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5 O Realismo no Teatro — aa O romantismo alargara na Franga, mestra do Brasil, a porta estreita do classicismo para que o fluxo do século XIX pudes: se passar, Nada de tempo e espaco ficcionais limitados de antemao, nada de regras impostas a visao poética do escritor, nada de enredos centralizados em torno de uma historia so. O poeta, ou seja, o criador, pois esta é a raiz etimoldgica da palavra, deve voar na amplidao, sustentado pelas asas da ima- ginacao, pelo dom da fantasia que Ihe faculta, em principio, todas as liberdades, as formais nao menos que as de conteti- do. A arte foi feita para libertar, nao para constranger. © tealismo, sobrevindo uma geracio depois, apés o fra- casso das tentativas revolucionarias de 1848, significou, para o escritor de teatro, o fim desses sonhos de grandeza, o retorno ao rebanho e ao senso comum. Ele se reconhece como um homem entre os outros homens, alguém interessado na vida em sociedade, nao nas escapadas ao infinito de alguns seres 78 Historia Concisa po TEATRO Brasneiro bafejados pela poesia. Victor Hugo, em 1830, legislava para o genio. Alexandre Dumas Filho, em 1860, pensa no bom cida- dao = na pratica, o burgués, que nem assume ares superiores de aristocrata, nem possui a curteza de vista do povo. O tema da liberdade, primeiro para as nagdes, depois para os indivi- duos, cede lugar a idéia burguesa de ordem, de disciplina social. Se o nicleo do drama romntico era freqiientemente a nagao, passa a ser, no realismo, a familia, vista como célula mater da sociedade. Retraindo-se 0 quadro hist6rico, que transita do passado ao presente, encolhe-se e simplifica-se o quadro ficcional: en- redos verossimeis, personagens tiradas da vida diaria, epis6dios fortemente encadeados, girando sobre nao mais do que um eixo dramatico. A cena, tendo de sugerir salas familiares, semelhan- tes as que se encontram fora dos teatros, enche-se aos poucos de aderegos: mesas, cadeiras, poltronas, sofas, c6modas, estan- tes, vasos de flores, estatuetas. A marca¢ao — os passos dados pelos atores, as mudangas de posigao destinadas a explicitar os sentimentos ou apenas a movimentar a parte visual — volta-se para dentro, para o centro do palco. Os atores ja nao se diri- gem t&o ostensivamente ao publico, antes fingindo ignora-lo, dando-lhe por vezes as costas. Ora, este enriquecimento pro- gressivo da 4rea de representagao, com cendrios que ja nao se reduzem a teldes pintados que sobem e descem em questao de segundos, leva os autores a nado abusar das mudangas de local, que, se minuciosas, demoradas, feitas com o pano fechado, retardam o andamento e enfraquecem o tOnus do espetaculo. Reaparece entéo uma certa economia no uso do espago e do tempo, nao por imposi¢ao tedrica e sim por sirnples conveniéncia cénica. A peca de trés atos, com cendrios que s6 sao trocados durante os intervalos, é a medida dramatica para a qual tendem Decio bE ALMEIDA Prapo 7 as pegas realistas de fim do século, sobretudo em sua feigao comercial, No Brasil, a ascensao do realismo coincidiu cronologica mente com os derradeiros dramas hist6ricos dignos desse nome, antes da decadéncia definitiva do género. $6 que estas pegas constituiam resquicios romanticos, produzidos em geral na provincia, ao passo que as comédias e dramas etiquetados de realistas apresentavam: no Rio de Janeiro, na qualidade de vanguarda teatral, em oposic¢ao ao repertério desgastado de Joao Caetano. Portugal participou com destaque deste movimento de renovagio, seja de textos, seja de modos de representar. Jovens artistas de procedéncia lisboeta, com alguma vocagao. literaria e bastante apetite amoroso, ou iniciaram a sua carreira de palco no Brasil, a exemplo de Luis Candido Furtado Coe- Tho (1831-1900), ou tiveram aqui prosseguida a sua trajetéria, caso de Eugénia Infante da Camara (1837-1879), menos conhe- cida entre nés por seus versos do que por ter sido amante de Castro Alves. Amigos de escritores, cuja roda freqtientavam, auxiliaram a diminuir a distancia até entdo existente enue pal- co e literatura, ao mesmo tempo em que ajudavam os atores nacionais a trocar estilisticamente o gibao romantico pela ca- saca moderna. Por alguns anos, entre 1855 e 1865, tivemos grata impressao de que a arte dramatica encontrara entre nds © seu caminho e que autores e intérpretes, 0 braco direito e o brago esquerdo do teatro, dar-se-iam finalmente as maos. A ilusao durou pouco, mas deixou uma ponderavel colheita dra- matirgica, em termos comparativos'. 1. Cf JR. P tiva, 1993. ia, O Teatro Realista no Brasi ; 1855-1865, Sao Paulo, Perspec- 80 Historia Concise po Trarro BRrasiriro Varios nomes de escritores dramaticos poderiam ser cita- dos neste contexto hist6rico. Por exemplo, o de Francisco Pi- nheiro Guimaraes (1832-1877), pelo éxito alcancado por seu drama Historia de uma Moga Rica, resposta nacional, quanto ao titulo, a Le roman d'un jeune bomme pauvre, de Octave Feuillet; ou o de Quintino Bocaitiva (1836-1912), que, antes de se tornar o lider republicano que todos conhecem, interessou- se pelo teatro, escrevendo trés pecas realistas: Onfalia, Os Mineiros da Desgraca e A Familia. Mas um grande autor, em particular, encarnou o realismo teatral no Brasil: José de Alencar. Ja 0 vimos compondo O Jesuita, texto com todos as marcas do romantismo. Mas isto foi a pedido de Joao stano, que dese- java comemorar em 1861 a Independéncia do Brasil. Ele, no entanto, ja tivera encenados a essa altura diversos originais diretamente filiados 4s mudangas recentemente ocorridas nos palcos franceses, Publicara até, em 1857, uma espécie de pla- taforma de lancamento do realismo, propondo como modelo de modernidade a dramaturgia de Alexandre Dumas Filho, que acrescentava, a seus olhos, 4 descrigao de costumes, uma nota in iva de critica moral. O teatro, encaminhando-se ja para a peca de tese, devia nao apenas retratar a realidade cotidiana, mas julga-la, aprovar ou desaprovar o que estaria acontecendo na camada culta e consciente da sociedade. A burguesia, re- vendo-se no espelho retificador — ou embelezador — do palco, teria por missao realizar-se como modelo de comportamento individual e coletivo. O desejo de Alencar, como podemos interpreta-lo, seria alcancar um meio-termo entre o drama enfaticamente dramati- co, descambando para o melodrama, e a comédia enfaticamente cémica, confinando com a farsa — por sinal, os dois géneros, melodrama e farsa, que imperavam no Brasil. Cada peca sua José de Alencar (litografia de Angelo & Robin, « partir de desenho de Augusto Off) Hisroua Concisa po Trateo Brasnen penderia para uma ou outra vertente, terminando bem ou mal, porem sem se afastar em demasia do ponto de equilibrio, além similhan¢a do qual enredo e personagens perderiam a vero necessdria ao ptiblico moderno que se intentava criar. Somando-se os dramas e comédias realistas de Alencar — por exemplo, O Crédito, As Asas de um Anjo, O que é.0 Casamen- fo, pegas escritas por volta de 1860, obter-se-ia um quadro com- pleto ¢ altamente idealizado da moral burguesa. A familia deve assentar-se sobre bases solidas, nao apenas legais como também afetivas, marido e mulher agindo dentro dos mesmos preceitos pais teria a sua area de atuagao propria, a casa, deixando ao homem respeitando filhos e sendo respeitados por eles. A mulher as outras preocupag6es, sobretudo as econdmicas. A paixao amo- rosa, elemento por natureza perturbador — e romantico, nesse sentido —, deve orientar-se para o casamento, instituigao alicercada sobre © amor, mas igualmente sobre a moralidade social. Nesse universo, purificado pela ficcdo, nao se admite naturalmente nem © casamento por dinheiro, nem a prostituigao, nem mesmo essa prostituicao disfarcada na qual é o amante, nao o marido, que paga o luxo da mulher. Quanto ao dinheiro, entidade desconhe- cida pela ficgao romantica, tem ele assegurado o seu posto na nova sociedade, na condic¢ao de indispensdvel padrao de troca. Depende o seu valor da maneira como € entendido: se bem, define-se como crédito, fator de expansao econdmica; se mal, torna se usura, desequilibrando pessoas e comunidades. Dois dos temas prediletos de Alencar, e de todo teatro realista brasileiro, haviam sido langados na Franca por Alexandre Dumas Filho: 0 da cortesa, a prostituta elegante, em La dame aux camélias, e o do dinheiro, em La question d'argent. Mas 0 verdadeiro problema social do Brasil naquele mo- mento era obviamente outro: o da escravidao. Alencar enfren- EIA PRADO: tou-o duas vezes: numa comédia, O Deménio Kamiliar (857) enum dr: ma, Mae (1860). A primeira explora a questao sol) o Angulo juridico, que nunca deixou de ser o do autor, O escrit vo é sempre um mal, para si © para os outros, inclusive para 08 seus proprictirios. Sendo objeto, nado possuindo respons bilidade legal, ele € inimputavel, tanto moralmente como pe rante a lei, Se ainda por cima € um molecote, quase uma crianga, como “o dem6nio familiar” da comédia, ocupando na familia um lugar indefinido, entre o criado e o filho mais moco, pode tecer intrigas, desunir parentes e amigos, menos por maldade, que nao tem, do que por ignorancia, por nao avaliar bem as conseqtiéncias de seus atos. A liberdade seria assim a condi- gao sine qua non da maturidade moral. O homem so & inte- gralmente ele mesmo quando livre € responsavel. Alencar, ao escrever a peca, nao pensava tanto em advogar a causa dos escravos, como fiz am os genuinos abolicionistas. O que cle queria, com a abolicao, era ressalvar o Brasil, que para ingres- sar no mundo civilizado necessitava livrar-se — com as devidas cautelas — dessa macula, a escravidao, que poderiamos chamar, por nossa conta, de pecado original da sociedade brasileira, Mde retorna ao assunto, em nivel dramatico e de outro ponto de vista. Poe em foco, talvez com mais profundidade do que pretendia, as incertezas e ambigilidades que cercavam, num pais dividido entre negros ¢ brancos, escravos € pessoas livres, a figura indeterminada do mulato. Alencar imagina, para tan- to, uma situacao-limite, pouco provavel, mas nao impossivel de acontecer, Suponha-se um rapaz bem apessoado, de nivel econdmico de médio para alto, que parece e se julga branco, ignorando que a mulata que o serve ha muitos anos, funcio- nando como amiga e conselheira ristica, é na verdade sua mae. Suponha-se mais, que ela se sacrifica constantemente por ele, 84 Hisroxis Coxctsa po Teatro Brasteino nao so escondendo o fato de sua maternidade mas também deixando-se vender como escrava para salva-lo, a ele e 2 moca que o ama, da miséria e da vergonha. Vem agora 0 né drama- tico da pega © segredo dela é rompido por um amigo da fa- milia, que desempenha no enredo o papel da racionalidade e moralidade perfeitas (0 antigo raisonneur de Moliére, revivido pelo teatro realista como porta-voz do autor). Contudo, a rea- cdo dos circunstantes ante essa reviravolta nao poderia ser mais edificante (para exprimir o sentido do drama). Todos, pelo menos todos que despertam a simpatia do ptblico — 0 rapaz, a namorada, 0 futuro sogro, o amigo da familia -, encaram a nova situagdo como inteiramente normal. Que mal ha que um jovem, cheio de qualidades, seja filho natural, mulato, descen- dente de uma escrava? Nao esta o valor, de acordo com a ética burguesa, apenas no individuo, que paira fora e acima dos vaos e tolos preconceitos sociais? Temos aqui uma possivel aproxi- magao do problema, sugerida, porém nao explicitada, pelo tex- to. Branco, no Brasil, € quem aparenta ser branco, nao impor- tando tanto que tenha nas veias algumas ou muitas gotas de sangue africano. Ele € julgado, nao em termos de inferiorida- de bioldgica, fatalidade racial, e sim pela aceitabilidade social, pelo aspecto fisico, pelos tragos do rosto, considerados finos (brancos) ou grosseiros (negros), pelo cabelo, caracterizado como bom ou ruim. Posto que o rapaz colocado em cena passa sem dificuldade por esse teste de brancura, tudo estaria solu- cionado e a peca poderia terminar tranqiilamente em comé- dia. Sucede, entretanto, que a mae, a protagonista, nega-se a participar desse desfecho feliz. Para poupar ao filho e 4 nora futuros aborrecimentos e yexames, que certamente viriam em obediéncia as leis na ‘© escritas do Brasil, ela se mata, ingerin- do veneno. Com esse derradeiro sacrificio, essa mulher licida Decio pe ALMEIDA PRADO a5 e corajosa esta dizendo alguma coisa que nao pertence a vi- sao cOmica: © bom negro, no Brasil, é aquele que desaparece de imediato, quando a sua presenga incomoda a memoria fa- miliar. A pas agem da negritude, da mae, & branquidao, do filho, pertence pois ao terreno dramatico. Se O Deménio Familiar, da comédia anterior, é somente liberto e expulso da famil como resposta as intrigas infantis que tramou, para a Mde deste drama de adultos nao existe outra safda a nao ser o suicidio, Alguém teria de ser imolado aos supostamente vaos e tolos preconceitos sociais — e antes a mae velha, parece dizer a pega, do que o filho promi , {A integrado aos brancos. Alencar — pode-se porventura concluir — gostaria que a escravidao, jun- tamente com a sua heranc¢a negra, sumisse de repente da vida brasileira, num passe de magica que o teatro — nao a realidade hist6rica — mostrava-se capaz de fazer. Ao realismo, se a histéria tivesse logica, seguir-se-ia o na turalismo, como aconteceu na Franga, e no que diz respeito ao romance também no Brasil, com Aluisio Azevedo sucedendo a José de Alencar, Mas nos palcos do Rio de Janeiro, cidade que concentrava praticamente todo 0 teatro nacional, essa seqlién cia foi interrompida por uma espécie de avalanche de music: ligeira, que arrasou 0 pouco que o romantismo e¢ o realismo haviam conseguido construir sob a designagao de drama. A ir- rupeao da opereta francesa, acompanhada por suas eqliclas cénicas, trouxe consigo a morte da literatura teatral considerada séria. Nao se deixou por isso de pensar sobre 0 Brasil — e sobre © que mais poderfamos pensar? -, porém em termos de comédia stro Alves ou de farsa, em continuagao a Martins Pena, nao a Ca ou Alencar. Tal inflexio foi condenada por todos os interessa- dos — autores, intérp: es, criticos =, menos pelo ptiblico, que itores, de qualquer forma nunca dera atengio aos nossos es 86 Hisroria Coxcisa vo. Teatro Brasivero Ninguém lamentou mais essa mudanga de Pperspectiva, essa quebra de ambigao literiria, do que Machado de Assis. Ele comegia a se preocupar com © teatro aos 20 anos, em 1859 — © continuara a ser o nosso ponto de referéncia critica sobre as coisas clo paleo, Procedendo ao balango da literatura nacional, no célebre ensaio intitulado “Instinto de Nacionalidade”, relem- brou na parte relativa & autoria teatral nomes como os de Gon- galves de Magalhaes e Goncalves Dias, reservando algumas palavras carinhosas a Martins Pena, “talento sincero e original, a quem s6 faltou viver mais, para aperfeigoar-se e empreender obras de maior vulto”. Quanto ao passado imediato, anotou: Mais recentemente, nesses iiltimos doze ou quatorze anos, houve tal ou qual movimento. Apareceram entio os dramas © comédi is do Sr. José de Alencar, que ocupou o primeiro lugar na nossa escola realista © cujas obras O Demé6nio Familiar ¢ Mae sto de notivel merecimento. Logo em seguida pa como feceram varias outras composicdes dignas do aplauso que tiveram, tai os dramas dos Sts. Pinheiro Guimaraes, Quintino Bocaitiva e alguns mais; mas nada foi adiante, E contra esse pano de fundo, contra essa alguma coisa, que ele langa, em 1873, o nada absoluto do presente: Hoje, que 0 gosto ptiblico tocou © iltimo grau de decadéncia e perver- sdo, nenhuma esperanga teria quem se sentisse com Vocacao para compor obras severas de arte. Quem Ihas receberia, se 0 que domina é a cantiga burlesca, ou obscena, 0 cancan, magica aparatosa, tudo o que fala aos sentimentos e aos instintos inferiores?* 2. Machado de Assis, Critica Literdria, So Paulo, W. M. Jackson, 1951, pp. 150-151

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