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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO - USP

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES – ECA

DEPARTAMENTO DE ARTES CÊNICAS – CAC

PROJETO UNIFICADO DE BOLSAS – PUB

RONALDO CESAR FOGAÇA

RELATÓRIO FINAL DO PROJETO

“MEDIAÇÃO TEATRAL: CAMINHOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA”

SÃO PAULO

2019
NÃO-RESUMO: Em 22 anos de existência eu sempre fui uma pessoa
acompanhada pela preguiça e pelo ócio. Como estudante eu constantemente
arrumo formas de driblar meu cansaço e lidar com minha falta de energia. Por
esse motivo, resumos são peças que não podem faltar em um texto. Na minha
cabeça preguiçosa eu penso ”Por que ler 200 páginas se posso me contentar
com um resumo de 2 parágrafos?”. Eu sei. É um pensamento mesquinho. Mas
ele me fez refletir sobre quais são as necessidades de um resumo. Não acho
justo começar um texto falando em poucas linhas o que foi a pesquisa. O
relatório aqui presente já consiste em um resumo do que foi a experiência de
pesquisa na prática. Fora que um resumo tradicional estaria cheio de “spoilers”
que talvez tirem a vontade de muitos preguiçosos que, assim como eu, por
vezes se contentam com um bom resumo. Pensei em chamar essa parte do
texto de “convite ao leitor”, “dedicatória”, “sinopse” ou qualquer outra coisa,
mas no fundo ela só não é um resumo. Se você realmente precisa de um
resumo, não se preocupe, ele estará no anexo ao fim do relatório. Mas antes,
(in)felizmente você terá de folhear e passear pelas páginas do texto até
encontrá-lo. Divirta-se.

PALAVRAS-CHAVE: Mediação Teatral, Formação de Espectador, Educação,


Arte, Fruição.
1

1. SOBRE INCÔMODOS E TEATRO - APRESENTANDO O PROJETO


“MEDIAÇÃO TEATRAL: CAMINHOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA”

IN.CO.MO.DAR1

1 - Causar ou sentir mau humor, aborrecimento, irritação.

2 - Dar-se a qualquer incômodo.

3 - Causar ou sentir incômodo.

Antes de começar, gostaria de propor um jogo

Sim, é isso mesmo que você leu: um jogo. Eu sempre fui fascinado por criar
situações de jogo, então pensei “por que não começar esse texto convidando
meus leitores e leitoras para um jogo?”. Seria um jogo mais interessante se eu
estivesse aí compartilhando o mesmo espaço e tempo que você.
Provavelmente eu iria propor um jogo teatral, corporal ou até rítmico. Mas,
como nossas circunstâncias concretas não permitem, tentaremos estabelecer
relações de outra forma. Batizarei esse jogo de “Os incomodados que se
mudem”.

Ao final desse parágrafo, peço que você interrompa por alguns minutinhos sua
leitura e pense em três pequenas coisas que te incomodem. Sabe aquelas
coisas que te deixam com uma pulga atrás da orelha? São elas mesmas que
estamos buscando para nosso jogo. A regra é simples: você vai fechar os olhos
e pensar em como acabar com esse incômodo, como se livrar dele. Para dar
um ar de competitividade, eu estarei jogando com você e pensarei também na
solução para meus três incômodos. Vence aquele que conseguir resolver seus
problemas primeiro. Preparada (o)? Em Três... Dois... Um. Valendo!

...

1
Significado de Incomodar. Dicionário Aurélio Online, 2019. Disponível em:
<https://dicionariodoaurelio.com/incomodo>. Acesso em: 16 de Jul. de 2019.
2

Pronto. Agora vamos compartilhar nossos incômodos para ver quem venceu
esse divertido e intrigante jogo. Eu começo! Meu primeiro incômodo é em
relação ao uso do acento crase. É fato que acentuação na língua portuguesa
sempre foi algo extremamente complexo para minha pessoa. Mas poxa, eu
estudei a vida inteira em escola pública e lá não me deram nenhuma aula
sobre crase. Até posso colocar no anexo desse relatório uma cópia digital dos
meus boletins da escola com o registro das minhas boas notas em português.
Tudo isso para provar que a culpa da ausência da crase não é minha. Mas não
acho justo culpar a escola onde eu estudei, ou o simpático professor Haroldo
com quem eu aprendi muito sobre literatura (mas nada sobre crase). E também
é besteira ficar aqui divagando sobre a culpa do sistema educacional brasileiro
nas minhas letras “a” sem crase. O fato é que a crase me gera um incômodo e
para solucioná-lo, vou parar de reclamar e fazer algo concreto para tentar
mudar isso: proponho que por hora vamos suspender o uso correto desse
acento. De agora em diante leitores e leitoras, não usarei crase e, num ato de
rebeldia (porque para mim, toda rebeldia nasce de um incômodo), adotarei o
uso do acento trema. A meu ver, um acento muito mais simpático e
interessante que foi injustamente renegado pela academia de letras2.

Meu segundo incômodo é com essa cadeira na qual estou sentado agora
mesmo digitando este relatório. Poderia ficar aqui discorrendo sobre como ela
é dura, tem um encosto formatado de forma a prejudicar minha coluna ou sobre
como ela tem pernas tortas que me fazem ficar balançando
desconfortavelmente. Ao invés de desperdiçar mais linhas desse texto
reclamando, vou solucionar esse incômodo levantando meu traseiro dessa
cadeira e me sentando num outro canto. No próximo parágrafo prometo não
voltar mais nesse assunto. Resolvido. Seguiremos tranqüilamente com o texto.

Meu terceiro incômodo é com o teatro.

Não me leve a mal, eu até gosto dele. Gosto tanto que o escolhi como minha
futura profissão. Mas é inegável dizer que ele me causa alguns momentos de
aborrecimento e irritação. Comecei a fazer teatro tarde, aos 16 anos. Foi tarde

2
Aos amantes e fervorosos defensores da norma culta da língua, peço para que não se
preocupem. Ao final desse item e a partir do começo do próximo intitulado “Meu caro amigo
engenheiro, eis aqui um projeto” espero voltar às normas cultas da língua portuguesa.
3

desse jeito porque nunca me deram oportunidade. Antes disso eu até tinha
tentado, mas a mim foi dito que faltava talento, desenvoltura, voz e tantas
outras qualidades que só os artistas de verdade possuem. Talvez por teimosia
eu tenha entrado num curso de Artes Cênicas. Mas o fato é que dentro de uma
das maiores universidades da América Latina eu matei a mosca que me
atormentava: atuei, dirigi, fiz cenário, figurino e até ergui as cortinas para uma
peça começar. Continuo tendo talento nenhum, mas isso não me impede de
ser artista. Talvez esse incômodo tenha me trazido até a licenciatura. Acreditar
que todas as pessoas podem comunicar e expressar através do teatro é algo
que mata a pulga que vive me causando coceira na orelha esquerda.

Já a que vive na orelha direita é mais forte. Se por um lado eu aprendi a me


jogar no campo da criação, solucionando parcialmente meu aborrecimento, do
outro, um incômodo maior foi surgindo. Eu detestava assistir teatro.

No começo era uma sensação de desconforto. Recordo de assistir no primeiro


ano de graduação a produção cênica de uma colega veterana. A proposta da
encenação era completamente desconstruída se comparada com as peças
assistidas por mim até então. No espetáculo os atores faziam de tudo: vestiam
máscaras de bode enquanto carregavam bandejas com cupcakes, construíam
imagens extremamente violentas tendo ao fundo a projeção de vídeos
aleatórios, corriam nus ao som de uma música em um volume ensurdecedor.
Ao final da apresentação eu não tinha entendido nada, sentido nada e gostado
de nada.

Com o passar do tempo isso foi me incomodando ainda mais. Ao final de


qualquer espetáculo eu escutava debates fervorosos sobre as mais diferentes
peças que, para mim, comunicavam pouca coisa. E o incômodo aumentava
conforme eu ia percebendo que nas produções, não só nas universitárias como
também nas assistidas espalhadas pela cidade de São Paulo, existia uma
carência de público. E a plateia basicamente era composta por pessoas que já
faziam teatro. Isso realmente me tirava o sono.

Foi então que em 2016 eu entrei para o projeto, que na época se chamava
“Construir pontes: atividades de criação, fruição e mediação teatral”. Foi nele
que encontrei possíveis curas e complicações para todos os meus incômodos
4

com teatro. Enfim, para avançar na minha luta incessante contra meus
incômodos com o teatro, escrevo este relatório. Nele pretendo compartilhar
com você minhas dores, dúvidas, reflexões e algumas tentativas de solucionar
meus problemas, principalmente os que dizem respeito ao ato de ser
espectador.

Mas isso não basta.

Algo que eu aprendi em três anos nesse projeto é que não é só o “artista” ou o
“autor” que tem algo a dizer. Você que está lendo, assistindo ou contemplando
também têm seus incômodos, suas visões, suas criações. E para essa
pesquisa, elas também interessam. Então voltemos ao nosso pequeno jogo.

O que você faz com aquilo que te incomoda?

Digo tudo isso para lhe fazer um convite: se algo nesse texto te incomodar,
faça alguma coisa! Rabisque a página e escreva algo novo, imprima o texto e
faça aviõezinhos de papel para lançar num dia nublado. Entre em contato
comigo3 e vamos compartilhar nossos problemas juntos. Nós dois sairemos
ganhando nesse jogo. Parafraseado Viola Spolin “Solucionar problema para
arrumar problemas”. Como no espetáculo, que assisti recentemente com os
alunos do oitavo ano, espero que essas palavras ecoem em nossas cabeças.

TODOS OS ATORES E ATRIZES: Incomode-se,


incomode-se, incomode-se. (blackout, final da peça).4

Meu caro amigo engenheiro, eis aqui um projeto.

Peço licença para te contar um caso íntimo.

Eu estava em uma tarde ensolarada de sábado caminhando com um colega


pelas avenidas do campus. Tínhamos acabado de nos conhecer e
conversávamos sobre aleatoriedades da vida. Um encontro qualquer entre dois
jovens universitários. Eu, licenciando em Artes Cênicas e ele terminando o

3
Criei esse e-mail chamado incomodados.que.se.mudem@gmail.com. Responderei todas as
mensagens enviadas nesse endereço.
4 Cena final do espetáculo “Utopia numa noite de inverno” da Cia. Lúdica de teatro.
5

curso de Engenharia Química. Dado momento da conversa, resolvo fazer a


seguinte pergunta “Ah e o que você pesquisa?”. Ele pacientemente me
responde que trabalha com a pesquisa de criação material com vidros que
armazenam algum tipo de energia. Suas respostas me pareciam meio
mecanizadas, como se ele tivesse decorado um discurso e o repetisse pela
centésima vez. Eu acenava com a cabeça enquanto fingia que estava
entendendo minimamente alguma coisa do que ele dizia. Mas na verdade a
minha mente foi parar na estratosfera, pensando em como aquilo não me fazia
sentido algum.

Eis então que ele me devolve a pergunta: “E você? O que pesquisa?”.

Buuum! A pergunta me fez cair de cara no chão. Desconcertado, respondi da


forma mais embaraçada possível “Eu pesquiso mediação teatral”. Logo após a
resposta o silêncio perpetuou por alguns segundos. Até que ele, da forma mais
simpática possível, me perguntou: “O que diabos é isso?”.

Foi complicado explicar ao menino o que era mediação teatral. Meu primeiro
impulso foi entregar uma série de textos sobre o tema na mão dele e
desaparecer. Mas com algum esforço, comecei uma enxurrada de explicações
simplistas sobre o que era mediação e como que eu trabalhava com isso na
prática. No final, nem eu mesmo estava entendendo minha pesquisa. Terminei
minha fala de aproximadamente cinco minutos engatando um “e basicamente é
isso, entendeu?”. Ele acenou com a cabeça e começamos a falar sobre as
capivaras do campus.

Ninguém havia entendido a pesquisa de ninguém.

Isso me gerou certa aflição, porque para mim, a pesquisa realizada no projeto
“Mediação teatral: caminhos na educação básica” não é algo extremamente
complexo de se compreender e tenho pra mim entendido sua importância e
relevância. Porém, quando tive a oportunidade de compartilhar minhas
experiências e descobertas para uma pessoa que não fosse da área, minha
cabeça entrou numa espécie de vórtex onde nada mais fazia sentido. Será que
minha pesquisa pode ser acessível para pessoas que não fazem parte da
6

pequena família de entendedores de teatro? Bom, prometo fazer um esforço


para que a resposta seja afirmativa.

Pois então, sem mais delongas, apresento a vocês engenheiros, médicas,


costureiros, professoras, dentistas, operárias, acrobatas ou qualquer que seja
sua área de trabalho. Eis aqui um projeto.

Começaremos pelos nomes. O projeto, ao longo de sua existência, já teve


três. Atualmente ele se chama “Mediação teatral: caminhos na educação
básica”. Mas ele já foi chamado de “Construir pontes: atividades de criação,
fruição e mediação teatral” e “Mapear caminhos: atividades de criação, fruição
e mediação teatral”. As transformações do nome se deram basicamente pelo
fato da pesquisa ir cada vez mais se aproximando das questões referentes à
mediação teatral. Todas as edições do projeto foram financiadas por um
programa da Universidade de São Paulo (USP) chamado “Programa Unificado
de Bolsas de Estudos para Apoio e Formação de Estudantes de Graduação.
(PUB-USP).”

O projeto conta atualmente com uma equipe composta pela docente Profª. Drª.
Maria Lúcia de Souza Barros Pupo5, pela professora de Arte-Teatro da Escola
de Aplicação Adriana Oliveira 6 e pelo estudante de Licenciatura em Artes
Cênicas, Ronaldo Fogaça7 (eu mesmo, o autor). Outros estudantes já
passaram pelo projeto em suas edições anteriores. Mais recentemente, a
edição do projeto era composta também pela aluna Marina de Abreu 8, mas por
motivos de força maior, ela optou pelo desligamento de sua participação na
pesquisa em Maio de 2019.

Esse projeto realiza ações que impactam a vida dos alunos da Escola de
Aplicação (principalmente daqueles que estão em séries nas quais a aula de

5 Maria Lúcia de Souza Barros Pupo é professora titular da Universidade de São Paulo e vem
atuando tanto na área de Licenciatura em Artes Cênicas quanto no programa de Pós-
Graduação em torno dos seguintes temas: pedagogia, formação, teatro contemporâneo, ação
cultural e mediação teatral.
6 Adriana Silva de Oliveira é professora de Arte – Teatro da Escola de Aplicação desde 2012.

Licenciada em Educação Artística com Habilitação em Artes Cênicas pela Universidade de São
Paulo, a professora atualmente também é aluna de mestrado da mesma instituição.
7 Ronaldo Fogaça é aluno quintanista do curso de Licenciatura em Artes Cênicas pela

Universidade de São Paulo.


8 Marina de Abreu é aluna quartanista do curso de Licenciatura em Artes Cênicas pela

Universidade de São Paulo.


7

Arte-Teatro está presente na grade curricular) e de alguns alunos do


Departamento de Artes Cênicas. Para dar continuidade a esse relatório,
seguirei apresentando as duas instituições fundamentais ao projeto. Logo após
faremos uma pequena revisão sobre o conceito de “mediação teatral”. E por
último retomarei questões deixadas em aberto no segundo semestre de 2018 e
que nortearam essa pesquisa que pretendo compartilhar aqui. Dessa forma
espero que você, leitor (a) conheça mais de perto as particularidades desse
projeto de forma a sensibilizar-se pelas questões levantadas aqui.

Ah e para encerrar o causo, nunca mais me encontrei com o garoto


engenheiro. Mas acho que agora ele se interessaria mais pelo meu trabalho.
Se um dia ele chegar a ler esse relatório, deixo o convite para me contar suas
inventividades com o vidro. Ficaria encantado em saber mais sobre.

Um caminho de 1,6 Km: do CAC à EA

Imagem 1: Mapa da distância entre o CAC e a EA, contendo o tempo da caminhada a pé entre
um à outro. Fonte: Google Maps.

O mapa acima nos mostra a distância entre duas instituições. Localizadas


dentro do campus da Universidade de São Paulo, tanto o Departamento de
Artes Cênicas (CAC) como a Escola de Aplicação da Faculdade de Educação
(EA-FEUSP) são os principais pilares do projeto. O percurso de 1,6 km também
está fortemente presente. Semanalmente, os alunos bolsistas percorrem o
caminho do CAC à EA. Em alguns momentos, o projeto prevê a saída dos
alunos da EA até o CAC para assistir espetáculos teatrais. Em outros
momentos até mesmo a Profª. Drª. Maria Lúcia Pupo encontra-se com toda a
8

equipe do projeto nas salas de aula da EA. Isso mostra que esse projeto
estabelece trânsitos, pontes, e relações valiosas que contribuem para a
formação em diferentes camadas.

Agora, apresento-as isoladamente. O Departamento de Artes Cênicas (CAC-


USP) foi criado no ano de 1986 e atualmente é um importante centro de
pesquisa, principalmente no campo de teatro-educação. É grande o número de
estudos realizados por alunos da graduação e pós-graduação que influenciam
fortemente os pensamentos contemporâneos sobre a pedagogia do Teatro
assim como seus inúmeros desdobramentos. Também é notório o avanço das
pesquisas que investigam as artes da cena como um agente capaz de ser e
gerar experiências de aprendizados para iniciados ou não na linguagem teatral.
Assim, o campo da pedagogia do teatro expande-se para além da formação de
professores do ensino formal e passa a abrigar outras possibilidades como
ação cultural em diferentes contextos, mediação teatral e formação de
espectadores.

Imagem 2: Foto do Departamento de Artes Cênicas. Fonte: ECA-USP

O curso de Licenciatura em Artes Cênicas busca formar professores e


pesquisadores aptos a criar e pensar a relação entre as artes cênicas,
9

educação e sociedade. Para isso, o curso propõe um rico estudo teórico e


experiências de estágios voltadas para a observação de aulas. Porém, em
minha visão de aluno, são perceptíveis algumas lacunas, principalmente acerca
da experiência prática dentro da sala de aula: muitas vezes ela acontece
apenas no último ano da graduação. O projeto “Mediação teatral: caminhos
para a educação básica” oferece uma oportunidade na qual os alunos de
licenciatura possam desenvolver uma prática de regência supervisionada.
Assim, trocas entre os alunos bolsistas e a professora titular da escola
fornecem experiências, diálogos e reflexões fundamentais para a formação dos
alunos do departamento.

Outro espaço que contempla o projeto é a Escola de Aplicação. Vinculada à


Faculdade de Educação da USP (FE-USP), a Escola de Aplicação é uma
instituição de ensino público e gratuito que oferece Ensino Fundamental e
Ensino Médio para filhos (as) de servidores (as) da comunidade USP e demais
interessados. As vagas são preenchidas por sorteio, sendo 1/3 (um terço)
reservadas aos filhos de servidores da FE-USP, 1/3 (um terço) aos filhos de
servidores da USP e 1/3 (um terço) para o público em geral.

Imagem 3: Foto do auditório da Escola de Aplicação onde ocorrem as aulas de Artes-Teatro.


Fonte: Nina Ricci

Essa escola tem um papel primordial para os estudantes adentrarem em suas


respectivas licenciaturas, pois nela são realizados estágios e pesquisas
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vinculadas aos diversos cursos da Universidade. É pertinente também ressaltar


o reconhecimento da escola por ser um exemplo de pioneirismo e inovação no
campo da pedagogia e educação. Um exemplo é que a Escola de Aplicação
conta com uma grade curricular bem desenvolvida em relação ao ensino das
artes, quando comparada com outras escolas da rede pública. No que diz
respeito à linguagem teatral, os alunos vão encontrar as artes cênicas em
muitos momentos na sua formação escolar por meio das aulas de Arte-Teatro
ministradas pela professora Adriana Oliveira. Essas aulas de teatro estão
inseridas nos ciclos tanto do Ensino Fundamental como também do Ensino
Médio, de forma a contemplar as exigências estabelecidas pelas Leis de
Diretrizes e Bases da Educação conforme dispõe o parágrafo 2º do artigo 26:
“O ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos
níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural
dos alunos” (BRASIL, 2016).

O principal objetivo dessa parceria é criar um espaço no qual, alunos bolsistas


junto da professora Adriana, possam pensar em como proporcionar aos alunos
do ensino básico a experiência de assistir espetáculos teatrais. A partir do
espetáculo assistido, os bolsistas criam e conduzem as atividades de mediação
teatral com os alunos da Escola de Aplicação.

Apresentando uma família de conceitos

Mediação, mediação teatral, fruição teatral, barreiras de acesso, formação de


público e formação de espectadores são alguns conceitos que compõem parte
das nossas referências teóricas. Nós do projeto estamos familiarizados com
esses termos. Caso esse seja seu primeiro contato com eles, não se anime! Eu
não lhe darei uma explicação perfeita e exata sobre eles. Por hora, o máximo
que posso fazer é compartilhar algumas pistas que encontrei em livros e alguns
“achismos” que formulei ao longo de três anos de experiência na área.

Dentro do projeto entendemos a mediação como “[...] processos de diferentes


naturezas cuja meta é promover a aproximação entre indivíduos ou
coletividades e obras de cultura e arte” (COELHO, 2012, p. 268 apud PUPO,
2015 p.332). Em outras palavras, são atividades realizadas por um ou mais
mediadores que tem por objetivo principal, aproximar o público às obras
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teatrais. Essa aproximação pode acontecer em diferentes dimensões e


proporcionar experiências com variáveis finalidades.

Usaremos o termo mediação teatral quando nos referirmos especificamente


às mediações de espetáculos teatrais ou outras manifestações cênicas. É
necessária a distinção entre mediação artística e mediação teatral, pois
apesar das semelhanças, as artes cênicas possuem características particulares
a ela. Cada linguagem artística propõe uma forma de fruição diferente, portanto
a mediação teatral às vezes terá um modo de operação divergente das demais
linguagens artísticas como música ou artes visuais. A mediação teatral tende a
ser dividida em dois momentos em relação ao espetáculo, as que acontecem
antes (mediação pré-espetáculo, ensaios de preparação e sensibilização) ou as
que acontecem depois da apreciação (mediação pós-espetáculo, ensaios de
prolongamento e reverberação).

É considerado procedimento de mediação toda e qualquer


ação que se interponha, situando-se no espaço existente entre
palco e plateia, buscando possibilitar ou qualificar a relação do
espectador com a obra teatral, tais como: divulgação
(ocupação de espaço na mídia, propagandas, resenhas,
críticas); difusão e promoção (vendas, festivais, concursos);
produção (leis de incentivo, apoios, patrocínios); atividades
pedagógicas de formação; entre tantas outras.
(DESGRANGES, pg.66).

Outro conceito importante para a discussão é a fruição teatral. O verbo fruir


está relacionado ao ato de desfrutar ou ter prazer com algo. Nesse sentido, a
fruição teatral está vinculada com o ato do espectador no momento em que
este assiste a um determinado espetáculo.

Para alcançar a experiência da fruição teatral, muitas barreiras devem ser


superadas. De acordo com o pesquisador Flávio Desgranges, essas barreiras
podem ser divididas em duas: a barreira do acesso físico e a barreira do
acesso linguístico. A barreira do acesso físico é o termo utilizado para tudo
aquilo que impede o público de chegar ao espaço cênico, portanto, impedindo-
o de vivenciar uma experiência teatral. Como exemplo, podemos citar os altos
12

preços dos ingressos de um espetáculo, a distância entre público e os


equipamentos culturais, a falta de transporte público. Para a população
desfavorecida essas barreiras acabam sendo maiores, dificultando o acesso ao
teatro para grande parcela da sociedade.

Já as barreiras de acesso simbólico dizem respeito à falta de aquisição da


linguagem teatral. O espectador menos experiente, na maioria das vezes, vai
ao teatro buscando o mesmo que encontra nos produtos artísticos vistos na
televisão: narrativas com personagens e ações definidas, dramas e conflitos de
fácil entendimento e pouca complexidade. O teatro não conta apenas com o
drama e narrativas, mas também é uma linguagem compostas por outros
elementos criativos que constroem signos a serem lidos pela plateia. No teatro
contemporâneo, as convenções dramáticas como conflito, personagem e lugar
muitas vezes nem são colocadas em cena.

“O prazer pelo teatro se dá pela aquisição da linguagem teatral”


(DESGRANGES), logo se o espectador não estiver aberto a um novo tipo de
experiência a qual ele não está acostumado, a fruição do espetáculo estará em
cheque e podemos falar que esse é um caso de barreira de acesso linguístico.
Reconhecer essas barreiras mostra-se importante, pois superá-las significa
pensar em formação de público e formação de espectadores.

Dentro do nosso projeto atuamos como mediadores, pensando e propondo


formas de superar essas duas barreiras. Para isso acontecer, realizamos
reuniões semanais nas quais trazemos possibilidades de espetáculos a serem
assistidos pelos alunos da Escola de Aplicação para então discutirmos datas,
horários, possibilidades de transporte e outras burocracias que, dentro do
contexto escolar, são as principais barreiras de acesso físico. É de nossa
competência também preparar sessões de mediação teatral na qual realizamos
atividades que dialogam com o espetáculo tendo como principais objetivos
sensibilizar os alunos espectadores e perceber até onde a fruição teatral
reverbera em cada um deles.

A ficha caiu: dos incômodos às perguntas


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Para encerrar essa singela introdução, faremos uma pequena recapitulação


dos acontecimentos do semestre anterior. Dessa forma, espero apresentar
aquelas que foram minhas perguntas e incômodos que justificaram as escolhas
feitas para o segundo semestre de 2019.

Em outubro de 2018, realizamos uma saída com duas turmas de 8º ano ao


Departamento de Artes Cênicas para assistir o espetáculo chamado “Mati-
taperê”. As atividades de mediação pós-espetáculo realizadas com o grupo de
espectadores revelaram uma série de fragilidades tanto na sua elaboração
como na sua condução.

A sessão em questão era formada por momentos nos quais os alunos


recebiam uma “ficha” com atividades referentes ao espetáculo assistido. Essa
ficha continha uma atividade de caça-palavra, uma pergunta a ser respondida
pela escrita e um espaço para a realização de um desenho. Cada aluno
recebia uma ficha e a respondia individualmente. Mais tarde, na mesma
sessão, os alunos usavam suas respostas da ficha dentro de uma variação do
jogo “elefantinho-colorido” e também as compartilhavam numa roda de
conversa. Depois desse momento, as fichas voltavam para as nossas mãos de
mediadores e nunca mais retornavam.

O mais engraçado dessa ficha é o fato dela parecer uma prova. Ela podia ter
qualquer formato, mas na hora de elaborá-la, optamos inconscientemente por
uma forma rígida e semelhante aos modelos usados para uma avaliação
escolar. O espaço destinado ao desenho, por exemplo, era relativamente
pequeno e nada convidativo. Na mesma época, era constantemente debatido
em nossas reuniões o fato do “ambiente escolar” causar uma série de desafios
para o nosso trabalho como mediadores. O tempo cronometrado das aulas, a
relação professor-aluno e a postura dos alunos diante das atividades de
mediação são exemplos dos assuntos mais presentes em nossos momentos
de reflexão.

O que difere uma mediação teatral de uma aula curricular de teatro? O


mediador é um professor? O professor é um mediador? Quais as
possibilidades de mediação teatral dentro do contexto escolar que promovam
uma experiência diferenciada aos alunos espectadores?
14

Essa série de perguntas foi o estopim para algumas fichas caírem. Dentre elas,
caiu a modalidade de mediação das fichas-registro. No segundo semestre
suspendemos essa e outras modalidades que se aproximavam por suas
características das formas/modelos/práticas escolares de pergunta e resposta.
Em troca, procuramos criar modalidades que alcançassem outras facetas das
possibilidades de sensibilização e reverberação dos espetáculos.

Imagem 4: Ficha de registro utilizada em sessão de mediação pós-espetáculo. Fonte: Ronaldo


Fogaça.

Se essa ficha ainda não caiu para você, não se preocupe. Teremos espaço
para aprofundar essa discussão nos próximos três capítulos, no qual traçarei
uma reflexão à luz das experiências práticas de mediação teatral com as
15

turmas da Escola de Aplicação. Cada capítulo vai tratar de um espetáculo


diferente assistido pelos alunos ao longo do primeiro semestre de 2019. Para
encerrar, o último capítulo terá a ambição de concluir minha passagem pelos
três anos do projeto. Desse modo espero sanar meus atuais incômodos e me
preparar para os próximos que virão.
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2. TIRANDO IDEIAS DO BAÚ PARA MEDIAR O ESPETÁCULO “DOIS


BAÚS”

“Oi! Eu gostei muito da peça, fiquei pensando nela pelo


resto do dia. Gostei que você, bailarina decidiu seguir seu
sonho! Assinado: Beatriz9”.

O espetáculo “Dois Baús”

Imagem 5: Material de divulgação do espetáculo “Dois baús”. Fonte: Teatro de Garatujas.

Em fevereiro de 2019, nas primeiras semanas do começo do ano letivo, o


coletivo “Teatro de Garatujas” entrou em contato com a equipe do projeto
convidando os alunos da Escola de Aplicação para assistir o espetáculo “Dois
Baús”. Como Fevereiro é um mês cheio de turbulências (começo do ano,
retorno das aulas, novas dinâmicas para os alunos e também para o projeto)
ficamos hesitantes em aceitar o convite. Não teríamos tempo de assistir o
espetáculo previamente aos alunos e também não teríamos disponibilidade
para participar de um ensaio do grupo. Porém, decidimos aceitar o convite do
grupo, olhando para essa oportunidade como uma espécie de “aquecimento”
para retornamos com as atividades do projeto e também conhecer os alunos do
4º ano, grupo que não tivemos contato no ano anterior.

9
Fragmento da carta de uma aluna de 9 anos endereçada aos artistas do grupo “Teatro de
Garatujás”. A carta foi escrita na atividade de mediação pós-espetáculo.
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O coletivo “Teatro de Garatujas” é formado por alunas e alunos da Escola de


Artes Dramáticas (EAD) que criam e pesquisam poéticas do teatro para
crianças. O grupo apresenta a peça “Dois baús” com a seguinte sinopse:

“Filho de uma Bailarina de Corda e de um Soldado de


Chumbo, o Menino Palhaço vivia uma vida muito feliz. Feito de
meia, botão, linha, conta e laço, o Menino Palhaço era fofo
como um suspiro e encantava todos os outros brinquedos dos
baús vizinhos àquele onde morava com os pais. Um dia, um
circo de brinquedo chega. A Bailarina de Corda fica muito feliz
e imediatamente se põe a dançar, vendo-se frente a frente com
o seu grande sonho. Quando chega o momento do circo de
brinquedo partir, a família precisa tomar uma decisão. Com o
apoio do Soldado de Chumbo e do Menino Palhaço, a Bailarina
de Corda decide seguir seu sonho e vai embora com o circo de
brinquedo. O Menino Palhaço sente e questiona a separação
dos pais, mas depois compreende importantes lições sobre o
amor e sobre a felicidade. Passa então a viver com a mãe e
com o pai em dois baús separados, que se revelam dois palcos
iluminados10.”

A encenação é marcada por alguns elementos circenses (acrobacias e


malabares), figurinos e adereços coloridos e muitas músicas cantadas ao vivo.
O espetáculo tem um forte teor épico no qual os atores narram muitas das
ações e histórias dos personagens. Cada um dos três personagens é
interpretado por múltiplos atores. A bailarina, por exemplo, é representada por
duas atrizes que revezam as cenas durante a peça.

Como dito anteriormente, nós do projeto não tivemos a oportunidade de


assistir a peça previamente aos alunos. Isso revelou ser uma fragilidade. Não
houve condições suficientes para elaborar uma sessão de mediação pré-
espetáculo e o tempo de criar e maturar uma mediação pós para os 60 alunos
do 4º ano seria curto demais.

10 Sinopse disponibilizada em: https://www.facebook.com/events/casa-de-cultura-do-


butant%C3%A3/dois-ba%C3%BAs-espet%C3%A1culo-infantil/2148445782078001/
18

Para mim, depois de assistir, considerei positivas minhas impressões em


relação à peça. Assisti ao espetáculo tendo pouco conhecimento sobre o que
ele tratava. Chamou-me a atenção o fato da temática da separação dos pais
estar presente de forma sensível na narrativa. Para mim ela ficou marcada na
presença dos dois baús no qual o personagem do palhaço poderia viver. As
metáforas construídas em cena através de jogos divertidos foram o que mais
reverberou em minha experiência de fruição.

No caso dos alunos, percebemos que grande parte se divertiu com a peça.
Momentos nos quais os personagens jogavam com a plateia (composta pelos
alunos e outros espectadores lá presente) e faziam brincadeiras com as
palavras deixavam as crianças eufóricas. Ao final, cheguei à conclusão que,
mesmo com todos os “poréns”, valeu a pena aceitar o convite.

Imagem 6: Alunos do 4º ano compondo o público do espetáculo “Dois Baús”. Fonte: Ronaldo
Fogaça.

E então chegou o momento da elaboração das atividades de mediação. Nossa


reunião para discutirmos os rumos da proposta aconteceu enquanto os alunos
esperavam seus pais na escola, logo após assistirmos o espetáculo. A
mediação seria na semana seguinte, ou seja, teríamos apenas um fim de
semana para prepará-la. Literalmente tivemos que tirar ideias do baú para
montar o encontro com os alunos.

Mas antes de descobrirmos as façanhas que realizamos na mediação pós-


espetáculo, vamos conhecer algumas particularidades dos alunos do 4º ano.
19

As crianças serelepes do 4º ano

Espertas, enérgicas e cheias de graciosidade. Esses são algumas palavras


que eu utilizaria para descrever as crianças do 4º ano. O grupo de 60 alunos é
dividido em duas turmas que apresentam poucas características diferentes.
Durante o primeiro semestre de 2019 acompanhei as aulas de Artes para
essas duas turmas desde o começo.

De acordo com as atribuições de aula para o ano letivo de 2019, os alunos do


4º ano teriam uma aula de Artes composta por duas linguagens artísticas: as
artes visuais e o teatro. As professoras Adriana Oliveira e Kelly Sabino 11
dividiram as turmas ao decorrer do semestre, pensando em um curso que
trabalhasse as duas linguagens de forma interdisciplinar. Vale ressaltar que
esse seria o primeiro contato com teatro da maior parte dos alunos.

Como a saída para o espetáculo aconteceu no começo do ano letivo, esse


contato ainda não tinha acontecido de fato. Dessa forma, o espetáculo “Dois
Baús” seria uma das primeiras experiências com teatro vivenciadas pela
maioria dos alunos.

Imagem 7: Alunos do 4º ano deslocando-se até o Departamento de Artes Cênicas,


acompanhados pela professora, bolsistas e estagiários. Fonte: Ronaldo Fogaça.

11Kelly Sabino é professora de Artes Visuais da Escola de Aplicação desde 2010. Licenciada
em Artes Plásticas pela Universidade de São Paulo, mestranda na Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo, na linha de pesquisa Filosofia e Educação.
20

O espetáculo foi apresentado no Departamento de Artes Cênicas. Quando as


saídas de estudo acontecem dentro do campus da Universidade de São Paulo,
a burocracia envolvendo a Escola de Aplicação e os pais são mais fáceis e
rápidas para se resolverem. Assim, os alunos e alunas percorreram apenas os
1,6 Km de distância entre as duas instituições para assistir ao espetáculo.

Ainda no primeiro semestre de 2019, as turmas do 4º ano desfrutaram a


oportunidade de assistir mais dois espetáculos, “Pedro e Quim” da Cia. Paideia
como parte da pesquisa de Iniciação Científica do aluno Diego Camelo,
envolvendo mediação teatral com crianças. E o espetáculo “Histórias de depois
do fim” que envolvia um projeto teórico de conclusão de curso da aluna Eloá
Guirelli.

Um jogo de rima, uma conversa animada e a metade de uma carta

Para a atividade de mediação pós-espetáculo decidimos trabalhar com um


encontro de aproximadamente uma hora. Também decidimos dividir as turmas
de 30 alunos em dois grupos de 15. Um sendo conduzido por mim e o outro
pela bolsista Marina. Em experiências passadas do projeto, chegamos à
conclusão que para algumas atividades acontecerem de forma mais fluída,
dividir os alunos em grupos menores é uma boa escolha.

Todas as atividades de mediação teatral desenvolvidas pelo projeto passam


por um processo de criação. Nossas escolhas de metodologias, sequências de
exercícios e toda a preparação do encontro não são aleatórias. As atividades
pós-espetáculo, nesse caso, tinham por objetivo criar um espaço no qual os
alunos poderiam conversar sobre alguns pontos relativos à peça, assim como
expressar suas percepções sobre os personagens e a situação representada
na mesma.

Experiências passadas também nos alertaram sobre a confusão e o caos que


é organizar um debate com alunos de qualquer idade. Conversar sobre o
espetáculo, para as pessoas que são do teatro, promove uma experiência
muito prazerosa e intrigante. Percebo que para um público familiarizado com a
linguagem teatral esses debates acontecem sem muitos impasses. Mas essa
21

não é a realidade encontrada no campo escolar. Ainda mais com crianças com
idade entre 8 e 9 anos.

Debater e tecer reflexões junto ao coletivo é um dos momentos em que o


teatro pode estabelecer um diálogo real entre as pessoas e o mundo. Mas
percebemos que propor essa experiência em sala de aula é um desafio
deveras intrigante. Farei aqui uma narrativa das prováveis coisas que poderão
acontecer se eu promovesse um diálogo livre com um grupo de 15 crianças.

Primeiro eu faria uma pergunta, imaginemos algo bem genérico como “O que
será que aconteceu com o personagem fulano ao final da peça?”. Em questões
de segundos, metade das crianças iria erguer as mãos e outra metade iria
começar a responder em um coro de vozes agitadas. Caos instaurado.
Provavelmente eu iria pedir calma e organização. O caos continuaria. Então eu
suplicaria para as crianças erguerem a mão para falar. O caos continuaria.
Então eu teria que erguer o volume da voz pedindo desesperadamente calma e
com sorte, eles ficariam em silêncio. Falo então da importância de nos
ouvirmos, de estarmos atentos à resposta dos colegas, em guardar os
comentários que não fossem pertinentes para outro momento. E então, poderia
refazer a pergunta. Agora encontro o silêncio mortal do abismo do vazio. A
atividade perdeu um pouco da graça, ficou chato. Ninguém mais quer
responder.

Se por sorte conseguirmos sair dessa, alguém vai responder algo do tipo “para
mim o personagem fulano morre no final”. Várias crianças na hora discordariam
da resposta dada pelo colega. Coro de vozes discordando. Coro de vozes
concordando. É o retorno no caos.

Depois desse comovente relato vivido inúmeras vezes por mim e por outras
pessoas do projeto, decidi pensar em formas de tornar o momento “debate
sobre o espetáculo” em uma atividade que fosse viável com os alunos em sala
de aula. Eis então que surgiu a “conversa game”.

Uma conversa game nada mais é que uma forma lúdica na qual através de
regras e estímulos artísticos, os participantes podem manifestar suas
impressões sobre um determinado espetáculo.
22

Como dito anteriormente, no espetáculo “Dois baús” as crianças ficaram


encantados com o momento no qual os atores brincavam com diversas
palavras rimadas. Então, a partir disso, criamos nossa conversa game para os
alunos do 4º ano.

O jogo funcionava da seguinte maneira. Os alunos ficavam em roda e o


mediador diria uma palavra sobre o espetáculo. Seguindo a ordem da roda,
cada aluno deveria dizer uma palavra que rimasse com a que o mediador havia
dito. A pessoa que repetisse uma palavra já dita, ou demorasse demais para
encontrar uma rima, deveria abrir um pequeno baú e tirar de dentro uma tira de
papel que continha uma pergunta a ser respondida. As perguntas dentro do
Baú tinham relação com o espetáculo e em primeiro momento era respondida
pelo aluno que a retirou da caixa e depois ela era aberta para todos os
restantes do grupo.

Imagem 8: Aluno retirando uma pergunta do baú após não conseguir pensar em mais
nenhuma rima para o jogo. Fonte: Ronaldo Fogaça.

As perguntas promoviam um espaço no qual os alunos podiam expor uns aos


outros as diferentes leituras que cada um teve do momento do espetáculo. E
também os levava a relacionar os momentos do espetáculo com as vivências e
experiências de cada um.

ALUNA 1 (lendo a tirinha de papel retirada do báu): O menino


palhaço disse em um momento que desabafar é tirar um nó
23

da garganta. Para você, de qual nó da garganta ele estava


falando?

MEDIADOR: Primeiro a Aluna 1 vai responder, depois a


gente abre para outras respostas.

ALUNA 1: É... Falar o que você sente.

MEDIADOR: Dá nó na garganta falar o que a gente sente?


Ou não falar o que sente é que da o nó na garganta.

ALUNA 1: Acho que não falar.

MEDIADOR: Legal, alguém acha outra coisa?

(Várias mãos se levantam. O mediador escolhe uma).

ALUNO 2: Tirar o nó na garganta eu acho que significa


quando você fala alguma coisa que você tava com vergonha
de falar e depois você fala quando você tem coragem.12

Imagem 9: Aluna pensando na resposta que poderia dar à seguinte pergunta: É possível ser
feliz vivendo em dois lugares diferentes. Fonte: Ronaldo Fogaça

O jogo alcançou os objetivos esperados por nós. Mas durante a condução dos
exercícios, notamos alguns pontos que poderiam ser mais elaborados. No
começo do jogo, os alunos que erravam a rima pensavam na pergunta como
uma espécie de “castigo” ou “mico” o que causava certa intimidação que não é

12
Trecho da transcrição de áudio gravado durante a realização da atividade de mediação com
os alunos do 4º ano II.
24

tão bem vinda em um espaço de debate no qual as pessoas podem escolher


se querem ou não se manifestar. Ao longo do jogo, quando os alunos
percebiam que as perguntas não tinham valor reprovativo, ou seja, não tinham
uma resposta certa, os alunos começaram a se interessar mais pelo ato de
pegar uma misteriosa tirinha de papel do baú do que seguir as regras do jogo
de rimas.

Por último, propusemos aos alunos que escrevessem uma carta para um dos
três personagens nessa peça. Nessa carta eles poderiam escrever sensações
que tiveram ao ver a peça e também poderiam fazer um desenho “pela
metade” de um momento que ficou marcado em sua memória. A ideia do
desenho pela metade veio de um momento do espetáculo no qual o
personagem questiona a plateia com a seguinte pergunta: É possível viver
apenas com a metade? Depois de escritas, as cartas foram entregue ao grupo
“Teatro de Garatujas” como nossa forma de agradecimento pelo convite.

Imagem 10: Alunos escrevendo suas cartas durante a sessão de mediação. Fonte: Ronaldo
Fogaça.

Reflexões à posteriori: pequenas escolhas, grandes diferenças.

O que difere uma mediação teatral de uma aula curricular de teatro?

Voltamos à nossa pergunta. E, numa primeira tentativa corajosa, tentarei


respondê-la. Então, me acompanhe nesse raciocínio.
25

Na maioria dos casos, uma aula curricular dentro da escola pressupõe a


presença de um (a) professor (a), um coletivo de alunos e um “saber” a ser
estudado por ambos. Dependendo de cada caso, as relações entre professor-
aluno-saber podem variar. Há casos nos quais o professor ensina ao aluno um
saber, numa espécie de transmissão. Há outros onde o professor propõe uma
experiência ao aluno, de modo a fazer com que este estudante construa seu
próprio saber. Em todos os casos, uma aula estabelece essa conexão entre
essas partes tendo como uma das finalidades principal o ensino e a formação.

Já em uma sessão de mediação (fora do ambiente escolar) temos um


mediador (a), um público e um objeto artístico (que em alguns casos, são
acompanhados de seus artistas criadores). A meta desse encontro como já
estamos carecas de saber é “promover a aproximação entre indivíduos ou
coletividades e obras de cultura e arte” (COELHO, 2012, p. 268 apud PUPO,
2015 p.332). Mais então, a pergunta que me fica na cabeça é: aproximar para
quê?

Há casos também nos quais uma aula propõe uma aproximação entre o aluno
e o saber. Estaríamos falando de um professor-mediador? Se existem duas
palavras, existem duas coisas diferentes? Veja bem, não estou aqui querendo
defender uma fronteira entre o que é uma aula e o que é mediação.
Ultimamente não tenho condições nem para afirmar que essa cadeira na qual
estou sentado é de fato uma cadeira. Os questionamentos estão na mesa com
o objetivo de nos fornecer pistas que guiem e impulsionem nossa criação, seja
de uma aula, ou de uma mediação teatral.

Voltaremos mais tarde a tecer os fios dessa reflexão. Por ora, voltaremos a
outro ponto, mais precisamente às atividades de mediação do espetáculo “Dois
Baús”.

Ao final das atividades de mediação, a equipe do projeto se reuniu para


avaliarmos como ocorreram as sessões. Falamos sobre os casos ocorridos
durante a conversa game e sobre as dificuldades já recorrentes em relação ao
tempo, as instruções dadas e o foco dos alunos. Porém, a partir dos nossos
relatos, uma pequena minúcia foi detectada pelos olhos da professora Adriana:
a presença dos baús. As duas pequenas caixinhas utilizadas para os alunos
26

tirarem as perguntas durante o jogo. Isso tinha sido algo que os prenderam
durante a atividade inteira. A fascinação foi tanta que alguns alunos chegavam
a errar a rima de propósito apenas para ter o prazer de tirar um papelzinho de
dentro do baú.

Uma vez eu ouvi essa frase, já não me lembro de quem, mas ela agora fazia
total sentido. “Deus vive nos detalhes”.

As perguntas poderiam ter aparecido de diferentes maneiras. O mediador


poderia ter a feito oralmente para a criança que houvesse perdido no jogo. A
pergunta poderia ser feita por outro jogador que houvesse falado a rima mais
criativa. Ou a pergunta até mesmo poderia sair de uma bexiga da cor laranja-
tangerina. Infinitas possibilidades. E cada possibilidade vai estabelecer uma
relação diferente com os alunos-espectadores.

Até então, durante as elaborações das atividades de mediação eu pensava


muito no “o quê” eu iriar propor aos alunos e no “porque” eu estava propondo.
A variável “como” até então não me parecia influenciar tanto nas sessões de
mediação. Porém o “como” foi uma chave principal para começarmos a propor
atividades que escapassem do raio da “escolarização” excessiva que nos
incomodava até então.

Foi então que resolvemos chutar o balde.


27

3. QUEM VALE MAIS? TCHECKOV, TEATRO OU UMA AVE? A


MEDIAÇÃO DO ESPETÁCULO “A ÚLTIMA GAIVOTA”

NINA: Sua peça é muito difícil de interpretar. Os personagens


não são gente de verdade.
TREPLEV: Gente de verdade. Não se deve representar a vida
como ela é e sim como a vemos em sonhos13.

O espetáculo “A última gaivota”

Imagem 11: Material de divulgação do espetáculo “A última gaivota”. Fonte: Christian Martins.

“A última gaivota” é um espetáculo teatral que pretende discutir o papel da arte


– e sobretudo o teatro – na sociedade atual. Partindo do universo de Anton
Tchekhov criado no clássico “A gaivota” (1905), a peça debate a relação entre
arte, mercadoria, revolução e fracasso.

O espetáculo nasceu de um processo criativo realizado por um coletivo de


alunos do Departamento de Artes Cênicas para a disciplina de “Direção III”.
Analisemos a sinopse do espetáculo nas palavras dos artistas criadores:

13 Trecho do texto “A gaivota” do autor A. P. Tchékhov.


28

Costa e Karina – um jovem diretor e uma jovem atriz – montam


um espetáculo às pressas para tentar salvar um teatro prestes
a ser desapropriado. A partir de “A gaivota” de Anton
Tchékhov, ensaiam uma distopia que discute o lugar do teatro
na sociedade atual. Em chave metalinguística, deparam-se
com questões relacionadas à mercadoria, ao capital e ao
fracasso. Entretanto, seus destinos se aproximam ao das
personagens do escritor russo de forma inevitável14.

Interessante notar que novamente os integrantes do coletivo nos contataram


para realizar o convite. Isso mostra que há uma procura pelos artistas do
Departamento de Artes Cênicas em criar parcerias com nosso projeto de
mediação teatral.

Antes de aceitarmos o convite, procuramos saber mais detalhes sobre o


espetáculo. Primeiro, assistimos uma gravação da peça que nos foi
disponibilizada pelo grupo. Ao ver o vídeo do espetáculo, conseguimos ter uma
noção superficial sobre o que ele tratava. Mas aquilo não mostrou ser o
suficiente para prepararmos uma atividade de mediação.

Como o grupo não faria uma apresentação do espetáculo previamente à saída


dos alunos, achamos necessário assistir um ensaio da peça. Isso foi possível,
pois tanto eu como a bolsista Marina já conhecíamos os artistas do grupo. Essa
aproximação tornou mais fácil o contato e dessa forma chegamos até a sala de
ensaio.

No ensaio do grupo, assistimos à peça inteira sem os adereços do cenário e


do figurino. Porém o texto (que não estava tão audível no vídeo) e os detalhes
da atuação ficaram evidentes. Assim, conseguimos pensar em alguns eixos
para as sessões de mediação.

Outro ponto a ser notado sobre a ida ao ensaio foi o fato do grupo estar bem
aberto e receptivo. Ao final do ensaio, realizamos uma conversa entre os
artistas e os mediadores buscando entender as motivações que os levaram a
querer apresentar o espetáculo para um grupo de alunos, quais referências

14Sinopse encontrada no projeto de encenação disponibilizado pelo grupo. Não publicado e


não disponível para consulta online.
29

eles utilizaram como material poético e o que eles esperavam da experiência


de apresentar para uma turma de alunos-espectadores.

Para mim, enquanto mediador, a peça levantava alguns desafios que seriam
interessantes ser trabalhados durante as sessões de mediação. A primeira
pergunta que me sucedeu foi: os alunos conseguirão fruir o espetáculo sem ter
contato com a referência do texto de Tchekhov? De certo modo, o espetáculo
era uma releitura da obra original e portanto muitas das situações e escolhas
estéticas faziam sentido para quem conhecesse pelo menos um pouco da obra
do autor russo.

A temática “arte como mercadoria” me pareceu um bom ponto para levantar


um debate. Sabemos que os jovens tem bastante contato com muitos produtos
da indústria cultural. Discutir esse tema à luz do espetáculo assistido poderia
ser uma boa possibilidade de mediação.

Todas essas questões foram abordadas nas atividades de mediação criadas


por nós. Antes de chegarmos a discuti-las, vamos conhecer os alunos do 2º
ano do Ensino Médio.

Um paraíso chamado Ensino Médio

Entre colegas da licenciatura, sempre comentamos nossas vivências e


experiências de estágio. Uns reclamam dos alunos rebeldes do 8º ano, outras
falam das dores e alegrias de acompanhar o 4º ano. Mas todos nós temos uma
opinião em comum: trabalhar com o Ensino Médio é como estar no paraíso.

Isso não acontece pelo acaso. As aulas de Artes para os alunos do Ensino
Médio da Escola de Aplicação são divididas em três ateliês. Cada ateliê
trabalha com uma linguagem artística diferente (música, teatro e artes visuais)
e os alunos podem escolher qual linguagem querem estudar pelos três anos do
Ensino Médio.

Isso diferencia bastante os alunos do Ensino Médio quando comparados com


os alunos do Ensino Fundamental. Na aula de artes eles ficam divididos em
turmas com cerca de 20 alunos e o mais importante: por alguma razão eles
escolheram estudar teatro.
30

As experiências nas aulas de Teatro ao longo do Ensino Fundamental também


contribuem para os aprofundamentos realizados durante o curso do Ensino
Médio. Enquanto no Fundamental eles descobrem alguns elementos da
encenação (atuação, espaço, figurino, sonoplastia), no Ensino Médio eles
começam a discutir estética teatral e elaboram produções cênicas autorais. Por
último, a própria característica da idade dos alunos aumenta o leque de
possibilidades para trabalhar com diversas temáticas e dinâmicas.

A escolha de levar os alunos do 2º ano do Ensino Médio foi motivada pelas


barreiras de acesso físico. Para garantir a ida de todos os alunos e para
conciliar os horários da equipe do projeto, a saída deveria acontecer no período
de aula. Dessa forma, escolhemos o 2º ano, pois essa turma tem as duas
últimas aulas de Artes pela manhã. Assim, o espetáculo poderia ser
apresentado por volta do meio dia.

Imagem 12: Alunos do 2º ano do Ensino Médio trabalhando em uma atividade de mediação
teatral. Fonte: Ronaldo Fogaça.

A seguir falaremos da mediação pré-espetáculo, da experiência de fruição da


peça junto ao debate realizado com os artistas e da mediação pós-espetáculo.

Uma cena media outra cena: um encontro com Tchekhov

Como dito anteriormente, existia uma preocupação pelo fato desse espetáculo
ser muito apoiado na obra do Tchekhov. Dessa forma nossa pergunta era: É
necessário ter algum conhecimento sobre “A gaivota” original para uma melhor
experiência de fruição do espetáculo “A última gaivota”?
31

Jogamos essa pergunta para os artistas do grupo, mas eles não souberam
responder. Afinal, até então eles só haviam apresentado o espetáculo para um
público composto pelos colegas do Departamento de Artes Cênicas.
Espetáculos que são releituras de obras clássicas já foram trabalhados com
alguns mediadores do projeto e, saber se é necessária ou não uma preparação
do espectador para assisti-lo é uma questão que já permeou nossa pesquisa.

Não é possível ter uma resposta generalizada sobre o assunto. Cada releitura
lida com o material original de um modo. Mas após assistir a gravação e ver um
ensaio do espetáculo “A última gaivota”, minhas pistas apontavam que seria
interessante trabalhar com os alunos o contexto da obra original antes da
apresentação da peça. Essas pistas vieram pelo fato de eu mesmo não ter tido
um contato tão aprofundado com esse texto do Tchekhov e ao assistir a
gravação do espetáculo, consegui criar poucas relações sobre o que era
proposto em cena.

Dessa forma, decidimos colocar como eixo da mediação o texto “A gaivota”.


Para isso, queríamos elaborar um encontro no qual os alunos entrassem em
contato com esse universo: personagens, conflitos e narrativas. Porém, nosso
desejo era trabalhar de uma forma diferenciada, fugindo da “escolarização”
apontada nos capítulos anteriores deste relatório. Um exemplo do que não
gostaríamos de fazer, seria realizar uma aula expositiva com slides, jogando
informações precisas sobre o que acontece com cada personagem ou falando
sobre o contexto sócio histórico da obra. Isso, em nossa visão, alimentaria em
nada a vontade dos alunos do 2º ano de assistir ao espetáculo.

Ao longo do projeto, descobrimos que uma atividade de mediação pré-


espetáculo é mais interessante quando propomos uma experiência que gere e
alimente a vontade dos alunos em assistir a peça. Somado a essa questão,
também procuramos criar um encontro de mediação no qual as dinâmicas
entre professor-alunos fossem ressignificadas. Então, elaboramos a seguinte
sessão de mediação:

Alunos entram no auditório da escola e encontram no palco dois atores


vestidos com figurinos de época. A luz do auditório está completamente
apagada, somente existem os dois focos nos atores que estão em lados
32

opostos do palco. De um lado temos uma atriz brincando com enormes aviões
de papel. Do outro, temos um ator apoiado em uma mesa, escrevendo sem
parar o que parece ser uma peça de teatro. Ao fundo, toca-se uma canção
russa. Após os alunos se sentarem nas poltronas da plateia, uma cena
começa.

Imagem 13: Cena inicial apresentada pelos mediadores na sessão pré-espetáculo. Fonte:
Adriana Oliveira.

A atriz perturba o ator que escreve. Entediada, ela reclama estar cansada de
esperar o companheiro terminar de escrever a peça, e deseja saber sobre o
que se trata a nova obra do autor. Já o ator vai se enfurecendo com as
inúmeras perguntas realizadas a ele, até que então a paciência se esgota e ele
rasga a folha de papel na qual estava trabalhando.

A cena corta. O ator caminha até um palanque e se apresenta ao público


como Treplev. Ele conta que é um escritor e diretor que vem há anos tentando
reinventar as formas de se fazer teatro. Para Treplev, o teatro está morto e os
jovens que estão sentados na plateia são a única possibilidade de salvação
para essa arte milenar. A jovem atriz também se apresenta como Nina, e conta
33

que seu sonho é ser uma grande atriz da cidade de Moscou, mas seus pais
não a deixam seguir nessa carreira e por esse motivo, ela trabalha com
Treplev.

A cena narrada introduz os alunos ao universo dos dois personagens da obra


original de Tchekhov. Em “A última gaivota”, os alunos encontram “Costa e
Karina”, adaptações dos dois personagens da gaivota de 1905. Os
personagens Treplev e Nina foram interpretados respectivamente pelos dois
mediadores, eu e Marina. Após essa cena, os alunos passariam por uma
experiência na qual descobririam pequenas pistas sobre a dramaturgia da peça
de Tchekhov.

Essa experiência começava com Treplev anunciando uma separação dos 20


alunos em quatro grupos previamente divididos. Cada grupo teria a missão de
“revolucionar” o teatro, criar o que seria para eles “a última cena de suas
vidas”. Para isso, eles deveriam seguir uma série de pistas tendo um tempo
limite de quarenta minutos que estava projetado em contagem regressiva no
auditório.

Imagem 14: Alunos preparando suas cenas enquanto a contagem regressiva era projetada.
Fonte: Adriana Oliveira

A primeira pista era entregue por Nina em uma tira de papel para cada grupo.
A pista indicava um local da escola no qual uma gaivota estava escondida.
34

Além da dica, o papel também continha um trecho do texto “A gaivota” que


dialogava com o local onde se encontraria a gaivota.

Imagem 15: Tira de papel contendo a primeira pista. Fonte: Ronaldo Fogaça.

Seguindo essa espécie de caça ao tesouro, os alunos também encontravam


uma gaivota de papel. Nela eles descobriam que deveriam criar uma cena, mas
antes eles precisariam desvendar uma última charada para encontrar as
instruções e os materiais necessários para essa criação.

Imagem 16: Gaivota de papel contendo pistas aos alunos. Fonte: Ronaldo Fogaça.

Por último, os alunos encontravam escondida pelo espaço do auditório, uma


grande caixa de papelão contendo materiais para a criação de suas cenas
(tecido, roupas, objetos) e também uma folha de papel contendo as instruções
específicas para a cena. Essas instruções eram as mesmas para todo o grupo:
35

a cena deveria durar entre 3 a 5 minutos. O grupo deveria dar um título para
essa cena. E por último, em cada folha havia um diálogo do texto “A gaivota” e
os alunos deveriam inserir esse diálogo em algum momento de suas cenas.

Após o final da contagem regressiva de 40 minutos, todos os grupos se


reuniram no palco para fazer um divertido aquecimento com Nina e Treplev. O
aquecimento era uma versão típica do jogo “Zip, Zap15” com algumas
modificações divertidas envolvendo o universo do espetáculo de Tchekhov.

Então, os quatro grupos apresentavam suas cenas.

Imagem 16 e 17: Fotografia de duas cenas criadas pelos alunos na sessão de mediação pré-
espetáculo. Fonte: Adriana Oliveira.

Ao final da sessão, eu e Marina saíamos dos personagens e conversamos


com os alunos sobre o que seria essa peça “A gaivota”. O que chegou de
informação até eles sobre esse universo, o que os deixou curiosos em
descobrir, o que eles achavam que acontecia no final desse texto. Será que
Nina conseguiria ser uma atriz famosa? Será que Treplev conseguiria
revolucionar as formas de se fazer teatro?

15O jogo “Zip, Zap” é jogado em roda. Os alunos passam uma espécie de flecha invisível com
as mãos para outro jogador, essa flecha é marcada pela batida de uma mão na outra.
Simultaneamente à flecha, o jogador deve dizer a palavra “Zip” se sua flecha estiver
endereçada à alguém que está em seu lado da roda. Ou “Zap” se o jogador estiver em
qualquer outra localização. O jogo tem diversas variações, com mais regras e maior
complexidade.
36

A fruição da peça e as primeiras reverberações

Na semana seguinte os alunos foram assistir ao espetáculo que foi


apresentado em uma das salas do Departamento de Artes Cênicas. Ao final da
apresentação, aconteceu uma conversa na qual estavam presentes os alunos
e toda a equipe de artistas.

Essa conversa seria muito curta, tendo uma duração de pouco mais de vinte
minutos. A atividade completa do dia teria que acabar com os alunos chegando
de volta a Escola de Aplicação no horário previsto para o fim das aulas. O
coletivo de artistas também demonstrou muito interesse nesse momento de
troca após a peça.

Como podemos ver, mais uma vez nossa equipe se deparou com o desafio de
mediar uma conversa. Só que essa estava no meio de circunstâncias
diferenciadas. Primeiro que os alunos estavam cara a cara com os artistas do
espetáculo. Segundo que essa conversa aconteceu literalmente logo após o
final da apresentação, não sendo dado nem um intervalo de 5 ou 10 minutos
para os atores retirarem seus figurinos ou os alunos poderem sair tomar um
gole d’água.

Quando estamos mediando uma situação na qual espectadores estão diante


dos artistas do espetáculo, gostamos de utilizar a estratégia da “caixinha
anônima”. Essa modalidade prevê que os espectadores possam optar por
escrever em uma tira de papel algum comentário, pergunta ou crítica ao grupo.
O mediador recebe essas perguntas, as filtra e inicia o debate. Os
espectadores que quiserem fazer uma pergunta diretamente também podem
optar por essa forma. Porém, experiências passadas mostram que
principalmente no começo do diálogo, o público se sente intimidado, o que
causa um silêncio não proposital.

Previamente, durante o ensaio com o grupo, propusemos aos artistas que em


um primeiro momento deixassem os alunos falarem suas impressões. Qualquer
resposta ou explicação vinda deles mataria todas as outras possibilidade de
leitura para os espectadores.
37

Acontece que durante essa conversa, os alunos-espectadores faziam


perguntas (escritas e verbalmente) que eles mesmos deveriam pensar em uma
resposta. Então quando um aluno perguntava aos artistas “a peça carrega
alguma moral ou se opõe contra algo na sociedade atual?”, a estes só era
permitido responder com outra pergunta “para você espectador... A peça
carrega alguma moral ou se opõe contra algo na sociedade atual?”. Esse ping-
pong causava uma espécie de frustração nos alunos que queriam as respostas
dadas sem antes criar uma leitura própria.

Imagem 16: Comentário anônimo realizado por aluno-espectador ao final da peça. Fonte:
Ronaldo Fogaça

O desafio para nós, talvez seja deixar mais nítido para os alunos que nesse
momento de debate, o importante ali é os espectadores comentarem suas
leituras, semelhante ao que acontece quando eles discutem suas próprias
cenas em sala de aula. Os artistas estão ali para ouvir e para responder
possíveis dúvidas que só eles poderiam responder. Um exemplo de pergunta
dessa natureza foi uma das alunas perguntando para atriz “Onde você
aprendeu a andar de patins? É difícil fazer isso em cena?”. Essa pergunta
refere-se somente à experiência da atriz e respondê-la não compromete a
leitura de ninguém. Talvez, tornar essa distinção visível aos alunos possa
tornar o momento de debate mais fluído.

Vale frisar, mesmo que pela enésima vez, que o contato e diálogo entre
público e espectador é um momento que pode ser rico e proveitoso para
ambas as partes. Porém, se não preparado, esse contato pode fazer com que
38

o primordial da ida ao teatro se acabe: a liberdade do espectador ler, refletir e


imaginar aquilo que presenciou ao assistir à peça.

Topa tudo por dinheiro: quanto vale a arte?

A arte como mercadoria é um dos temas centrais do espetáculo “A última


gaivota”. Na peça os dois personagens, Karina e Costa, tentam criar o que
seria a última peça de teatro. Após o desenrolar da trama, chega-se o
momento no qual o espetáculo que eles trabalharam por tanto tempo irá
estrear. E então acontece a tragédia de toda a história: ninguém aparece para
prestigiá-los. O fracasso da apresentação faz com que Karina abandone a
companhia e Costa se mata esmagando uma pedra em sua cabeça.

O que é sucesso? O que é fracasso? Qual o valor da arte e do teatro?

Essas perguntas reverberaram em mim enquanto espectador da peça.


Também reverberaram nos alunos. Algumas perguntas feitas na “caixa
anônima” diziam respeito às primeiras leituras da peça como uma crítica aos
produtos do capitalismo.

Duas cenas chamaram a atenção dos alunos. Uma cena na qual os


personagens apresentam a distopia composta por “gaivotas mecanizadas” que
sobrevoavam os céus vigiando qualquer espécie de ação artística. A cena
mostra os atores representando o que as gaivotas faziam com as pessoas que
se manifestavam de alguma forma artística. Elas verificavam um chip que
ficava na bunda dos artistas e os convertiam ao capitalismo com as seguintes
palavras mágicas: dois hambúrgueres, alface, queijo, molho especial, cebola,
picles, num pão com gergelim. As palavras referem-se diretamente ao
comercial da rede de fast-food “Mc Donald’s”. A cena discutia um possível
futuro no qual o capitalismo dominou completamente a sociedade, de forma a
exterminar qualquer resquício de arte.

Em outro momento, os dois artistas contavam à plateia que eles tinham


acabado de sequestrar o apresentador de televisão Fausto Silva. Os
personagens nos diziam que o Faustão, como é conhecido popularmente,
estava naquele exato momento escondido no porão. Em seguida, eles
39

acrescentavam que também sequestraram o Sílvio Santos e que estavam


jogando aviõezinhos de dinheiro no famoso apresentador de televisão.

Essa cena chama atenção pela comicidade do relato, sendo um dos


momentos mais divertidos do espetáculo, e também por colocar em evidência
figuras caricatas que representam a industrialização cultural e artística.

Imagem 17: Cena na qual os atores comemoram o sequestro de Fausto Silva. Fonte: Christian
Martins.

Todas essas questões se uniram em uma sessão de mediação pós-espetáculo


que eu gosto de chamar de “Topa tudo por dinheiro16”.

Os alunos entravam no auditório e dessa vez me encontravam vestido como


um apresentador de televisão (com um terninho, gravata e óculos de sol muito
caricato). A professora Adriana e alguns estagiários também entraram no jogo
vestindo-se da mesma forma. Os alunos subiam ao palco enquanto eu
anunciava em um microfone algumas informações do programa-aula que iria
acontecer. A mais importante de todas era: a aula valeria dinheiro!

16 O nome faz referência ao programa televisivo apresentado por Sílvio Santos nas noites de
Domingo. O programa foi ao ar durante a década de 90. “Quem quer dinheiro.”, era um dos
jargões principais do apresentador.
40

Imagem 18: Dinheiros de papel que foram entregues aos alunos que conseguiam um bom
desempenho nas atividades da aula. Fonte: Adriana Oliveira.

Na primeira parte do programa-aula, os alunos passariam por uma série de


jogos que em algum momento eles já tiveram contato. Mas dessa vez, a partir
de seus respectivos desempenhos individuais, eles ganhariam uma quantia em
dinheiro fictício.

O primeiro jogo foi a tradicional “Medusa”. A partir do espaço que eles


conseguiam percorrer na área de jogo, uma quantia diferente lhes era
oferecida. O segundo jogo era o conhecido “Espelho” no qual dois jogadores
ficavam de frente um ao outro. Previamente eles deveriam combinar quem
seria o “espelho” e quem seria o “condutor”. O objetivo dos jogadores era
realizar movimentos pelo espaço de forma a não deixar a plateia (composta
pelos estagiários) adivinhar quem estava sendo o espelho e quem estava
sendo o condutor. As duplas que fossem mais sincronizadas ganhavam
quantias maiores de dinheiro.

Por último, uma competição criativa acontecia. Divididos em 4 grupos, os


alunos deveriam criar com os matérias disponíveis na coxia do auditório, uma
41

versão da “Gaivota mecânica” que era citada do espetáculo. A bancada de


jurados (composta novamente por estagiários) iria decidir qual time foi o mais
criativo e receberia uma quantia maior de dinheiro.

Imagem 19: Alunos realizando o jogo “Espelho” conduzido pelo mediador no papel de
apresentador. Fonte: Ronaldo Fogaça.

Imagem 20, 21 e 22: Criações das “Gaivotas Mecânicas” feita pelos alunos. Fonte: Ronaldo
Fogaça.

Depois dessa sessão de jogos, cada aluno estava com uma quantia de
dinheiro para a próxima parte da aula que seria um “Leilão de arte”. Eu, como
mediador, seria o leiloeiro. As obras de artes eram projetadas para todos os
alunos que participavam e assistiam ao leilão. Quem desse o maior valor pela
42

obra subiria ao palco efetuar o pagamento e fazer um discurso no microfone


falando qual foi sua motivação pela compra e o que faria com a obra de arte.

As obras que leiloadas foram: “Vingadores: Ultimato” (um filme blockbuster de


super-heróis que ficou conhecido por ter uma das maiorias bilheterias do
cinema). “A Monalisa”, de Leonardo da Vinci. Um quadro do artista “Romero
Brito”. A “quinta sinfonia” de Beethoven. Um novo hit musical da cantora pop
Anitta chamado “Medicina”. O espetáculo musical “O fantasma da Ópera”. E
por último, o conjunto de cenas apresentados pelos próprios alunos na sessão
de mediação passada.

O objetivo dos jogos valendo dinheiro e do leilão artístico era propor uma
reflexão na qual colocaríamos a arte como uma mercadoria de fato. Foi
possível observar uma postura diferente dos alunos em relação aos jogos. O
dinheiro, mesmo que fictício, funcionava como uma espécie de recompensa
estimulante aos alunos participarem das atividades com maior atenção,
prontidão e criatividade. Já no leilão, as obras que representavam os produtos
da indústria cultural recebiam os maiores valores. A única exceção foi as
próprias cenas dos alunos que pelo fato de ser a última obra a ser leiloada, foi
a que recebeu o maior lance.

Depois dessa sequência os alunos deveriam, em duplas, escrever o que para


eles seria a “receita do sucesso”. Em roda, lemos algumas dessas receitas e
discutimos à luz do espetáculo e das atividades realizadas a seguinte questão:
arte tem valor?

Bolo do sucesso

Ingredientes

1 xícara de carisma

4 xícaras de brilho

500 ml de personalidade

1 kg de beleza

2 xícaras e meia de afrontamento


43

1 colher de deboche

1 copo de empenho

5 xícaras de persistência

1 litro de presença de palco

300 ml de felicidade

100 ml de amor

10 L de Glow

Modo de preparo:

Em uma forma bem grande bata todos os ingredientes no


liquidificador e ponha no forno pré-aquecido à 180 graus. Deixe
assando aproximadamente 23 horas e deixe descansando
aproximadamente 1 hora após retirar do forno

Receita do sucesso rápido

Ingredientes:

1 xícara e meia de branquitude

3 colheres de sopa de heterossexualidade

1 xícara e meia de masculinidade frágil

1 colher de “ser deputado”.17

Na roda final de conversa foi discutido o envolvimento dos alunos com as


atividades que valiam dinheiro, as compras no leilão e o que levou os artistas
do espetáculo “A ultima gaivota” ao fracasso. Ao final da discussão foi
perguntado “Mas afinal arte vale dinheiro?” e algumas respostas surgiram:

Aluna 1: Acho que o valor é por você mesmo, porque tipo...


vocês falaram de comprar a Monalisa por exemplo. Porque é

17Transcrição de duas cartas escritas pelos alunos. O material original para consulta encontra-
se disponível no anexo.
44

do Leonardo da Vinci né? É, enfim. Porque é de uma pessoa


super foda. Ai você tá andando numa loja de quadros e você vê
um quadro que da um valor sentimental para você. Eu acho
que tipo, cada arte tem seu valor e não precisa ser só dinheiro,
pode ser valor sentimental18.

Antes do término da aula, os alunos tiveram a oportunidade de comentar suas


impressões sobre toda a experiência das últimas aulas (a sessão pré-
espetáculo, a ida ao espetáculo e a sessão pós-espetáculo). Alguns alunos
trouxeram em suas falas que as atividades foram prazerosas e notaram um
maior envolvimento da turma. Esses comentários revelam que a sequência de
mediação teatral ganhou outras características que foram sentidas pelos
alunos.

Das aulas que ficam na memória

Essa é a história de como eu aprendi a separar areia do pó de serra.

Eu tinha 14 anos. Estava cursando o 9º ano do Ensino Fundamental. Na


época, minha única preocupação era ser aprovado em um Vestibulinho para
poder estudar o Ensino Médio numa ETEC de minha cidade. Todas as aulas
eram o seguinte tormento: nova matéria, escutar a explicação, anotar,
memorizar, tirar dúvidas, decorar, fazer exercícios, fazer prova e depois vinha
uma nova matéria. Hoje, poucas coisas dessa rotina ficaram na memória.
Talvez com algum esforço eu recorde o nome de um ou outro professor, ou
resgate da cabeça como se resolve uma regra de três composta. Mas tem uma
experiência vivida em aula que atualmente eu guardo com extremo carinho.

A aula era ciências, e veja bem, eu detestava ciências. Até que um dia a
professora Verena chegou à sala de aula. Sua tarefa ali seria substituir por um
bimestre a professora titular que estava de licença.

A professora Verena entrou na sala de aula, olhou para os 40 alunos sentados


em cadeiras enfileiradas e com um ar sútil e misterioso disse: em silêncio, me

18
Trecho da transcrição de áudio gravado na sessão de mediação pós-espetáculo.
45

sigam. A turma inteira ficou apreensiva. Ninguém conhecia aquela professora e


quando alguém era chamado para fora da sala de aula, já imaginávamos que
algo de errado tinha acontecido, sinal de que escutaríamos uma bela bronca.

Chegamos ao pátio da escola e encontramos 20 garrafas em cima da grande


mesa do refeitório. A professora nos instruiu a ficarmos em duplas e nos
aproximar de uma das garrafas. Todos os alunos perceberam que as garrafas
continham alguma mistura. Eis então que a professora se apresentou para
todos e lançou o seguinte desafio “em dupla, vocês terão de descobrir um jeito
de separar a mistura de areia e pó de serra que está nessa garrafa”.

A turma toda entrou em um clima de competição. Todos despejavam a mistura


sobre a mesa e começaram a separar com as mãos o que era pó de serra e o
que era areia. Instigado pelo desafio, não tardei em pegar a garrafa e seguir o
restante da turma, mas fui impedido por Pâmela, minha colega de dupla.
Pâmela disse que tinha olhado nos livro didático de Ciência que um dos
capítulos chamava-se “separação de misturas”. Então ambos corremos
desesperadamente até a sala de aula.

Eu nunca estive tão feliz abrindo um livro de Ciências.

Encontramos nas páginas do livro um termo chamado “Flotação”. O livro dizia


que alguns materiais eram possíveis de serem separados através da
densidade ou algo do tipo. Resumindo: descobrimos que era só encher a
garrafa de água. Corremos com nosso pote até o bebedor de água mais
próximo e acrescentamos água. Dito e feito. A areia permaneceu no fundo da
garrafa enquanto o pó de serra subiu. A mistura estava separada. Nas aulas
restantes do semestre, a professora Verena seguiu explicando o conteúdo
previsto para o bimestre (separação de mistura, densidade, volume)
associando com o experimento realizado pelos alunos.

A vida seguiu. Não me tornei um cientista e nunca mais voltei a separar areia
do pó de serra. Mas então me pergunto o que tinha de interessante naquela
aula ao ponto de ter sido uma das maiores experiências na escola guardadas
em minha memória?
46

Talvez a resposta esteja no papel que eu assumi dentro daquela situação de


aprendizagem. A professora Verena desafiou a turma inteira a se colocar como
investigadores, inventores, solucionadores de um problema real e concreto. O
desafio estava lançado a todos os alunos que sentiam o prazer pela
descoberta.

Assumo que as outras aulas que eu tive ao longo do Ensino Fundamental


foram importantes para minha formação como aluno, porém esta em específico
me proporcionou uma experiência ao nível sensível por meio de outros modos.

É essa experiência que buscamos proporcionar aos alunos-espectadores


através de uma atividade de mediação teatral. Quando as mediações possuíam
forte semelhança às atividades cotidianas vivenciadas pelos alunos na escola,
a experiência dificilmente chegava ao campo da sensibilização e da
reverberação. Os alunos se viam como alunos e por tanto agiam como tais:
buscavam respostas corretas, a aprendizagem só acontecia no acerto.

Aqui eu encontro uma distinção. Até então, minha preocupação como


mediador teatral era a de propor exercícios em aula que sensibilizassem os
alunos. As modalidades de mediação criadas buscavam seguir os padrões
escolares formando uma espécie de aula com exercícios de mediação teatral.
Já na mediação do espetáculo “A última gaivota” o pensamento caminha para
um lado que eu acho mais potente. Pensamos em mediação teatral que, por
questões circunstanciais, estão sendo realizadas em sala de aula. Essa última
possibilidade preocupa-se em criar uma experiência que, apesar de estar
sendo vivenciada dentro do contexto escolar, possa propor algo que subverta
algumas lógicas de funcionamento dessa instituição.

Os dados lúdicos das mediações do espetáculo “A ótima gaivota” colaboraram


para a criação de um espaço no qual a relação aluno e professor puderam sair
ao menos um pouco desse eixo. Na sessão de mediação pré-espetáculo, Nina
e Treplev conduziam as atividades colocando nos alunos as suas últimas
esperanças para a salvação do teatro. Os alunos eram assim espectadores e
atores que através do material poético de Tchekhov tiveram o interesse
despertado pelo espetáculo a ser assistido. No caso da mediação pós, os
mediadores colocavam-se no papel de apresentadores de televisão
47

transformando a aula num programa de entretenimento. O dinheiro colocava


outras perspectivas sobre o valor da arte e os alunos percebiam isso através
da experiência viva ali proposta.

As instruções dos exercícios foram uma chave para propor esse outro tipo de
experiência. A instrução na sessão pré-espetáculo, não vinha pela voz do
professor como acontece geralmente, mas sim de um personagem, de uma
gaivota encontrada embaixo de uma rampa ou de um cronômetro projetado na
tela. Na mediação pós o exercício não era a escrita de um texto dissertativo ou
analítico, mas sim uma receita culinária. Os alunos poderiam assim, acessar as
atividades com um corpo e mente mais sensível e menos preocupado com as
questões cotidianas da escola. Assim como na minha aula de ciências, a forma
como o enunciado do problema era apresentado aos alunos abria espaço para
um novo tipo de aproximação com o conteúdo.

Vale ressaltar também que esse trabalho exigiu uma preparação muito mais
complicada que as mediações anteriores. A elaboração dos exercícios
logisticamente seria impossível realizar apenas com um professor ou mediador.
O professor no papel ou professor-personagem também foram pontos que
forneceram pistas interessantíssimas para uma atividade de mediação teatral.
Mas trataremos dessa questão no próximo capítulo, pois lá ela aparece mais
nitidamente.

Sabemos que a mediação teatral são as atividades que promovem a


aproximação entre público e o espetáculo. Pensar em formas nas quais essa
aproximação possa ocorrer através de uma perspectiva que provoque
experiências significativas e diferenciadas aos alunos, pode ser um modo de
instigá-los e sensibilizá-los para as potencialidades existentes na linguagem
teatral. A mediação teatral dentro do nosso projeto passa então focar em outros
objetivos: o lúdico, o desafio, o sensível, o desconhecido, o prazer. Se a
mediação for feita em sala de aula, que seja uma aula que fique guardada em
nossas memórias.
48

4. EM BUSCA DO MUNDO IDEAL: MEDIANDO A EXPERIÊNCIA


“UTOPIA NA ERA DA INCERTEZA”.

“Porque, se de um lado não posso concordar com tudo o que


disse este homem, de outro lado confesso sem dificuldade que
há entre os utopianos uma quantidade de coisas que eu aspiro
ver estabelecidas em nossa sociedade19.”

O espetáculo “A utopia numa noite de inverno”

Vamos desembaraçar alguns fios para falar desse espetáculo.

“Utopia na era da incerteza” abrange uma série de experiências artísticas


híbridas, ou seja, o percurso que os artistas propõem ao público consiste na
contemplação de quatro instalações, a apreciação de um espetáculo e por
último a participação de uma “Ágora contemporânea”. O espetáculo assistido
chama-se “Utopia numa noite de inverno”, mas antes de assisti-lo o público
vivencia toda a imersão proposta.

Imagem 23: Cena do espetáculo “Utopia numa noite de inverno”. Fonte: Cia Lúdica.

19Trecho do livro “A utopia” de Thomas More. Publicado em 1516, o autor descreve seu
encontro com um navegador chamado Rafael Hitlodeu. Rafael descreve a Thomas More a
descoberta de um lugar chamado Utopia.
49

A Cia. Lúdica (nome do coletivo de artistas criadores), através do projeto


Fomento ao teatro da cidade de São Paulo, propõe uma experiência imersiva
nas diferentes linguagens artísticas. Essa imersão ocorre no espaço cultural
“Tendal da Lapa20.” A sinopse que a Cia. Lúdica propõe para o espetáculo é a
seguinte:

“Em “Utopia em uma noite de inverno” um grupo de cidadãos


(ãs) sem-teto, anônimos, vivem desalojados ao lado de um
imenso prédio desocupado, numa grande cidade. Em uma fria
e chuvosa noite de inverno, surgem agentes “benfeitores” que
distribuem uma sopa quente a esse grupo. Como em um passe
de mágica, todo o grupo adormece e ao acordar encontra-se
em um mundo ideal, onde a utópica vida boa se concretiza.21”

Esse espetáculo chegou até nós através de uma indicação feita à professora
Adriana. Como a peça ficaria em cartaz por longo período de tempo,
conseguimos assisti-la antes de levarmos os alunos.

Na experiência proposta pela Cia. Lúdica, o grupo de espectadores


apreciavam primeiramente duas instalações, ambas eram focadas em aspectos
visuais e sonoros, tendo por vezes a presença de atores e atrizes que
interagiam com as obras. Logo após, o público entrava em outras duas
instalações que traziam propostas mais sensoriais. Uma delas consistia em
uma espécie de natureza, na qual os performers nos convidavam a sentir
diferentes materiais como as folhas, galhos e areias do chão. Por último,
chegávamos à instalação final que trazia globos e objetos sonoros na qual os
performers incentivavam o público a dançar.

Após as instalações, uma porta se abria e o grupo nos indicava com uma
canção, o local onde assistiríamos à peça. Depois do término do espetáculo, o
grupo colocava no centro do palco uma espécie de tela branca e
disponibilizava materiais como canetinhas, giz de cera, lápis para nos
manifestarmos artisticamente. Um microfone, instrumentos musicais e livros de

20O Tendal da Lapa é um conjunto arquitetônico localizado no bairro da Lapa, em São Paulo.
O espaço oferece apresentações teatrais, oficinas, danças, esportes e músicas gratuitas, há 20
anos, ministradas por professores voluntários.
21 Sinopse encontrada e disponibilizada no link:
50

poesias também eram disponibilizados para quem quisesse utilizar de outros


meios para se expressar.

Imagem 23: Fotografia da instalação proposta pela experiência “Utopia na era da Incerteza”.
Fonte: Ronaldo Fogaça.

Imagem 24: Fotografia da instalação proposta pela experiência “Utopia na era da Incerteza”.
Fonte: Ronaldo Fogaça.

Alguns fatores nos influenciaram a levar os alunos a assistir o espetáculo. Da


experiência hibrida proposta pelo grupo, as instalações no começo chamavam
mais a atenção. Elas tinham um caráter misterioso e aberto às diferentes
possibilidades de leitura, o que nos interessava bastante. O espetáculo
também trazia muitas cenas interessantes da qual poderíamos tirar alguns
eixos para as mediações. Por último, o fato de ser um espetáculo gratuito e
51

fora do campus da Universidade de São Paulo nos instigou ainda mais a


embarcar junto aos alunos nessa experiência.

As encrencas do 8º ano

A passagem da infância para a adolescência é uma das características


principais das alunas e alunos do 8º ano do Ensino Fundamental. Na Escola de
Aplicação a atribuição de aulas promove aos alunos o curso de Arte-Teatro. A
aula é obrigatória e faz parte da grade curricular como qualquer outra
disciplina. Durante o período de um ano letivo os alunos dessa série passarão
por situações de aprendizagem nas quais terão contato com os elementos da
linguagem teatral (atuação, espaço, sonoplastia, figurino).

É lógico que essa obrigatoriedade acarreta algumas dificuldades. Nem todos


os alunos estão disponíveis e interessados nos conhecimentos reunidos das
artes cênicas, isso torna mais complicado o desafio de propor atividades de
mediação teatral.

Outro fator diferenciado é o número de alunos por classe. Todas as aulas são
realizadas com 30 alunos. Vez ou outra, quando possível, a professora Adriana
pensa em formas de dividi-los em dois grupos de 15, tornando as atividades de
sua aula mais fluídas. Na experiência com o espetáculo “Utopia em uma noite
de inverno” pude conduzir as mesmas atividades de mediação com grupos de
15 e 30 alunos, mais para frente relatarei melhor os impasses dessa diferença.

Para a saída com os alunos do 8º ano as barreiras de acesso físico ficaram


mais visíveis. Mesmo a peça sendo gratuita, as famílias dos alunos ajudaram
financeiramente com os custos do ônibus que faria o transporte da turma para
o Tendal da Lapa. A saída também se diferenciava das demais realizadas no
semestre pelo fato de ser uma atividade realizada no contra turno escolar.
Como alguns alunos já possuíam atividades programadas nesse horário,
algumas ausências foram incontornáveis.

A saída com os alunos aconteceu em dias diferentes pelo fato do espetáculo


ser limitado somente à 50 pessoas por sessão. Com o primeiro grupo, sentimos
falta de falar sobre o espaço do Tendal da Lapa que tem um valor histórico
muito importante. Dessa forma, com o segundo grupo a professora Adriana
52

preparou um material de mediação sobre o espaço em que estávamos


visitando.

Imagem 25: Turma do 8º II conhecendo o espaço do Tendal da Lapa. Fonte: Ronaldo Fogaça.

Imagem 26: Alunos no 8º I conhecendo o espaço do Tendal da Lapa. Fonte: Ronaldo Fogaça.

Um chá com Thomas More

Para você, o que seria um mundo ideal?

Provocar esse questionamento era um dos principais objetivos da atividade de


sensibilização proposta aos alunos do 8º ano. Para isso, nos baseamos no livro
“A utopia” do escritor inglês Thomas More. O nome da obra se originou da
composição dos termos gregos “ou” (advérbio de negação), “topos, ou” (lugar)
53

e “ia” (qualidade, estado). Portanto, a palavra refere-se a um “não lugar”, ou um


lugar inexistente. Nas páginas do livro, Thomas More relata seu encontro com
Rafael Hitlodeu, um navegador que descobriu a ilha de Utopia e agora
compartilha suas descobertas encontradas na sociedade idealizada.

Novamente, queríamos criar uma atividade que propusesse uma experiência


no campo sensível e lúdico. Para isso, resolvemos criar em sala de aula uma
expedição de encontro com o personagem Thomas More. Esse personagem
guiaria os alunos por uma jornada de descobertas e reflexões sobre o que seria
um mundo ideal. Dessa forma, os alunos criariam seus próprios ideais sobre
utopia, que seriam mais tarde confrontadas com o espetáculo a ser assistido.

Da experiência com a mediação do espetáculo “A última gaivota”, (no qual os


mediadores assumiam papeis e personagens) decidimos por aprofundar o
estudo dessa possibilidade em nossas mediações. Se antes tínhamos os
personagens Treplev e Nina (em cena e fora de cena) ou os papéis dos
apresentadores televisivos, agora iríamos trazer o próprio Thomas More para
conduzir os alunos pela atividade. Ficou decidido que eu, enquanto mediador
iria interpretar o personagem Thomas More.

Outro objetivo dessa sessão de mediação era aproximar os alunos do conceito


de instalação artística. A experiência híbrida proposta pela Cia. Lúdica brincava
com essa modalidade, e portanto, achamos necessário despertar o interesse
dos alunos para os elementos que constituem uma instalação. Transformamos
então a sala de aula e o auditório da escola em uma instalação artística guiada
pelo próprio Thomas More.

A sessão de mediação começava assim: os alunos entravam no auditório (ou


na sala de aula, como aconteceu em uma das sessões) e encontravam o
espaço pouco iluminado. Era possível enxergar somente algumas estruturas
cobertas por tecidos, panos azuis no chão indicando água, algumas placas
identificando os espaços como “não lugar”, “onde Judas perdeu as botas”,
“Beleléu”, etc.
54

Imagem 27: Estrutura indicando o lugar chamado “Nas cucuias”. Fonte: Adriana Oliveira

Os alunos então passeavam pelo palco observando as estruturas até


chegarem a Thomas More que permanecia sentado em sua cadeira tomando
um chá. Quando o personagem notava os alunos, ele os convidava para servir-
se da especiaria trazida de sua terra natal. Na primeira sessão parte dos
alunos não aceitaram dando a justificativa de que eles não gostavam de chá.
Nas sessões seguintes, os alunos não só tomaram como também acabaram
com a bebida que havia no bule.

Imagem 28: Fotografia da sessão de mediação pré-espetáculo. Fonte: Ronaldo Fogaça

Após esse momento de chegada e recepção, Thomas More se apresentava


aos alunos, dizendo de onde ele vinha, qual era a sua profissão e o que ele
55

precisava dos alunos. O personagem narrou aos alunos a história do seu


encontro com Rafael Hitlodeu e seu primeiro contato com a ilha de Utopia.

Após esse momento, Thomas More convidava os alunos a ajudá-lo a


encontrar o que seria esse lugar utópico. Os alunos munidos de lápis e canetas
coloridas foram instruídos a escrever em uma representação em papel do
nosso mundo, palavras que respondessem à pergunta: O que seria seu mundo
ideal?

Imagem 29: Atividade realizada pelos alunos do 8º ano. Fonte: Ronaldo Fogaça.

Para próxima parte, os alunos eram questionados sobre que tipo de espaço
era aquele onde eles estavam. Alguns diziam que pareciam ilhas, outras
falavam que eram apenas panos sobre as carteiras. Então, com a ajuda da
professora Adriana, os alunos eram apresentados ao conceito de instalação
artística através de um vídeo que trazia diversos exemplos desse tipo de
construção do espaço.

Após essa introdução ao conceito, os alunos eram desafiados por Thomas


More a criarem suas próprias instalações artísticas que representassem seus
respectivos mundos utópicos. Divididos em grupos de 5 ou 6 integrantes, os
alunos deveriam utilizar os materiais disponíveis para criar uma instalação que
seria visitada mais tarde por Thomas More.
56

Imagem 30, 31 e 32: Instalações artísticas representando a utopia dos alunos. Fonte: Ronaldo
Fogaça.

Ao final da atividade, visitamos todas as instalações artísticas discutindo sobre


os elementos que caracterizavam a ideia de utopia para os alunos. Na imagem
29, por exemplo, os alunos criaram uma instalação que nos transportava para
57

uma praia deserta na qual podíamos notar um clima de festa e diversão. Já nas
instalações mostradas nas imagens 30 e 31, os elementos abriam margens
para diferentes leituras, causando discussões interessantes para aprofundar o
conceito de utopia.

Foi interessante notar mais uma vez como a sessão de mediação ganhou
outras particularidades quando o pano de fundo “aula” desaparecia em parte. A
experiência também causava um estranhamento nos alunos. A atividade
propiciava momentos de apreciação não só visual, como também no campo da
descoberta sensitiva. O chá de baunilha servido no inicio da sessão é um
exemplo disso. A relação entre os alunos e um personagem de outro século
também colaborava para a imersão na atividade proposta. Novamente, optar
por alternativas não convencionais nos pareceu uma escolha positiva.

Essa sessão de mediação ocorreu três vezes. A primeira sessão com metade
de uma turma (15 alunos), as segunda com a outra metade dessa turma (15
alunos) e a última com uma turma completa de (30 alunos). Apesar de ser
logisticamente mais complexa, a atividade com o professor-personagem
pareceu instigar os dois grupos de forma igual.

Uma das dificuldades encontradas por mim ao longo da condução nesse tipo
de atividade foi como estabelecer e criar essa figura do personagem mediador.
No caso da mediação do espetáculo “A última gaivota” os personagens-
mediadores apareciam em uma cena que pouco se relacionava diretamente
com os alunos. A cena dava a instrução inicial e as instruções seguintes eram
encontradas pelos próprios alunos na caça à gaivota. O apresentador de
programa televisivo também não necessitou de grandes pesquisas visto que
nós, enquanto mediadores, nos colocamos nesse papel e jogamos conforme as
circunstâncias pediam.

Já com Thomas More o trabalho exigia maior preparação. O personagem


estaria conduzindo a atividade do começo ao fim, mas em nenhuma das
sessões eu consegui mantê-lo até o final. Quando os alunos apresentavam
suas utopias, eu aparecia como Ronaldo, o bolsista mediador, e não como
Thomas More, o escritor filósofo inglês. Eu senti que isso aconteceu pelo fato
de eu não estar tão preparado para jogar com esse personagem. A
58

caracterização de época e o sotaque estrangeiro estavam lá, mas me faltavam


referências para me sentir seguro em continuar por mais tempo no jogo com os
alunos.

Ao relatar isso em reunião, eu e a professora Adriana decidimos ler algumas


pesquisas relacionas à ideia de professor no papel ou theacher in te role. Em
nossas reuniões semanais lemos uma dissertação de mestrado recente sobre
o assunto da autora Heloise Baurich Vidor chamada “Drama e teatralidade:
Experiências com o professor no papel ou professor personagem e suas
possibilidades para o ensino de teatro na escola”. A partir da leitura, chegamos
a mapear esses conceitos novos que se mostraram muito interessantes na
perspectiva da mediação teatral.

“Ambos, professor no papel e professor personagem, trazem à


tona a questão do equilíbrio entre o estético e o pedagógico e a
questão da mediação do professor, enquanto transita entre os
papéis de ator e pedagogo. Neste sentido, o professor tem que
estar disponível para agir como se fosse outra pessoa,
mantendo o discurso desse outro alguém interagindo com os
alunos dentro do jogo. (VIDOR, pg. 108).”

Infelizmente essa foi a nossa última atividade de mediação na qual


propusemos um mediador no papel ou mediador personagem. Mesmo assim, o
chá com Thomas More conseguiu abrir o apetite dos alunos para a experiência
da “Utopia na era da incerteza”.

O que eu levo para a utopia e para onde a utopia me leva

Ao final da apresentação do espetáculo “Utopia em uma noite de inverno” os


alunos participavam de uma atividade proposta pela Cia. Lúdica chamada
“Ágora contemporânea”. Para mim, a atividade deixava a desejar, visto que as
instruções dadas pela Cia. Lúdica não provocaram o grupo de alunos. O
material da atividade era interessante, mas se houvesse ao menos uma
pergunta, provocação, ou desafio lúdico, os alunos teriam entrado mais na
proposta. Ao invés disso, os jovens espectadores utilizaram esse tempo para
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fazer brincadeiras que em nada dialogavam com o espetáculo ou experiência


ali vivenciado.

Como não houve um diálogo eficiente entre público e artista, achei


interessante desenvolver na sessão de mediação pós-espetáculo uma
atividade na qual poderíamos conversar e aprofundar a discussão das
temáticas contidas na peça.

A peça desenvolvia-se em torno dos três personagens principais: os


chamados “Refús”. Esses refús representam as pessoas em situações de rua
que em uma noite são levados até um mundo utópico. A utopia representada
na peça era caracterizada pela comida em abundância, pelas roupas
extravagantes de seus moradores e pela diversão e entretenimento
proporcionado por uma espetacularização envolvendo shows e um desfile de
moda.

A sessão de mediação pós-espetáculo começava com os alunos em roda. Eu


trazia para eles uma mesa repleta de objetos de tipos variados. Os alunos
então deveriam escolher dentre essa mesa um objeto que eles levariam para a
utopia vista no espetáculo e dizer ao grupo a justificativa de sua escolha. Esse
exercício foi chamado de “Vou para a utopia e vou levar...”.

Imagem 32: Fotografia da sessão de mediação pós-espetáculo. Fonte: Ronaldo Fogaça.


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Com os objetos escolhidos em mãos, os alunos eram divididos em pequenos


grupos e lhes eram dado o desafio de criar uma imagem em GIF 22. Essa
imagem deveria representar a visão de utopia deles. Após um tempo, os alunos
apresentaram seus respectivos GIF’s e a plateia escolhia um nome para a
imagem formada. Esse jogo sofreu alterações ao longo das diferentes sessões.
Em sua última versão, os alunos criavam seus GIF’s a partir de imagens
projetadas na parede, assim como acontecia em algumas instalações da
experiência com a Cia. Lúdica. A partir da imagem e das escolhas feitas pelos
alunos, conversamos um pouco sobre como a utopia aparecia para os
personagens da peça.

Imagem 33: Alunos criando uma imagem em GIF a partir da projeção da natureza. Fonte:
Ronaldo Fogaça.

Depois desse momento de conversa, os alunos assistiram a três pequenos


vídeos de notícias. Cada vídeo trazia uma reportagem de diferentes épocas. O
primeiro vídeo falava sobre um evento chamado “Adoção na Passarela” no qual
crianças de um orfanato eram colocadas para desfilar na frente de pessoas
dispostas a adotá-las. O segundo vídeo era uma reportagem dos vinte anos
que o crime de homicídio contra o índio Galdino aconteceu. Por último, um
vídeo mostrando a violência da guarda municipal ao retirar os pertences de um
morador de rua com extrema violência.

“Graphics Interchange Format” ou GIF é um formato de imagem de bitmap tem vindo a ser
22

amplamente utilizado na World Wide Web devido ao seu amplo suporte e portabilidade entre
muitas aplicações e sistemas operacionais.
61

Os vídeos, de conteúdo forte, causaram bastante comoção e revolta nos


alunos. Tendo esses vídeos como disparadores, retornamos com uma
conversa sobre o que seria de fato um mundo utópico para as pessoas
representadas na peça como “refús”.

A atividade propunha um exercício reflexivo pautado em conversas de longa


duração. Esse debate foi possível pelo fato de os dispositivos de provocação
serem fortes o suficiente para engajar os alunos na conversa. Mesmo com a
possibilidade de desenvolver atividades mais artísticas, achamos necessário
esse momento de diálogo e reflexão para compreendermos como a peça
reverberou no coletivo de espectadores.

Um caso que chamou a atenção foi a de um dos alunos que no primeiro


exercício escolheu levar para a utopia uma garrada de pinga com a justificativa
de que lá ele poderia “tocar fogo nas coisas”. No exercício de criação de
imagens GIF’s um grupo representou como utopia a seguinte imagem:

Imagem 34: Imagem da cena na qual uma pessoa está desacordada no chão, uma outra está
jogando álcool em cima dela e por último alguém fotografa a cena toda. Fonte: Ronaldo
Fogaça.

Esse exercício acontecia antes do momento dos vídeos. Os alunos, quando


assistiram essa imagem, acharam a cômica e divertida. Para eles a utopia
estava aparecia porque no mundo ali representado no GIF, sempre existiria
alguém para fotografar crimes. Quando eles assistiram à reportagem sobre o
índio Galdino um silêncio de constrangimento pairou sobre a turma toda. A
imagem feita anteriormente já não era mais engraçada.
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Em um dado momento do espetáculo, os “Refús” estão sendo expulsos da


utopia pelo que seriam os donos do lugar. Nesse momento, os Refús escutam
dos personagens “Façam por merecer, trabalhem! Só assim vocês poderão
voltar a viver em Utopia”. Esse momento do espetáculo causou grande
discussão entre os alunos sobre a temática da meritocracia, desigualdade
social, tipos de opressão e violência.

A atividade de mediação, por mais que não fosse composta por grandes
elementos estéticos como as anteriores, foi bastante produtiva para discutir
temas não só do espetáculo, mas como também do mundo ao redor. O
espetáculo assistido pedia esse momento de pausa e discussão. Dessa forma
a utopia levou os alunos terem a perspectiva de outra realidade distante das
suas.
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5. SUGESTÕES E LEMBRETES: COMPARTILHANDO MINHA


EXPERIÊNCIA DE TRÊS ANOS NO PROJETO

Quando pela primeira vez na minha vida me veio uma vontade de estudar
artes cênicas para ser professor, a diretora do meu grupo de teatro, Sandra
Mezenna, me emprestou um livro chamado “Improvisação para o teatro” da
autora Viola Spolin.

Na época eu achei a leitura revolucionária. Lia diariamente os jogos propostos


pela autora e tinha a vontade de testar todos. Para mim os conceitos que ela
apresenta no começo do livro eram meio complexos, mas quando cheguei à
graduação pude revisitá-los de outro lugar.

De todas as partes do livro a que eu acho mais curiosa refere-se aos


momentos nos quais ela dá ao leitor “Sugestões e lembretes” sobre como
conduzir uma oficina de jogos teatrais. Esse momento do texto basicamente é
formado por uma lista de 96 itens para alertar os professores e alunos de
teatro, e eu o acho um dos momentos mais divertidos da leitura. São rápidos,
simples e muito questionáveis os conselhos que a autora transmite. Porém
acho que eles lançam luzes e provocações para todos aqueles que em algum
momento decidiram se tornar professor de teatro.

Digo tudo isso porque agora pretendo compartilhar com vocês leitores e
leitoras, a minha própria lista de 11 sugestões e lembretes para aqueles e
aquelas que possuem interesse em trabalhar com mediação teatral. Esses
conselhos tem como base minha experiência ao longo desses três do projeto,
criando e refletindo sobre as atividades de mediação.

Diferente da Viola Spolin, não pretendo ser americano e muito menos


metódico. Portanto, não leia os itens a seguir como se fossem os 10
mandamentos de Deus, ou um manual de mediação teatral. Veja essas
sugestões como pequenas pistas e rastros deixados pela minha vivência. Mais
uma vez, divirta-se.
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I – A escolha que vem do coração

É. Parece brega, eu sei. Mas uma das primeiras questões que devem ser
pensadas quando mediamos um espetáculo (principalmente se for com alunos)
é qual peça escolher. Isso se você tiver o luxo de poder escolher um
espetáculo, visto que essa escolha às vezes acontece pela facilidade de
logística e pelas temidas barreiras do acesso físico.

Quando eu mediava espetáculos que me instigavam como espectador o


resultado era muito mais interessante. É como indicar um filme para alguém.
Se o enredo, os atores, a direção, a temática, a fotografia ou qualquer coisa
não tenha lhe chamado atenção, você não indicaria esse filme ao grupo de
alunos.

Mas não vai pensando que você só vai mediar suas peças preferidas. Eu
queria muito fazer uma mediação do musical “O rei leão”, mas veja bem, não
foi possível. A questão está em você encontrar aquilo que instigue seu
coraçãozinho de artista, nem que seja um detalhezinho do espetáculo (uma
cena, uma fala, um gesto do ator). Dessa forma, leques de possibilidades de
atividades de mediação irão aparecer.

II – Conheça o espetáculo

Tarefa de casa para todo mediador e mediadora: conheça o espetáculo!

É possível criar sessões de mediação sem conhecer o espetáculo? A resposta


é sim. O trabalho fica fluído? Nem tanto.

Assistir o espetáculo junto com os espectadores é fundamental! Assistir o


espetáculo antes do grupo de espectadores é o ideal também. Ajudava-me
muito anotar minhas primeiras sensações e interpretações antes de começar o
dever mais investigativo.

Por investigação estou falando sobre um verbo da internet chamado


“Stalkear23” o espetáculo. Peça para ir em um ensaio, procure o texto da peça,
estude as referências que o grupo teve para criar o conjunto de cenas, saiba as

23Stalkear é uma palavra derivada do inglês stalker, que significa “perseguidor”. Neste caso, o
neologismo português significa “ato de perseguir”.
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fofocas dos bastidores. Se a peça tem um momento no qual cai chuva no


palco, descubra como isso acontece. Todas essas informações colaboram para
você ter caminhos diferentes que poderão levar os espectadores a muitos
lugares interessantes.

Mas não se esqueça da sua leitura inicial ao ver o espetáculo. Ela é


extremamente importante. O mediador antes de tudo foi um espectador que, ao
ter contanto com a obra, teve também suas questões e experiência estética.
Isso nos leva ao próximo lembrete.

III – “Ronaldo, você não pode mediar seu próprio espetáculo”

Essa frase, quando foi dita a mim pela Prof. Maria Lúcia Pupo, causou
diversos incômodos. E se você chegou até a essa página, já me conhece
relativamente bem para saber que eu gosto de solucionar meus incômodos.
Experimentei, ao longo do projeto, ser diretor e mediador. Duas vezes.

Não leve a mal, as duas coisas aconteceram tranquilamente. Não foi o fim do
mundo. Porém, hoje concordo com a professora Malu. O diretor, ator,
cenógrafo, iluminador ou qualquer outro membro do coletivo de artistas está
dentro do processo de criação. Mas qualquer que seja a proposta trazida por
eles, soará como uma sequência da experiência estética. A mediação teatral é
um espaço nosso, dos espectadores, para discutir, elaborar e criar a partir das
nossas próprias reverberações. É lógico que os artistas são bem-vindos, mas o
momento é de escuta do público. E isso é mais interessante se proposto por
um mediador que faça parte desse público.

IV – Conheça os espectadores

Tarefa de casa número “2” do mediador: conheça o público.

Isso talvez faça mais sentido se você estiver trabalhando no contexto escolar.
Já falamos anteriormente que a mediação é o espaço dos espectadores, então
conhece-los é deveras importante para a fruição da sessão de mediação.

Esse público tem qual idade? Eles já tiveram contanto com a linguagem
teatral? Qual foi a última peça que eles assistiram? Eles conseguem sustentar
um diálogo sem dispersar? Quais referências artísticas eles tem? O que será
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que os provoca? Será que eles conhecem esse jogo “x”? Eles gostam de
desenhar? De fazer cena? De cantar? De dançar?

As perguntas são infinitas. Mais uma vez o mediador se transforma em um


investigador curioso. Essas descobertas farão com que você faça uma melhor
escolha sobre quais modalidades de mediação são mais justas para um
determinado público. Mas lembre-se que não há resposta certa e segura. As
vezes propor o diferente e inusitado também pode funcionar.

V – Chega de aula!

Mediação teatral não é uma aula de teatro. Se existe dois nomes, existem
duas coisas diferentes.

A mediação pode acontecer no espaço da aula (como acontece geralmente no


nosso projeto), mas ela não precisa ter o propósito de ensinar, ainda mais se
for de uma forma “didatizante” e simplificadora.

A primeira experiência que eu tive como mediador, decidi ensinar os alunos o


conceito do que era “Triangulação”. A mediação (que ocorreu pré-espetáculo)
foi muito divertida e eles aprenderam triangulação da teoria à prática. Ponto.
Chegada a hora do espetáculo eles sabiam identificar quando um palhaço
triangulava com a plateia. Ponto.

Adoro triangulação, mas veja bem, ficou por isso mesmo. A aula poderia ter
discutido a questão da quebra da quarta parede e suas consequências. O que
os alunos sentiam como espectadores quando um palhaço jogava diretamente
com eles através do olhar. Ou o porquê da triangulação causar um efeito
cômico. Mas a mediação se resumiu apenas a uma aula de um pequeno
aspecto da linguagem cômica do palhaço.

Não acho que as aulas sejam ruins também. Gosto muito das aulas da
professora Adriana que promovem outra relação com o espaço de aula. O que
tentamos evitar e desconstruir é o próprio contexto escolar vivenciado
diariamente pelos alunos. As aulas da professora Adriana já fazem isso de
certa forma, mas as mediações teatrais levam isso a um nível ainda maior.

VI – Espectador não é um bolo pra você prepara-lo.


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Essa é especificamente para as sessões de mediação pré-espetáculo.

Para utilizar ainda o mesmo exemplo, voltaremos à primeira atividade de


mediação a qual eu ajudei a preparar. A sessão de mediação envolvendo a
triangulação fazia parte de um combo de outras sessões que trabalhariam com
sonoplastia e narratividade.

Sinto, hoje, que a criação dessas sessões de mediação foi assim: o espetáculo
tem sonoplastia. Tem! Então coloca uma sessão pra trabalhar com sons. O
espetáculo tem triangulação. Tem! Então coloca uma sessão de triangulação
junto. O espetáculo tem narrativa. Tem muita! Então bota duas sessões para
trabalhar com isso.

Existia um pouco essa lógica de que o espectador era um recipiente no qual


colocaríamos alguns ingredientes que tornariam possível sua fruição. Depois
de alguns estudos teóricos e práticos, cheguei à conclusão de que não existe
pré-requisito para um espectador assistir a uma peça teatral. Ele verá o
espetáculo a partir de suas referências pessoais e isso torna a sua leitura única
e especial.

O que podemos fazer, antes do encontro do público com a obra, é instigar à


vontade, a curiosidade, a expectativa. Isso tem mais a ver com sensibilizar o
olhar e não prepara-lo para uma uniformidade de se ler o mundo.

VII – Controle o monstrinho da explicação que vive em você

Eu sou um defensor nato do momento de conversas.

“Conversar é um modo de exposição sobre o que estamos


pensando, sentindo, e, por isso, momento de partilhar
impressões, as sensações, as ideias e conceitos perceptivos
gerados pela experiência estética. No ato de conversar
trocamos informações, entramos em contato com as
percepções e o modo de sentir expressado pelas ideias dos
outros. A conversação nos leva à escuta de diferentes pontos
de vista, o que é uma contribuição valiosa de ampliação de
nossa própria experiência alicerçando nossa integração
cultural.” (MARTINS, pg. 37).
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Porém, ao longo de três anos do projeto tive diversas dificuldades em


conduzir debates. Isso me levou a criar os dispositivos conhecidos como
“Conversa Game” que até certo ponto mostraram-se interessantes para o
desenrolar das sessões.

O mediador desempenha muitas funções durante o diálogo aberto sobre os


espetáculos. Para isso, deve estar preparado com um acervo de perguntas que
provoquem e instiguem os alunos-espectadores a participarem desse
momento.

Mais que a preparação, o momento da conversa exige também uma


sensibilidade da escuta. Houve casos ao longo de algumas discussões onde
em me encontrava mais preocupado nas respostas que eu poderia dar aos
alunos e por vezes nem escutava suas respostas.

Mora, pelo menos em mim, um monstrinho da explicação que teima em


aparecer como resposta à ansiedade em fazer com que a experiência do
espetáculo faça sentido aos espectadores. Esse monstrinho foi desaparecendo
com o passar dos anos na minha prática. Ao invés disso, comecei a apreciar o
estado de confusão que as atividades de mediação proporcionavam aos
alunos. Quando estes encontram (ou não) sozinhos às respostas para suas
perguntas, o mediador concluiu metade de sua tarefa.

VIII – Não esquecer nossas responsabilidades como educadores

Há momentos ao longo da conversa em que nossa visão de mundo será


chamada para entrar na discussão. Isso é normal, principalmente no contexto
escolar no qual uma das prioridades é a formação dos alunos. Dessa forma,
temos uma responsabilidade com o que propomos para os espectadores.

O importante é estabelecer o jogo de uma forma que os alunos compreendam


que a sua visão não é a correta e nem a mais validada. A intenção não é
chegar a uma ideia unânime e sem nenhuma discordância. O mediador está ali
para proporcionar que os espectadores cheguem a conhecer diferentes
perspectivas e principalmente respeitar aquelas que sejam diferentes da sua.

IX – Olhar sensível ao olhar do outro


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Como um trabalho artístico, a mediação precisa de um olhar sensível para sua


criação. A diferença é que nosso olhar deve buscar o que o outro vê.

Um exemplo vivo dessa questão está na experiência de mediação do


espetáculo “Dois Baús” na qual a atividade de mediação foi criada basicamente
sobre as reações que os alunos tiveram ao assistir o espetáculo.

Dessa forma, quando o mediador estiver acompanhado com seus alunos ou


espectadores, seu olhar deve estar não só acompanhando o desenrolar da
peça, mas também as ações que permeiam a plateia: suas reações, suas
risadas, suas surpresas. Tenha certeza que observar esses elementos será um
espetáculo à parte.

X – Revele o artista que existe no espectador

Propor um diálogo sobre e com a cena é uma das principais características de


uma atividade de mediação.

Suscitar no espectador a disponibilidade sensível que lhe


permita manter-se à escuta daquilo que a obra provoca nele é
o que almejamos. Mas isso não é tudo. Abrir perspectivas para
que ele se lance no desafio de “compor o próprio poema” a
partir do poema que existe diante de si, criando cenas que
conversem com outras cenas é a ambiciosa aventura que vale
a pena ter em vista. (PUPO, pg.314).

Dessa forma, não existe uma regra única que possa tornar essa missão
possível. Cabe ao mediador uma postura criadora e a vontade de ver respostas
artísticas vindas do outro lado do palco.

Em três anos do projeto, pude ver alunos e alunas revelando interpretações


poéticas sobre a experiência de fruição a qual eles participaram. O encontro
das mais diferentes leituras abre espaço para que olhemos o mundo sobre a
visão do outro.

XI – Um trabalho interminável

A mediação não acaba ao final de uma sessão. Ela segue reverberando nos
espectadores que por ela participaram. Mesmo a mediação sobre a
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triangulação mantém-se viva quando os alunos associam essa técnica à


alguma outra cena por eles assistida. Então não tenha a coragem de dar algo
por terminado, morto.

Por mais que minhas pesquisas com mediação tenham chegado a esse ponto
de conclusão dentro do projeto, espero seguir pesquisando o tema da
mediação teatral na minha carreira como professor ou na minha prática como
artista.

Não planejei um final para esse texto. Portanto, resta-me citar a frase que eu
aprendi com os muitos alunos que também não achavam um final para sua
cena.

Cena acontecendo no palco. Os alunos seguram suas risadas


de constrangimento. Até que um deles se vira para professora
e diz: É isso, acabou24.

24 Anotação em meu caderno de registro. Para consultar é só entrar em contato comigo.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. São Paulo. Editora


Perspectiva, 1999.

BRASIL. Lei de diretrizes e bases da educação. Brasília, 1996.

BRASIL. Secretaria do Ensino Fundamental. Parâmetros Curriculares


Nacionais: Arte – Ensino Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997. v. 6.

DESGRANGES, Flávio. A pedagogia do espectador. São Paulo: Editora


Hucitec, 2002

___________ Pedagogia do teatro: Provocação e dialogismo. São Paulo:


Editora Hucitec, 2006.

___________ A inversão da olhadela. São Paulo: Editora Hucitec, 2013.

___________ O ato do espectador: perspectivas artísticas e pedagógicas. São


Paulo: Editora Hucitec, 2017.

KOUDELA, Ingrid Dormien e ALMEIDA JÚNIOR, José Simões (orgs). Léxico de


pedagogia do teatro. São Paulo: Perspectiva e SP Escola de Teatro, 2015.

FUZARI, Maria F. de Rezende e FERRAZ, Maria Heloíza. Arte na educação


escolar. São Paulo: Cortez Editora, 1991.

MARTINS, Miriam Celeste; PICOSQUE, Gisa. Mediação cultural para


professores andarilhos na cultura. 2ª ed., São Paulo: Intermeios, 2012.

PUPO, Maria Lúcia de Souza Barros. Para alimentar o desejo de teatro. São
Paulo: Editora Hucitec, 2015.

RYNGAERT, Jean Pierre. Jogar, representar: práticas dramática e formação.


São Paulo. Cosac Naify, 2009.

SOARES, Carmela. Pedagogia do jogo teatral: Uma poética do efêmero. São


Paulo: Editora Hucitec, 2010.

SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. Tradução, Ingrid Koudela e


Eduardo José de Almeida Amos. São Paulo: Editora Perspectiva, 2015
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ANEXO

RESUMO: O presente relatório visa relatar as atividades do projeto “Mediação


teatral: caminhos na educação básica” de forma a tecer reflexões sobre as
experiências práticas vivencias pelo aluno bolsista. Contribuindo assim para os
estudos a cerca da formação de público e espectador teatral.

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