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25/07/2019 Acheronta 29 (Febrero 2016) - Psicoses e literatura: de Schreber a Joyce com Lacan - Rogério Paes Henriques

Psicoses e literatura:
de Schreber a Joyce com Lacan
Rogerio Paes Henriques

Resumo

Pretende-se examinar a escansão promovida por Lacan quanto ao estatuto da psicose tomando-se dois
tempos do seu ensino. Recorre-se às análises empreendidas por Lacan sobre Schreber e Joyce. Lacan
recusou o estatuto de literariedade à autobiografia de Schreber, em função da exclusão do seu autor
literário, que, sendo psicótico e, portanto, foracluído da linguagem, não teria advindo enquanto “ser
falante” (S barrado). Lacan reconheceu no conjunto da obra do escritor irlandês James Joyce uma
suplência que lhe permitiu compensar sua estrutura psicótica, evitar o desencadeamento da psicose
clínica e se constituir enquanto autor literário e, por conseguinte, enquanto “falasser” (parlêtre). Se, em
Schreber, psicose e literatura são inconciliáveis, em Joyce, é sua construção como autor literário que
permite a sua consistência subjetiva.

Palavras-chave: psicanálise; literatura; psicose; sujeito; sinthome; Lacan; Schreber; Joyce.

Abstract

It examines the scansion provided by Lacan as to the status of psychosis, considering two periods of his
teachings. Lacan’s readings of Schreber and Joyce are taken into account. Lacan refused to give the
status of literality to Schreber’s autobiography, because of the exclusion of a literary author who, being
a psychotic, therefore speechless, would not have appeared as “a speaking being” (the barred S).
However, in the whole of the Irish writer James Joyce’s works, Lacan recognized a suplency, which
allowed him to compensate for his psychotic structure, to avoid the clinical psychosis outbreak and to
constitute himself as a literary author, and, therefore, as a parlêtre. While psychosis and literature are
not reconcilable in Schreber, it is Joyce’s construction as a literary author that allows for his subjective
consistency.

Key words: psychoanalysis; literature; psychosis; subject; sinthome; Lacan; Schreber; Joyce.

Psicose e literatura: de Schreber a Joyce com Lacan


[Psychosis and literature: from Schreber to Joyce with Lacan]

O primeiro tempo no ensino de Lacan sobre as psicoses: o caso Schreber

Um dos primeiros comentadores a discutir o estatuto literário de Daniel Paul Schreber, o louco célebre,
foi Jacques Lacan, em seu seminário de 1955-56 sobre as psicoses. Lacan negou esse estatuto às
Memórias de um doente dos nervos em função de sua teoria da psicose então vigente. Vejamos a sua
argumentação:

[...] Digamos que o longo discurso pelo qual Schreber nos dá testemunho do que ele se
decidiu afinal a admitir como solução de sua problemática, não nos dá em parte alguma o
sentimento de uma experiência original na qual o próprio sujeito está incluído ― é um
testemunho, pode-se dizê-lo, verdadeiramente objetivado.

Nós poderíamos resumir a posição em que estamos em relação ao seu discurso quando tomamos
conhecimento disso, dizendo que, se ele é com toda a certeza um escritor, não é um poeta. Schreber não

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nos introduz numa dimensão nova da experiência. Há poesia toda vez que um escrito nos introduz num
mundo diferente do nosso, e, ao nos dar a presença de um ser, de uma certa relação fundamental, faz
com que ela se torne também nossa. A poesia faz com que não possamos duvidar da autenticidade da
experiência de San Juan de la Cruz, nem da de Proust ou da de Gérard de Nerval. A poesia é criação de
um sujeito assumindo uma nova ordem de relação simbólica com o mundo. Não há absolutamente nada
disso nas Memórias de Schreber.

[...] ele [Schreber] é habitado certamente por todas as espécies de existências improváveis,
mas cujo caráter significativo é certo, é um dado primeiro, e cuja articulação se torna cada
vez mais elaborada à medida que avança o delírio. Ele é violado, manipulado,
transformado, falado de todas as maneiras, é, eu diria, tagarelado. [...] ele é a sede de todo
um viveiro de fenômenos, e é esse fato que lhe inspirou essa imensa comunicação que é a
sua, esse livro de algumas quinhentas páginas [...] (Lacan, 2002, p. 93-94).

Se o neurótico habita a linguagem, o psicótico é habitado, possuído, pela linguagem (Ibid., p. 284).

Indubitavelmente, Schreber nos legou uma “obra tão surpreendente por seu caráter completo, fechado,
pleno, acabado”, como assinalou Lacan (Ibid., p. 93). Todavia, tal obra teria o estatuto de sintoma
patológico, na medida em que ela seria um produto da psicose, desmerecendo, portanto, a adjetivação
“poética”. Diferentemente do poeta, que manipula a linguagem criando novas significações, Schreber,
na condição de psicótico, seria manipulado pela linguagem, tornando-se mero fantoche, marionete de
um Outro que o invade e que fala por intermédio dele. Grosso modo, pode-se dizer que faltaria a
Schreber a condição de possibilidade de ser senhor de seu próprio discurso: “[...] tudo o que ele
[Schreber] faz existir nessas significações [nas Memórias] é de alguma maneira vazio dele próprio”
(Ibid., p. 95).
Lacan associa explicitamente o estilo poético à capacidade de metaforizar: “[...] poderia ser uma
definição do estilo poético dizer que ele começa na metáfora, e que ali onde a metáfora cessa, a poesia
também”. Referindo-se às Memórias de Schreber, esse autor afirma: “[...] mesmo quando as frases
podem ter um sentido, nunca se encontra nada que se pareça a uma metáfora” (Ibid., p. 248). Daí sua
afirmação de que, muito embora Schreber possa ser considerado um escritor, ele não pode, ainda assim,
ser considerado um poeta.
Mannoni (1969) radicaliza essa concepção lacaniana em seu escrito Schreber als Schreiber, cujo título
alemão, que equivoca o nome próprio de Schreber com a função de escritor, resume sua tese central:
Schreber, embora escrivão, não é um escritor.
Por sua vez, Melman (2006, p. 323) destaca o que parece constituir uma única metáfora nas Memórias
de Schreber, que coincide com a narrativa schreberiana de sua reconciliação com seu destino de se
tornar a “mulher de Deus” (Schreber, 1995, p. 147). Contudo, esse autor reforça a concepção lacaniana
e, ao isolar esta única exceção, acaba por confirmar a regra, sem questionar o estatuto de literariedade
proposto por Lacan, que associa a poesia à metáfora.

O paradigma do Complexo de Édipo ou paradigma do gozo fálico

Esse primeiro tempo do ensino de Lacan é marcado pelo que Gerbase (2008) denomina “paradigma do
Complexo de Édipo” ou “paradigma do gozo fálico”, ilustrado pela fórmula da metáfora paterna do
escrito de Lacan de 1959 sobre a psicose (Lacan, 1998, p. 563):

Nome-do-Pai Desejo da Mãe A


____________ . _____________________ → Nome-do-Pai ____
Desejo da Mãe Significado para o sujeito Falo

Nessa fórmula, supõe-se que o Nome-do-Pai pode barrar o Desejo-da-Mãe por intermédio da inscrição
da significação fálica no Outro, hipótese da castração ideal, associada à neurose.

A psicose seria o emblema de tal impossibilidade resultante de uma falha estrutural na simbolização,
cuja foraclusão do Nome-do-Pai e elisão da significação fálica (NP0 → Ф0) impediriam a assunção do
ser falante (sujeito da linguagem), remetendo-se à não travessia edipiana. A forma final da psicose de
Schreber é ilustrada nesse escrito de Lacan pelo Esquema I (Ibid., p. 578), uma deformação assintótica
do Esquema R, correlacionado à neurose. Apesar de avançar um bocado na teorização sobre a psicose,

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sobretudo se comparado ao que se produzia no campo psicanalítico da década de 1950, Lacan


permanece ainda tributário de uma visão deficitária da psicose, herança da psiquiatria.

O paradigma do Complexo de Édipo é uma teoria restrita do sintoma, pois só dá conta da significação
fálica, do gozo fálico, do qual Schreber, em função de sua psicose, encontra-se foracluído. Daí sua
exclusão enquanto autor literário, haja vista a utilização do gozo fálico como critério de literariedade.
Schreber goza de outro modo e é a tentativa de circunscrição desse Outro gozo que caracterizará a
escansão operada por Lacan, inaugurando o segundo tempo do seu ensino.

O segundo tempo no ensino de Lacan sobre as psicoses: o “caso” Joyce

Lacan não voltaria a comentar as Memórias de Schreber com densidade, porém, exatos vinte anos após
o seu seminário sobre as psicoses, em seu semináriosobre o “sinthoma” de 1975-76 (Lacan, 2007),
comentaria o escritor irlandês James Joyce, o que levaria a uma escansão em seu ensino. Se, num
primeiro tempo, psicose e literatura são inconciliáveis em função da exclusão do psicótico enquanto
sujeito da linguagem e autor literário, num segundo tempo de seu ensino, Lacan não somente assinalará
que psicose e literatura não se excluem, como será a literatura de Joyce que fornecerá um modelo não
só à psicose, mas à própria psicanálise.
Ao sustentar a hipótese de uma psicose em Joyce, Lacan assinala que este escritor seria um exemplo de
suplência via obra e sua suposta psicose não teria sido desencadeada ao longo de toda uma vida. Lacan
assinala a importância da literatura para Joyce e o fato de ele ter conseguido fazer enigmas e se tornado
um nome público, alvo de comentários e assunto de debates (autor literário), conseguindo, dessa forma,
“fazer entrar o [seu] nome próprio no âmbito do nome comum” (Ibid., p. 86). Ao forjar um nome
próprio, Joyce teria feito a compensação da carência paterna, resultante da foraclusão do Nome-do-Pai.
Isso teria sido um fator determinante para o não desencadeamento de sua suposta psicose
(“sinthomatizada”), tendo o ego de Joyce feito função de “sinthoma”, isto é, de suplência, mantendo
enodadas ou encadeadas as três dimensões psíquicas — real (R), simbólico (S) e imaginário (I).
A vontade expressa de Joyce de que sua obra passasse ao público – ocupando o ambiente acadêmico
durante trezentos anos –, de constituir um nome para si por intermédio de sua arte, teria feito com que
seu ego funcionasse como sinthoma fazendo suplência ao Nome-do-Pai ausente, permitindo-lhe se
inscrever no laço social e localizar o gozo.

Na ocasião da redação de seu último romance, Finnegans Wake, não mais o ego de Joyce, mas sua
própria escrita tomaria valor de sinthoma, ou seja, viria em suplência do erro do nó evitando desta
maneira o desencadeamento, o que levaria Joyce a dissolver a linguagem nessa obra. Este romance da
maturidade representa uma espécie de lalangue joyceana – ao privilegiar o uso assignificante da língua.

Se Lacan se apegou a um primeiro tempo de seu ensino para definir a pretensa não literariedade das
Memórias de Schreber, e, por extensão, das demais “obras de loucura”, alegando que lá onde não há
“sujeito da linguagem” também não haveria literatura, podemos nos basear, agora, em seu derradeiro
ensino para ampliar seu critério de literariedade: assim, a literatura pode permitir ao psicótico criar sua
própria consistência enquanto “falasser” (parlêtre) – conceito este que condensa o sujeito do
significante e o corpo como substância gozante. Em outros termos, com a noção de falasser, Lacan
amplia sua concepção de sujeito para além de sua circunscrição à linguagem e ao gozo fálico.

O paradigma da Impossibilidade da Relação Sexual ou paradigma do gozo do Outro

O “paradigma da Impossibilidade da Relação Sexual” ou “paradigma do gozo do Outro”, como o


denomina Jairo Gerbase (2008), logifica o Complexo de Édipo. A lógica que tal paradigma introduz é a
impossibilidade de escrever um dos gozos, pressuposto da foraclusão generalizada, que, ao menos nesse
quesito, iguala neurose e psicose. Nesse sentido, não há uma descontinuidade radical entre as
“estruturas” neurose e psicose. Assinala-se certa continuidade entre ambas na medida em que elas
representam duas saídas diferentes à mesma dificuldade do ser. “Tanto o francamente psicótico como o
normal são variações [...] da situação humana, de nossa posição de falantes no ser, da existência do
falasser”, assinala Jacques-Alain Miller (Miller, 2009, p. 202). A clínica borromeana promove uma
espécie de igualdade de cada um tanto com relação ao gozo quanto com relação à morte, diluindo as
fronteiras entre o normal e o patológico ― daí a afirmação de Miller de que a Ф0 e a NP0 são os
extremos da curva de Gauss, que apresenta o real das coisas humanas (Ibid., p. 216).
Tal como a escrita de Joyce parece apresentar-se como a operação de suplência que evita o
desencadeamento de sua psicose, a escrita de Schreber vincula-se ao trabalho delirante numa psicose já
desencadeada, permitindo-lhe uma estabilização a posteriori. Enfim, a passagem ao público das
produções literárias, seja em Joyce seja em Schreber, parece contribuir com a consistência de ambos os
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autores, permitindo o enodamento psíquico e preservando-os do aniquilamento associado às vivências


psicóticas mortíferas. Poder-se-ia concluir, portanto, que as Memórias de Schreber se incluem no
escopo literário, dada sua dimensão “poiética” de invenção de si.
Não propomos aqui uma comparação estilístico-literária entre os escritos de Joyce e Schreber.
Enquanto, para este último, a escrita funciona como uma bengala imaginária que compensa uma
psicose desencadeada, para aquele a escrita tem função de letra, compensando não propriamente uma
psicose, mas uma estrutura psicótica. Não nos interessamos aqui pela diferença de eficácia entre tais
suplências (via delírio, em Schreber, e via obra, em Joyce) nem, por conseguinte, pelo estatuto literário
que diferenciaria uma escrita associada ao imaginário de outra ligada ao real. Antes, pretendemos
assinalar o que elas têm em comum na sua dimensão de poiesis que, tendo passado ao público, permite
a compensação da psicose, por mais precária que seja.
Ao enfatizar o que se pode chamar de “empuxo-ao-público” das produções dos psicóticos, está-se
reafirmando o princípio freudiano (Freud, 1911/2010, p. 94) de se levar a sério o delírio, encarando-o
como uma tentativa de cura e de restabelecimento. Dar vazão ao delírio por intermédio de sua
“publixação” (poubellication) é temperar o gozo na psicose, elevando o objeto (a) ao estatuto de Coisa.
Isso significa testemunhar as produções dos psicóticos, quer sejam orais quer sejam escritas (ou ainda
plásticas), desde as extraordinárias às ordinárias, no infindável trabalho de enlaçar essas produções no
registro público do laço social.

Referências Bibliográficas

Freud, S. (1911) Observações Psicanalíticas sobre um Caso de Paranoia (Dementia Paranoides)


Relatado em Autobiografia (“O Caso Schreber”). In: ____. Obras Completas. São Paulo: Companhia
das Letras, 2010, vol. 10.

GERBASE, Jairo. Os Paradigmas da Psicanálise. Salvador: Campo Psicanalítico, 2008.

LACAN, Jacques. (1955-56) O Seminário, Livro 3: as psicoses. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

____. (1959) De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: ____. Escritos. Rio
de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.

____. (1975-76) O Seminário, Livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

MANNONI, Octave. Schreber als Schreiber. In: ____. Clefs pour l’Imaginaire ou l’Autre Scène. Paris:
Seuil, 1969.

MELMAN, Charles. Retorno a Schreber: Seminário 1994-95. Hospital Henri Rousselle – Paris. Porto
Alegre: CMC, 2006.

MILLER, Jacques-Alain et. al. La psicosis ordinaria: la convención de Antibes. Buenos Aires: Paidós,
2009.

SCHREBER, Daniel P. (1903) Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

s.

Revista de Psicoanálisis y Cultura


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