O que traz com este preto?
NEGREIRO - Um presente que lhe ofereço.
CLEMÊNCIA- Vejamos o que é.
NEGREIRO - Uma insignificância... Arreia, pai. NEGREIRO AJUDA
AO PRETO A BOTAR O CESTO NO CHÃO. CLEMENCIA,
MARIQUINHA CHEGAM-SE PARA JUNTO DO CESTO, DE
MODO QUE ÊSTE FICA A VISTA DOS ESPECTADORES.
CLEMÊNCIA- Descubra. NEGREIRO DESCOBRE O CESTO E
DÊLE LEVANTA-SE UM MOLEQUE DE TANGA E CARAPUÇA
ENCARNADA, O QUAL FICA EM PE DENTRO DO CESTO. Ó
gentes!
MARIQUINHA - AO MESMO TEMPO Oh! FELÍCIO - AO MESMO
TEMPO Um meia-cara.
NEGREIRO - Então, hem? PARA O MOLEQUE - Quenda, quenda!
PUXA O MOLEQUE PARA FORA
CLEMÊNCIA- Como é bonitinho.
NEGREIRO - Ah, ah! (MARTINS PENA, Os dois ou o inglês
maquinista, p.188)
Além disso, Rabetti também identifica a presença crescente, nessa segunda etapa
de desenvolvimento da comédia de costumes, de elementos épicos de encenação,
retirados de outros gêneros de entretenimento como o musical e o rádio:
dos governos locais. De 1872 até 1921 - ano da peça de Gastão Tojeiro que escolhemos
para analisar na aula - , 2 milhões de imigrantes chegaram ao Brasil. O nacionalismo que
é conteúdo da dramaturgia, não expressa, assim, como quer Claudia Braga, uma
insegurança social: “ por medo das possíveis consequências do salto para um outro Brasil
e sem conseguir, ainda, estabelecer onde se encontra a tão buscada brasilidade , a
sociedade, pelo que se observa de acordo com a dramaturgia da época, opta por mantê-la
dentro do bastião que havia sustentado o país durante todo o império: a estrutura
agropastoril” (Em busca da brasilidade, p. 21). Salvo engano, Onde canta o sabiá
expressa a defesa, autoritária, da classe média do centro do país de sua posição no modo
de produção escravista, recém extinto. O nacionalismo representa aqui a recusa do outro
e a preservação de postos de trabalho que se viam ameaçados coma chegada do grande
número de imigrantes.
A peça antecipa o autoritarismo da classe média urbana que, anos depois, uniria-
se aos setores oligárquicos para apoiar o estado Novo. Eric Hobsbawm, um dos autores
que trabalham com a concepção de modernidade das nações, ressalta que o sentido de
“Estado-nação” apresentado antes da Primeira Grande Guerra estava comumente
relacionado com a idéia de que esta deveria ser “una e indivisa”.
Para definir essa nação como uma “unidade política e nacional congruente”, o
regime de Vargas, segundo Lúcia Lippi, sustentou-se em três eixos principais que
marcaram o pensamento dos anos 30 e se fizeram igualmente presentes na doutrina do
Estado Novo: o elitismo, o conservadorismo e o autoritarismo. Segundo os ideólogos do
Estado Novo, Francisco Campos e Azevedo Amaral, somente uma elite intelectual seria
capaz de interpretar os sentimentos e os interesses do povo e, ao mesmo tempo, discipliná-
lo. No pensamento “estadonovista”, a elite aliada ao chefe da Nação seria o elemento
propulsor da ordem que se pretendia estabelecer e que aparece em contraposição à
desordem instalada no País com a República Velha, a difusão das ideias comunistas, os
mitos defendidos pelo liberalismo democrático de sufrágio universal, as liberdades
políticas e o pluripartidarismo. A eliminação do caos precisava de um líder e das elites
para a formulação de um estado de ordem. A ordem era uma das facetas do
conservadorismo que se instalou no País com o golpe de Vargas, que tinha também a
tradição e a hierarquia como pontos desse projeto. Na visão dos ideólogos, o conceito de
democracia também passou a ser atrelado a uma organização hierárquica da sociedade.
Campos e Amaral concordavam que o espírito da ordem possui uma natureza de caráter
não somente psicológico como fisiológico – características comuns às correntes de
pensamento do final do século XIX. Esse pensamento fez com que Azevedo Amaral
classificasse o homem em duas categorias: os que não conseguem se manifestar na ordem
e os que possuem o instinto da ordem mais desenvolvido, como o núcleo duro da família
presente na peça de Tojeiro.
O Estado Novo concebeu uma política nacionalizadora preocupada com o
problema das minorias étnicas, lingüísticas e culturais que haviam se instalado no Brasil,
desde o século XIX. Como a maioria das nações modernas, o projeto nacional
estadonovista pensou o Brasil em termos de uma “unidade política e cultural congruente”,
além de entender que a Nação tem como função mediar e reduzir o conflito e a tensão na
sociedade. Uma das principais propostas do Estado Novo era a formação de uma “raça
homogênea” e um “povo integral”, visando à uniformização do homem brasileiro para a
realização do progresso material e moral do País. Por conta dessa proposta, o Governo de
Vargas elaborou uma política de proteção à família, ao trabalho e à pátria, por meio da
educação e do controle da imigração. Outra medida foi um projeto contra a entrada de
estrangeiros a fim de promover o abrasileiramento dos núcleos de colonização. Por isso,
o Estado Novo tentou dar continuidade a uma política de interação racial e assimilação
14
cultural feita pelo Governo pela legislação e pela repressão. O Estado Novo desempenhou
o papel de promover o “artefato” que é a “comunidade imaginada”. Percebemos que
alguns valores construídos naquele período, tais como: a idéia de “democracia racial” e
elementos culturais, permanecem como princípios definidores da brasilidade.
No plano da forma, a peça expressa essa situação ao apresentar, no espaço fechado
e abrigado do lar, uma família que é “invadida” o tempo todo por elementos estranhos ao
seu ambiente indiviso. Logo na primeira cena, o trabalhador surge como elemento externo
que desestabiliza a paz familiar:
JUSTINO
(FALANDO PARA BAIXO) – Olha, Leocádio, faz o seguinte; afrouxa
um pouco o parafuso da tesoura senão você não acaba de cortar a grama desse
canteiro.
LEOCÁDIO
(DENTRO, COMO QUE FALANDO DO JARDIM) - Não posso. O
parafuso está muito apertado.
JUSTINO
- Está apertado? Pois desaperta-o com o torquês...(PAUSA) Assim não!
... Ao contrário... Torce para o outro lado... (...)
JUSTINO
(DO ALPENDRE FALANDO PARA BAIXO) - O melhor é você fazer
o seguinte: traz essa coisa cá acima, que eu lhe dou um jeito. (DESCENDO AO
CENTRO DA CENA) Esse Leocádio é tapado como uma porta sem fechadura!
INÁCIA
(A JUSTINO) – Você também arranja cada empregado p’ra casa...
FABRINO
- Não parece ser mau rapaz.
INÁCIA -
Mas é muito vagaroso e custa a compreender tudo que se lhe manda fazer.
JUSTINO -
A coisa é a seguinte; quando a gente os mete em casa não se sabe o que
eles são.
A canção, interrupção épica do drama, ameaça entrar em cena por diversas vezes,
mas não entra. O tecido uno do drama burguês se protege, como a família de personagens.
Mas protege-se fechando-se não só aos detritos épicos, enclausura-se também à própria
possibilidade de ação. A dificuldade estava em que, além de a família burguesa viver
aterrorizada e imobilizada, o que corroía os conflitos e peripécias cômicas, tão presentes
na primeira fase da comédia de costumes, em Martins Pena, por exemplo, agora a
imigração e os escravos libertos representavam uma ameaça a ser combatida. A forma
dramática não estava imune desse esfacelamento, mesmo na comédia ligeira. A inação é
a tônica geral:
INÁCIA - Deus o abençoe... Então, arranjaste alguma coisa?
ERNANI - Qual o que? Levei mais de duas horas a esperar o ministro. Ele não
apareceu, “dei o fora”.
INÁCIA - E por que não esperou mais?
ERNANI - (APANHANDO OS HALTERES) Quem sabe se eu sou criado do
ministro para ficar à espera até a hora que ele se resolva chegar? (COMEÇA A
FAZER EXERCÍCIO).
VIRGÍNIA -
Mas você não necessita arranjar um emprego?
ELVIDIO - Mas como tudo isto é prosaico! Uma esposa, uma cunhada, uma casa no
subúrbio... Um sabiá que canta... O que eu não posso compreender é como tu, um
espírito emancipado, que abominava toda essa coisa, acabasse sucumbindo como
qualquer burguês de ideias atrofiadas! Se me contassem, eu não acreditaria. É
pasmoso!...(...)
Sala modesta, em andar superior, em casa de Justino, situada num subúrbio do Rio
de Janeiro. Uma grande porta ao fundo, no centro, que dá para um espaçoso
alpendre tendo de cada lado uma janela de peitoril. A sala tem mais duas portas de
cada lado, todas praticáveis, comunicando a D.A. com os dormitórios; a D.B. com
o quarto de Justino; a E.B. com a escada interior pela qual se desce para o andar
térreo; a E.A em comunicação com as outras dependências da casa.
(exibir vídeos)
Dividir os alunos em quartetos. Devem criar uma instalação, por meio da montagem de
materiais visuais e sonoros, a partir de uma das cenas de Gastão Tojeiro, discutidas na
primeira parte da aula. Todos percorrem as instalações criadas e escolhem uma delas,
diferente da montada pelo próprio grupo, para a segunda etapa do experimento. A partir
da relação espacial com a instalação, e nesse espaço, devem apresentar uma cena teatral
cômica que só pode utilizar-se das palavras do texto de Tojeiro. Perguntas de avaliação:
Em que medida foi possível encontrar traços épicos e do drama moderno nas cenas
realizadas? Quais características da comédia de costumes foram empregadas pelos
grupos?