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Rosalyn Deutsche
No ensaio final do livro Evictions, Rosalyn Deutsche trata de debates estéticos e políticos
em torno da esfera pública que disputam o significado de democracia. Questionando
aspectos que supostamente caracterizam propostas de arte como públicas, a autora
analisa conceitos que configuram uma
AGORAPHOBIA | In the final essay of the book
retórica particular, na qual a esfera Evictions, Deutsche addresses aesthetic and
pública democrática equivale a ideais de political debates around the public sphere within
the context of broader struggles over the meaning
completude, unidade e domínio. Discute of democracy. Challenging aspects that purportedly
trabalhos de artistas feministas sobre a typify art as public, she analyses the concepts that
set up a specific rhetoric, in which democratic
subjetividade na representação visual, public sphere equals ideals of closure, unity and
tratados por alguns críticos de arte como domination. She discusses artworks of feminist
artists about subjectivity in visual representation,
irrelevantes e mesmo perigosos para a
treated by some art critics as irrelevant, even
consolidação do espaço público, para então dangerous, to consolidation of public space, in
qualificar noções de visão, subjetividade e order to qualify notions of vision, subjectivity
and difference as crucial to the democratic
diferença como cruciais à experiência public experience. | Public sphere, public art,
pública democrática. democracy, feminist critique.
O que significa o espaço ser “público” – o espaço de uma cidade, edifício, exposição, instituição ou de
uma obra de arte? Na última década, essa questão provocou debates vigorosos entre críticos de arte e de
arquitetura, e urbanistas. Questões importantes estão em jogo nesses debates. O modo como definimos o
espaço público está intimamente conectado a ideias sobre o que significa ser humano, a natureza da socie-
dade e o tipo de comunidade política que queremos. Enquanto há divergências evidentes em torno dessas
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ideias, em um ponto quase todos concordam: o As opiniões sobre a mais recente e conhecida
apoio a coisas públicas promove a sobrevivência e controvérsia sobre arte pública – a remoção da
extensão da cultura democrática. Portanto, a julgar obra Tilted Arc, de Richard Serra, da Federal Plaza
pelo número de referências ao espaço público no de Nova York – também focalizavam o acesso
discurso estético contemporâneo, o mundo da arte democrático ao espaço, pelo menos no que se
está levando a democracia a sério. refere àqueles que se opunham à escultura. “Este
é um dia de satisfação para o povo”, declarou
Por exemplo, quando administradores das artes
William Diamond, membro do programa do
e autoridades municipais criam diretrizes para
governo federal Art-in-Architecture, no dia em
instalar “arte em espaços públicos”, frequen-
que o Tilted Arc foi destruído, “porque agora a
temente utilizam um vocabulário que invoca praça legitimamente retorna ao povo”. Mas
princípios da democracia, tanto da direta quanto aqueles a favor da escultura, em seus depoimentos
da representativa: As obras são para “o povo”? Elas na audiência que decidiria o destino do Tilted Arc,
encorajam a “participação”? Estão a serviço de seu defenderam a obra sob o estandarte da democracia,
“eleitorado”? A terminologia da arte pública sustentando o direito do artista à liberdade de
frequentemente alude à democracia como uma expressão ou tratando o próprio julgamento como
forma de governo, mas também a um espírito destrutivo para os processos democráticos.3
democrático geral de igualitarismo: os trabalhos
Outros, igualmente comprometidos com a arte
evitam “elitismo”? Eles são “acessíveis”?
pública, mas relutantes em se posicionar em tais
Quando se trata de arte pública, até os críticos controvérsias, buscaram resolver os confrontos
neoconservadores – acostumados ao elitismo entre artistas e outros usuários do espaço a partir
em questões artísticas – estão com o povo. da criação de procedimentos geralmente descritos
Historicamente, é claro, neoconservadores como “democráticos”: “envolvimento comunitário”
fizeram objeção ao que Samuel P. Huntington na seleção de obras de arte ou a “integração” dos
chamou de “excesso de democracia” – o ativismo, trabalhos com os espaços que ocupam. Tais proce-
as demandas de participação política, assim como dimentos podem ser necessários e mesmo profícuos
o questionamento de autoridade governamental, em alguns casos, mas assumir a priori que são
moral e cultural. Tais demandas, escreveu democráticos é pressupor que a tarefa da demo-
Huntington, são o legado do “surto democrático cracia é acalmar, em vez de sustentar, os conflitos.
dos anos 60”, que impedem que as elites rejam a Nenhum outro tema é em si tão conflituoso
democracia. Elas tornam a sociedade ingovernável quanto a democracia, que, como mesmo esses
ao fazer o governo acessível demais: “As poucos exemplos mostram, pode ser compreen-
sociedades democráticas não funcionam quando dida de diversas maneiras. A emergência desse
a cidadania não é passiva”.1 Hoje, entretanto, tópico no mundo da arte faz parte de irrupção
os neoconservadores chamam o governo de mais abrangente de debates sobre o significado
excessivo e atacam a “arrogância” e o “egoísmo” da democracia, que têm ocorrido atualmente em
da arte pública, em especial a arte pública crítica, diversas áreas: na filosofia política, nos novos movi-
precisamente em nome do acesso democrático – mentos sociais, na teoria educacional, nos estudos
do acesso do povo ao espaço público.2 jurídicos, nos meios de comunicação de massa e
do socialismo e do marxismo, esses embates im- ataques ferozes aos direitos de grupos sociais “des-
pulsionaram o uso da democracia como slogan cartáveis” revelam os perigos da adoção de uma
que encobre as incertezas da vida política contem- postura celebrativa. Em discordância com a tese de
porânea, mas também colocaram em dúvida tal Francis Fukuyama de que o esforço humano contra
retórica, propondo a democracia precisamente a tirania tem como fim inevitável a democracia
como uma questão. capitalista, Chantal Mouffe escreve “Temos que, de
fato, reconhecer que a vitória da democracia liberal
Para a crítica de esquerda, a sensibilidade e in- se deve mais ao colapso de seu inimigo que a seu
certeza a respeito da democracia não se deve
próprio sucesso”.7
somente ao recente descrédito sobre os regimes
totalitários. Há tempos que esquerdistas de vários Ao mesmo tempo, uma força democrática em
tipos têm consciência de que o totalitarismo não contraposição também emergiu – a proliferação de
é uma mera traição ao marxismo. Eles têm sido novas práticas políticas inspiradas pela ideia de
perturbados pelo fracasso dos marxistas ortodoxos direitos: movimentos pelo direito à moradia, à
e do próprio Marx em compreender ideias de privacidade e à mobilidade das pessoas sem-teto,
liberdade e direitos humanos. As formas mais por exemplo, ou declarações a favor do direito de
engessadas do marxismo estiveram tão preocupadas gays e lésbicas a uma cultura sexual pública. Alme-
em desafiar a democracia burguesa como uma jando reconhecimento às particularidades coletivas e
forma mitificada do domínio de classe capitalista marginalizadas, esses novos movimentos defendem
e em insistir que a igualdade econômica garante – e ampliam – direitos adquiridos, mas também
uma democracia verdadeira ou “concreta”, que, propagam exigências de novos direitos com base em
como certo autor disse, eles são “incapazes de necessidades distintas e contingentes. Ao contrário
discernir liberdade na democracia” ou “servidão de uma liberdade puramente abstrata, esses direitos
no totalitarismo”.4 Entretanto, o repúdio de noções não deixam de considerar as condições sociais
economicistas de democracia e totalitarismo clara- daqueles que os reivindicam. Ainda que tais mo-
mente não é motivo para nos contentarmos com vimentos desafiem o exercício de poder estatal e
um anticomunismo. Porque, como Nancy Fraser corporativo nas democracias liberais, se desviam
sensatamente nos lembra, “Há muito ainda o que dos princípios formadores dos projetos políticos
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tradicionais de esquerda. Concentrando-se na Estado também garantia o sentido e a unidade da
construção de identidades políticas na sociedade sociedade – do povo. A sociedade, em consequência,
e na formação de alianças provisórias com outros era representada como uma unidade substanciada,
grupos, os novos movimentos se distanciam das cuja organização hierárquica se baseava em um
soluções genéricas para os problemas sociais fundamento absoluto.
e recusam também ser dirigidos por partidos
Com a revolução democrática, entretanto, o poder
políticos que alegam representar os interesses
estatal já não depende de uma força externa.
essenciais do povo.
Agora o poder provinha do “povo” e estava loca-
Ao longo das duas últimas décadas, certos pensa- lizado no interior do social. Mas com o desapa-
dores de esquerda buscaram, por um lado, abrir recimento de referências a uma origem externa de
espaço para essas novas modalidades de luta poder, também se dissipou a origem incondicional
política e, por outro, confrontar a experiência do de sua unidade. O povo é a fonte do poder, mas ele
totalitarismo. Esse duplo objetivo motivou intelec- também é privado, nesse momento democrático, de
tuais como Claude Lefort, Ernesto Laclau, Chantal sua identidade substancial. Assim como o Estado,
Mouffe, Étienne Balibar, Jean-Luc Nancy, Philippe a ordem social não tem fundamento. A unidade da
Lacoue-Labarthe, entre outros, a renovar as teorias sociedade já não pode ser representada como uma
da democracia. Um dos pais desse projeto é Lefort, totalidade orgânica, e sim como “puramente social”
filósofo político francês, que no começo da década e, portanto, um mistério. Sem precedentes na
de 1980 formulou ideias que se tornaram chave democracia é o fato de que o local do qual o poder
para os debates sobre a democracia radical. O retira sua legitimidade é o que Lefort chama de “a
marco da democracia, diz Lefort, é o desapare- imagem de um lugar vazio”.8 “A meu ver”, escreve
cimento das certezas sobre os fundamentos da o autor, “o ponto importante é que a democracia
vida social. A incerteza faz do poder democrático é instituída e sustentada pela dissolução dos indi-
a antítese do poder absolutista monárquico, que cadores de certeza. Isso inaugura uma história na
ele destrói. Na visão de Lefort, a revolução política qual as pessoas experimentam uma indeterminação
burguesa da França do século XVIII inaugurou uma fundamental no que diz respeito às bases do poder,
da lei e do conhecimento, assim como sobre o
mudança radical na forma de sociedade, uma mu-
fundamento das relações entre o eu e o outro”.9
dança que nomeia, seguindo Alexis de Tocqueville,
“a invenção democrática”. A invenção democrática A democracia, então, tem uma dificuldade em seu
forma um mesmo evento com a Declaração dos núcleo. O poder emana do povo, mas não pertence
Direitos do Homem, acontecimento que deslocou a ninguém. A democracia abole a referência externa
o poder. Todo poder soberano, assevera a declaração, do poder e refere o poder à sociedade. Mas o poder
reside no “povo”. E onde residia anteriormente? democrático não pode, para garantir sua autori-
Sob a monarquia, o poder tomava corpo na figura dade, apelar a um significado imanente no social.
do rei que, por sua vez, encarnava o poder do Ao contrário, a invenção democrática inventa algo
Estado. Mas o poder do rei e do Estado eram, em mais: o espaço público. O espaço público, segundo
última instância, derivados de uma origem transcen- Lefort, é o espaço social em que, dada a ausência de
dente: Deus, a Justiça Suprema ou a Razão. A fonte fundamentos, o significado e a unidade do social
transcendente que garantia o poder do rei e do são negociados – ao mesmo tempo constituídos e
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A argumentação lefortiana presente nesse ensaio social ou valores morais objetivos. Em segundo
é que os defensores da arte pública que dese- lugar, reivindica-se que tal fundamento autoriza o
jam fomentar o crescimento de uma cultura exercício do poder estatal sobre esses espaços (ou
democrática, devem também partir desse ponto. o poder de entidades quase governamentais como
A democracia, ligada à imagem de um lugar vazio, as “parcerias público-privadas”17).
é um conceito capaz de interromper a linguagem
No entano, a partir dessa reivindicação o poder se
dominante sobre democracia que hoje nos absorve.
torna incompatível com os valores democráticos, e
Porém, a democracia conserva a capacidade de
o espaço público é, tomando emprestado um termo
continuamente colocar em questão o poder e as
de Lefort, “apropriado”. Quando os guardiões do
ordens sociais existentes somente se não fugirmos
espaço público remetem seu poder a uma fonte
da questão – a impossibilidade de conhecer o
de unidade social fora do social, sua pretensão
social – que gera o espaço público no coração da
é ocupar – no sentido de preencher, tomar posse,
democracia. Instituído pela declaração dos direitos
tomar posse por ocupação – o lugar do poder que
do homem, o espaço público estende a todos os
em uma sociedade democrática é um lugar vazio.
seres humanos a liberdade que Hannah Arendt
Sejamos claros. Para Lefort, “apropriação” não
chama de “um direito a ter direitos”.15 O espaço
designa simplesmente o exercício de poder ou o
público expressa, nas palavras de Étienne Balibar,
ato de tomar decisões sobre o uso de um espaço.
“uma essencial ausência de limites característica da
Lefort não nega a necessidade de poder ou de
democracia”.16 Mas quando a questão da demo-
tomada de decisões políticas. A apropriação é uma
cracia é substituída por uma identidade positiva,
estratégia mobilizada por um poder distintamente
quando críticos falam em nome de significados
antidemocrático que se legitima dotando o espaço
absolutos e não contingentes do social – ou seja,
social de um significado “próprio”, portanto incon-
políticos – a democracia pode ser mobilizada
testável, que desse modo fecha o espaço público.18
para impor concordância em novas formas de
subordinação. Apenas um exemplo deve ser suficiente para ilustrar
a estratégia apropriativa no discurso urbano contem-
*
porâneo, uma vez que se tornou bastante familiar.
Atualmente, o discurso sobre os problemas dos Atualmente ela se difunde sob o lema “qualidade
espaços públicos nas cidades dos Estados Unidos de vida urbana”, expressão que em seu uso predo-
está dominado pela articulação da democracia em minante incorpora uma profunda antipatia aos
direções autoritárias. Esse movimento é engen- direitos e ao pluralismo. Formulada no singular,
drado em duas etapas interligadas. Primeiramente, “a qualidade de vida” supõe um citadino universal
os espaços públicos urbanos são equipados com que equivale a “o público” – identidades que, na
fontes significativas de unidade. Usos específicos realidade, a própria frase inventa. A universalidade
desses espaços são considerados autoevidentes e desse residente urbano entra em questão quando
consistentemente benéficos, porque são tratados notamos que os defensores de uma melhor quali-
como se fossem baseados em algum fundamento dade de vida não defendem todas as instituições
absoluto – necessidades humanas eternas, a confi- públicas igualmente. Se jornalistas conservadores
guração e evolução orgânica das cidades, progresso buscam frequentemente a proteção dos parques
tecnológico inevitável, formas naturais de arranjo municipais, eles não apoiam necessariamente
Times e promovia a pequena praça a símbolo do Journal evita conflitos representando a decisão do
progresso na luta contínua pela restauração do fechamento do Jackson Park como a “reivindicação”
espaço público.20 Localizado em uma rotatória, de “nosso” espaço público dos “indesejáveis”. O
Jackson Park se encontra rodeado por casas e apar- Journal retrata os conflitos em torno do espaço
tamentos de classe média alta e por um número da cidade como uma guerra entre duas forças abso-
considerável de moradores de rua. Após a recons- lutas, em vez de políticas: os Amigos de Jackson Park,
trução de 1,2 milhões de dólares, um grupo de que são associados a “o público” e que, respaldados
vizinhos, Amigos de Jackson Park – grupo que o pela administração local, representam os usos
Times constantemente confunde com “a comu- adequados que restituirão a harmonia original ao
nidade” e “o público” –, decidiu trancar os re- espaço público frente aos inimigos do parque – os
cém-instalados portões do parque durante a noite. sem-teto, que perturbam essa harmonia.
O departamento municipal de parques, na falta de Nesse cenário, o reconhecimento do conflito reafir-
equipe suficiente para fechar o parque, acolheu a ma a quem o observa que a sociedade pode ser livre
ajuda “pública” para a proteção do espaço público, de divisões. O sem-teto, representado como intruso
uma defesa que compararam ao despejo de no espaço público, sustenta a fantasia daqueles que
moradores de rua dos parques da cidade. “As têm moradia de que a cidade e o espaço social em
pessoas que possuem as chaves”, anunciava o geral são em essência uma totalidade orgânica. A
Times, “estão determinadas a manter o parque pessoa sem-teto é construída como uma figura
como um parque”.21 ideológica, uma imagem negativa criada a fim
Um espaço público preestabelecido, nos diz o de restaurar a positividade e a ordem da vida social.
Times, está sendo defendido por seus proprietários Para compreender essa operação ideológica,
naturais – uma afirmação que inverte a sequência podemos resgatar as especulações elaboradas
real dos acontecimentos. Porque somente recorrendo por Theodor Adorno no pós-guerra em torno das
a um argumento fora de argumentação – “um imagens negativas, isto é, antissemitas, dos judeus.
parque é um parque” – e, portanto, decretando a Em resposta à ideia então dominante de que o
priori quais usos do espaço público são legítimos, persistente antissemitismo alemão podia ser derro-
que tal espaço se torna propriedade de um dono – tado familiarizando os alemães aos judeus “reais”
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– enfatizando, por exemplo, a contribuição histó- no qual a negatividade social como tal assume uma
rica dos judeus ou promovendo encontros entre existência positiva”.26 A visão do sem-teto como
alemães e israelenses – Adorno escreveu: “Esse tipo a fonte do conflito no espaço público nega que
de operação depende demasiadamente do pressu- haja obstáculo para a coesão residindo no cerne da
posto de que o antissemitismo tem a ver essencial- vida social. O sem-teto encarna a fantasia de um
mente com os judeus e que pode ser combatido espaço urbano unificado que pode – e deve – ser
por meio de um verdadeiro conhecimento sobre resgatado.27
eles”.23 Pelo contrário, afirma Adorno, o antissemi-
Para contestar a imagem do sem-teto como
tismo nada tem a ver com os judeus, mas totalmente
uma disrupção à ordem urbana normal, é crucial
com a economia psíquica do antissemita. Esforços
reconhecer que essa figura “intrusa” aponta para o
para combater o antissemitismo não podem se
verdadeiro caráter da cidade. O conflito não assola
sustentar, então, nos efeitos supostamente bené-
um espaço urbano original ou potencialmente
ficos da educação sobre os judeus “reais”. Em vez
harmonioso. O espaço urbano é produto do conflito.
disso, tais esforços devem “voltar-se em direção ao
E isso é assim em diferentes, inumeráveis sentidos.
sujeito”, escrutinando as fantasias do antissemita e a
Em primeiro lugar, a falta de fundamentos sociais
imagem do judeu desejada por ele ou ela.24
absolutos – “a dissolução dos indicadores de
Elaborando a sugestão de Adorno, Slavoj Žižek certeza” – faz do conflito uma característica inde-
analisa brilhantemente a construção do “judeu” lével de todo o espaço social. Em segundo lugar, a
como uma figura ideológica do fascismo, um imagem unitária do espaço urbano construída no
processo que, embora não seja idêntico, mantém discurso conservador é em si mesma produzida por
importantes paralelos com as construções atuais divisão, constituída mediante a criação de um exte-
dos “sem-teto” como figura ideológica. Desordem,
25
rior. A percepção de um espaço coerente não pode
mal-estar e conflito no sistema social são atribuídos a ser separada da compreensão do que ameaça esse
essa figura – propriedades que não podem ser elimi- espaço ou do que ele gostaria de excluir. Por fim, o
nadas desse sistema, visto que, como argumentam espaço urbano é produzido por conflitos socioeco-
Laclau e Mouffe, o espaço social se estrutura em nômicos específicos que não devem simplesmente
torno de uma impossibilidade e está irrevogavel- ser aceitos, seja com entusiasmo ou pesar, como
mente cindido por antagonismos. Mas quando evidências da inevitabilidade do conflito; mas devem,
o espaço público é representado como unidade antes, ser politizados – abertos à contestação como
orgânica que o sem-teto parece vir desestabilizar formas sociais e, portanto, relações de opressão
de fora, essa figura se torna a personificação do mutáveis. Como argumentei em outro momento,
elemento que impede a sociedade de alcançar a atual presença de pessoas sem-teto nos lugares
equilíbrio. O elemento que frustra a capacidade públicos de Nova York é o sintoma mais agudo de
da sociedade de alcançar coesão é transformado, que as relações sociais desiguais que determinaram
de uma negatividade dentro do social em uma o perfil da cidade ao longo da década de 1980,
presença cuja eliminação restituiria sua ordem. um período em que a cidade foi remodelada não
Nesse contexto, as imagens negativas do sem-teto para alcançar as necessidades naturais de uma
são imagens de uma positividade. Tal figura se con- sociedade una, como clamaram os promotores da
verte, escreve Žižek sobre o “judeu”, “num ponto remodelação, mas para facilitar a reestruturação
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aqueles que desafiam a dominação conservadora
no discurso da arte pública têm amplamente
reapropriado o termo.
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Discursos estéticos conservadores e liberais definiti- dos direitos de liberdade de expressão e em
vamente não estão sozinhos ao encontrar modos contestar a atual proliferação de espaços
de simultaneamente abrir e encerrar a questão urbanos higienizados que toleram pouca oposição
do espaço público. Algumas das críticas radicais aos usos mais circunscritos.43 Quando, porém,
mais influentes a esses discursos também tentam Sorkin idealiza o espaço tradicional da cidade
dissipar incertezas. Muitos críticos culturais de como uma “urbanidade mais autêntica”,44 um
esquerda, por exemplo, buscam descobrir na espaço essencial para políticas democráticas,
história a origem e a essência da vida cívica ele distancia a política de sua constituição
democrática. Na pólis ateniense, na república histórica, assim como da possibilidade de
romana, na França do final do século 18, e nas sua transformação. Dentro dessa perspectiva
comunas das primeiras cidades americanas, críticos idealizadora, desvios dos arranjos espaciais
localizam as formas espaciais que supostamente estabelecidos inevitavelmente indicam o “fim do
representam tal vida. Essa busca se tornou espe- espaço público”. Edge cities,45 shoppings, meios
cialmente comum entre teóricos de esquerda do de comunicação de massa, espaços eletrônicos
urbanismo e da arquitetura que, impulsionados (mesmo, em favor de direitos, distritos eleitorais
pela oposição aos novos espaços públicos homo- “bizarramente forjados”) tornaram-se equivalentes
geneizados, privatizados e regulados pelo Estado, para a falência da democracia.
criados pela urbanização do capitalismo avançado,
A capa de Variatons on a Theme Park revela certos
formaram alianças influentes. Michael Sorkin, por
problemas com essa abordagem. Retrata um
exemplo, introduz sua antologia interdisciplinar
grupo de personagens renascentistas, com homens
de ensaios críticos, Variations in a Theme Park:
e mulheres normalmente vistos em pinturas do
The New American City and the End of Public
quattro e cinquecento, dispostos ao longo de
Space (Variações sobre um parque temático: a
perspectivas ordenadas ortogonalmente e em
nova cidade americana e o fim do espaço público),
praças italianas visualmente uniformes. Mas, na
com um apelo ao retorno dos “espaços familiares
sobrecapa, esses habitantes de um terreno público
da cidade tradicional, as ruas e praças, quintais
estável estão espacial e temporalmente deslo-
e parques”, que são “nossos grandes palcos da
cados. Com gestos aristocráticos, indumentária
vida cívica”.41 Sorkin conclui que nos novos
fluida e intacta, eles se encontram percorrendo
“espaços ‘públicos’ dos parques temáticos e dos
uma escala rolante em uma nova estrutura “an-
shoppings, o próprio discurso está restringido:
tiurbana” – talvez isso seja um “átrio introspec-
não há manifestações na Disneylândia. O esforço
tivo de um hotel” ou um shopping com vários
de reivindicar a cidade é a luta pela própria
pisos – uma estrutura que, de acordo com a tese
democracia”.42
do livro, significa “o fim do espaço público”.
Quando Sorkin trata o espaço público como local Apropriada para dar a ver essa tese, proporcio-
de atividade política em vez de um domínio nando literalmente um fundo para o subtítulo
universal que deve ser protegido da política, do livro, a ilustração conecta a crítica incisiva do
ele redireciona significativamente o discurso autor sobre o urbanismo contemporâneo a uma
dominante sobre o espaço público. O autor forte nostalgia urbana atual que certamente
acerta em vincular o espaço público ao exercício permeia muitos dos ensaios do livro.
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Existem bons motivos para que críticos radicais ausência, uma zona de segurança, um grande e
evitem essa conexão. Obviamente, o retorno ao bom lugar do qual fomos banidos – ao menos
passado os coloca desconfortavelmente próximos a aqueles que se identificam com os moradores da
discursos urbanos conservadores. No período de cidade renascentista tal como habitantes exilados
grande expansão das remodelações urbanas, de um espaço público democrático.
imagens nostálgicas da cidade foram utilizadas por
Essa consideração deveria nos fazer parar e refletir.
agentes imobiliários, preservacionistas e autoridades
Se especificarmos, ela levanta duas séries de per-
municipais para anunciar tais projetos como
guntas que podem ajudar a apurar as confusas
avanços em um esforço contínuo de restauro de
imagens atuais do espaço público. A primeira
uma cidade ideal do passado mais ou menos remoto.
investiga a identidade concreta das pessoas esboçadas
Em Nova York, esses projetos eram promovidos
que exemplificam uma dimensão pública suposta-
como contribuições graduais ao “renascimento” da mente verdadeira na capa do livro de Sorkin. Que
cidade, o ressurgimento de uma tradição urbana grupos sociais foram realmente incluídos e quais
perdida. Alegou-se que projetos de reabilitação foram excluídos dos espaços públicos urbanos do
urbana ajudariam a reposicionar Nova York em passado próximo ou distante que são pretensa-
seu devido lugar na linhagem de antigas cidades mente inclusivos de todos ou, pelo menos, mais
que, centradas e desenvolvidas a partir de espaços inclusivos? Quem contou como cidadão nas
públicos, eram harmoniosas em sua totalidade.46 A “grandes cenas da civilidade” que se apresentam
tradição continua. Para Paul Goldberger, o recém- agora como perdidas? “Para quem”, como ques-
renovado Bryant Park no Centro de Manhattan é tiona o crítico cultural Bruce Robbins, “a cidade foi
uma “experiência de fora da cidade”. Seu elogio, mais pública do que é agora? Era uma cidade aberta
como tantas outras reflexões sobre a cidade, ao escrutínio e à participação, sem falar do controle,
implica o controle do acesso ao espaço público da maioria? (...) Se foi assim, onde estavam os
pelos sem-teto: Bryant Park, afirma, é um lugar trabalhadores, as mulheres, as lésbicas, os gays,
que os pobres começaram a “compartilhar”. Agora os afro-americanos?”49
“parece que foi (...) deixado em uma paisagem
Levantar a questão sobre quem se identifica com o
idílica muito, muito distante”.47
morador despejado de uma praça pública clássica
O espaço público, tais comentários sugerem, não não somente nos incita a considerar os atributos
é somente algo que não temos. Se trata mais das figuras em uma imagem de espaço público;
ainda de algo que um dia tivemos – um estado também dirige nossa atenção àqueles que veem tal
de plenitude perdido. Contudo, por estar perdido e imagem. E aborda uma segunda questão, ampla-
não simplesmente morto, pode ser recuperado. “O mente negada e por vezes repudiada ativamente
que aconteceu com a praça pública?” questionou nos debates estéticos sobre o espaço público: a
o artigo principal da Harper’s Magazine em 1990, questão da subjetividade na representação. Como
como prelúdio a uma busca de novos desenhos as imagens do espaço público criam as identidades
urbanos que recuperariam a praça pública – o que públicas que elas parecem meramente representar?
Harper’s chama de “aquele grande e bom lugar”48. Como constituem o espectador de acordo com essas
O que é retratado na capa de Variations on a identidades? Isto é, como tais imagens convidam os
Theme Park senão uma perda? Vemos, como espectadores a tomar uma posição que então os
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tem seu declínio com a entrada de grupos não definições predominantes de espaço público, são
burgueses, com o crescimento dos meios de comu- cruciais para a prática democrática. Ao diferenciar
nicação de massa e com o surgimento do Estado o espaço público do âmbito estatal, por exemplo,
de bem-estar social. Esses fenômenos erodiram a o conceito de esfera pública contraria o discurso
fronteira segura entre vida pública e privada, que sobre arte pública que define o público como
para Habermas é a origem e segue como condição administração do Estado e restringe democracia a
de existência da esfera pública. uma forma de governo. A ideia de esfera pública
situa a democracia na sociedade perante a qual a
Pode-se questionar a tendência homogeneizadora
autoridade estatal é responsável. Com o espaço
que se vislumbra mesmo por essa breve descrição
público ligado à tomada de decisão política, a
do ideal habermasiano de uma esfera pública
singular e unificada, que transcende as particu- direitos e legitimidade social, os administradores
laridades concretas para alcançar um consenso de questões artísticas terão mais dificuldade em
racional e não coercitivo. Por ora, entretanto, ignorar a remoção de grupos sociais de espaços
enfatizemos a existência de outras concepções públicos urbanos enquanto persistem descrevendo
de esfera pública menos hostis a diferenças ou tais locais como “acessíveis”. Além disso, e
conflitos, menos ávidas a dar as costas às críticas talvez sobretudo, a esfera pública substitui as
da modernidade e mais céticas sobre a inocência definições de arte pública como aquela obra que
seja da razão ou da linguagem, e notemos o forte ocupa ou desenha espaços físicos e que se dirige
impacto que qualquer concepção de esfera pública a públicos preexistentes com uma concepção de
exerce em pressupostos convencionais sobre arte arte pública como uma prática que constitui
pública. Pois a interpretação de arte pública como um público, engajando pessoas na discussão
arte operando em ou como esfera pública – seja política ou entrando na luta política. Uma vez que
seguindo ou renunciando ao modelo habermasiano qualquer local tem potencial de ser transformado
– significa que uma arte pública, ao contrário de em espaço público ou, também nesse sentido, em
um público de arte, não é uma entidade preexis- espaço privado, a arte pública pode ser vista como
tente, mas emerge por meio de, e é produzida por, um instrumento que tanto ajuda a produzir um
sua participação na atividade política. espaço público quanto questiona um espaço
dominado que foi oficialmente ordenado como
A introdução do conceito de esfera pública na crítica
público. A função da arte pública se torna, como
de arte destrói as categorizações dominantes de
colocado por Vito Acconci, “fazer ou romper um
arte pública. Ajuda também a driblar algumas
espaço público”.53
confusões que afligem os debates críticos.
Transgredir as fronteiras que convencionalmente Um dos efeitos de introduzir a ideia de esfera
separam a arte pública e não pública – divisões pública nos debates sobre arte pública, porém, é
traçadas, por exemplo, entre arte em interior e superior aos outros em sua força para contestar
em exterior, entre obras de arte apresentadas em definições neutralizadoras: quando a crítica redefine
instituições convencionais e aquelas exibidas “na a arte pública como aquela que opera em ou ao
cidade”, entre arte financiada pelo Estado e arte de modo de uma esfera pública, a advertência até
financiamento privado – o conceito de esfera pública então unânime de se fazer arte pública se torna
escava outras distinções que, neutralizadas pelas virtualmente sinônimo da demanda por politização
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algo existe, que de algum tenha vindo a ser, será exemplo os investimentos culturais e econômicos
sempre reinterpretado para novos fins, tomado de Nelson Rockefeller na América Latina, Owens
de maneira nova, transformado e redirecionado argumenta que aqueles indivíduos que represen-
para uma nova utilidade por um poder que lhe é tam os interesses econômicos mais profundamente
superior”.56 Ocultar um determinado “sistema de implicados na destruição de outras culturas a fim
finalidades” apelando a verdades essenciais contidas de trazê-las à esfera de relações sociais capitalistas
nas origens do público é uma manobra do poder são os mesmos que coletaram os artefatos dessas
autoritário que, encobrindo a disjunção entre as culturas em nome de sua preservação para o público.
origens de um termo e seus usos subsequentes,
Nos anos 80, critiquei uma retórica do bem público
tornam ‘o público’ invulnerável à transformação.
similar que fornecia um álibi para remodelações
Em resumo, as histórias sobre a origem do espaço
urbanas.58 Tanto os argumentos de Owens como
público não são realmente sobre o passado; elas
os meus foram parte de um esforço mais amplo
falam dos interesses e angústias que habitam nossos
na crítica de arte mundial em redefinir o público de
arranjos sociais atuais. Desde uma perspectiva
maneira que o conceito pudesse ser contraposto a
genealógica, a questão sobre o que significa para
duas tendências nas artes: em primeiro lugar,
a arte ser pública merece ainda ser formulada, mas
privatização econômica massiva – a explosão do
convoca para outra questão: Que funções políticas mercado de arte, ataques ao financiamento público e
a pressão para que se faça arte pública – ou seja, a influência empresarial crescente sobre as políticas
política – exerce atualmente? empresarias – e, em segundo lugar, a expansão de
uma nova indústria de arte pública servindo como
Visões públicas um braço estético de políticas urbanas opressivas.
Owens e eu invocamos o conceito de arte como
Questionamentos sobre a constituição, transfor-
uma esfera pública política a fim de combater a
mação e usos do público não são novos ao discurso
inversão que identificamos como a marca do
da arte pública, é claro, mas os dirigir para sua
discurso conservador sobre o público – as forças
redefinição crítica é algo novo. Desde os anos 80,
que se beneficiavam da destruição dos espaços e
a crítica de arte de esquerda tentou reestruturar
das culturas públicas se apresentavam como suas
o debate estético sobre o espaço público abando-
protetoras.59 “Se a cultura deve ser protegida”,
nando avaliações normativas do termo público em
Owens perguntou, “não é precisamente daqueles
favor de análises funcionais que examinavam seus
cujo trabalho é proteger a cultura?”60
usos em circunstâncias históricas específicas. Em
1987, por exemplo, Craig Owens apontou “quão Hoje, entretanto, vozes críticas no mundo da arte
maleável o conceito de público pode ser” e concluiu não se podem permitir formular ideias sobre uma
que “a questão de quem irá definir, manipular e arte pública “real” apenas expondo as relações de
beneficiar-se do ‘público’ é (...) o problema central dominação que se escondem por detrás de noções
de qualquer discussão sobre a função pública da liberais ou conservadoras – tal como os esquerdistas
arte hoje”.57 Owens examinou o modo pelo qual foram capazes de confinar sua crítica à democracia
a retórica sobre o “bem público” e “a proteção da em desvelar as mitificações da democracia
cultura para o público” forneceu historicamente um burguesa enquanto ignoraram o potencial
álibi para o imperialismo moderno. Usando como autoritário de algumas de suas próprias ideias sobre
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Public Vision, organizada por Gretchen Benden, não estivesse exclusivamente relacionado ao gêne-
Nancy Dwyer e Cindy Sherman, foi apresentada ro. Ao situar o trabalho de artistas que já tiveram
na White Columns, um pequeno espaço alterna- proeminência nos debates do pós-modernismo –
tivo que naquela época se encontrava nos limites Barbara Kruger, Louise Lawler, Sherrie Levine, Cindy
do Soho, em Manhattan.62 A exposição reuniu um Sherman, Laurie Simmons – em um contexto de
grupo de mulheres artistas cujos trabalhos eram manifesto feminista, a exposição promoveu uma
associados com o que logo ficaria conhecido como releitura dessas obras.
a crítica feminista da representação visual. Foi uma
Public Vision questionava a doutrina modernista
exposição pequena, breve e sem documentações.
oficial de acordo com a qual a visão é um modo
Entretanto, olhando em retrospecto, tem a quali-
superior de acesso às verdades autênticas e uni-
dade de um manifesto. Montada no ápice de um
versais, porque está supostamente dissociada dos
revival neoexpressionista internacionalmente acla-
objetos que vê. A ideia de destacamento visual e
mado, dominado por homens e marcado por valo-
outros conceitos a ela relacionados, o juízo desin-
res estéticos tradicionais, essa exposição anunciou
teressado e a contemplação imparcial, dependem
a chegada de uma nova política feminista da ima-
da crença de que existe uma ordem de significado
gem destinada a desestabilizar programas estéticos
em si mesmo, nas próprias coisas, como presença.
consagrados. Public Vision também prometia que
Na conjuntura modernista de uma visão estética
a arte informada por teorias feministas da repre-
desinteressada, o sujeito observador autossuficien-
sentação mudaria o curso do que era até aquele
te contempla um objeto artístico igualmente autô-
momento a crítica mais radical de paradigmas tra-
nomo que possui significados independentemente
dicionais: o discurso sobre o pós-modernismo. No
das circunstâncias particulares de sua produção ou
início dos anos 80, teorias do pós-modernismo nas
recepção. Os influentes escritos de Clement Gre-
artes permaneceram indiferentes à sexualidade e ao
enberg definiram a pintura modernista como a
gênero.63 Public Vision foi uma intervenção femi-
própria figura de tal verdade completamente cons-
nista tanto no discurso estético dominante quanto
tituída – uma totalidade autocontida – e tratando
no da crítica radical – e tornou-se uma predecesso-
a experiência visual como uma categoria pura,
ra pouco conhecida de exposições como The Revo-
irredutível, isolada de outras ordens de experiên-
lutionary Power of Women’s Laughter (1983)64 e a
cia. À visão foram dadas as propriedades de uma
altamente influente Difference: On Representation
essência.66 O prestígio de que desfrutava a arte tra-
and Sexuality (1985),65 ambas originadas em Nova
dicional repousava nessa doutrina da pureza visual.
York, e de uma série de outras exposições poste-
Museus e galerias, como se considerava, se limita-
riores que aliaram as contestações pós-modernis-
vam a descobrir e preservar os valores atemporais e
tas às premissas universalistas da modernidade e
transcendentes presentes nos objetos de arte.
as declarações pós-modernas sobre “o nascimento
do espectador” às críticas feministas dos regimes No final da década de 1960 e em 1970, certos
visuais fálicos. Public Vision foi menos programá- artistas lançaram uma crítica às instituições de
tica que algumas exposições subsequentes sobre arte que contestava a alegação da transcendência
esses temas, mas, composta somente por artistas estética. Artistas como Hans Haacke, Martha
mulheres, assinalava uma pauta feminista, ainda Rosler, Adrian Piper, Daniel Buren e Marcel
que o tipo de feminismo que moldou a exposição Broodthaers demonstraram que o significado de
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– fantasias masculinas de completude alcançada
pela repressão de diferentes subjetividades, pela
transformação da diferença em alteridade, ou subor-
dinando o outro real à autoridade de um ponto de
vista universal que supostamente seria, assim como o
espectador de arte tradicional, indiferente a questões
de sexo, raça, um inconsciente ou história.
e ângulo. Desse modo, chamava a atenção para o estabelecimento da diferença entre os sexos. O
espectador masculino só se pode construir como
processo material de formação da identidade que
um todo ao encontrar uma feminilidade fixada,
tem lugar nas imagens de mulheres que são
uma verdade do feminino que precede a represen-
culturalmente codificadas, mas aparentemente
tação. Nesse sentido, a imagem de “mulher” é um
naturais. As fotografias de Sherman tanto provo-
instrumento para produzir e manter uma fantasia
cavam quanto frustravam a busca do espectador
de identidade masculina.
de uma verdade interna e oculta de personagem
que pudesse penetrar, uma identidade essencial Na contribuição de Barbara Kruger para Public
em torno da qual o significado da imagem pudesse Vision, Untitled (You delight in the loss of others),
ser encerrado. Rosalind Krauss nos recorda que um texto sobreposto a uma fotografia radicalmente
essa busca de verdade é a principal característica cortada da mão estendida de uma mulher derra-
da visão hermenêutica da arte, uma ideia que tem, mando um copo de leite é o veículo para interromper
aliás, um subtexto de gênero: “O próprio corpo a retórica da imagem – as estratégias pelas quais a
da mulher tem servido como uma metáfora para imagem impõe suas mensagens aos espectadores.
T E M Á T I C A S | R O S A LY N D E U T S C H E 139
Interpelando ao espectador sem rodeios, as palavras em relação aos “outros”, um espectador consti-
“Você se deleita na perda dos outros” invocam os tuído por suas imagens. A fotomontagem de Kruger
prazeres sádicos do olhar voyeurista, o polo de visão sugere também que os espaços atribuídos a espec-
diretamente ligado ao ideal de distanciamento tador e imagem nas estruturas voyeuristas estão
visual: a visada voyeurista enquadra os objetos intimamente ligados às estruturas hierárquicas
como imagens, os coloca a distância, os fecha de diferença sexual – não só porque as mulheres
em um espaço separado e situa o sujeito que olha têm historicamente ocupado o espaço de objeto
em uma posição de controle. Simultaneamente, visual e são literalmente observadas, mas porque o
entretanto, o texto de Kruger fala como uma voz olhar voyeurista “feminiza” tudo o que olha – se,
feminista que quebra a segurança dessa dispo- como escreve Mark Wigley, se entende por femi-
sição. Sua imagem “vê” o espectador, colapsando nino aquilo que perturba a segurança dos limites
a distância entre os dois. O reconhecimento por que separam espaços, deve, portanto, ser contro-
Kruger da presença do espectador assevera que a lado pela força masculina. A masculinidade, nesse
recepção é um componente essencial da imagem sentido, “nada mais é que a capacidade de manter
e corrói a invisibilidade que protege esse olhar limites rígidos ou, mais precisamente, o efeito de
pretensamente neutro de interrogações. O faz, tais limites”.70 Argumentou-se que a figura ico-
entretanto, não a fim de apontar um espectador nográfica nas imagens de mulheres é menos uma
específico, mas para colocar em questão a identi- reprodução de mulheres reais do que um signo
dade de quem olha. O pronome pessoal “you” não cultural produzindo a feminilidade como o objeto
indica uma pessoa real; não possui um referente de tal contenção masculina, o que Laura Mulvey
estável ou absoluto.69 “You” denota uma posição ilustremente denomina “to-be-looked-at-ness”.71
T E M Á T I C A S | R O S A LY N D E U T S C H E 141
afirmação do distanciamento visual não seja mera mais complexas. Descreve um espaço no qual os
ilusão, mas, como escreve Kate Linker, um instru- significados das imagens e as identidades dos su-
mento de agressão.73 jeitos estão radicalmente abertos e são contingentes
e incompletos. Public Vision associava o espaço
Obras como essas de Levine, Sherman e Kruger
público com um conjunto de relações que exce-
abriram o espaço modernista caracterizado pela
dem o nível individual, mas não estão estritamente
visão pura. Integrada à arquitetura do olhar
fora do indivíduo. A dimensão pública surge como
modernista está uma injunção para reconhecer
uma qualidade que constitui, habita e também
imagens e espectadores como espaços dados em
abre uma brecha no interior dos temas sociais. É a
vez de produzidos, e, desse modo, como interiores
condição de exposição a um exterior que é também
fechados em si mesmos. Mas a arte baseada em
uma instabilidade interna, uma condição, como diz
ideias feministas sobre a representação perturba
esse fechamento ao encenar a visão como um Thomas Keenan, “de vulnerabilidade”.74 Public Vision
processo que constitui mutuamente imagem e implicava que a condição de desinteresse e impar-
observador. A interioridade pura, como revelam cialidade que o espectador masculinista alega é um
esses trabalhos, é um efeito da dependência dene- escudo erguido contra essa vulnerabilidade, uma
gada que o sujeito tem do campo visual. Ao expor negação da imersão do sujeito na abertura do
as relações reprimidas por meio das quais a visão espaço público.
produz a noção de autonomia – em outras palavras, Ainda assim, é esse sujeito imparcial que, cinco
ao explorar a descontinuidade do espectador em si anos mais tarde, o historiador da arte Thomas
mesmo –, essas obras afetam também a noção de Crow descreveu como o autêntico ocupante do
que a alteridade é puramente externa. A aber- espaço público e, mais ainda, como o detentor de
tura da visão modernista cria um espaço onde uma verdadeira “visão pública”. Crow fez essas
os limites entre eu e o outro, interior e exterior, asserções como um participante no debate A
são questionados. esfera pública cultural, uma de suas sessões
Qual o sentido de chamar esse espaço conturbado dedicadas a esse tema em uma série de debates
de “público”? A expressão visão pública tem várias semanais sobre questões críticas da arte contem-
conotações. Sugere que a visão é modelada por porânea, organizada por Hal Foster na Dia Art
estruturas sociais e históricas; que o significado Foundation. No prefácio do livro que documenta
das imagens é produzido cultural e não individual- o simpósio, Discussions in Contemporary Culture
mente; e que as imagens significam em estruturas (Discussões em cultura contemporânea), Hal Foster
sociais. Em todos esses sentidos, o termo público explica que um dos temas discutidos é “a definição
implica que espectadores e imagens são cons- de público e público visitante, contexto histórico e
truídos socialmente, que o significado é público, presente”.75 De fato, os debates da fundação Dia
não privado. Utilizado no título de uma exposição permanecem como um dos mais sérios esforços
que explorava a visão como um processo incerto, até então de redefinir a arte pública em termos de
no qual espectadores e imagens não somente são seu envolvimento na esfera pública política. Como
construídos por um âmbito social estabelecido primeiro conferencista na sessão de abertura, Crow
externamente à visão, mas que também constroem iniciou os esforços. Tanto sua fala original quanto
um ao outro, o adjetivo público tem conotações a versão revisada, publicada em Discussion in
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de arte como um microcosmo desse público mais pólis grega (...), em última análise, havia sido
amplo, Crow tenta integrar a estética moderna em responsável pelas conquistas artísticas exemplares
uma teoria e prática da esfera pública que se situa da Antiguidade. De modo semelhante, o êxito na
na origem da democratização das instituições polí- retomada da Antiguidade durante o Renascimento
ticas. O espectador, na narrativa de Crow, torna-se remontava ao estímulo e ao controle da cidadania
parte de um público de arte do mesmo modo que circunscrita das cidades-Estado italianas”.
os indivíduos privados se tornam cidadãos. Quando
Antes de sua perda atual, Crow argumenta, o
o indivíduo surge como membro do público, ou, por
antigo projeto cívico humanista de construir um
extensão, quando um espectador de arte se junta
público ideal para a arte foi redescoberto em três
a um público de arte, ele renuncia a suas particula-
momentos cruciais da história da arte moderna. A
ridades e interesses especiais em favor do interesse
despeito de suas diferenças, cada período manteve
universal. Ele se torna, utilizando o termo de Crow,
vivo o ideal de uma estética unificadora – portanto,
“adequado”, no sentido de imparcial.
pública. A estética cívica humanista foi reavivada
Crow toma essas ideias dos tratadistas de arte do pela primeira vez, como vimos, no discurso de arte
Iluminismo. No século 18, os estetas ingleses e do Iluminismo. Os teóricos iluministas propunham
franceses idealizaram um público de arte com base que o ato de se concentrar na unidade da com-
em um novo modelo de cidadania. Queriam esta- posição pictórica elevava o espectador de arte acima
belecer uma “república do gosto”, uma cidadania dos interesses privados e materiais que, segundo
democrática de arte que replicasse a estrutura de disse Crow, eram consagrados pelo crescimento do
uma república política composta por cidadãos capitalismo. Depois, no final do século 19 e começo
livres e ativos. A segurança de ambas as repúblicas, do século 20, “a estética cívica humanista” rea-
acreditava-se, se fundava em princípios universais pareceu como uma espécie de subtexto incons-
sólidos. Ambas representavam o bem comum e ciente da abstração modernista. O modernismo,
eram, portanto, consideradas capazes, como Crow disse Crow, citando Clement Greenberg, também
sugere, de opor-se à divisão do trabalho, ao interesse buscava criar uma unidade pictórica abstrata em
próprio, à especialização laboral e ao individualismo cuja contemplação o observador “deixaria de lado
que dividia as grandes nações comerciais modernas. seu eu privado e litigioso”. É verdade, admite Crow,
De fato, os escritores iluministas se remetiam ao que as origens políticas da busca de um público de
humanismo cívico porque eles também conside- arte unificado foram reprimidas no modernismo.
ravam que o espaço público estava perdido e pre- Ainda assim, por aspirar à criação de uma forma
cisava de restauração. 80
Para homens esclarecidos estética transcendente, os artistas modernistas
como Joshua Reynolds, a analogia entre a república também buscaram, como Greenberg notadamente
do gosto e a dimensão pública civil da cidadania afirma, opor-se à ascensão da cultura comercial e
tinha origens históricas concretas nas antigas assim registraram sua antipatia ao capitalismo.
formações cívicas democráticas. As repúblicas das Finalmente, o humanismo cívico ressurgiu em uma
antigas Grécia e Roma e da Itália do Renascimento nova forma politizada nas “práticas desmate-
foram para esses pensadores fonte fértil de exemplos rializadoras” do final da década de 1960. Essas
do que foi uma esfera pública unificada. Para os práticas, afirma Crow, buscaram mais uma vez
estetas iluministas, escreve Crow, “o público da unificar espectadores, mas dessa vez em oposição
T E M Á T I C A S | R O S A LY N D E U T S C H E 145
de um importante exame sobre a crítica de arte do simpósio da fundação DIA. Crow não admite
britânica do século 18, observa que para Reynolds, a existência ou sequer a influência de uma arte
que combinava de forma sistemática terminologia moldada por teorias feministas sobre a visão. Não
visual e política, “o exercício do gosto era (...) obstante, e na verdade por essa mesma razão, se
um modo de exercer as mesmas faculdades que opõe tacitamente a elas. Ao omitir esse trabalho do
eram exercitadas na contemplação da sociedade campo da arte contemporânea, e de sua própria
e seus interesses”. 82
Os critérios para pertencer à visão estética, Crow apresenta como absoluto um
república do gosto e à república política eram modelo de visão pública compatível com o ideal
idênticos: a capacidade de compreender uma modernista de contemplação desinteressada – o
totalidade.83 Citando Reynolds, Crow assinala em próprio ideal que Public Vision identificava como
aprovação que, para os autores do Iluminismo que não público. Public Vision concordava com a
tratam da arte pública, a visão “significava ver além premissa de Crow de que a estética modernista
das contingências e dos interesses meramente posiciona um espectador desinteressado, mas se
individuais”. Se tratava de “um olhar que registrava opunha fortemente à ideia de que tal posição está
sistematicamente o que unia, mais do que o que localizada em um espaço público. Pelo contrário,
separava, os membros da comunidade política”. Public Vision sugeria que a produção de um sujeito
Garantia “a capacidade de generalizar ou abstrair imparcial é um esforço para escapar de, e não de
as particularidades”, refletia “uma consciência se inserir em, um espaço público, que é associado à
(...) que não estava dividida pelos apetites abertura, contingência, incompletude – em outras
privados e materiais”, e expressava “uma unidade palavras, à parcialidade.
transcendente do espírito”. Para Crow, contudo, a ideia de que a visão pública
Crow adota a ideia cívica humanista de uma é uma visão imparcial é uma premissa. Dentro dos
visão pública como um critério para medir a arte limites de sua visão, o ceticismo frente à imparciali-
contemporânea e percebe que ela carece de dade da visão não pode nutrir um espaço público, e
uma dimensão pública. Esse movimento tem duas pode apenas implicar sua perda. A exposição Public
consequências importantes. Em primeiro lugar, situa Vision não pode realizar uma crítica política; ela só
claramente Crow em um campo político cuja adesão coloca a política em risco. A forma como Crow
está além de limites do discurso sobre as artes. periodiza a arte contemporânea confirma esse
Alinha-o a autores, dos quais o mais conhecido juízo: a dimensão pública da arte entra em declínio
é Jürgen Habermas, que sustentam que a política no preciso momento – final da década de 1970 e
década de 1980 – em que trabalhos de arte com
democrática emancipatória deve estar baseada
base em ideias feministas começam a surgir.
na recuperação dos ideais não realizados da
teoria política moderna. Ao mesmo tempo, a As ideias feministas sobre a subjetividade na repre-
anuência de Crow a um conceito iluminista de sentação não podem ser dirimidas tão facilmente
visão pública o situa também, ainda que menos da esfera pública, uma vez que elas também
abertamente, contra a crítica feminista da visão fazem parte de um discurso político mais amplo.
que se manifestou primeiramente em eventos O confronto que propus entre a fala de Crow e
como a exposição Public Vision e que teve a exposição Public Vision reformula os termos de
um impacto decisivo na crítica de arte na época um debate atual importante sobre o significado
T E M Á T I C A S | R O S A LY N D E U T S C H E 147
de nenhuma comunidade, não tem corpo”.87 Mas é possível na presença da “sociedade” ou do
esse sujeito universal não é nem o ser essencial nem “espaço social” como tal objeto. Construído como
o indivíduo público intocável da imaginação cívica uma entidade com positividade própria, esse objeto
humanista. Ela alcança completude ao dominar e, – “sociedade” – serve de base às discussões racionais
em última instância, negar a pluralidade e a dife- e como garantia de que todos os conflitos sociais
rença. Ao mobilizar uma lógica de identidade que podem ser resolvidos objetivamente. O fracasso em
reduz os objetos de pensamento a princípios uni- reconhecer as espacializações que geram o “espaço
versais, o eu imparcial busca eliminar a alteridade, social” atesta o desejo tanto de controlar os conflitos
que Young define em três modos: a especificidade quanto de assegurar uma posição estável para si.
irredutível das situações; as diferenças entre sujeitos; Com o mundo social em sua totalidade colocado à
e desejo, emoções, o corpo. sua disposição como um objeto independente – o
Young propõe finalmente uma alternativa à visão que Martin Heidegger chama de “uma imagem”90
moderna de cidadania que em si mesma reduz –, o sujeito se situa em um ponto exterior do espaço
diferença à identidade, e que assim evita algumas social a partir do qual pretensamente pode descobrir
das implicações mais radicais de sua própria crítica. as leis ou conflitos que governam tal espaço. De fato,
Isso não desmerece o valor de sua afirmação de o sujeito se converte nesse ponto externo, em um
que o cidadão imparcial é produzido, assim ponto de vista puro capaz de penetrar as enganosas
como o espectador distanciado, pela perda dos aparências para chegar até as relações fundamentais
outros – alteridade em si e nos outros do mundo. que subjazem na aparente fragmentação e
Três décadas atrás, Hannah Arendt lamentava os diversidade do campo social.
efeitos desse processo. A autora escreveu que A discussão de Crow da esfera pública pressupõe
se a “tentativa de superar as consequências da ampla epistemologia objetivista. Ele escreve sobre a
pluralidade fosse bem-sucedida, o resultado não unidade social como se fosse um referente empírico
seria tamanha dominação soberana de um como e fala a respeito dos interesses comuns como bem
a dominação arbitrária de todos os outros, ou (...) palpável. A visão pública “registra” aquilo que
a substituição do mundo real por um imaginário, unifica a comunidade. Que elemento unificador
onde esses outros simplesmente não existiriam”.88 ela grava? Crow não responde a essa pergunta
De uma forma modesta, mas exemplar, o ensaio de diretamente, mas deixa pistas. A unidade de cada
Crow cumpre as previsões de Arendt: descreve um um dos três movimentos da história da arte que
mundo de arte contemporânea no qual as críticas ele designa como tentativas de formar um público
feministas da visão simplesmente desapareceram.
de arte é, em última análise, dada pela oposição de
A posição de um sujeito capaz de executar operações cada movimento a relações econômicas capitalistas.
intelectuais que lhe dão informações sobre o mundo Mais ainda, a antipatia com as divisões na sociedade,
social, mas que nada deve a seu envolvimento no que de acordo com Crow é atribuída exclusivamente
mundo social tem seu ápice no desejo de objetivar ao capitalismo, unifica os três momentos em uma
a sociedade. A visão imparcial só é possível na formação histórica. Ainda que Crow argumente
presença de um objeto que por si mesmo transcende que a unidade pública é um constructo imaginário,
a parcialidade e, por isso, é independente de a visão pública surge em seu texto como um olhar
toda subjetividade. 89
A visão social imparcial só capaz de perceber as fundações de uma unidade
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luta política, desviando a atenção dos problemas produção artística, retomando ganhos culturais
“reais” do espaço público – o problema dos sem- feitos por grupos sociais oprimidos, e censurar a
teto, por exemplo. Certos críticos de arte definem a arte crítica que, conservadores assumem, afronta
arte e o espaço públicos ignorando ou trivializando valores públicos? Primeiro, Yudice rechaça as
as questões levantadas por tais trabalhos.93 Escritores respostas liberais que meramente defendem a
como Crow, com o olhar treinado para apreciar liberdade abstrata para artista. Tais respostas, diz
a imagem da totalidade pública, simplesmente Yudice, reforçam ideias despolitizadas que afirmam
desconsideram as críticas feministas à visão. Outros que a arte é autônoma e que os valores públicos são
defensores das funções públicas da arte, incluídos universais. Respostas mais eficazes à agenda conser-
aqueles que em outras circunstâncias são receptivos vadora, continua o autor, têm vindo de artistas que
a novos projetos políticos, explicitamente depreciam politizaram a prática artística ao trabalhar dentro dos
as críticas feministas da visão como não públicas, novos movimentos sociais. Nesse ponto, Yudice dá
uma posição sustentada por alguns críticos que um passo tão significativo quanto questionável: afir-
apoiam a arte “ativista”. Tomemos, por exemplo, ma que os artistas que trabalham dentro dos novos
aqueles autores que defendem que o estatuto movimentos sociais “prescindem do enquadra-
público da arte é garantido pela vontade dos mento”.97 Com isso, ele quer dizer que operam fora
“artistas progressistas” de se comprometer com das instituições de arte convencionais e, por isso, têm
uma “estética prática”, como coloca o crítico David “recuperado a função pública da arte”.
Trend. Artistas ‘práticos’, segundo Trend, respondem
No clima político atual existem, me parece, todos
à necessidade de apoiar os objetivos e as identidades
os motivos para apoiar a controvérsia de que a arte
dos movimentos comunitários e todas as formas de
envolvida com os novos movimentos sociais é uma
luta social que se pode agrupar sob a denominação
prática pública crucial. Nomear tal trabalho “ativista”
“novos movimentos sociais”.94 Essas atividades,
de “arte pública” desafia um discurso estético
afirma, promovem a “consciência cívica” por meio
autoritário que alega proteger tanto “o público”
da “educação política” e, sobretudo, representam
quanto “o estético”, e apoia essa declaração
a “recuperação da função pública da arte”.95 O
no pressuposto de que ambas as categorias se
estudioso da cultura George Yudice concorda: ao
sustentam em critérios inquestionáveis: em padrões
“servir às necessidades de comunidades específicas
de “decência”, “gosto” ou “qualidade”. Esses padrões
e simultaneamente tornar pública sua prática
aparecem alternativamente caracterizados como
para um acesso mais amplo”, esses artistas estão
transcendentes, naturais ou consensuais. Como são
“recuperando a função pública da arte”.96
atribuídos a uma fonte objetiva, qualquer um que
Yudice faz essas considerações em um artigo que o questione é automaticamente colocado fora dos
começa se opondo às propostas neoconservadoras limites do público e do estético – de fato, fora da
de eliminar o financiamento para arte pública. O “civilização”. Yudice aponta acertadamente que
propósito mais abrangente de Yudice, entretanto, é tais referenciais a critérios absolutos são baseados
se apropriar da definição dos conservadores sobre em exclusões. As definições absolutistas do espaço
o que faz a arte pública. Yudice pergunta: como o público geram dois tipos de privatização: relegam as
mundo da arte tem conseguido disputar de forma vozes discordantes à privacidade, e se apropriam –
eficaz as exigências conservadoras de privatizar a ou seja, privatizam – da esfera pública em si.
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152 A r t e & Ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 3 6 | d e ze mb ro 2018
fechamento – isto é, a privacidade – assegurada
pelo enquadramento institucional, devemos aceitar
também, é claro, a ideia de que essa visão e essa
sexualidade são assuntos públicos.
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uma instituição de arte. Com esse abandono, Trend Abandonando essa premissa, defensores da arte
sugere, a arte entra em um espaço social abrangente ativista também discordam dos aspectos mais
e simultaneamente recupera sua função pública. O radicais de seu próprio posicionamento. Quando
público se converte, como escreve Bruce Robbins, separam a política que alinha a arte aos novos
“em uma plenitude mítica da qual as disciplinas movimentos sociais, por um lado, das políticas da
devem, então, lamentar incessantemente e em vão visão, por outro, eles não se dão conta de que os
seu empobrecido exílio”. 104
novos movimentos sociais e as ideias feministas
acerca da subjetividade na representação têm algo
Lógica similar sustenta a ideia de que a política
importante em comum. Ambos desafiam as teorias
das imagens pode ser reduzida às “condições
sociais fundamentalistas e questionam, entre outras
que as produzem primordialmente” e que mudar
ideias, o princípio de que o antagonismo de classe
essas condições é a sine qua non da atividade
garante a unidade das lutas emancipatórias. Não
pública no âmbito da cultura visual. Essa redução
é inconsistente afirmar que um fundamento abso-
do significado de uma imagem estritamente a
luto determina o significado das imagens – um
condições externas faz eco a teorias sociais que
fundamento que deve ser mudado antes que a
pressupõem a existência de uma fundação que
arte possa ser pública – enquanto apoia os movi-
não só conforma a base de todos os significados
mentos sociais que declaram sua independência de
sociais, mas que também os governa com sucesso.
tal fundamento? Esses movimentos representam
De acordo com isso, o significado se localiza
novas formas de identidade política que desafiam
nas estruturas objetivas básicas que se tornam o
os tradicionais projetos políticos de esquerda, que
objeto principal da luta política. Utilizadas para
excluem a especificidade e a diferença em nome de
explicar o significado das imagens, essas teorias
um interesse político essencial. Irredutíveis a uma
sociais contrabandeiam novamente para o discurso
norma predeterminada, as novas práticas sociais
artístico uma imagem que lhes é própria: um
oferecem a promessa de tipos mais democráticos
espaço político único ou privilegiado que as teorias
de associação política.
feministas da representação há tempos rejeitam.
Os feminismos têm contestado essa imagem de Críticos que apoiam o envolvimento da arte com
política uma vez que, historicamente, ela tem sido novos movimentos sociais, mas que tacham
mobilizada a fim de relegar gênero e sexualidade a o trabalho feminista sobre a representação
meros auxiliares das relações sociais coonsideradas como fragmentador e privado, enfraquecem o
mais fundamentalmente políticas. Agora, com próprio interesse pela diferença que, em outras
persistente circularidade, essa imagem de política instâncias, defendem vigorosamente. Ainda que
subordina as políticas feministas das imagens comprometidos com a pluralidade e opostos
a um espaço público que se supõe preceder a à homogeneização conservadora do público,
representação. Quando críticos que apoiam uma eles acidentalmente se alinham aos críticos mais
estética prática sustentam essa imagem, eles influentes que negam a diferença, em especial
divergem da premissa de que a crítica feminista da aqueles como David Harvey e Frederic Jameson,
representação ajudou a ampliar o que denominei que promovem teorias da cultura pós-moderna
espaço público democrático – a ausência de fontes com base em um discurso neomarxista sobre o
absolutas de significado social. espaço. Em ensaios anteriores, critiquei essas
A noção de que há uma crise e uma inadequação Anteriormente, perguntei quais funções políticas
nas representações do mundo social só é possível são desempenhadas pelo apelo do discurso artís-
contra uma crença de fundo em representações tico de esquerda por tornar a arte “pública”. Uma
antes estáveis, unívocas e imparciais – ou seja, resposta é que a defesa de uma esfera pública das
adequadas; uma ilusão que justifica esforços de artes tornou-se um meio de salvaguardar o espaço
reinstaurar a autoridade tradicional. Em nome da tradicional dos projetos políticos de esquerda. Sob
restauração do espaço público, estudiosos que a proteção da palavra público, alguns críticos voltam
imaginam e se identificam com uma antiga era a utilizar o adjetivo real de maneira pré-crítica e
de ouro de conhecimento total se elevam a uma não problematizada – pessoas reais, espaço real,
T E M Á T I C A S | R O S A LY N D E U T S C H E 155
problemas sociais reais, todos apresentados como ideal habermasiano de uma esfera pública singular
o solo das lutas políticas reais. Mas as práticas que supostamente teria entrado em declínio. Para
artísticas que questionam as exclusões em que se aqueles que propõem esse ideal, a recuperação
baseiam essas “realidades” não recaem em uma de uma esfera pública crítica tradicional é a
condição privada, como alegam seus detratores. alternativa a propostas, como a de Lippmann, de
Pelo contrário, essas práticas nutrem a gestação um gerenciamento da democracia pelas elites. Para
de um diferente tipo de esfera pública que surge Robbins, o ideal habermasiano é em si mesmo
precisamente porque aquilo que nos é comum, é um fantasma, posto que as próprias qualidades
incerto e está, portanto, aberto a debate. Certa- que supostamente fazem pública a esfera
mente, com novas formações políticas que tomam pública – seu caráter inclusivo e acessibilidade –
corpo diante de nossos olhos – com a propagação foram sempre ilusórias. A esfera pública perdida
de demandas por direitos contingentes, a proliferação foi, na verdade, propriedade de grupos sociais
de projetos políticos com base em críticas e objetivos particulares privilegiados. Desse ponto, Habermas
parciais, o crescimento de tendências intelectuais não discordaria. Ainda que o autor saiba que
que criam novos objetos de análise política, derru- na prática a esfera pública burguesa sempre foi
bando outros assuntos de suas posições elevadas excludente, Habermas quer resgatar o ideal tanto
–, o espaço público começou a parecer menos uma de sua realização original imperfeita, quanto de sua
entidade “perdida” do que o que Bruce Robbins contaminação posterior pelo consumo, pelos meios
convincentemente chama de “fantasma”. de comunicação de massa e pelo Estado de bem-
Robbins editou uma antologia de textos intitulada estar social. Longe de criticar o princípio de esfera
The Phanthom Public Sphere (A esfera pública pública singular, reclama seu renascimento em uma
fantasma). Na introdução, ele questiona e amplia o forma não contaminada. Robbins, baseando-se em
significado da frase “a opinião pública fantasma”, Alexander Kluge e Oskar Negt, argumenta que a
que adota de Walter Lippmann, que a cunhou em esfera pública tradicional é um fantasma não tanto
1925.107 Na visão de Lippmann, o público é um porque nunca se realizou completamente, mas
fantasma porque o ideal democrático de um elei- porque o ideal de coerência social que o termo
torado responsável e unificado, capaz de participar público sempre significou é irremediavelmente
no maquinário do governo e supervisionar o Estado, enganoso e, mais ainda, opressivo. O ideal de
é inalcançável. Os cidadãos modernos, afirma, um consenso não coercitivo alcançado por meio
simplesmente não têm tempo para estar suficien- da razão é uma ilusão mantida pela repressão
temente informados sobre todos os temas relativos de diferenças e particularidades. Contrastar uma
ao bem comum. Porque o público é um fantasma, esfera pública “contaminada” com outra anterior
Lippmann conclui, as tarefas de governo deveriam ou potencialmente pura é sustentar essa ilusão.
se relegadas às elites sociais educadas. “O que se deve fazer, em vez disso, é investigar a
história ideal da esfera pública conjuntamente com
Assim como Lippmann, Robbins utiliza a ideia
a história de seu declínio, a fim de ressaltar seus
do público como fantasma a fim de colocar em
mecanismos idênticos”.108
dúvida a existência de um público unificado.
Mas o faz perseguindo fins diferentes – não para Para Robbins, a ideia do público como fantasma tem
renunciar à esfera pública, mas para questionar o efeitos benéficos. Ela contrariaria o argumento dos
T E M Á T I C A S | R O S A LY N D E U T S C H E 157
promissora. Ao afirmar que as diferenças de grupos que de relações, Young apresenta uma alternativa
são relacionais mais do que substanciais, Young cujo objetivo, aparentemente, é compreender a
oferece argumentos persuasivos contra o ideal cívico esfera pública como âmbito totalmente inclusivo
universalista que marca apenas os grupos oprimidos e constituído, e dissipar o público fantasma,
como diferentes.112 Mas ainda que defenda que que ela interpreta apenas como a ilusão de um
um grupo é diferenciado por “afinidade”, e não público singular.
por nenhuma identidade intrínseca, a política
O teórico Thomas Keenan aborda a questão do
da diferença que Young recomenda consiste em
espaço público de um modo diferente. Também
negociar entre reivindicações de grupos sociais já
critica a noção de uma esfera pública perdida,
postas. A diferença é reduzida à identidade, e Young
considerando-a uma ilusão. No entanto, sua contri-
parece esquecer o que anteriormente enfatizou:
buição ao livro de Bruce Robbins também remodela
que toda diferença é uma interdependência.
a esfera pública democrática na forma de um fantas-
Consequentemente, ela evita algumas das
ma.115 Keenan vincula o aspecto fantasmagórico do
questões mais importantes voltadas para políticas
público ao aparecimento, não ao desaparecimento
de pluralismo: Que conceito de pluralidade pode
do público. Mais precisamente, sugere que a esfera
contrapor-se ao fato de que o impulso identitário
pública surge como fantasma somente no momento
pode estar tentado a estabilizar-se condenando
de uma desaparição.
as diferenças? Que conceito de pluralidade pode
trabalhar contra as reações agressivas de identidades O ensaio de Kennan, Windows: of vulnerability
estabelecidas ao ser desestabilizadas por outras, (Janelas: de vulnerabilidade), utiliza um elemento
novas?113 Tais perguntas estão fora do alcance deste arquitetônico, a janela, como figura de diferenciação
ensaio. Apontemos simplesmente que a política da entre os âmbitos privado e público. Baseando-se
diferença de Young passa por cima de todas elas na obra pioneira de Beatriz Colomina, Keenan
ao definir a diferença como a “particularidade das conecta os debates históricos da arquitetura sobre
entidades”, ainda que ela diga que a particularidade forma e significado das janelas aos debates atuais
é construída socialmente.114 Como resultado, Young sobre forma e significado da esfera pública política.
não considera o papel produtivo que a disrupção, “Qualquer conceito de janela”, escreve Colomina,
mais do que a consolidação, pode desempenhar “implica uma noção da relação dentro e fora, entre
na construção da identidade, uma disrupção na espaço privado e público”.116 A janela garante ou
qual grupos encontrem sua própria incerteza. Seu ameaça o rigor da divisão público/privado? Ela asse-
conceito de uma política pluralista desintegra a esfera gura ou destrói o fechamento dos âmbitos público
pública entendida como um espaço monolítico, e privado gerados por essa divisão? Assim como
mas torna a solidificá-la como uma ramificação de Colomina (ainda que por meio de diferentes distin-
identidades positivas. Esse pluralismo não busca as ções), Keenan relaciona essas questões ao estatuto
implicações mais radicais da incerteza que a própria de sujeito humano. As janelas, como nos modelos
autora introduziu no conceito de público quando tradicionais de perspectiva, fundamentam o sujeito
questionou a lógica indentitária e a metafísica da ao permitir que seu olhar distanciado atravesse a
presença que alicerçam o ideal moderno. Evitando janela e domine um mundo enquadrado como um
a complexidade de sua produção crítica anterior e objeto discreto e externo? Ou elas permitem que
caindo em um discurso de entidades mais do a luz entre – o mundo exterior – e, interferindo
T E M Á T I C A S | R O S A LY N D E U T S C H E 159
Copjec e Michael Sorkin, a “esfera pública fantasma diagnóstico, eles são, em vez disso, reações de
não é uma mera ilusão, senão uma poderosa ideia pânico à abertura e à indeterminação do público
reguladora”.120 O espaço público democrático pode democrático como fantasmático – uma espécie de
ser qualificado como fantasma porque mesmo comportamento agorafóbico adotado frente a um
enquanto surge, não possui identidade substancial espaço público que tem uma perda em sua origem.
e é, consequentemente, enigmático. Ele emerge De uma perspectiva sociológica, a agorafobia é
quando a sociedade é instituída como sociedade primordialmente um sofrimento de mulheres. Nas
sem bases, como escreve Lefort, uma sociedade “sem ruas e praças, onde os homens têm mais direitos,
corpo (...), uma sociedade que abala a representação mulheres elaboram estratégias para evitar as
de uma totalidade orgânica”.121 Com essa muta- ameaças que as acometem no espaço público. A
ção, a unidade da sociedade se torna puramente mulher fóbica pode tentar estabelecer, e se manter
social e suscetível a contestação. Se o espaço pú- nos limites, do que ela considere uma zona segura.
blico de debate aparece com o desaparecimento Ela inventa “histórias de capa”: explicações para
de uma base social absoluta, o espaço público em suas ações que, como certa socióloga escreve,
que o significado aparece continuamente e conti- “não revelam que ela é o que é, uma pessoa com
nuamente desaparece. A esfera pública fantasma medo de espaços públicos”.123 Por exemplo, uma
é, desse modo, inacessível às teorias políticas que agorafóbica que caminha pela valeta da rua porque
se negam a reconhecer eventos – como os novos se sente mais segura do que na calçada poderá
movimentos sociais – que não possam ser com- dizer que está buscando algo que perdeu.124
preendidos em conceitos ou intenções preestabe-
A esfera pública fantasma é, certamente, um tipo
lecidos. A esfera pública fantasma é invisível para
diferente de espaço. Não se corresponde a territó-
os pontos de vista políticos que limitam a realidade
rios urbanos empiricamente identificáveis – embora
social aos conteúdos que preenchem o espaço
tampouco seja menos real.125 Ela também carrega
social, mas ignoram os princípios que geram esse
ameaças e provoca angústias, já que, como escreve
espaço. Se a democracia é uma forma de sociedade
Keenan, a esfera pública democrática “pertence por
que é destruída se positivada, um espaço público
direito aos outros e a ninguém em particular”.126
democrático não pode ser o estado perdido de ple-
Ameaça, desse modo, a identidade do “homem”
nitude política que desejamos, mas que não temos
– o sujeito moderno – que, nesse espaço, já não
no presente. “Nunca tivemos o que perdemos”, diz
pode interpretar a totalidade do mundo social, um
Zizek, porque a sociedade esteve sempre fraturada
significado por si mesmo, como “meu”. Na esfera
por antagonismos.122 Produzido, ao contrário, pela
pública fantasma, o homem é privado do mundo
perda da ideia de plenitude, uma perda que funda a
objetivado, distanciado e cognoscível de cuja exis-
vida política democrática, o espaço público pode
tência ele depende, e é apresentado, em vez disso,
ser o espaço que nós habitamos como seres sociais,
ao desconhecimento, à proximidade da alteridade
mas que não particularmente desejamos.
e, consequentemente, à incerteza do eu. Não
Caso seja, todos os livros e artigos que lamentam surpreende que essa esfera pública confronte o hu-
as origens perdidas da esfera pública não são meras mano moderno como um objeto terrível. Como as
respostas ao fato de que o público não está aqui. imagens em Public Vision, está perto demais para
Tomando a forma do que Keenan denomina falso ser confortável.
T E M Á T I C A S | R O S A LY N D E U T S C H E 161
privilegiado da política. Mas a dicotomia público/ NOTAS
privado produz outro lugar privilegiado fora do
1 Huntington é o autor da seção estadunidense
espaço social e, portanto, imune à interrogação
de The Crisis of Democracy, um estudo publicado
política: a posição totalmente estratégica ou, em
pela Trilateral Comission, organização privada
palavras de Lefort, “o ponto de vista sobre tudo e
fundada em 1973 a fim de construir uma nova
todos”, a “fantasia de onipotência”.129 A segurança
ordem mundial controlada pelas democracias
dessa divisão público/privado é o que protege
liberais da América do Norte, Europa ocidental e
o sujeito do espaço público, aquilo que a arte
Japão. A comissão incluía figuras proeminentes
informada por uma crítica feminista da imagem tem
de governos, negócios, da academia e do âmbito
tão vigorosamente desafiado, ao insistir na ideia
profissional. Para uma discussão sobre The Crisis
de que identidade e significado são formados no
of Democracy, ver Alan Wolfe, Capitalism Shows
espaço público, questionando, assim, a possibilidade
Its Face: Giving Upon Democracy, Trilaterialism:
de pontos de vista externos. Laclau escreveu que
The Trilateral Commision and Elite Planning for
a principal tarefa da cultura pós-moderna nas
World Management, ed. Holly Sklar. Boston: South
lutas democráticas é “transformar as formas de
End Press, 1980, p. 295-306. Recentemente,
identificação e construção de subjetividade que
neoconservadores adotaram uma nova retórica
existem em nossa civilização”.130 Quando a arte
de democracia que diverge do autoritarismo
intervém nas formas de representação por meio das
explícito que Huntington narra. Afirmando
quais os sujeitos se constroem como universais e
defender o espaço público, eles começaram a
desprovidos de diferença, não deveríamos acolhê-la
celebrar o que os jornalistas e estudiosos políticos
– junto à arte envolvida em novos movimentos sociais
neoconservadores chamam de “o novo ativismo
– como uma contribuição ao aprofundamento e
comunitário” ou “a nova cidadania”. A nova
à extensão do espaço público? Especialmente se
cidadania consiste precisamente em pessoas
queremos evitar que o espaço público se converta
fazendo demandas ao governo, o que é em
em uma posse privada, o que frequentemente se
si tachado de “excessivo”. O que faz os novos
empreende hoje em nome da democracia.
ativistas aceitáveis, é claro, é que eles se mobilizam
contra a inserção de serviços sociais – abrigos
para os sem-teto, estruturas para pacientes com
Aids ou de saúde mental – em seus bairros e,
mais amplamente, contra o que os conservadores
chamam de “as tiranias do estado terapêutico”.
William A. Schambra, By The People: The Old
Values of the New Citizenship, Policy Review, n.
69, verão de 1994: 38. Os interesses dos novos
Tradução Thiago Ferreira ativistas – não importa quão diverso seja o estado
Revisão técnica Cezar Bartholomeu socioeconômico dos vizinhos que eles buscam
O texto foi publicado originalmente em: proteger – podem, portanto, ser agrupados a fim
Evictions: Art and Spatial Politics. Massachus- de apoiar três elementos do discurso das políticas
setts: The MIT Press, 1996. urbanas conservadoras: defesa de cortes no gasto
2 Ver, por exemplo, Eric Gibson, Jennifer Bartlett 10 Id., ibid.: 17.
and the Crisis of Public Art, New Criterion 9, n. 1, 11 Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, Hegemony
set. 1990, p.62-64. A devoção neoconservadora ao
and Socialist Strategy: Toward a Radical Democratic
direito de acesso ao espaço público geralmente serve,
Politics. London: Verso, 1985: 122.
é claro, como uma razão para se censurar uma arte
crítica, eliminando financiamento governamental 12 Id., ibid.: 125.
para as artes e privatizando a produção de arte – 13 Id., ibid. Mouffe e Laclau formulam seu
uma posição descrita em Edward C. Banfield, The conceito de “antagonismo” em distinção tanto a
Democratic Muse: Visual Arts and the Public Interest, “contradição” quanto a “oposição”, o que designa
New York: Basic Books, 1984. relações entre objetos – conceituais ou reais –
3 Para uma discussão sobre a linguagem da que são identidades plenas. Antagonismo, em
democracia usada durante o debate em torno de contraste, é uma relação que impede a plenitude de
Tilted Arc, ver o capítulo Tilted Arc and The uses of uma identidade. Ver Laclau e Mouffe, Hegemony
democracy, em Rosalyn Deutsche, Evictions: Art and and Socialist Strategy, op. cit.: 124. Mouffe e
Spatial Politics. Massachussetts: The MIT Press, 1996. Laclau também distinguem a negatividade inerente
ao conceito de antagonismo da negatividade no
4 Claude Lefort, The question of democracy. In
sentido dialético do termo. A forma negativa, para
Democracy and Political Theory. Minneapolis:
eles, não é um momento no desenvolvimento de um
University of Minnesota Press, 1988: 10.
conceito que é então reabsorvido em uma unidade
5 Nancy Fraser, Rethinking the Public Sphere: a superior. É um exterior que afirma uma identidade,
contribution to the critique of actually existing mas revela sua contingência. Antagonismo não é
T E M Á T I C A S | R O S A LY N D E U T S C H E 163
negação a serviço da totalidade, mas a negação de ainda, a apropriação de Lefort e a dominação de
uma totalidade encerrada. Laclau, New Reflections Lefebvre são similares à noção de “estratégia”
on the Revolution of Our Time. In New Reflections de Michel de Certeau, como a relação que se
of Our Time. London: Verso, 1990: 26. torna possível quando um sujeito de poder
postula um lugar que pode ser delimitado
14 Laclau, New Refections on the Revolution of
como algo próprio. Ver Henri Lefebvre,
Our Time, op. cit.: 61.
The Production of Space, tradução Donald
15 Hannah Arendt, The Origins of Totalitarianism. Nicholson-Smith. Oxford: Basil Blackwell,
San Diego: Harcourt Brace & Company, 1948: 1991; e Michel de Certeau, A invenção do
296. cotidiano. Tradução Ephraim Ferreira Alves.
16 Etienne Balibar, What Is a Politics of the Rights Petrópolis: Vozes, 1998: 99. Os três tipos de
of Man? In Masses, Classes, Ideas: Studies on ação conferem ao espaço significados e usos
Politics and Philosophy Before and After Marx. adequados e, em sua maneira proprietária,
New York: Routledge, 1994: 211. configuram uma relação com o exterior que
ameaça esses usos. De fato, de Certeau usa o
17 No original “business improvement districts”,
adjetivo apropriado para delinear um espaço
parcerias entre o governo e empresas privadas
– “um lugar apropriado como algo próprio” –
para projetos de melhoria urbana, que garantem
que serve de início à “base de onde se podem
grande grau de participação das empresas no
gerir as relações com uma exterioridade de
financiamento e nos processos de tomada de
alvos e ameaças”. As ações descritas por Lefort,
decisão sobre a cidade. [N.T.].
Lefebvre e de Certeau chamam procedimentos
18 Uma vez que estou aplicando as ideias de democráticos provisórios: “expropriação”
Lefort a uma discussão do discurso urbano (termo que, até onde sei, Lefort não utiliza
contemporâneo, é importante notar que Lefort explicitamente), a “apropriação” de Lefevbre
usa o termo apropriação em sentido oposto ao e o que de Certeau chama de “fazer com”.
de Henri Lefebvre, cujo conceito de apropriação Nesse contexto, expropriação e a apropriação
tem sido tão irresistível ao pensamento crítico de Lefebvre têm significados similares (embora
urbano. Para Lefort, apropriação se refere a não sejam idênticos). Assim como o fazer
uma ação do poder de Estado; para Lefebvre, com de Michel de Certeau, elas implicam
denota uma ação contra tal poder. Essa uma espécie de ação de desfazer por fora um
diferença terminológica não significa que as espaço apropriado (no sentido de adequado),
ideias dos dois escritores são polarizadas. Ao uma ponderação de exclusão e diferenças, e
contrário, eles têm certas afinidades. Embora consequente exposição do poder onde foram
Lefort não esteja escrevendo especificamente naturalizadas e obscurecidas.
sobre o espaço urbano, sua apropriação – a
19 Sam Roberts. The Public’s Right to Put a
ocupação do espaço público ao imbuí-lo de
Padlock on a Public Space, New York Times, 3
significado absoluto – lembra o que Henri
jun., 1991, B1.
Lefebvre chama de dominação do espaço – a
designação tecnocrática de usos objetivos que 20 Fred Siegel, Reclaiming Our Public Spaces, The
concede coerência ideológica ao espaço. Mais City Journal 2, n. 2, primavera 1992, p. 35-45.
T E M Á T I C A S | R O S A LY N D E U T S C H E 165
30 Ver Rosalyn Deutsche, Uneven development: 42 Id., ibid.
Public Art in New York City, op. cit.
43 A combinação de maximização de lucros e
31 No original Percent for Art ordinance. Refere- tendências dessexualizantes no planejamento
se a programa com garantia legal de que uma urbano contemporâneo é manifesto tanto
porcentagem dos terrenos de obras urbanas no uso da Disneylândia como modelo para
financiadas com apoio estatal seja destinada a o urbanismo contemporâneo e no papel da
obras de arte pública. [N.T.]. Disney Development Company em remodelações
urbanas reais. Desde a publicaçãoo do livro
32 Jerry Allen, How Art Becomes Public, 1985;
de Sorin, a Disney se tornou financeira e
reimpresso em Going Public: A Field Guide to
simbolicamente útil para a parceria forjada
Develpments in Art in Public Places. Arts Extension
Service and the Visual Arts Programm of the atualmente em Nova York entre os interesses
National Endowment for the Arts, 1988: 246. imobiliários e os moralistas que desejam reprimir
culturas urbanas sexuais. A instrumentalidade
33 Patricia Phillips, The Public Art Machine: Out da Disney emergiu claramente em recente artigo
of Order, Artforum, 27, dez. 1988: 93. no New York Times, que anunciava a escolha
34 Kathy Halbreich, Stretching the Terrain: da cidade da Disney Develpoment Company e
Sketching Twenty Years of Public Art. In Going da Tishman Urban Development Corporation
Public: A Field Guide to Developments in Art in como parte de uma Times Square remodelada:
Public Places, op. cit.: 9. “O projeto de 303 milhões é a parte central dos
esforços da cidade e do estado para transformar
35 Suzanne Lacy, Cultural Pilgrimages and
a rua 42 entre a sétima e oitava avenidas de uma
Metaphoric Journeys. In Suzanne Lacy (Org.).
calçada decadente com cafetões eternamente
Mapping the Terrain: New Genre Public Art.
presentes e sex shops numa 8a Avenida, de uma
Seattle: Bay Press, 1995: 20.
calçada decadente em um chamativo centro de
36 Jerry Allen, How Art Becomes Public, op. cit.: entretenimento orientado para a família… No
246. entanto, talvez o que haja de mais valioso seja
o nome da Disney. Em seu esforço de reformar
37 Id., ibid.: 250.
uma vizinhança há tempos sinônimo de perigo
38 Harriet F. Senie and Sally Webster (Orgs.). urbano e degradação, a cidade agora possui
Critical Issues in Public Art: Content, Context, and uma parceria que é símbolo de entretenimento
Controversy. New York: Harper Collins, 1992: xi. saudável mundialmente.” Shawn G. Kennedy,
39 Id., ibid. Disney and developer are chosen to build 42nd
street Hotel Complex, New York Times, May 12,
40 Id., ibid.: 171.
1995, B1.
41 IMichael Sorkin, Introduction: Variations on a
44 Sorkin, Introduction: Variations on a Theme
Theme Park. In Michael Sorkin (Org.). Variations
Park, op. cit.: xv.
on a Theme Park: The New American City and
the End of Public Space. New York: The Noonday 45 “Edge city”, expressão popularizada pelo livro
Press, 1992: xv. homônimo de Joel Garreau, de 1991, refere-se às
T E M Á T I C A S | R O S A LY N D E U T S C H E 167
Kruger, Louise Lawler, Sherrie Levine, Diane Shea, means, to you, in Barbara Kruger: We Won’t Play
Cindy Sherman, Laurie Simmons e Peggy Yunque, Nature to Your Culture. Catálogo de exposição.
organizada por Gretchen Bender, Nancy Dwyer e London: Institute of Contemporary Art, 1983, p.
Cindy Sherman na galeria White Columns, Nova 12-16.
York, 1982. A White Columns, durante esse
70 Mark Wigley, The Architecture of
período inovador de sua história, era dirigida
Deconstruction: Derrida’s Haunt. Cambridge:
por Josh Baer. Gostaria de agradecer a Gretchen
MIT Press, 1993: 138.
Bender por ajudar a reconstruir Public Vision.
71 Laura. Mulvey, Visual Pleasure and Narrative
63 Para relatos sobre a cegueira de teorias pós-
Cinema, in Brian Wallis (Org.). Art After
modernas iniciais ao feminismo, ver Jane Weinstock,
Modernism: Rethinking Representation. New York:
A Laugh, A Lass and a Lad, Art in America, 71,
New Museum of Contemporary Art and David R.
n. 6, verão de 1983, p. 8; e Craig Owens, The
Godine, 1984: 366.
Discourse of Others: Feminists and Postmodernism,
in Hal Foster (Org.). The Anti-Aesthetic: Essays on 72 Slavoj Zizek, For They Know Not What They
Postmodern Culture. Port Townsend, Wash.: Bay Do: Enjoyment as a Political Factor. London:
Press, 1983, pp. 57-82. Verso, 1991: 174, n. 38.
64 The Revolutionary Power of Women’s 73 Love for Sale: The Words and Pictures of
Laughter, organizada por Jo Anna Isaak na Barbara Kruger, texto de Kate Linker. New York:
Protetch McNeil, Nova York, 1983. Harry N. Abrams: 61.
67 Rosalind Krauss, Cindy Sheman 1975-1993. 76 Seguindo a forte resposta crítica que a fala
New York: Rizzoli, 1993: 192. de Crow provocou nos outros palestrantes
e nos membros da plateia, ele reescreveu
68 Judith Williamson, A Piece of the Action:
substancialmente o texto para o livro que
Images of’ Woman’ in the Photography of Cindy
documenta as discussões na fundação Dia.
Sherman. In Consuming Passions: The Dynamics
Entretanto, o ensaio publicado deixa seu conceito
of Popular Culture. London: Marion Boyars,
de esfera pública essencialmente inalterado, de
1986: 103.
modo que reunindo o ensaio com a transcrição
69 Para uma excelente discussão sobre o trabalho original da discussão que seguiu o debate, e foi
inicial de Kruger, especialmente sobre seu uso incluída no livro, a posição inicial de Crow pode
do pronome you, ver Jane Weinstock, What she ser reconstruída
80 John Barrell, The Political Theory of Painting from e criticados”. Em vez disso, esses artistas quiseram
Reynolds to Hazlitt: “The Body of the Public”. New demonstrar que o espectador transcendente é uma
Haven: Yale University Press, 1986: 3. entidade imaginária, uma negação do fato de que
o espaço estético está por si só imerso em relações
81 O uso de Crow do humanismo cívico a fim de sociais conflituosas. Rosler e Haacke, portanto,
criar uma unidade entre modernismo e as “práticas questionam a ilusão, perpetuada no esteticismo
desmaterializadoras” do final dos anos 1960 é e no humanismo cívico, de uma unidade abstrata
estranha. As últimas práticas foram, afinal de elevada entre as pessoas que poderia realmente
contas, opostas ao próprio aspecto do modernismo pertencer a diferentes lados.
– a afirmação da transcendência – por meio do
que Crow relaciona o modernismo à estética do 82 Barrell, The Political Theory of Painting, op.
superar essa contradição ao tratar como dado sua 83 Robert R. Wark (Org.). Reynolds’s Discourses
discordância de que as práticas desmaterializadoras on Art, 2 ed. New Haven: Yale University Press,
procuraram, embora de modo diferente do 1975: 202.
modernismo, unificar o público de arte. Mas essa
84 Etienne Balibar, “Rights of Man” and “Rights
discordância – e a consequente assimilação de
of the Citizen”: The Modern Dialectic of Equality
Crow da crítica da autonomia desenvolvida em
and Freedom, in Masses, Classes, Ideas: Studies
1960 e 1970 aos ideais do humanismo cívico – é
on Politics and Philosophy Before and After Marx,
por si só muito problemática. Nas décadas de 1960
trans. James Swenson. New York: Routledge,
e 1970, muitos dos artistas que empreenderam
1994: 59.
uma crítica ao modernismo o fizeram precisamente
para questionar, não apoiar, a noção de que em 85 Iris Marion Young, Impartiality and the Civic
museus ou galerias, os espectadores estão unidos Public: Some Implications of Feminist Critiques
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of Moral and Political Theory, in Feminism as 94 David Trend, Beyond Resistance: Notes on
Critique (Org.). Seyla Benhabib e Drucilla Cornell. Community Counter-Practice. Afterimage, abr.
Minneapolis: University of Minnesota Press, 1989: 6.
1987: 60.
95 Id., ibid.
86 Id., ibid.
96 George Yudice, For a Practical Aesthetics,
87 Id., ibid. Aqui, Young cita a crítica de Michael Social Text 25/26, 1990: 135.
Sandel sobre o sujeito radicalmente deslocado.
97 Id., ibid.: 134.
Ver Michael Sandel, Liberalism and the Limits of
Justice. Cambridge: Cambridge University Press, 98 Trend, Beyond Resistance, op. cit.: 4.
1982.
99 Id., ibid.
88 Hannah Arendt, The Human Condition.
100 Yudice, For a Practical Aesthetics, op. cit.:
Chicago: The University of Chicago Press, 1958:
135.
234.
101 Id., ibid., p. 134.
89 Ver a discussão de Samuel Weber da
objetividade em Objectivity Otherwise, in 102 Jacqueline Rose, Sexuality in the Field of
Objectivity and Its Other, Wolfgang Natter et al. Vision, in Sexuality in the Field of Vision. London:
(Org.). New York: Guilford Press, 1995, p. 36-37. Verso, 1986: 231. Barbara Kruger citou essa
passagem como epígrafe para sua contribuição
90 Martin Heidegger, The Age of the World
ao segundo debate sobre “A esfera pública
Picture, in The Question Concerning Technology
cultural” da Dia Foundation, onde, na semana
and Other Essays. New York: Harper and Row,
seguinte à apresentação de Crow, Kruger e
1977, p. 115-154.
Douglas Crimp insistiram, de modos diferentes,
91 Barrel, The Political Theory of Painting, op. na relevância de questões de sexualidade para a
cit.: 65-66. esfera pública.
92 Homi K. Bhabha, A Good Judge of Character: 103 Edward W Said, Opponents, Audiences,
Men, Metaphors, and the Common Culture, Constituencies, and Community, in Hal Foster
in Toni Morrison (Org.). Race-ing justice, En- (Org.). The Anti-Aesthetic: Essays on Postmodern
gendering Power: Essays on Anita Hill, Clarence Culture. Port Townsend: Bay Press, 1983, p. 135-
Thomas, and the Construction of Social Reality, 159.
New York: Pantheon Books, 1992: 242.
104 Bruce Robbins, Interdisciplinarity in Public:
93 Essa depreciação de questões de subjetividade The Rhetoric of Rhetoric, Social Text 25/26,
no discurso da arte pública é frequentemente 1990: 115.
apoiada por discursos urbanos e de arquitetura
105 Ver Men in Space e Boys Town em Deutsche,
– os próprios discursos introduzidos no mundo
Evictions, op. cit.
da arte de esquerda nos anos 1980 junto às
discussões sobre “o público” para forjar conceitos 106 Adorno, What Does Coming to Terms with
mais democráticos de arte pública. the Past Mean?, op. cit.: 129.
110 Id., ibid. 122 Zizek, For They Know Not What They Do,
op. cit.: 168.
111 Id., ibid.: xxvi.
123 Carol Brooks Gardner, Out of Place: Gender,
112 Iris Marion Young, Social Movements and the
Public Places, and Situational Disadvantage,
Politics of Difference, in Justice and the Politics of
in Roger Friedland and Deirdre Boden (Orgs.).
Difference. Princeton: Princeton University Press,
NowHere: Space, Time and Modernity. Berkeley:
1990: 171.
University of California Press, 1994: 349.
113 O lembrete de que diferença é
124 Id., ibid.: 350.
interdependência e, portanto, suscita essas
questões, foi feito por William E. Connolly 125 Ao longo desse ensaio, enquanto examino
em Pluralism and Multiculturalism, um artigo os debates atuais sobre “espaço público”,
apresentado na conferência Cultural Diversities: eu não apenas questiono o significado do
On Democracy, Community, and Citizenship, termo público, mas problematizo a palavra
realizada na Bohen Foundation, New York, em espaço. Como tentei sugerir desde a primeira
fevereiro de 1994. frase, espaço não é uma categoria óbvia ou
monolítica. Um espaço pode ser uma cidade
114 Iris Marion Young, The Ideal of Community
ou um edifício, mas pode ser também, dentre
and the Politics of Difference, in Linda J. Nicholson
outras coisas, uma identidade ou um discurso.
(Org.). Feminism/Postmodernism, Thinking Gender
Alguns críticos tentam manter esses espaços
Series. New York: Routledge: 304.
separados, transformando a diferente entre eles
115 Thomas Keenan, Windows: Of Vulnerability, em uma oposição, tratando o primeiro tipo de
in Robbins (Org.). The Phantom Public Sphere, espaço como mais “real” que o segundo. Em
op. cit., p. 121-141. outras palavras, esses críticos aceitam a oposição
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clássica entre extra discursivo e discursivo – logo, hierarquicamente entre espaços heterogêneos,
entre realidade e pensamento – e mapeiam essa em pronunciar um espaço como inerentemente
oposição em diferentes categorias de espaço. mais político que outro, chamando alguns reais
Uma crítica democrática do espaço deve, eu e outros metafóricos, ou em defender espaços
acho, quebrar com essas dicotomias. Porque tradicionais – praças urbanas, por exemplo –
nenhum espaço, na medida em que é social, contra os supostos riscos à realidade dos novos
é uma entidade simplesmente dada, segura, arranjos sociais – tais como a mídia, sistemas
autocontida que precede a representação; de informação e redes de computadores. Essas
sua própria identidade como um espaço, sua abordagens nos impedem de investigar as reais
aparência de completude, é constituída e lutas políticas inerentes na produção de todos
mantida por meio de relações discursivas que os espaços e de ampliar o campo de lutas para
são, por elas mesmas, materiais e espaciais tornar públicos diferentes tipos de espaço.
– diferenciações, repressões, subordinações,
126 Keenan, Windows: Of Vulnerability, op. cit.:
domesticações, tentativas de exclusões. Em
133.
suma, espaço é relacional e, consequentemente,
como escreve Mark Wigley, “Não há espaço 127 Claude Lefort, Politics and Human Rights,
sem violência e não há violência que não seja in The Political Forms of Modern Society:
espacial”. Editorial, Assemblage 20, abr. 1993, Bureaucracy, Democracy, Totalitarianism.
p. 7. Quando críticos traçam uma oposição Cambridge: MIT Press, 1986: 270.
entre espaços “reais” ou “concretos”, os quais
128 Recentemente, Jacques Derrida escreveu
supostamente são constituídos por processos
algo similar sobre o totalitarismo, quando,
extra discursivos, e outros espaços que são
considerados como meramente “metafóricos” em outro contexto, ele especulou que o
ou “discursivos”, eles não somente restringem totalitarismo se origina no terror inspirado por
drasticamente o campo da “realidade”; eles um fantasma. Jacques Derrida, Espectros de
também ocultam a política por meio da qual o Marx: O Estado da dúvida, o trabalho do luto
espaço e suas próprias categorias são construídas, e a nova Internacional. Tradução Anamaria
pressupondo que o objeto de seus discursos são Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
um campo puramente objetivo, constituído fora Derrida se refere a um fantasma diferente – não
de qualquer intervenção discursiva. Referências a esfera pública fantasma, mas o “espectro
não problematizadas a espaços reais isolam os do comunismo”. Ao definir comunismo como
espaços em questão de contestação precisamente um espectro, Derrida relembra a famosa frase
ao reprimir o fato de que esses espaços são de abertura do Manifesto Comunista: “Um
produzidos. Mais que isso, delinear uma espectro assombra a Europa – o espectro do
oposição hierárquica entre espaços é produzir comunismo”. Diferentemente de Marx e Engels,
espaços, uma atividade política mascarada entretanto, falando de uma conjuntura histórica
pela afirmação de que se trata simplesmente diferente, Derrida escreve sobre o medo que
de um objeto espacial real. Se nosso objetivo é esse espectro convocou não nos adversários do
revelar e intervir nas lutas políticas produtoras comunismo, mas em seus proponentes. Derrida
de espaço, não devemos focar em distinguir gera uma inflexão desconstrutiva no anúncio
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