Você está na página 1de 12

O eterno vazio

Mito e realidade na arquitetura Brasileira


Texto original de Roberto Segre
Edição 137 - Agosto/2005
Disponível em:
http://au17.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/137/o-eterno-vazio-22214-1.aspx

Em um simpósio sobre a arquitetura na América Latina acontecido em Nova York, em 2002,


Ruth Verde Zein manifestou que a produção moderna brasileira é um mito e que a
contemporânea é um mistério. Considero que na comemoração dos 20 anos de AU cabe
ratificar o mito e desvelar o mistério. Primeiro, porque continua a síndrome ​do modernismo
nas elaborações teóricas recentes e, segundo, porque mesmo com centenas de boas obras
publicadas, ainda persiste um complexo de inferioridade e de subvalorização da arquitetura
produzida nas últimas décadas.

O mito tem três partes principais: 1) a significação ​do Movimento Moderno identificado com
os exemplos excepcionais ​do prédio ​do Ministério da Educação e Saúde (1936) e da cidade
de Brasília (1960), com a veneração dos seus fundadores, 2) a definição das escolas
paulista e carioca e 3) o vazio produtivo no período da ditadura militar (1964-1984).

O interesse pelo período "heróico" da arquitetura brasileira se mantém vivo até hoje, como
demonstram as recentes publicações nacionais e estrangeiras sobre o tema. Inclusive, até
um crítico de renome internacional como Kenneth Frampton, quando escreve sobre a
arquitetura na América Latina, se apaixona pelas obras daquela etapa. Por que esta
obsessiva insistência? Pela primeira vez concordo com a afirmação feita por Charles Jencks
sobre a procura - hoje maior ​do que nunca - dos conteúdos éticos e morais da arquitetura
nesta época de dissipação, desorientação e de turbulência social e cultural.

Hotel Renaissance, em São Paulo, de Ruy Ohtake, publicado em AU 72. Ao lado de Niemeyer, Paulo
Mendes da Rocha, Lina Bo Bardi e Joaquim Guedes, Ohtake representa a continuidade de uma
linguagem arquitetônica brasileira

O que atrai naquele conjunto de obras é a liberdade interpretativa dos princípios canônicos
do Movimento Moderno europeu, desenvolvidos por seus principais protagonistas, pessoas
como Niemeyer, Costa, Reidy, os irmãos Roberto, Artigas, etc., com uma linguagem
baseada nos atributos da cultura local, a interação entre um poder público em procura de
soluções inovadoras e a disponibilidade de jovens arquitetos partícipes ​do Movimento
Moderno e a seriedade funcional, construtiva e ecológica dos prédios realizados.
Princípios que perduraram até Brasília, fortalecidos pela longevidade dos atores - Costa,
Niemeyer, Vital Brazil, Bologna - que nunca renunciaram aos seus ideais.

A figura de Oscar Niemeyer, dominante na arquitetura brasileira por quase um século, levou
a identificar com a sua linguagem uma expressão da "identidade nacional", representada
pela chamada "escola carioca". Com o desenvolvimento de variações sobre o tema, e o
predomínio ​do concreto armado aparente, o eixo João Vilanova Artigas - Paulo Mendes da
Rocha estabeleceu a dinâmica alternativa da "escola paulista".

Esse mito prescreveu na atualidade com a inserção de contaminações mútuas e de alguns


poucos elementos formais dissímiles que poderiam até chegar à definição de um "estilo". Os
princípios essenciais ​do Movimento Moderno foram mantidos rigorosamente, e as
diferenças pertenceriam mais à linguagem pessoal ​do ​arquiteto e a uma resposta ao
condicionamento rural ou urbano ​do sítio e ao seu ambiente "ecológico": as casas
"tropicais" de Rino Levi não estão distantes das desenhadas por Sérgio Bernardes; o Museu
de Arte Moderna de Affonso Reidy, no Rio de Janeiro, é tão "brutalista" quanto o Masp de
Lina Bo Bardi, em São Paulo; os grandes vãos sem apoios internos foram utilizados
igualmente por Niemeyer e Vilanova Artigas; a viga monumental ​do Memorial da América
Latina, de Niemeyer, é conceitualmente parecida com a laje ​do Mube de Paulo Mendes da
Rocha. Não é por acaso que Sérgio Ferro, oposto à noção de "estilo", criticasse
intensamente o formalismo e o exibicionismo estrutural de um "brutalismo caboclo"
assumido como brasileiro.

Terra Brasilis, em São Paulo, de Königsberger Vannucchi, matéria de capa de AU 33. Antológico, o
edifício carrega referências à plasticidade barroca brasileira

Como demonstraram Bruno Padovano (em Arquitectura contemporánea en Brasil: Qué ha


ocurrido después de Brasília), e Hugo Segawa (em Arquiteturas no Brasil, 1900-1990), no
período da ditadura militar, regime que pretendia construir o "Brasil grande e moderno", não
aconteceu o "silêncio arquitetônico". Ao contrário, foram produzidas obras significativas em
todo o País. Como os arquitetos e os edifícios dependem mais da economia ​do que de
ideologia, ocorreu em quase todos os países da América Latina que, das mais duras
ditaduras - como a de Pinochet no Chile, e a de Videla na Argentina - surgiriam prédios de
qualidade projetados por reconhecidos profissionais.

Além das grandes obras de infra-estrutura e dos edifícios faraônicos das instituições
estatais, quase todos os arquitetos de renome produziram alguma obra de interesse. Ainda
que perseguidos pela militância comunista, e sem diálogo como o governo, também João
Vilanova Artigas e Oscar Niemeyer trabalharam nesse período: Artigas fez o conjunto
habitacional CECAP (1967) e o Quartel da Guarda Territorial de Amapá (1971). Oscar
desenhou a Estação Rodoferroviária (1970) e o Auditório ​do Quartel General ​do Exército
(1977)- este, com uma forma de cobertura logo repetida no recente Pavilhão Serpentine, em
Londres (2003). Niemeyer fez ainda o Memorial JK (1980) e o Memorial dos Povos
Indígenas (1982), entre outros em Brasília. Por sua vez, Sérgio Bernardes, segundo Lauro
Cavalcanti em Sérgio Bernardes - Herói de uma tragédia moderna, imaginou a possibilidade
de colaborar com a ditadura, construindo o Centro de Convenções (1973), também na
capital federal.

Se a prática não foi contaminada pela ideologia, a teoria sofreu os embates da ditadura. O
debate nas instituições profissionais e nas escolas foi interrompido e os professores de
esquerda expulsos das universidades.

Restrita a poucas publicações, a crise intelectual prolongou-se até o final da década de 70.
Em 1977 iniciou-se a publicação de Projeto, a revista Módulo reapareceu e, com a volta da
democracia, em 1985, surgiu AU. É interessante verificar como o vazio ideológico e cultural
dos anos precedentes gerou a necessidade de um contato direto entre os arquitetos e os
políticos, sociólogos e principais intelectuais progressistas. A revista AU canalizou essa
demanda ao longo dos primeiros cinco anos de existência: entre 1985 e 1990, escreveram
nas suas páginas Frei Betto, Roberto DaMatta, Darcy Ribeiro, Luís Carlos Prestes, Celso
Furtado, Milton Santos, Fernando Henrique Cardoso, Hélio Jaguaribe e Carlos Nelson dos
Santos. Foi a chama que reavivou o fogo ​do​ compromisso social da arquitetura.

Edifício Bandeirantes, em São Paulo, de Aflalo & Gasperini, capa de AU 59. A leveza da obra que
acomoda agência bancária e escritórios a faz figurar entre os prédios empresariais de boa arquitetura

Cosmopolitismo nativo
Se os militares procuraram modernizar o País com uma posição nacionalista, os sucessivos
governos democráticos aderiram-se ao processo ​do neoliberalismo e à globalização da
economia dominantes no mundo.

Entre o governo Collor, no final da década de 80, e a longa duração ​do governo Fernando
Henrique Cardoso, o Brasil foi submetido à influência dos modelos ​do Primeiro Mundo com
a entrada das grandes empresas internacionais nos sistemas financeiro e produtivo local.
Houve ainda as privatizações e a redução ​do papel ​do Estado e da sua função social, além
da acelerada difusão ​do​ consumismo nas classes emergentes.

Em conseqüência, aprofundaram-se as contradições sociais: com a expansão urbana


cresceram as favelas nas principais capitais, aumentou o desemprego e piorou o nível de
vida de milhões de brasileiros. A especulação imobiliária se transformou no motor principal
do desenvolvimento das cidades, gerando a banalidade e mediocridade arquitetônicas
apontadas por alguns críticos, entre eles Edson Mahfuz e Carlos Eduardo Comas,
verificadas em conjuntos residenciais, shoppings e prédios de escritórios anônimos. Foi a
criação da cidade cenográfica e frívola, satirizada pela escola de samba Mocidade
Independente de Padre Miguel, em 1987, sob a denominação de Tupinicópolis.

Numa visão "extremista" ​do estado da arquitetura nas duas últimas décadas, as figuras
representativas da vanguarda local ficaram reduzidas a poucos nomes: Oscar Niemeyer,
Paulo Mendes da Rocha, Lina Bo Bardi, Joaquim Guedes e Ruy Ohtake. Sem dúvida, eles
representam a continuidade de uma linguagem arquitetônica brasileira nas interpretações
diferenciadas que conseguiram desenvolver em temas culturais ou públicos, sem se
submeter às solicitações ​do sistema corporativo - o maior produtor de prédios na década
final ​do século 20. De fato, a maioria desses edifícios, idealizados sem o compromisso com
uma busca por caminhos alternativos ao que se produz no mundo desenvolvido, conforme
se destaca nas publicações e prêmios patrocinados pela AsBEA, carece de uma
significação cultural.

Dois momentos d ​ o traço criativo de Ruy Ohtake: no alto, o edifício ​do Instituto Tomie Ohtake e,
acima, as formas provocadoras ​do​ Hotel Unique, ambos em São Paulo

Mas a realidade não é só em preto e branco. Alguns escritórios de diferentes cidades ​do
Brasil tentaram encontrar um compromisso entre a demanda de clientes e empresários -
sempre impondo modelos cenográficos ou restrições estabelecidas pela rentabilidade
econômica -, e a criatividade ​do ​arquiteto​, voltada para desafios estéticos e simbólicos que
pudesse estabelecer uma contribuição à cultura social urbana e ao diálogo entre os edifícios
e a cidade. Nesse sentido, AU colaborou na identificação da qualidade arquitetônica
internacional e nacional, mas principalmente em encontrar identidades com a produção dos
profissionais latino-americanos.

Até o momento, os parâmetros funcionais para prédios altos de escritórios têm sido rígidos.
Mesmo assim, desde os primeiros erigidos em Chicago e Nova York, sempre se explorou
uma iconicidade que os identificasse no contexto urbano, como se demonstrou na
multiplicidade de projetos para o Ground Zero em Manhattan para substituir as torres
gêmeas ​do​ WTC.

Em algumas cidades de menor porte, os projetistas transformaram as torres em objetos


plásticos. Fernando Peixoto, por exemplo, utilizou as referências ​do Op-Art no Centro
Empresarial Previnor (1993) em Salvador, e a turma dos jovens pós-modernos sob a
direção de Éolo Maia estabeleceram, em Belo Horizonte, um diálogo de pináculos e
geometrias, lembrando a percepção à distancia das torres medievais, caso ​do Centro
Empresarial Raja Gabaglia, de Éolo e Jô Vasconcellos (1989); ​do Capri, de João Diniz
(1992); e ​do​ Nashville, de Flávio Almada (1992).

Em São Paulo, cidade integrada ao sistema de megalópoles mundiais, reproduziram-se os


modelos universais de business ou financial center, definidos por monumentais prédios de
estrutura de aço e vidros espelhados como, por exemplo, o Centro Empresarial Nações
Unidas (1990-99) de Botti & Rubin, ou o antagônico diálogo de formas arbitrárias
estabelecido na avenida Engenheiro Luiz Carlos Berrini pelas múltiplas torres de Carlos
Bratke. No Rio de Janeiro, Edison e Edmundo Musa, no Rio Branco I (1989), e Paulo Casé,
no Rio Metropolitan (1995), ecoaram o formalismo superficial ​do pós-modernismo
internacional.

Pousada na ilha de Silves, obras de Severiano Mário Porto, líder na busca pela adaptação da
arquitetura ao sítio, ao clima e aos materiais regionais

Casa Valentim, em Blumenau, SC, de Marcos Acayaba com Fábio Valentim e Suely Mizobe.
Acayaba conferiu expressão contemporânea à estrutura de madeira
Mas alguns desses edifícios são dignos de nota, considerando o estudo refinado dos
detalhes, a originalidade plástica e compositiva e o relacionamento com o contexto urbano.
É o caso ​do antológico Terra Brasilis (1991) de Gianfranco Vannucchi e Jorge
Königsberger, que carrega referências à plasticidade barroca brasileira, e também da leveza
do edifício Bandeirantes (1995), de Aflalo & Gasperini. A originalidade estrutural ​do edifício
Parque Paulista (1995), de Botti Rubin, e as cores fortes ​do hotel Renaissance e ​do
Instituto Tomie Ohtake (2004), além das provocadoras formas ​do hotel Unique (2003), três
obras saídas da prancheta de Ruy Ohtake, são referências da produção paulistana recente,
assim como o resgate ​do primeiro modernismo impresso na Sede ​do Conselho Regional de
Contabilidade (1995), de Amá, Barbosa e Corbucci.

O Estado ausente
Nos últimos vinte anos, a população urbana ​do Brasil cresceu exponencialmente,
superando a rural. Mas a expansão incontrolada das cidades não foi acompanhada pela
criação das infra-estruturas indispensáveis para o seu funcionamento harmônico. Além da
ausência de planos diretores para os novos municípios criados no País, os problemas
criados nas metrópoles pela irracionalidade ​do transporte público e insuficiência de
abastecimento dos sistemas de água, esgoto e energia multiplicam-se e agravam-se,
demonstrando a ausência ​do Estado no desenvolvimento arquitetônico e urbanístico ​do
País.

As privatizações de serviços e de empresas ​do Estado desencadearam o surgimento, nos


anos 90, de movimentos comunitários que fortaleceram os governos municipais e
incentivaram iniciativas voltadas para melhorar as condições de vida nas cidades e
intervenções no espaço público. A "metamorfose" ¿ tema da 9a Mostra Internacional de
Arquitetura de Veneza (2004) ¿ que ocorreu em diversos centros urbanos espalhados pelo
País, foi o fato mais importante nessa transição de milênio. As iniciativas de Jaime Lerner
em Curitiba a converteram em um "cartão postal" ​do controle possível numa cidade de porte
médio, ainda com as contradições sociais e econômicas que nela persistem. A criação dos
eixos viários para o transporte público, o anel verde contendo importantes funções culturais
e a revitalização ​do Centro da cidade, que inclui a Rua 24 Horas de Abrão Assad (1990),
serviram de exemplo para outras iniciativas semelhantes, no Brasil e no exterior.

Residência de Cláudio Bernardes em Itanhangá, no Rio de Janeiro.

No comando da maior megalópole ​do continente sul-americano, as sucessivas prefeituras


de São Paulo desenvolveram importantes iniciativas. Com a celebração ​do seu 450o
aniversário, foram chamados alguns dos melhores arquitetos paulistas para promover a
transformação de velhos prédios acadêmicos em centros culturais, a reocupação de
edifícios vazios para moradia de interesse social e a renovação de favelas, obras que visam
resgatar uma dinâmica social perdida nas áreas centrais.

No Rio de Janeiro, os prefeitos César Maia e Luiz Paulo Conde elaboraram, ao longo dos
anos noventa, os programas Rio-Cidade e Favela-​Bairro​, revitalizando os espaços públicos
de regiões periféricas e inserindo funções sociais na densa malha urbana espontânea das
favelas. Em Porto Alegre, prédios antigos foram refuncionalizados, como o Mercado Público
(1990) e o hotel Majestic, transformado em Centro Cultural Mário Quintana por Flávio Kiefer
e Joel Gorski (1987).

Em Belo Horizonte, as abandonadas áreas ​do lago da Pampulha e os prédios de Oscar


Niemeyer ressurgiram com nova infra-estrutura e espaços verdes projetados por Gustavo
Penna e Álvaro Hardy (2002). Em Recife, não prosperou a original iniciativa ​do
Camelódromo de José Zecca Brandão e Ronaldo Lamour (1994), que reunia em uma
estrutura urbana transparente os vendedores ambulantes. Finalmente, em Fortaleza, o
centro cultural Dragão ​do Mar (1999) e, em Belém, a Estação das Docas e o Mercado
Ver-o-Peso (2000-2002) permitiram o resgate de prédios históricos e ​do relacionamento
entre a cidade e a paisagem natural.

Centro de Reabilitação ​do Hospital Sarah Lago Norte, em Brasília, de João Filgueiras Lima (AU 95).
Lelé conseguiu sintetizar a dialética global-regional, em favor da inovação sem negar a tradição

A síndrome da coexistência
Na abertura da 26a Bienal de São Paulo, em 2004, o Ministro da Cultura, Gilberto Gil,
afirmava que a cultura brasileira é identificada pelo carnaval, o futebol-arte, a capoeira e o
samba, que, segundo Ferreira Gullar, são as expressões populares reveladoras da
mestiçagem racial e social que a caracteriza. Também Glauber Rocha identificava na
brasilidade uma "força descolonizadora e revolucionária". Sérgio Ferro, ao falar da "estética
da revolução", opôs os materiais sem história - o ferro e o concreto - à construção
tradicional de tijolo, pedra e madeira, realizada manualmente, numa nova valorização ​do
trabalho definido por Antonio Negri e Michael Hardt, baseado no seu conteúdo "altamente
científico, afetivo e cooperativo", alheio à alienação da industrialização capitalista.

Essa dualidade cosmopolita-regionalista, entretanto, constitui uma força contida nas


contradições da cultura ​do mundo globalizado, criando produtos culturais que são
consumidos com a mesma intensidade. Um exemplo é a recente coincidência de duas
opções contraditórias nas salas de cinema: Diários de Motocicleta, de Walter Salles, e Kill
Bill, de Quentin Tarantino. Fenômeno que se reproduz também na arquitetura. Os prêmios
mundiais da importância ​do Pritzker, ​do Mies van der Rohe, da AIA Gold Medal ou ​do
Imperial ​do Japão são concedidos tanto aos criadores de imagens associadas com a alta
tecnologia (Norman Foster, Rem Koolhaas, Zaha Hadid, Herzog & de Meuron), como aos
defensores das expressões técnicas e plásticas locais, caso ​do australiano Glenn Murcutt,
do​ americano Samuel Mockbee e ​do​ nosso Oscar Niemeyer.

Com a criação dos Seminários de Arquitetura Latino-americana (SAL) nos anos 80, surgiu
uma tendência, nessa região, em defesa de uma arquitetura "regionalista", em coincidência
com as teses de Alexandre Tzonis, Liane Lefaivre e Kenneth Frampton, que advogam o
"regionalismo crítico" em oposição a um cosmopolitismo "genérico", em favor da inovação
sem renunciar à tradição. Entre seus principais representantes citemos o fundador
mexicano Luis Barragán, Rogelio Salmona na Colômbia, Fruto Vivas na Venezuela,
Fernando Castillo no Chile, Cláudio Caveri na Argentina, Eladio Diste no Uruguai.
No Brasil, Severiano Mário Porto foi o líder nessa busca pela adaptação da arquitetura ao
clima, ao sítio e à utilização dos materiais locais. A sua produção na Amazônia foi
continuada pelos arquitetos Gerson Castello Branco e João Castro Filho, nas estruturas de
madeira, nos telhados extensos de palha e telhas e na transparência ​do​ espaço interior.

Residência Du Plessis, em Paraty, de Marcio Kogan, publicada em AU 123. A moldura de pedra


mineira confere identidade à obra, um dos exemplos da boa arquitetura praticada pela geração mais
jovem

Casa de veraneio no litoral norte de São Paulo, de Nitsche Arquitetos Associados. A nova geração
busca respostas ao modo de viver e à cultura local

Uma leitura da urbanidade da função administrativa apareceu no elaborado prédio de tijolos


da Companhia Hidrelétrica ​do São Francisco, em Salvador (1979), de Francisco Assis Reis.
A transcrição da "cabana primitiva", tanto numa chave vernácula como numa tecnológica foi
desenvolvida nas casas dos cariocas Sérgio Bernardes (1919-2002) e de seu filho Cláudio
Bernardes (1949-2001), de José Zanine Caldas (1918-2001) e ​do paulista Marcos Acayaba,
que geometrizou numa expressão contemporânea a estrutura de madeira. Mas a síntese
equilibrada entre a dialética global-local foi obtida por João Filgueiras Lima, o Lelé, no
conjunto de prédios públicos e na série de hospitais da rede Sarah Kubitschek, nos quais a
liberdade plástica e compositiva, o intenso cromatismo e a integração com a natureza se
completaram com uma tecnologia avançada, "apropriada" às condições materiais e
econômicas ​do​ Brasil.

A globalização criadora
Desde os inícios dos anos 90, as revistas especializadas vêm dedicando muitas páginas
para a difusão das obras de arquitetos jovens. Também nas Bienais de São Paulo, nas
premiações dos departamentos regionais ​do IAB e nos concursos organizados por
empresas privadas, a geração dos 90 tem tido destaque. Mas, além ​do pequeno grupo de
profissionais que aparecem nas revistas e nos livros, existirá algum futuro ou alguma
esperança para aqueles que se iniciam na prática arquitetônica?

Estatisticamente, o futuro parece sombrio, considerando a existência de mais de 100 mil


arquitetos e outros tantos estudantes espalhados nas 140 escolas existentes no País e a
escassa demanda atual de projetos. Prevendo que o Brasil terá, em 2020, 209 milhões de
habitantes, a necessidade de planejadores, urbanistas, paisagistas e arquitetos deveria
acompanhar a criação de novas cidades, as milhões de unidades habitacionais a construir,
a infra-estrutura e os serviços sociais necessários para a população.

Sede administrativa da Gul, empresa de confecção na zona leste de São Paulo, de Guilherme
Margara e Alexandre Cafcalas. Emprego de novas tecnologias construtivas para refletir a linguagem
da marca

Na realidade, porém, a presença ​do Estado nesses encargos é mínima em comparação


com as empresas privadas que, em geral, são dominadas pelos interesses especulativos.
Acresça-se a isso a visão cultural por parte dos clientes de alto poder aquisitivo, que não
mais assumem a arquitetura como expressão de "brasilidade". Além ​do desrespeito aos
projetistas, expresso nos baixos honorários, a arquitetura atualmente quase não comparece
na grande imprensa. Em resumo: os principais encargos continuam nas mãos de um
pequeno número de grandes escritórios que dominam o panorama nacional. Uma realidade
que é oposta ao que acontece em um pequeno país como a Holanda, onde a alta qualidade
da sua arquitetura e a participação de jovens profissionais é uma das preocupações ​do
governo e das prefeituras, que promovem o alto nível dos conjuntos habitacionais e das
intervenções no espaço público.

Sintetizando algumas características dos arquitetos jovens, cabe assinalar que essa
geração se libertou da influência direta dos mestres consagrados, não acreditam mais na
teoria das escolas regionais e não se ofuscam com as modas internacionais ​do "star
system". Em uma produção essencialmente caracterizada por temas de pequeno porte
inseridos no contexto urbano, a temática "regionalista" e a expressão formalista da
"brasilidade" assumem uma importância menor.

Essa nova geração assume com seriedade a herança ​do Modernismo heróico dos anos 30
nos seus conteúdos éticos, construtivos e funcionais, na adaptação ao clima e uso livre de
materiais tradicionais ou de alta tecnologia. Busca uma resposta aos modos de viver e à
cultura local, esquecendo o discurso utópico sobre um futuro desconhecido e inacessível.
Surge, assim, uma arquitetura "realista", quase neutra, composta de elementos formais e
espaciais elementares, mas articulados nas novas geometrias e nos princípios dinâmicos e
interativos que caracterizam a contemporaneidade.

Ao mesmo tempo, a produção desses jovens é baseada numa rejeição aos formalismos
gratuitos, aos discursos grandiloqüentes, à superficialidade de uma linguagem assumida ​do
exterior. Sem dúvida, as duras condições que definem os parâmetros da produção
arquitetônica - não somente o escasso apoio cultural da comunidade, mas também o
limitado conteúdo social das obras - a distanciam da maior originalidade ​do design que
conta, por exemplo, com a obra de Fernando e Humberto Campana e da vanguarda
artística e cinematográfica.

​ o Modernismo heróico dos anos 30 é assumida


Casa em Petrópolis, RJ, de José Kos. A herança d
com seriedade pelos jovens arquitetos

Catedral ​do Campo Limpo, na periferia de São Paulo, de Projeto Paulista (AU 74). A nova arquitetura
rejeita formalismos gratuitos e discursos grandiloqüentes

Daqui pra frente


Será possível, na insegurança ​do mundo atual, fazer boa arquitetura e resgatar a beleza
perdida da vida urbana? Para que isso aconteça, além das necessárias mudanças sociais e
econômicas, é fundamental estimular o reconhecimento social ​do valor ​do trabalho
profissional, ou seja, não considerar o ​arquiteto um luxo, mas uma ajuda indispensável de
que se necessita para melhorar e qualificar a dimensão espacial da vida quotidiana.

Para tanto é imprescindível desenvolver uma campanha de conscientização por intermédio


das mídias e, ao mesmo tempo, uma maior integração dos arquitetos com a comunidade.
Poderia ser desenvolvido o conceito de "​arquiteto ​do ​bairro​", semelhante ao ​do médico da
família. Também é preciso assumir que, no futuro, mais que o desenho de prédios novos, o
desenho mais comum será a adaptação dos prédios existentes, num constante processo de
reciclagem urbana.

Com a quantidade de profissionais que existe no Brasil, tem que mudar a ansiedade por
dispor cada um de um escritório privado e desejar projetar sofisticados prédios isolados. Se
fosse possível reverter a excessiva centralização ​do País, as prefeituras e os governos
locais poderiam ter maior liberdade de iniciativas no desenvolvimento das estruturas
urbanas e estimular a contratação de arquitetos para trabalhar nos departamentos estatais
e municipais, ou apoiar as ONGs e cooperativas de profissionais, projetando, não somente
os espaços públicos necessários, mas os prédios sociais em cada comunidade.

A arquitetura e o urbanismo não podem ser privilégio das elites, que usufruem a qualidade
dos espaços e prédios onde moram, trabalham e descansam. Os arquitetos devem rejeitar
as imposições das imobiliárias e dos clientes ricos de "decorar" os prédios com temas
clássicos e acadêmicos, alheios às imagens da cultura contemporânea. É antiético e imoral
manter indefinidamente os subúrbios degradados, a feiúra associada à pobreza e à miséria.
Se por um lado é necessário resolver os problemas essenciais da sociedade - o trabalho, a
saúde, a fome -, a qualidade de vida e os valores estéticos ​do ambiente construído são
também questões vitais para a comunidade, e é responsabilidade dos arquitetos e
urbanistas oferecer seus conhecimentos e sua criatividade para que os homens e mulheres
que habitam este mundo conturbado e contraditório tenham sua parcela cotidiana de
harmonia e felicidade.

Escola Estadual F2, em Campinas, SP, de Andrade Morettin. Formação acadêmica séria e a
referência direta à obra de Paulo Mendes da Rocha caracterizam a nova geração

Lussá Marcenaria, em São Paulo, de Juliana Lussá e José Alves. A produção mais jovem preza
elementos formais e espaciais elementares, mas articulados em novas geometrias e princípios
dinâmicos

Residência Schaeffer Novelli, em São Paulo, Nave Arquitetura. Inserida no contexto urbano e de
pequeno porte, a produção jovem confere menor importância à temática "regionalista"

Mercado Público de Itaqui, RS, de Espaço Sideral. A arquitetura da "geração 90" é realista, quase
​ o​ compromisso de expressar uma "brasilidade"
neutra e livre d

Sede regional ​do Banco ​do Brasil, em Porto Alegre, de Studio Paralelo. A arquitetura hoje enfrenta o
escasso apoio cultural da comunidade, além d​ o​ limitado conteúdo social das obras

Escola de ensino fundamental, em Campinas, SP, de UNA Arquitetos. Fidelidade aos conteúdos
éticos, construtivos e funcionais ​do​ movimento moderno marca a produção jovem

Casa em Nova Lima, MG, de Carlos Teixeira (AU 96). Teixeira teme o colapso da profissão caso os
arquitetos não se tornem mais críticos
Circo Voador, no Rio de Janeiro, de DDG Arquitetura (AU 130). Sistemas e materiais inovadores são
tão bem aceitos pelos jovens arquitetos quanto os tradicionais

Projeto de mercado de abastecimento em planejamento territorial na periferia de Santo Domingo,


República Dominicana, de Washington Fajardo. O discurso utópico sobre o futuro foi deixado de lado

Restaurante Z Contemporâneo, no Rio de Janeiro, de Miguel Pinto Guimarães. Livre de influências


diretas dos grandes mestres e das teorias das escolas regionais, a arquitetura torna-se espontânea

Casa em Ibiúna, SP, de Núcleo de Arquitetura (AU 132). Com influências de Alvar Aalto e Joaquim
Guedes, a obra funde a expressão de cada espaço à forma idealizada

Parque ​do Mindu, no Amazonas, de Roberto Moita. A inserção na natureza, pelo uso da madeira e
​ o​ trabalho de Moita uma manifestação regionalista
outros materiais naturais não faz d

Casa Slice, em Porto Alegre, de Fernando Rihl, cujos projetos fortemente influenciados pela
informática e artes aplicadas questionam a noção clássica dos planos horizontal e vertical ​do
modernismo

Intervenção na cobertura de edifício residencial, no Rio de Janeiro, de J&F Hue. O trabalho


demonstra total respeito pelos códigos modernistas

Bibliografia
Ruth Verde Zein, "Roundtable Discussion", em Carlos Brillembourg (Edit.) Latin American
Architecture 1929-1960. Contemporary Reflections. Nova York: The Monacelli Press, 2004,
pp. 148-151.

Kenneth Frampton, "Le Corbusier and Oscar Niemeyer: Influence and Counter-Influence,
1929-1965", pp. 34-49.

Charles Jencks, "Critical Modernism in the Twentieth Century (as if Morality Mattered)", em
Architectural Design Vol. 70, No. 4, pp. 94-99. Londres: Academy-John Wiley & Sons, 2000.

Ana Paula Koury, Grupo Arquitetura Nova. Flávio Império, Rodrigo Lefévre, Sérgio Ferro.
São Paulo: EDUSP, Romano Guerra Editora, 2003, pág. 47.

Alexandre Cafcalas, "Da natureza necessária. Urbanscapes paulistas, todavia modernas por
defeito", Em http://www.vitruvius.com.br.arquitectos.arq000.esp249.asp. São Paulo, 2004.
Hugo Segawa, Arquiteturas no Brasil, 1900-1990. São Paulo: EDUSP, 1998, pág. 159;

Bruno Roberto Padovano, "Arquitectura contemporánea en Brasil: !Qué ha ocurrido después


de Brasilia!", em Revista de Cultura Brasileña no 2, setembro 1997, pp. 14-99. Madri:
Embajada de Brasil en España.
Lauro Cavalcanti, Sérgio Bernardes. Herói de uma tragédia moderna. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2004, pág 55 e seg.
Paulo Singer, "Evolução econômica e vinculação internacional", em Ignacy Sachs, Jorge
Wilhem, Paulo Sérgio Pinheiro, Brasil: um século de transformações. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001, pág. 118.

Edson Mahfuz, O clássico, o poético e o erótico e outros ensaios. Porto Alegre: Editora
Ritter dos Reis, 2002, pág. 99; "Um C.E. Dias Comas. Depoimento", ARQTEXTO no 2.
Porto Alegre: UFRGS, pp. 6-17, 2002.
Celeste Olarquiaga, Megalópolis. Sensibilidades Culturais Contemporâneas. São Paulo:
Studio Nobel, 1998, pág. 121.

Roberto Segre, Arquitetura Brasileira Contemporânea. Petrópolis: Viana & Mosley Editora,
2003.

Luiz César de Queiroz Ribeiro, "Transformação geofísica e explosão urbana", em Ignacy


Sachs, Jorge Wilheim, Paulo Sérgio Pinheiro, Brasil: um século de transformações. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001, pág. 151.

Fernanda Sánchez, A reinvenção das cidades para um mercado mundial. Chapecó: Editora
Universitária Argos, 2003, pág. 517.

Federico Gómez (Org.), "A Brasilidade, Depoimentos", em Módulo 71, Cadernos de Texto,
Rio de Janeiro 1982, pp. I-XVI.

Sérgio Ferro, Entrevista de Guilherme Wisnik, "Por uma estética da revolução", em


http://www.uol.com.br/tropico/palavra-10-1587-1shl, São Paulo, 2003.

Vicky Richardson, Vanguardia y tradición. La reinterpretación de la arquitectura. Barcelona:


Blume, 2001.

Roberto Segre, Brasil. Jovens Arquitetos. Rio de Janeiro: Editora Viana & Mosley, 2004.

Mauro Almada, "Geração XXI. A interpretação dos sonhos", Revista Vivercidades no 7, Rio
de Janeiro, 2004, pp. 3-11.

Hans Ibelings (Edit.), The Artificial Landscape. Contemporary Architecture, Urbanism and
Landscape Architecture in the Netherlands. Rotterdam: Nai Publishers, 2000.

Maria Alice Junqueira Bastos, Pós-Brasília. Rumos da Arquitetura Brasileira. São Paulo:
Editora Perspectiva, 2003, pág. 255.

Miguel Alves Pereira (Coord.), "Entrevista a Gian Carlo Gasperini", Cadernos de


Arquitetura FAUUSP no 3, São Paulo, dezembro 2001, PINI-Fupam, pp. 44-73.

AU leituras
Brasil. De la antropofagia a Brasilia, 1920-1950, de Maria Casanova e Maria Victoria Menor
(Edit.), Valencia: IVAM, Institut Valencia d'Art Modern, Centre Julio González, 2001.

Brazil Built. The Architecture of the Modern Movement in Brazil, de Zilah Quezado Deckker,
Londres: Spon Press, 2001.

Building the New World. Studies in the Modern Architecture of Latin America 1939-1960, de
Valerie Frazer, Londres: Verso, 2000.

Cruauté & Utopie. Villes et paysages d'Amerique Latine, de Jean-François Lejeune,


Bruxelas: CINVA, Centre International pour la Ville, l'Architecture et le Paysage, 2003.

Oscar Niemeyer. Eine Legende der Moderne, de Paul Andreas, Ingeborg Flagge (Edit.),
Frankfurt am Main: Birkhauser- Deutsches Architektur Museum, 2003.
When Brazil Was Modern: A Guide to Architecture 1928-1960, de Lauro Cavalcanti, Jon M.
Tolman, Nova York: Princeton Architectural Press, 2003.
Brazil Modern Architecture, de Elisabeta Andreoli, Adrian Forty (Edit.), Londres: Phaidon
Press, 2004.

AU 2 (1985) - Brasília Ano Zero, 25 anos de Brasília


AU 15 (1988) - Os 50 anos de vida profissional de Niemeyer
AU 55 (1994) - Oscar Niemeyer
AU 38 (1991) - Documento Lucio Costa
AU 74 (1997) - 40 anos ​do​ Plano Piloto de Brasília, Lucio Costa

Você também pode gostar