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Às crentes e aos crentes que me ensinaram a rir de mim mesmo.

Palavras iniciais (prólogo i)


“Um fantasma ronda a igreja evangélica brasileira” –parodiando a primeira frase do Manifesto
comunista de Karl Marx e Friedrich Engels–, nem tanto o fantasma do comunismo, como diria o
saudosismo macabro de Enéas Tognini e de outros crentes simpatizantes do regime militar, mas “o
fantasma dela mesma”. O fato é que aparentemente a igreja evangélica brasileira, se é que posso
singularizar este universo cristão e fazer generalizações a seu respeito, conspira contra si mesma. Por
quê? A imagem mitológica da Arca de Noé continua útil para pensarmos a igreja; pois se o dilúvio
de fora fazia com que os crentes suportassem o fedor dos excrementos de dentro, hoje parece que o
fedor dos excrementos está incomodando mais do que o dilúvio e, consequentemente, muitos crentes
preferem permanecer fora da igreja.

Aqui não pretendo ignorar os excrementos que permanecem dentro da igreja evangélica brasileira.
Seria muita leviandade da minha parte, porque não me imponho as agendas e os compromissos das
instituições evangélicas. Então, não esperem que eu elogie aqueles que incentivam os crentes a
ficarem com seus rostos bem perto dos excrementos, como se isso fosse algo libertador. Por outro
lado, não vou deixar de assumir que sou evangélico, mesmo reconhecendo que me distancio da
postura de muitos evangélicos brasileiros. A rebeldia também está presente neste ato de assumir-me
como evangélico e ao mesmo tempo ser insubmisso aos líderes eclesiásticos.

Não me identifico nem um pouco com a maioria dos líderes evangélicos brasileiros. Também não me
identifico com grande parte da produção editorial ou artística do meio evangélico. Mas não quero
usar este espaço para descrever as características das coisas com que não me identifico, seria um
desperdício. Não quero me gabar de um suposto esclarecimento diante da “alienação” de outros
crentes. É um erro pensar que sou melhor, mais sábio ou mais esclarecido do que outras e outros
crentes; afinal de contas, como é indicado no Evangelho Segundo Mateus, Deus ocultou o mistério
do Reino dos céus aos sábios e aos inteligentes e revelou-o aos pequeninos.1

Busco inspiração e conspiração em crentes marginais que encontram-se dentro ou fora dos templos
evangélicos. As propostas de grandes mudanças não são levadas a sério e invariavelmente são
rejeitadas, muitos dogmas são inegociáveis, o autoritarismo impera, entre outras coisas. Mas no
cotidiano nem tudo é estanque como parece. Os crentes e as crentes marginais têm suas armas e vão
sobrevivendo. Apesar de toda a dominação dos líderes e da tradição predominantemente
conservadora, as crentes e os crentes marginais dão suas alfinetadas, contam piadas, fazem chacota,
sabem rir e até mesmo dissimular. Ensinam-me que o crente precisa desobedecer em muitas ocasiões.

As crentes e os crentes têm a capacidade de constranger seus respectivos líderes eclesiásticos.


Sabem que nem tudo que vem dos púlpitos é totalmente inspirado por Deus; por isso, mesmo durante
a prédica, já vi diversos crentes soltando um ou outro comentário jocoso sobre o que havia sido
proferido. Admito que não presenciei nada parecido com as provocações do dinamarquês
Søren Kierkegaard em relação à Igreja Luterana de Copenhague, mas todas estas atitudes não deixam
de ser fruto das respectivas percepções de si e do mundo. Na maioria das vezes, os crentes e as
crentes não chegam a publicizar suas queixas para toda a comunidade, porque há uma cultura
evangélica que de alguma forma estimula a subserviência dos crentes dentro dos templos, mesmo que
estimule a autonomia fora.

A dominação dos líderes religiosos pode ser legitimada pelo consentimento da maioria dos membros
de uma comunidade, mas ela precisa ser constantemente efetivada; assim como alguma resistência
também vai sendo construída, mesmo que timidamente. Certa vez, quando eu pedi a palavra para
discordar de um líder evangélico que expressava sua opinião, pensei que estava sozinho com a minha
queixa. O fato é que os irmãos e as irmãs não se manifestaram publicamente como eu, mas após o
culto alguns disseram que minha atitute foi importante e minha queixa tinha razão. Talvez outros que
não disseram nada tenham pensado a respeito, a minha atitude possivelmente encorajou alguns irmãos
e irmãs a levarem adiante suas próprias queixas.

Como eu disse acima, nem tudo é estanque nas nossas igrejas evangélicas. Por isso, acho importante
destacar as contradições para quebrar aquele senso comum de que grande parte dos evangélicos são
“alienados”, especialmente determinado ramo do pentecostalismo, enquanto uma pequena parte seria
mais “esclarecida”. Por exemplo, conheci uma senhora, evangélica há muitos anos, que pertencia a
uma pequena comunidade pastoreada por um líder evangélico renomado, defensor e expoente do
movimento da missão integral. Esta senhora, mesmo apoiando e mantendo o compromisso com sua
comunidade e seu pastor, frequentava também, aqui em São Paulo, um templo da Igreja Mundial do
Poder de Deus que é liderada pelo apóstolo midiático Valdemiro Santiago. Ela disse que seu pastor
proferia excelentes mensagens como se fossem palestras, inclusive ela possuía diversas mensagens
gravadas deste pastor, mas faltava aquele carisma que ela encontrava no líder da outra igreja. Ouvi
relatos de que até mesmo um pastor, de uma igreja batista da zona norte da cidade de São Paulo,
estaria frequentando alguns cultos da Igreja Mundial do Poder de Deus em busca deste tal carisma.

Nem tudo é estanque no meio evangélico brasileiro. Estou sendo repetitivo porque encontro crentes
que têm buscado outras leituras da fé cristã. O importante é que a possibilidade do diálogo seja
mantida, o diálogo com outras tradições cristãs e também com tradições não-cristãs. Ninguém
precisa transformar sua própria tradição num balaio de gato, misturando e juntando tudo numa coisa
só. Mas, por outro lado, ninguém precisa tomar sua leitura da fé cristã e da própria realidade como a
única válida. Como bem disse o teólogo Wolfhart Pannenberg: “Simplesmente não deveria ser aceita
a questão de que há apenas um entendimento da realidade na Bíblia entre todos os matizes que há em
seus livros” (Pannenberg, 2004, p. 22).

Sigo na tentativa de diálogo, buscando outras leituras da fé cristã, principalmente com o auxílio de
tradições marginalizadas. Neste sentido, apresento algumas leituras. Não são leituras exaustivas dos
livros, mas são leituras críticas que não subestimam os crentes. São minhas leituras, a partir da minha
perspectiva de crente leigo que estudou teologia por algum tempo, de crente insubmisso que
desconfia das lideranças evangélicas e das agendas institucionais por melhores que elas sejam e,
principalmente, de crente que busca a comunhão com outros crentes e se sensibiliza com histórias
ordinárias das pessoas mais vulneráveis em todos os sentidos.

Eu escolhi vinte resenhas de livros, resenhas que eu já havia escrito anteriormente. Não trata-se dos
melhores livros ou dos livros mais rebeldes para os evangélicos lerem, mas são livros que foram
lançados nos últimos anos e levantaram questões que normalmente não são abordadas na maior parte
da literatura evangélica; ou pelo menos, não da mesma forma. Por isso, acredito que estes livros não
seriam recomendados por nenhum pastor. Mas não pensem que eu concordo com tudo, longe disso.

Começo com o grande profeta Liev Tolstói, marginalizado entre os crentes, que buscou uma fé cristã
mais humana do que aquela encontrada nas igrejas e outras instituições de sua época que agiam em
nome de Deus. Minhas leituras passaram também por Jacques Ellul, o teólogo francês que considerou
a Bíblia uma fonte de anarquia. Passei por livros instigantes de teólogos contemporâneos como
Vítor Westhelle, Tom Harpur, Frank Viola, Paulo Nogueira, Néstor Míguez, Jung Mo Sung,
Lauri Wirth, Ricardo Quadros Gouvêa, e Reza Aslan. Além disso, apresento a leitura de livros que
levantam desafios éticos para os crentes, como a biografia de Nelson Mandela escrita por Jack Lang,
ou o livro sobre a intolerância religiosa organizado pelo antropólogo Vagner Gonçalves da Silva, o
livro sobre o claustro entre os jesuítas do sociólogo Antonio Carlos Bôa Nova, o livro sobre os
direitos dos animais do filósofo Peter Singer, entre outros.

Os 20 livros que nenhum pastor recomenda:

1. O reino de Deus está em vós de Liev Tolstói


2. Minha religião de Liev Tolstói
3. Anarquia e cristianismo de Jacques Ellul
4. Se és o filho de Deus de Jacques Ellul
5. O Deus escandaloso de Vítor Westhelle
6. Cristianismo pagão de Frank Viola
7. O Cristo dos pagãos de Tom Harpur
8. São Paulo de Alain Badiou
9. Zelota de Reza Aslan
10. Em 6 passos o que faria Jesus de Paulo Brabo
11. Missão e educação teológica de Néstor Míguez, Jung Mo Sung e Lauri Wirth
12. Um Jesus popular de Néstor Míguez
13. O que é apocalipse de Paulo Nogueira
14. Piedade pervertida de Ricardo Quadros Gouvêa
15. Humanos, graças a Deus de Jonathan Menezes
16. As divinas gerações de Paulo Brabo
17. Fora da Ordem de Antonio Carlos Bôa Nova
18. Nelson Mandela de Jack Lang
19. Intolerância religiosa organizado por Vagner Gonçalves da Silva
20. Libertação animal de Peter Singer

As resenhas de livros que estão presentes aqui, já foram publicadas anteriormente. Antes das
resenhas, apresento outro prólogo intitulado A necessidade de resgatar os aspectos marginais dos
nossos cristianismos.

Mantenham a chama da rebeldia acesa!

Boa leitura.

Silas Fiorotti
setembro de 2014.

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1
“Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, por teres ocultado isso aos sábios e aos inteligentes e por tê-lo revelado aos pequeninos.”
(Mt 11, 25 – TEB)
A necessidade de resgatar os aspectos
marginais dos nossos cristianismos (prólogo
ii)*
O cristianismo tem algo maravilhoso desde a sua origem: a diversidade. Não sei se este fato garantiu
a sobrevivência da fé cristã e o crescimento do número de adeptos. Mas é maravilhoso pensar que
o Evangelho possui inúmeras traduções e interpretações, e o nome de Jesus é pronunciado de
diferentes maneiras, nos mais diversos idiomas.

O cristão pode ser católico romano, católico brasileiro, católico carismático, ortodoxo, anglicano,
episcopal, luterano, protestante, reformado, presbiteriano, menonita, congregacional, metodista,
ecumênico, adventista, batista, evangélico, avivado, renovado, assembleiano, congregacionista,
quadrangular, pentecostal, neopentecostal, iurdiano, mundialiano, etc., e até mesmo cristão sincrético
e cristão sem igreja ou “sem religião”. São tantas denominações e formas de ser cristão, tanto no
Brasil como no exterior.

Muitos grupos cristãos vão surgindo a partir de dissidências e divisões, vemos o surgimento de
novos termos e denominações para a identificação dos novos grupos. O próprio crescimento dos
evangélicos no Brasil, constatado no Censo de 2010 do IBGE, também está relacionado com o
surgimento de novas dissidências e divisões dos grupos evangélicos mais antigos. Parece que o
cristianismo sobrevive até hoje porque vai sendo constantemente reelaborado, este também é o
motivo do surgimento de tantas críticas. Diversos grupos de cristãos levantam-se contra o que
chamam de adaptação do cristianismo ao espírito do mundo, seria somente o crescimento de igrejas
de mercado que fazem da fé cristã seu produto. Mas estes grupos cristãos também são fruto de
alguma dissidência, de alguma acomodação ao status quo vigente, ou provavelmente sobreviveram
porque eliminaram as divisões internas e combateram outras tradições cristãs.

Nem tudo no cristianismo se explica pelo conflito e pela disputa entre os próprios cristãos, mas
vemos que os maiores grupos cristãos tentam impor seus símbolos e suas “verdades” sobre os outros
cristãos. Há um chamado cristianismo oficial que pretende falar em nome de todos os cristãos e que
sempre nomeou os símbolos vitoriosos de Verdade e ridicularizou os símbolos derrotados como
Mentira ou heresia. Mas todos possuem suas “verdades”. O relato bíblico sinaliza que Deus é o
único dono da Verdade, contrariando aqueles que afirmam possuírem a Verdade. Ninguém pode ver
Deus, ninguém o conhece plenamente. Neste sentido, precisamos admitir a precariedade de nossas
crenças ou das nossas leituras da fé cristã.

Podemos e precisamos resgatar diversos aspectos marginais do cristianismo. Desde as manifestações


populares, práticas cotidianas e crenças que não estão presentes nas diversas vertentes do chamado
cristianismo oficial. Resgatar também diversos textos bíblicos e diversas interpretações marginais
que continuam sendo combatidas. Não faz sentido ficarmos só no mainstream da teologia
fundamentalista e desdenharmos dos teólogos marginais. Não faz sentido defendermos um corpo
doutrinário ou uma ortodoxia cristã e continuarmos excluindo tudo que não cabe nela. Acabamos
excluindo até mesmo o escândalo da cruz que não cabe nas nossas caixinhas teológicas construídas
de forma irritantemente racional.

Um cristianismo aberto ao diálogo com outras crenças ou descrenças, aberto aos incrédulos, às
heresias, às vozes discordantes, às minorias, aos marginalizados, aos incultos, ao risco, à
insegurança, à vulnerabilidade etc., invariavelmente escandalizará muitos crentes. Após algum
diálogo, o cristianismo jamais permanece o mesmo. Vamos correr o risco? A outra opção é
permanecermos com os nossos cristianismos encaixotados e sem nenhum diálogo.

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*
Este capítulo apresenta o conteúdo revisado do texto Precisamos resgatar diversos aspectos marginais do cristianismo, publicado
em minha página pessoal, em 19/2/2013.
1. Por um cristianismo mais humano e menos
institucional
Resenha do livro O reino de Deus está em vós de Liev Tolstói.*

Nos últimos anos, tivemos uma enxurrada de publicações das obras de Tolstói em português, a
maioria das traduções feitas diretamente do russo.

Liev Tolstói (1828-1910) foi um grande romancista russo, internacionalmente conhecido pelos
clássicos Guerra e Paz e Anna Karienina. Foi rico, um filho da aristocracia, e casou-se com Sófia
Sônia Andrêievna Bers (1844-1919), com quem permaneceu casado por 48 anos e teve 13 filhos. No
final de sua vida, tornou-se pacifista e escreveu textos questionando a autoridade das igrejas, dos
governos e a noção de propriedade privada – textos como O reino de Deus está em vós, de 1893,
que acaba de receber esta nova edição. Recentemente, também foi lançado o livro Os últimos dias de
Tolstói, que apresenta cartas, discursos e ensaios elaborados, entre 1882 e 1910, pelo célebre autor
russo.

Tentamos ler novamente o livro O reino de Deus está em vós (ou O cristianismo apresentado não
como uma doutrina mística mas como uma moral nova), desta vez sem levar em conta algumas
ideias que consideramos refutáveis. Não temos a intenção de desqualificar a obra de Tolstói, muito
menos deixar de reconhecer suas inegáveis e radicais contribuições. Sabemos que é recorrente o fato
de muitos cristãos o classificarem como deísta e, a partir desta chave de leitura, desqualificarem
tudo o que partiu de sua pena. O próprio Tolstói reconheceu isto no livro: “censuraram-me pela
interpretação errada de uma ou outra passagem da Bíblia; porque não reconheço a Trindade, a
Redenção e a imortalidade da alma” (p. 39).

Duvidamos da possibilidade, supostamente enunciada por Tolstói, do ser humano alcançar


plenamente a Verdade ou assimilar o cristianismo de forma pura. Admitimos que sua obra está
impregnada com a ideia de progresso, própria de sua época. São muitas as referências a um suposto
“desenvolvimento” ou “progresso da consciência”, “progresso da humanidade” –evidente no
exemplo dos cavalos atrelados a uma carroça (p. 323)– que, após o nazismo e outras experiências
desastrosas dos séculos vinte e vinte e um, tornou-se insustentável. Mas em outros momentos da obra,
Tolstói parece negar este “progresso”. E o fato desta obra ter despertado Mahatma Gandhi e diversos
movimentos para o princípio da não-violência já é suficiente prova de sua relevância.

No capítulo 1, A doutrina da não resistência ao mal por meio da violência tem sido ensinada pela
minoria dos homens desde a origem do cristianismo, o autor resgata o pacifismo presente no
cristianismo através dos quakers, de William Lloyd Garrison, Adin Ballou, Kheltchitsky, Dymond e
Daniel Musser, apesar da suposta decadência do cristianismo desde Constantino.

No capítulo 2, Opiniões dos fiéis e dos livres-pensadores sobre a não resistência ao mal por meio
da violência, Tolstói apresenta o questionamento central da obra:

como conciliar a doutrina claramente expressa pelo Senhor e contida no coração de cada um de nós – perdão, humildade,
paciência, amor a todos, amigos ou inimigos – com a exigência da guerra e de sua violência contra os nossos compatriotas e
contra os estrangeiros? (p. 39)

Para Tolstói, a única justificativa para usar a violência seria contra o Mal absoluto. Em suas
palavras: “ou encontrar um critério verdadeiro, indiscutível, do que se chama mal, ou não resistir ao
mal com o mal” (p. 54). Na impossibilidade de definir ou reconhecer o Mal, simplesmente não usar a
violência. Mais adiante ele escreveu: “É absolutamente necessário, a cada nova luta, decidir se
devemos ou não nos opor violentamente àquilo que consideraremos o mal” (p. 185).

No capítulo 3, O cristianismo mal compreendido pelos fiéis, Tolstói apresenta sua desqualificação
da Igreja:

tudo foi feito para que o homem não creia mais em Deus, nem em Cristo tal como eles se revelaram, mas somente no que a
Igreja ordena que se acredite. (p. 62)
As Igrejas, enquanto Igrejas, como sociedades afirmadoras de sua infalibilidade, são instituições anticristãs. Não só nada
existe em comum entre as Igrejas e o cristianismo, exceto o nome, como seus princípios são absolutamente opostos e hostis. (p.
72)
O que as Igrejas fazem dos homens é terrível, mas ao examinar bem a situação reconhece-se que não podem agir de outra
maneira. (p. 85)

O cristianismo, para Tolstói, não pertence à Igreja ou a qualquer instituição, mas a toda humanidade.

No capítulo 4, O cristianismo mal compreendido pelos cientistas, Tolstói defende a ideia de que a
essência do cristianismo não está na mística nem mesmo em regras prescritas e supostamente
impraticáveis ou doutrina abstrata, mas sim numa ação profética e no amor a Deus – “no movimento
do eu em direção a Deus” (p. 100). No capítulo 5, intitulado Contradições entre nossa vida e a
consciência cristã, Tolstói também defende que o cristianismo é essencialmente profético e exige
mudança de vida, uma nova moral.

No capítulo 6, Os homens de nossa sociedade e a guerra, Tolstói destila sua crítica aos “doutos
juristas” que, segundo ele, “afirmam em seus livros que o governo não é o que é: uma reunião de
homens que exploram os outros, mas, segundo a ciência, a representação do conjunto de cidadãos”
(p. 148). E recusa qualquer legitimação à guerra.

No capítulo 7, Significado do serviço militar obrigatório, Tolstói defendeu que o serviço militar
obrigatório é a principal contradição para os cristãos. Para ele, o rosto violento do Estado aparece
na instituição do exército:

Acredita-se, em geral, que os governos aumentam os exércitos unicamente para a defesa externa do país, enquanto, na
realidade, os exércitos lhes são necessários, principalmente, para sua própria defesa contra os súditos oprimidos e reduzidos à
escravidão. (p. 173)

No capítulo 8, Aceitação inevitável pelos homens de nossa sociedade da doutrina da não


resistência ao mal, assim como nos posteriores, através da defesa da não-violência, há uma
desqualificação de qualquer Estado, supostamente contrários ao cristianismo:

A doutrina de Cristo não é uma jurisprudência que ao ser imposta pela violência pode modificar de imediato a vida dos
homens. É um novo conceito de vida, mais alto do que o antigo, e um novo conceito de vida não pode ser prescrito, precisa ser
livremente assimilado. E só pode ser livremente assimilado de duas maneiras: uma interna, espiritual, e a outra externa,
experimental. (p. 183)

No capítulo 9, A aceitação do conceito cristão da vida preserva os homens dos males de nossa vida
pagã, Tolstói continua sua desqualificação de qualquer estado: “A promessa de submissão a qualquer
governo... é a negação absoluta do cristianismo” (p. 205). E utiliza o exemplo das abelhas para
propor a desobediência civil:

Se nenhuma abelha levantasse voo sem esperar pelas outras, o enxame nunca mudaria de lugar, e se o homem que assimilou o
conceito cristão não vivesse segundo este conceito, a humanidade nunca mudaria sua situação. (p. 207)
São as abelhas isoladas, primeiro desprendidas do enxame, que volteiam a seu redor, esperando o que não pode tardar: que
todo o enxame pouco a pouco se desprenda. (p. 213)

No capítulo 10, Inutilidade da violência governamental para suprimir o mal – O progresso moral
da humanidade realiza-se não apenas com o conhecimento da verdade, mas também com a
formação da opinião pública, Tolstói direciona sua crítica ao sistema judiciário, que funcionaria
supostamente como legitimador da violência do estado. E utiliza o exemplo dos pintinhos para
afirmar que o estado supostamente será destruído por uma sociedade civil madura com uma “opinião
pública” bem diferente da atual:

Os pintinhos já estão bastante desenvolvidos para que a galinha seja afastada e para que se deixe que saiam do ovo, ou ainda
é muito cedo? Decidirão eles mesmos a questão quando, não mais podendo continuar dentro da casca, irão quebrá-la com o
bico. (p. 226)

No capítulo 11, O conceito cristão da vida nasce em nossa sociedade e infalivelmente destrói a
ordem de nossa vida calcada na violência, Tolstói indica alguns sinais do reino de Deus ou do
“progresso”. Entre eles, o fato de haver muitos indivíduos que não querem ocupar posições calcadas
na violência, ricos que doam parte de sua riqueza e religiosos que não crêem naquilo que ensinam. E
no último capítulo, intitulado Conclusão – Fazei penitência, porque o reino de Deus está próximo,
está à nossa porta, Tolstói não propõe um sistema, mas convoca todos a uma mudança de vida, uma
espécie de sensibilização à re-humanização dos indivíduos:
se fosse sugerido ao hipnotizado que é coxo e ele começasse a mancar, que é cego e ele não mais enxergasse, que é uma fera e
ele começasse a morder, na mesma posição estão todos aqueles que cumprem seus deveres sociais e governamentais antes e em
detrimento dos deveres humanos. (p. 297)

Destacamos que, na obra de Tolstói, está presente a ideia de que enquanto um ser humano sofre, toda
a humanidade está sofrendo. E Tolstói enunciou, no segundo e no último capítulos, que uma leitura
sacrificialista da morte de Jesus legitimava, e acreditamos que continua legitimando, toda sorte de
crueldades:

para o bem-estar geral pode-se matar, violentar, assaltar. “É melhor que um só homem pereça do que um povo inteiro”, dizes
como Caifás e subscreves a condenação à morte de um homem, de outro, de um terceiro; carregas teu fuzil contra aquele
homem que deve perecer pelo bem geral, o colocas na prisão, lhe retiras tudo o que possui. Dizes que cometes essas crueldades
porque fazes parte da sociedade, do Estado, porque tens o dever de servi-los, e, como proprietário, juiz, soberano, soldado,
deves agir conforme suas leis. (p. 332)

A nossa ortodoxia, como denunciou Tolstói, adotou as palavras de Caifás.

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*
Esta resenha escrita por Silas Fiorotti foi publicada na revista Novos Diálogos, Rio de Janeiro, em 30/5/2011.
Referência do livro: Tolstói, Liev. O reino de Deus está em vós. Tradução de Celina Portocarrero. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011,
335pp.
2. A verdade de Jesus está em oposição às
injustiças
Resenha do livro Minha religião de Liev Tolstói.*

Mais um livro de Liev Tolstói foi publicado no Brasil, veio sem muita divulgação com a recente
enxurrada de livros dele. Desta vez trata-se de um ensaio, escrito em 1884, em que Tolstói explica
por que entende os ensinamentos de Jesus de um modo supostamente diferente. Minha religião foi
traduzido por Dinah de Abreu Azevedo a partir de uma versão em inglês, sendo que em inglês este
ensaio pode ser encontrado com os títulos My Religion ou What I Believe. O livro ainda contém o
prefácio da edição inglesa, escrito por Huntington Smith em 1889.

Liev Tolstói (1828-1910) foi um grande romancista russo, internacionalmente conhecido pelos
clássicos Guerra e Paz e Anna Karienina. Foi rico, um filho da aristocracia, e casou-se com Sófia
Sônia Andrêievna Bers (1844-1919), com quem permaneceu casado por 48 anos e teve 13 filhos. No
final de sua vida, tornou-se pacifista e escreveu textos questionando a autoridade das igrejas, dos
governos e a noção de propriedade privada.

O grande desafio para os cristãos em geral é reconhecer as radicais contribuições de Tolstói.


Sabemos que ele facilmente pode ser considerado um herege nos mais diversos círculos cristãos. No
livro em questão, estamos diante de uma interpretação da mensagem de Jesus com mais de um século
que ainda escandaliza muitos crentes que defendem a hegemonia de uma leitura ortodoxa,
considerada a única válida. Não queremos substituir uma leitura por outra, acreditamos que nem
Tolstói propôs isso. Mas admitimos que é louvável sua tentativa de tirar da mente todos os
comentários de Paulo, Clemente, João Crisóstomo e outros, ao ler os evangelhos.
Logo no início do livro, no primeiro capítulo, Tolstói afirma que os evangelhos, e especialmente o
Sermão da Montanha, tiveram uma importância excepcional para ele. A doutrina da não-resistência
ao mal (Mt 5.38ss.) supostamente seria encontrada ao longo de todos os evangelhos que, por sua vez,
“organizaram-se em um todo harmonioso” (p. 87). A mensagem de Jesus seria facilmente
compreendida e colocada em prática, porque foi revelada aos simples e pequeninos (Mt 11.25). No
entanto, segundo Tolstói, é preciso abandonar os comentários e as traduções ruins dos evangelhos.

Tolstói levanta críticas e dúvidas a partir da leitura de diversas passagens dos evangelhos que
possuem traduções, interpretações e comentários supostamente errôneos. Para ele, não há dúvida de
que Jesus anulou a velha lei de Moisés e a substituiu por uma nova. O que dizer dos versículos 17 e
18 do capítulo 5 do Evangelho segundo Mateus?1 – trata-se do texto em que Jesus afirma que não
veio anular a lei. Segue abaixo uma paráfrase deste texto em que Tolstói apresenta sua interpretação:

Não vim (disse Jesus) destruir a lei eterna sobre cuja obediência falam seus livros e profecias. Vim pregar a obediência à lei
eterna; não à lei que seus escribas e fariseus chamam de lei divina, mas à lei eterna que é mais imutável do que a Terra e os
Céus. (p. 73)

Ou seja, Tolstói distingue a lei escrita da lei eterna, a primeira seria associada à expressão “a lei e
os profetas” e não à expressão “a lei ou os profetas”. Isso estaria mais claro numa passagem do
Evangelho segundo Lucas em que Jesus teria dito que a lei escrita vigorou até João Batista, mas
confirmou a lei eterna (Lc 16.15-17).2

Não é difícil encontrar, assim como Tolstói encontrou, cristãos que queiram definir quando a
violência é necessária e permissível; sem falar de toda a tradição ocidental cristã que não renuncia
sua dose de sangue, mesmo afirmando “a plena suficiência do sacrifício expiatório” de Jesus.
Continua sendo difícil encontrar cristãos que levem a sério as palavras da tradição profética que
foram resgatadas por Jesus: “É a misericórdia que eu quero, não o sacrifício” (Mt 9.13; 12.7 – TEB),
Tolstói sabe que elas não têm espaço dentro da tradição ocidental cristã ou mesmo dentro do
cristianismo russo.

Tolstói encontrou pelo menos cinco mandamentos de paz dados por Jesus para o estabelecimento do
reino de Deus: (1) “viver em paz com todos os homens” e “não considerar ninguém louco ou
indigno” (p. 93 e 118); (2) “guardar-se contra toda ideia que excite seu desejo sensual” (p. 94); (3)
“não jurar em nome do Senhor” (p. 103); (4) “não resistir ao mal”, “não retribuir o mal com o mal”
ou “para abolir o mal, evite cometer o mal” (p. 105-106); e (5) “amar os seus inimigos” ou “não
fazer distinção entre compatriotas e estrangeiros” (p. 107 e 111).

A crítica de Tolstói também recai sobre o que é considerado felicidade de acordo com a “doutrina do
mundo”. Por isso, ele oferece, por mais pretensioso que possa parecer, as supostas principais
condições da felicidade terrena de acordo com a “doutrina de Jesus”: (1) “que o elo entre o homem e
a natureza não seja cortado” (p. 190); (2) “o trabalho” (p. 192); (3) “a família” (p. 192); (4) “uma
relação amistosa e incondicional com todas as classes de homens” (p. 193); e (5) “a saúde física” (p.
194). Segundo Tolstói, “a doutrina do mundo é muito mais difícil, mais perigosa e muito mais cruel
que a doutrina de Jesus” (p. 196), sendo que a primeira produziu um número muito maior de mártires.
Nas palavras de Tolstói:
A doutrina de Jesus, que nos ensina que não podemos tornar nossa vida segura, e que devemos estar prontos para morrer a
qualquer momento, é inquestionavelmente preferível à doutrina do mundo, que nos obriga a lutar pela segurança de nossa
existência. (p. 201)

Não nos faltam motivos para criticarmos diversas afirmações de Tolstói. Trata-se da doutrina da
“não-resistência ao mal” ou da “não-resistência ao mau”?3 Será mesmo que os evangelhos
“organizaram-se em um todo harmonioso”? Como defender a manutenção do casamento a todo custo
se em muitos casos o divórcio é a melhor opção? E muitas outras questões. No entanto, acreditamos
que vale a pena levar Tolstói a sério para criticarmos diversas doutrinas cristãs que nos imobilizam,
para levarmos a sério as palavras da tradição profética que foram resgatadas por Jesus: “É a
misericórdia que eu quero, não o sacrifício”. Não há dúvida que Tolstói buscou incansavelmente a
verdade de Jesus e nesta busca ele se perguntou: “Por que tanta injustiça?” (p. 183). O profeta russo
já enunciava que a verdade de Jesus está em oposição às injustiças e orienta os crentes na luta contra
elas.

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*
Esta resenha escrita por Silas Fiorotti foi publicada na revista Novos Diálogos, Rio de Janeiro, em 12/3/2013, e na revista Práxis
Evangélica, Londrina, n. 21 – 2013.
Referência do livro: Tolstói, Liev. Minha religião. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: A Girafa, 2011, 256pp.

1
“Não penseis que vim ab-rogar a Lei ou os Profetas: não vim ab-rogar, mas cumprir. Pois em verdade eu vos declaro, antes
que passem o céu e a terra, não passarão da lei um i nem um ponto do i, sem que tudo haja sido cumprido.” (Mt 5,17-18 –
TEB).

2
Os fariseus, que gostavam do dinheiro, escutavam tudo isso, e zombavam de Jesus. Jesus lhes disse: “Vós mostrais a vossa
justiça aos olhos dos homens, mas Deus conhece os vossos corações: o que para os homens é superior é uma abominação aos
olhos de Deus. A Lei e os Profetas vão até João; desde então a boa nova do Reinado de Deus é anunciada e todo homem
emprega a sua força para nele entrar. É mais fácil passarem o céu e a terra do que cair da Lei uma só vírgula.” (Lc 16,15-17 –
TEB).

3
“Ouvistes que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente’. Eu, porém, vos digo: Não resistais ao mau. Pelo contrário, se
alguém te esbofeteia na face direita, vira-lhe também a outra.” (Mt 5,38-39 – TEB).
3. "Deus" não serve para nada!
Resenha do livro Anarquia e cristianismo de Jacques Ellul.*

Em 2009, andou circulando na internet uma tradução desse livro, feita pelo nosso amigo
Filipe Ferrari que assumiu voluntariamente a empreitada a partir de uma versão em inglês (Ellul,
1991). Discutimos o texto em círculos libertários e listas de discussões; realmente nos empolgamos
com as respostas do Ellul aos trechos supostamente mais autoritários do Novo Testamento. Em 2010,
a Garimpo Editorial comprou os direitos do livro e pediu gentilmente para tirarmos nossa tradução
da internet. É claro que nós não entendemos: Como assim? Que papo é esse de direitos autorais para
texto libertário? Mas não podemos negar que é um milagre ver uma editora evangélica lançar um
livro como este no Brasil. Além disso, trata-se de uma boa tradução.

Jacques Ellul (1912-1994) foi sociólogo e teólogo, professor de Direito, Sociologia e História das
Instituições da Universidade de Bordéus, na França. Sua obra é bem extensa; são mais de 30 livros.
E entre os principais livros estão uma trilogia sobre a técnica: (1) A Técnica e o Desafio do Século,
(2) The Technological System, e (3) The Technological Bluff. Além da monumental obra Histoire
des institutions, de 5 volumes. Em português temos pouca coisa traduzida. Talvez o livro A palavra
humilhada (Ellul, 1984) seja o mais conhecido entre os cristãos brasileiros. Há uma citação deste
livro que anuncia os pressupostos teológicos de Ellul:

“A palavra de Deus exprime-se na Bíblia”. Mesmo assim, devo ter a prudência de dizer que esta palavra foi transmitida por
uma palavra de homens, de testemunhas que passaram a outras testemunhas, e eu, quando a escuto, compreendo-a com minhas
palavras, com minhas imagens de palavra e a repito com a minha linguagem e não sou Deus – felizmente. (p. 43)

Ou seja, todos possuem as suas “verdades”.

No primeiro número da revista eletrônica Espiritualidade Libertária, podemos encontrar três textos
sobre o pensamento de Ellul: Jacques Ellul: anarquista, mas cristão (Troude-Chastenet, 2010),
Hombre, Dios y Historia según Jacques Ellul (Gervais, 2010) e Música, tecnologia e consumo
(Paiva, 2010).
Voltando ao livro Anarquia e Cristianismo, vemos que Ellul considera o anarquismo a posição
política que mais se aproxima do pensamento bíblico. É claro que ele não entende o cristianismo
como uma religião; para ele, a fé cristã é essencialmente antirreligiosa. Porque “a Palavra de Deus
não é uma ‘religião’ e é a mais grave traição que se tenha transformado essa Palavra em uma
religião” (p. 30). Por outro lado, Ellul acredita que o anarquismo só é possível e praticável através
de novas instituições de base. Ele não acredita numa sociedade completamente anarquista porque
para ele “a imagem ou a esperança de uma sociedade sem autoridade e sem instituições se baseia em
uma dupla convicção: de que o homem é naturalmente bom e a sociedade o corrompe” (p. 23).

Ainda no primeiro capítulo, são apresentadas diversas queixas ou objeções dos anarquistas ao
cristianismo. Ellul, além de dizer que a fé cristã não é uma religião, completa dizendo que o amor
destrói a imagem de Deus que está presente no imaginário religioso vigente:

Se o Deus bíblico é o Todo-poderoso, ele é, ao mesmo tempo, aquele que praticamente não faz nenhum uso de seu poder em sua
relação com o homem (com exceção dos casos únicos que sempre são mencionados justamente por serem ‘anormais’: a Torre de
Babel, o Dilúvio, Sodoma e Gomorra). Ele se autolimita em seu poder, não por arbitrariedade ou capricho, mas porque agir de
modo diferente seria contradizer seu próprio Ser. Pois, além do Poder, dominando-o e condicionando-o, há a ideia de que Deus
é amor. (pp. 37-38)

E reitera: “o homem [e principalmente os teólogos] construiu uma imagem, uma representação de


Deus que dependeu muito mais de uma reflexão humana e lógica que de uma compreensão bíblica”
(pp. 39-40). Por isso, Ellul é enérgico: “[Esse] ‘Deus’ não serve para nada!” (p. 41).

A Bíblia é entendida como uma fonte de anarquia, sendo anarquia entendida como an-arkhé que
significa sem autoridade ou sem dominação. Isso porque só Deus pode ser considerado a autoridade
suprema nos textos bíblicos. Mesmo na época da monarquia, temos os profetas que faziam críticas
severas aos atos dos reis – o que Ellul chama de contrapoder. Para ele, há, no Antigo Testamento,
uma “constância do sentimento antimonarquista ou, pelo menos, antiestatal” (p. 58). Já no Novo
Testamento, Ellul mostra que Jesus não concordava com nenhuma autoridade. Afirma que a Igreja, até
o terceiro século, era hostil ao Estado, ao poder imperial, às autoridades. Depois encontra críticas às
autoridades no Apocalipse, na Primeira Carta de Pedro e nas cartas de Paulo. Até mesmo
em Romanos 13 – sendo que além da sua interpretação ele apresenta as interpretações de dois
teólogos (Karl Barth e Alphonse Maillot) para este último texto.

Após a leitura deste livro ficamos cientes de que não há uma unanimidade na interpretação dos
versículos bíblicos. Os versículos podem ser mais ou menos embaraçosos. Assim como o próprio
livro do Ellul será muito embaraçoso para muitos religiosos e teólogos brasileiros, sejam eles de
direita ou esquerda.

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Esta resenha escrita por Silas Fiorotti foi publicada na revista Novos Diálogos, Rio de Janeiro, em 02/2/2011, e na revista
Espiritualidade Libertária, São Paulo, n. 3 (1. sem. 2011).
Referência do livro: Ellul, Jacques. Anarquia e Cristianismo. Tradução de Norma Braga. São Paulo: Garimpo Editorial, 2010, 128pp.
4. A tentação é não se escandalizar
Resenha do livro Se és o filho de Deus de Jacques Ellul.*

O que dizer desta publicação? A editora novamente não respeitou a obra do Ellul nem os leitores
brasileiros. Trata-se daquela tradução em que você encontra informações erradas e muitos erros
ortográficos e gramaticais, dá vontade de abandonarmos a leitura por conta deles. Erros por todos os
lados, nas notas e referências e até na contracapa e nas orelhas. Não é menos pior o prefácio do
Ricardo Barbosa de Sousa.

Jacques Ellul (1912-1994) foi sociólogo e teólogo, professor de Direito, Sociologia e História das
Instituições da Universidade de Bordéus, na França. Sua obra é bem extensa, são mais de 30 livros.
E entre os principais livros estão uma trilogia sobre a técnica. Além da monumental obra Histoire
des institutions de 5 volumes. Em português temos pouca coisa traduzida, talvez o livro A palavra
humilhada seja o mais conhecido entre os cristãos brasileiros.

No livro Se és o filho de Deus, que foi publicado originalmente em 1991, Ellul enfatiza a condição
humana de Jesus como supostamente é mostrada nos evangelhos. Ele considera que o filme A última
tentação de Cristo, de Martin Scorsese (1988), apresentou um Jesus medíocre sem qualquer
semelhança com o Jesus dos evangelhos (pp. 12, 78-79). Tanto os que se escandalizam com o filme
como os que defendem o filme estariam distantes do Jesus dos evangelhos. O primeiro grupo estaria
defendendo uma figura etérea, perfeita, sem sonho e sem tentação, que já não seria humana; e o outro
grupo estaria defendendo simplesmente um Jesus medíocre que conheceu apenas tentações que não
estão nos evangelhos como: crianças, família, tranquilidade, etc. Segundo Ellul, o filme é ruim
porque é incoerente:
É preciso que de toda forma haja uma certa coerência entre o tema escolhido e a criação artística. Ora, não há nenhuma
coerência entre o conjunto dos Evangelhos e esse filme, que por isso não considero uma obra de arte. (p. 79, nota 27)

Mas será que nossa ortodoxia é coerente? Acreditamos que Ellul não se deu conta dos diversos
questionamentos que o filme levantou. No filme, Judas Iscariotes é apresentado como colaborador e
não como traidor de Jesus. Nossa ortodoxia, mesmo afirmando o contrário, faz a mesma coisa:
afirmando que se Deus supostamente enviou Jesus para morrer, então Judas acabou colaborando com
esta missão. Mas os evangelhos afirmam que Judas traiu Jesus. Nossa ortodoxia também adotou as
palavras de Caifás, além de ter atribuído um conteúdo expiatório e dado uma ênfase sacrificialista ao
sofrimento e morte de Jesus (Westhelle, 2008, p. 35), entre outras coisas. O filme do Scorsese, que
trata-se de uma adaptação do romance de Níkos Kazantzákis de 1951, não é medíocre ou superficial,
muito pelo contrário.

Ao longo do livro, Ellul mostra uma preocupação excessiva com o embasamento bíblico para
qualquer afirmação. Chega até a afirmar categoricamente que a Bíblia é a Palavra de Deus e a sua
única revelação (p. 71), uma posição que se distancia daquela adotada, dez anos antes, no livro A
palavra humilhada:

“A palavra de Deus exprime-se na Bíblia”. Mesmo assim, devo ter a prudência de dizer que esta palavra foi transmitida por
uma palavra de homens, de testemunhas que passaram a outras testemunhas, e eu, quando a escuto, compreendo-a com minhas
palavras, com minhas imagens de palavra e a repito com a minha linguagem e não sou Deus - felizmente. (Ellul, 1984, p. 43)

Não encontramos, no livro Se és o filho de Deus, o Ellul que nos empolgou em outros livros. Fica
aquela sensação de que Ellul poderia ser muito mais “escandaloso”, na mesma linha de Scorsese. O
que dizer de seu suposto ressentimento contra o islã? Mas não podemos deixar de mencionar alguns
pontos relevantes. Suas compreensões de que “o sofrimento é um horror” (p. 16) e nunca é desejado
por Deus; de que não é Deus que prova os seres humanos, mas o contrário; de que o Satã ou Shatân
não é uma espécie de espírito independente do ser humano, mas surge no coração humano (p. 18); de
que o Diabo é um representante da humanidade como um todo (p. 22); de que a encarnação e a
crucificação de Jesus nunca deixarão de ser escandalosas (p. 43); e de que Jesus escolheu a “não-
potência”:

A não-potência não é a impotência, mas a decisão, da parte daquele que tem, que detém uma potência, de não se servir dela, de
não usar a potência de que ele poderia lançar mão, de não usá-la nem mesmo para defender sua vida. Não há na vida de Jesus
“legítima defesa”. (p. 87)

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Esta resenha escrita por Silas Fiorotti foi publicada na sua página pessoal, em 29/12/2012.
Referência do livro: Ellul, Jacques. Se és o filho de Deus: descubra a verdadeira natureza de Jesus Cristo. Tradução de Luiz
Fernando Medeiros de Carvalho e Ana Amélia Brasileiro Medeiros Silva. Brasília: Palavra, 2011, 104 pp.
5. "Jesus tem um par de nádegas!"
Resenha do livro O Deus escandaloso de Vítor Westhelle.*

O livro O Deus escandaloso de Vítor Westhelle, foi um dos melhores livros de teologia que li
ultimamente, porque o autor fala especificamente do escândalo da cruz. Mesmo que ele assuma que
“Não há teo-logia da cruz” (p. 161) –como discurso sistematizado, talvez somente como um modo de
vida–, porque simplesmente não é possível conceber uma sem evadir-se do escândalo caindo no
dolorismo, derrotismo, ressurreicionismo e cinismo. Apesar da impossibilidade, conclama-nos à
transgressão que se faz necessária para possuirmos o sofrimento, o vazio, o empoderamento e as
cicatrizes da cruz. Se nossos teólogos contemporâneos não podem ajudar muito, pelo menos temos
a poesia de Adélia Prado:

Festa do corpo de Deus


Como um tumor maduro
a poesia pulsa dolorosa,
anunciando a paixão:
Ó crux ave, spes unica
Ó passiones tempore.
Jesus tem um par de nádegas!
Mais que Javé na montanha
esta revelação me prostra.
Ó mistério, mistério,
suspenso no madeiro
o corpo humano de Deus.
É próprio do sexo o ar
que nos faunos velhos surpreendo,
em crianças supostamente pervertidas
e a que chamam dissoluto.
Nisto consiste o crime,
em fotografar uma mulher gozando
e dizer: eis a face do pecado.
Por séculos e séculos
os demônios porfiaram
em nos cegar com este embuste.
E teu corpo na cruz, suspenso.
E teu corpo na cruz, sem panos:
olha para mim.
Eu te adoro, ó salvador meu,
que apaixonadamente me revelas
a inocência da carne.
Expondo-te como um fruto
nesta árvore de execração
o que dizer é amor,
amor do corpo, amor.
(Prado, 1991, p. 279)

O autor, Vítor Westhelle, é um teólogo brasileiro –protestante de tradição luterana– que é professor
de Teologia Sistemática na pós-graduação da Lutheran School of Theology, em Chicago, Estados
Unidos. Inclusive, este livro foi lançado originalmente em inglês, nos Estados Unidos, em 2006.
Infelizmente não sabemos como ele foi recebido por lá.

Os quatro primeiros capítulos têm um enfoque histórico em que são apresentadas as diferentes teorias
sobre a cruz. O autor resgata o escândalo através da teologia de Lutero, o teólogo da cruz:

[Lutero] diz que um teólogo só pode merecer ser chamado de teólogo se a teologia é feita do ponto de vista do sofrimento e da
cruz. Qual seria a alternativa? A teologia baseada no que a razão é capaz de racionalizar, no que a jurisprudência é capaz de
justificar e no que o mercado é capaz de regular quanto ao valor do trabalho. (p. 61)

Ou seja, o escândalo da cruz só permanece escandaloso quando fere nossa razão. Por isso, é preciso
abandonar a razão como infraestrutura para a fé. Sabemos que nem mesmo John Stott escapou dessa
armadilha. No clássico A cruz de Cristo, Stott retoma a teologia de Anselmo de Cantuária, teólogo
do século onze, que busca explicar por que a cruz foi necessária.

No livro Por que Deus se fez homem?, Anselmo argumenta que Deus precisava perdoar a
humanidade mas não podia; por isso enviou Jesus para morrer pela humanidade. Ou seja, a
humanidade, em Adão e Eva, pecou contra Deus, e porque Deus é infinito, adquiriu com isso uma
dívida infinita. E Deus, por sua vez, quer perdoar e salvar mas não pode porque é justo, ele castiga
os maus e premia os bons. A humanidade não pode pagar sua dívida infinita porque ela é finita;
então, Deus envia Jesus, que veio como Deus e homem, para morrer no lugar da humanidade e pagar
essa dívida. Uma argumentação, que segundo Westhelle, não estava presente no arcabouço teológico
neotestamentário e suas duas interpretações do sofrimento e morte de Jesus:

O que provoca o destino da vítima inocente? A diferença entre as duas interpretações do sofrimento e morte de Jesus — (a ) o
justo tem que ser morto, e (b) o Filho da Humanidade tem que ser entregue às mãos da humanidade — baseia-se em sua causa.
Na primeira, é a infidelidade do povo; a segunda sugere uma preordenação divina. Em nenhuma das duas, um conteúdo
salvífico ou expiatório está anexado ao destino do justo. (p. 35)

Os demais capítulos têm um enfoque temático em que são apresentados diferentes questionamentos
levantados pela cruz na teologia contemporânea. Já no quinto capítulo, Westhelle propõe o
“conhecimento transgressivo” como método teológico e, logo em seguida, fornece uma interpretação
sobre a causa da morte de Jesus:
(…) conhecimento transgressivo – um/a teólogo/a da cruz deveria transgredir constantemente os limites de epistemes aceitas,
seja para corroborar a decisão de transmitir aquela moldura de significados ou para criticá- la. Outros teólogos chamaram-na
de ‘ruptura epistemológica’, o momento quando um significado convencional se esfacela para abrir novas possibilidades. (p.
95)
(…) Jesus morreu na cruz porque nomeou a lei que mata e praticou a cura que restaura. Ele o fez precisamente por entrar na
margem da lei, em um sentido por radicalizá-la e estender seu significado até os limites – como no Sermão do Monte – e, em
outro sentido, ao transgredi-la – como nos milagres ou no perdão gracioso de pecadores. (p. 96)

Poderíamos citar diversos trechos do livro, mas acreditamos que a principal contribuição de Vítor
Westhelle foi mostrar que nenhuma teologia é perene ou pode permanecer imutável diante da cruz.
Neste momento em que qualquer teólogo, principalmente das margens, que pensa um pouco diferente,
é logo estigmatizado ou até mesmo denominado de herético e só se aceita o “fundamentalismo norte-
americano” como norma, parece mesmo que continuamos sendo colonizados teologicamente. É o
momento de valorizarmos nossas próprias heresias:

Onde a heresia não é mais possível, a novidade também é uma impossibilidade. A palavra heresia significa etimologicamente
‘uma escolha’, ‘uma opção’ ou ‘ser colocado à parte’, mas ela também pode significar ‘conquista’, ‘captura’. A ironia nisso é
que a ‘conquista’ europeia ou ocidental do mundo, a grande ‘heresia’, tornou-se a norma da qual nenhum desvio era possível,
nenhuma ‘anti-heresia’ seria permitida. A heresia tornou-se absoluta, normativa. (p. 158)

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Esta resenha escrita por Silas Fiorotti foi publicada na revista Espiritualidade Libertária, São Paulo, n. 2 (2. sem. 2010), e na revista
Novos Diálogos, Rio de Janeiro, em 18/1/2011.
Referência do livro: Westhelle, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2008, 184pp.
6. As raízes "pagãs" do cristianismo moderno
Resenha do livro Cristianismo pagão de Frank Viola.*

No livro Pagan christianity [Cristianismo pagão], Frank Viola destaca que “quase tudo aquilo que é
feito em nossa igreja moderna não tem qualquer base bíblica”. Para ele, a maior parte das nossas
práticas eclesiásticas foi introduzida durante três períodos: (1) no pós-Constantino (324 a 600), (2)
no tempo da Reforma (século XVI), e (3) na era do Reavivamento (séculos XVIII e XIX). Talvez não
seja um problema admitir isso, mas sim conceber uma comunidade cristã que pretende ser fermento e
não se mistura na massa. Porque a busca de pureza total pode tornar-se sectária e anti-cristã.

Viola nos lembra que “estamos condicionados a lê-la [a Bíblia] com as cômodas lentes da tradição
cristã à qual pertencemos”; por outro lado, não há uma leitura totalmente imparcial. O caso é que
devemos escolher nossas próprias lentes e saber que elas invariavelmente serão limitadas. Hoje,
temos acesso a inúmeros estudos exegéticos para auxiliar nossa crítica textual, nos estudos dos textos
bíblicos.

A crítica de Viola começa pela liturgia protestante, no capítulo 1, e sua estrutura tripla: (1) cântico,
(2) sermão, e (3) oração ou cântico final e, às vezes, o apelo. Para Viola, a liturgia supostamente
reprime a participação mútua e o crescimento da comunidade cristã. A ordem protestante de
adoração supostamente estrangula a direção de Jesus Cristo, o culto dominical seria chato, etc. A
liturgia protestante dificultaria a transformação espiritual, porque supostamente estimula a
passividade e limita o funcionamento da comunidade.

Depois a crítica de Viola recai sobre o sermão, no capítulo 2 ele diz: “o moderno sermão proferido
aos cristãos é algo alheio à toda Bíblia”. Segundo ele, “o sermão greco-romano substituiu a profecia,
a mútua partilha e o ensino inspirado pelo Espírito”, e que “nem a homilia (sermões) nem a
homilética (a arte de pregar o sermão) têm origem cristã”. Mas não podemos olhar para a retórica
aristotélica, e sua influência sobre nossos sermões, apenas de forma negativa – até porque a nova
retórica diz que o orador não convence ou manipula ninguém. Mesmo assim, as palavras de Paulo
supostamente contrariam os homiletas de plantão:

(…) a minha palavra e a minha pregação nada tinham dos discursos persuasivos da sabedoria, mas eram uma demonstração
feita pelo poder do Espírito, a fim de que a vossa fé não se fundasse na sabedoria dos homens, mas no poder de Deus. (1Cor
2,4-5 – TEB)

“O moderno cristianismo é obcecado pelo tijolo e pelo concreto”. Vemos, no capítulo 3, que Viola
critica o templo. Para ele, o edifício ou templo é um obstáculo, não uma ajuda: “O edifício é uma
negação arquitetural do sacerdócio de todos os crentes. É uma contradição da verdadeira natureza da
ekklesia – a qual é uma comunidade contracultural”.

Viola não poderia deixar de atacar a liderança eclesiástica ou o clero, no capítulo 4, porque, para
ele, “não há qualquer suporte bíblico para a prática do pastor único”. Ele cita algumas palavras de
Richard Hanson:

Para nós as palavras bispo, presbítero e diácono estão armazenadas com associações de quase dois mil anos. Para as pessoas
que utilizaram estas palavras no princípio, as funções destas posições não poderiam significar mais do que inspetores, anciãos
e ajudantes... Foi quando significações teológicas inadequadas começaram a ser associadas a elas que a distorção do
conceito do ministério cristão começou. (Richard Hanson apud Viola)

Depois, referindo-se ao segundo século, Viola diz:

(…) as práticas das religiões místicas começaram a ser utilizadas na adoração da igreja. E a noção pagã da dicotomia entre o
sagrado e o profano encontrou caminho fértil na mentalidade cristã. Pode-se dizer corretamente que a distinção de classe entre
o clero e o leigo resultou diretamente dessa dicotomia. A vida cristã agora se dividia em duas partes: o secular e o espiritual – o
sagrado e o profano.

E conclui:

A distinção antibíblica clero/leigo tem causado tremendos danos ao Corpo de Cristo. Tal distinção provoca uma ruptura na
comunidade dos crentes por classificá-los como cristãos de primeira e de segunda classe. A dicotomia clero/leigo perpetua uma
horrível mentira. A mentira de que alguns cristãos são mais privilegiados do que outros quanto a servir ao Senhor.

Viola ainda ataca a roupa dominical –no capítulo 5–, os ministros de louvor –no capítulo 6 –, os
dízimos e salários do clero –no capítulo 7–, e o batismo e a ceia –no capítulo 8. Quando ele fala
sobre a educação cristã, no capítulo 9, ele diz:

Abrimos as cabeças das pessoas com uma alavanca, derramamos uma ou duas taças de informação, e voltamos a fechar as
cabeças. Agora elas têm a informação, então concluímos equivocadamente que a obra está completa.

Aqui, com esta citação, lembramos da educação bancária que foi combatida por Paulo Freire no
clássico Pedagogia do oprimido; a educação em que os educandos são meros depositários de
conhecimento e o educador é o senhor do saber. Infelizmente, isto ainda se repete em muitas escolas
bíblicas e faculdades de teologia.

No capítulo 10, Viola fala do suposto papel revolucionário de Jesus e do suposto “desconhecimento
de Cristo enquanto mestre revolucionário – profeta radical – orador provocativo – polêmico –
iconoclasta – e oponente implacável das autoridades (públicas e privadas) religiosas estabelecidas”.
Viola sugere que nós, seguidores de Jesus, “necessitamos começar tudo de novo... desde o
princípio”. Será? Até mesmo ele, Viola, se valeu da própria tradição para criticá-la. O “começar
tudo de novo” denota que queremos construir outra igreja e não prepará-la para o seu próprio fim,
conscientizá-la de sua transitoriedade.

No último capítulo, intitulado A Bíblia não é um quebra-cabeça, talvez o melhor do livro, Viola
sugere que todo “o problema está na forma como abordamos o Novo Testamento”, porque
supostamente nós, cristãos, não olhamos para o Novo Testamento em sua totalidade. Viola recomenda
que os livros do NT sejam ordenados cronologicamente, e até fornece uma possível ordem
cronológica em que as cartas paulinas foram escritas: (1) Gálatas, (2) 1 Tessalonicenses, (3) 2
Tessalonicenses, (4) 1 Coríntios, (5) 2 Coríntios, (6) Romanos, (7) Colossenses, (8) Filemom,
(9) Efésios, (10) Filipenses, (11) 1 Timóteo, (12) Tito, e (13) 2 Timóteo. Não temos condições de
avaliar se esta ordem cronológica das cartas atribuídas a Paulo é a mais aceita pelos pesquisadores,
mas há uma diferença da comunidade cristã em Gálatas 3,28-29 em que todos são iguais, inclusive
homens e mulheres, por um lado, e a comunidade em 1 Timóteo 3 em que os bispos e os diáconos são
homens. Neste sentido, o próprio Novo Testamento, no primeiro século, já sinalizaria uma
institucionalização das comunidades cristãs.

Acreditamos que este livro de Frank Viola é capaz de provocar os crentes e, principalmente, aqueles
institucionalmente estabelecidos. Realmente, o grande mérito é o questionamento de diversas práticas
das igrejas. Talvez o propósito do livro não tenha muito sentido. O livro foi escrito, segundo o autor,
“para trazer a Igreja de volta às suas raízes originais”, mas será que a igreja cristã possui raízes
originais? Isso parece algo muito mais ideal, projetado no primeiro século, do que real. Eu prefiro
pensar que o propósito do livro é simplesmente questionar as práticas das igrejas. E, o mais incrível,
essa prática não deve ser considerada pecaminosa. Pelo contrário, deveria ser algo recorrente no
meio evangélico.

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Esta resenha escrita por Silas Fiorotti foi publicada na sua página pessoal, em 04/8/2009.
Referência do livro: Viola, F. Pagan christianity: the origins of our modern church practices. [Cristianismo pagão: origens das
práticas de nossa igreja moderna]. Present Testimony Ministry, 2003. [Traduzido e adaptado por Railton de Sousa Guedes].
7. Sobre as semelhanças entre o(s)
cristianismo(s) e outras crenças consideradas
pagãs
Resenha do livro O Cristo dos pagãos de Tom Harpur.*

Diversos argumentos foram levantados, no livro O Cristo dos pagãos: a sabedoria antiga e o
significado espiritual da Bíblia e da história de Jesus, sobre a semelhança entre o cristianismo e
outras crenças consideradas “pagãs”. Os cristãos primitivos supostamente teriam adotado verdades
antigas dessas crenças “pagãs” como os próprios dogmas do cristianismo, mas a igreja cristã
posteriormente repudiou as suas origens. Também foram evocadas as pesquisas de
Godfrey Higgins (1771-1834), Gerald Massey (1828-1907) e Alvin Boyd Kuhn (1880-1963) –que,
até então, desconhecíamos. O autor, Tom Harpur, é colunista do jornal canadense Toronto Star,
acadêmico de Rhodes e ex-pastor anglicano, além de professor de grego e Novo Testamento na
University of Toronto.

O livro é dividido em dez capítulos. No primeiro capítulo, intitulado Descoberta: uma história
bíblica de que eu nunca tinha ouvido falar, o autor defende a ideia de que a igreja cristã cometeu
um “erro fatal” supostamente adotando uma perspectiva literalista da Bíblia: “a Igreja adotou uma
perspectiva literalista, populista, histórica, em relação à verdade sublime. O que havia sido
preservado no âmbar da alegoria, ela representou falsamente como fato consumado” (pp. 16-17). E,
em seguida, o autor defende a ideia da semelhança entre o cristianismo e outras crenças “pagãs” que,
por sua vez, é desprezada por muitos cristãos:

As semelhanças existentes entre as crenças cristãs e as primeiras religiões pagãs sempre eram rapidamente desprezadas no
seminário como “prefigurações” da Boa Nova proclamada pelo Novo Testamento. (p. 19)
Vou documentar claramente que não há nada do que o Jesus dos Evangelhos alguma vez disse ou fez –desde o Sermão da
Montanha até os milagres, desde a fuga de Herodes quando bebê até a própria Ressurreição– que não possa ser mostrado
como tendo se originado milhares de anos antes, nos ritos de mistérios egípcios e em outras liturgias sagradas, como o Livro
dos Mortos egípcio. (p. 24)

No segundo capítulo, intitulado Montando o cenário: mitos não são contos de fadas, o autor destaca
o suposto verdadeiro significado do mito, já que, segundo ele, toda a história de Jesus é um mito ou
uma coleção deles:

(...) as verdades mais profundas sobre a vida, a alma, o sentido pessoal, o nosso lugar no universo, a nossa luta para galgar
níveis superiores de percepção e compreensão, e especialmente o mistério do que chamamos Deus, podem ser explicadas
apenas por meio de uma narrativa (mythos) ou de um ritual dramático. (p. 31)
(...) o divino, o oculto, o inefável, as obras do espírito no coração humano ou no cosmos em geral não podem ser expressos
convenientemente de outra maneira a não ser pelo mito, pela alegoria, por um conjunto de imagens, parábolas e metáforas.
Uma narrativa literal, descritiva, leva inevitavelmente à idolatria ou ao extremo absurdo. (p. 32)

No terceiro capítulo, intitulado O cristianismo antes do cristianismo: como tudo começou, o autor
destaca diversas evidências da semelhança entre o cristianismo e outras crenças. Por exemplo,
segundo o autor, “a encarnação –a presença de Deus ou essência divina no ser humano, todo ser
humano– é o ensinamento essencial de todos os sistemas de crenças em todos os lugares” (p. 48). E
apresenta aquela que supostamente seria a única diferença entre o cristianismo e os mitos antigos: “A
única e decisiva diferença entre os mitos antigos e a religião cristã é que a religião cristã terminou
por concentrar esse conceito universal [da encarnação] em uma pessoa histórica isolada” (p. 50).

No quarto capítulo, intitulado O maior encobrimento de todos os tempos: como uma religião cristã
espiritual tornou-se um cristianismo literalista, o autor defende que, apesar das origens pagãs, no
século IV, o cristianismo virou as costas ao paganismo. No quinto capítulo, intitulado Já estava tudo
escrito antes... no Egito, o autor defende que a idéia do monoteísmo já estava presente no Egito. E
mesmo os textos dos evangelhos teriam alguma correspondência com textos egípcios anteriores:

[Gerald] Massey descobriu aproximadamente duzentos exemplos de correspondência imediata entre o material mítico egípcio e
os textos alegadamente históricos sobre Jesus. Na realidade, Hórus foi o arquétipo do Cristo pagão. (p. 94)
(...) o cristianismo na sua ortodoxia final foi simplesmente uma reedição de um conhecimento antigo em um formato literalizado
e altamente exclusivista. (p. 94)

No sexto capítulo, intitulado Convencendo os céticos, o autor continua apresentando as semelhanças


entre as palavras e milagres de Hórus e as do Jesus dos evangelhos:

(...) os milagres atribuídos a Jesus nos Evangelhos haviam sido todos realizados anteriormente pelo deus pré-cristão
Iusa/Hórus, o curandeiro divino que era obviamente não histórico. (p. 108)
(...) Jesus não foi a única pessoa divina que ofereceu o seu corpo e o seu sangue simbolicamente para o alimento dos mortais.
[Gerald] Massey afirma que Hórus “também deu a sua carne como alimento e o seu sangue como bebida”. (p. 118)

No sétimo capítulo, intitulado A Bíblia – história ou mito?: o fim do fundamentalismo, o autor


defende que os relatos bíblicos são totalmente alegóricos e míticos:

(...) o que precisamos hoje em dia não é uma nova racionalização e demitologização dos relatos bíblicos, mas, sim, de uma
remitologização deles no sentido de ver a sua importância eterna como nunca vimos antes. A necessidade não é de desvestir o
mito, conforme cheguei a pensar, mas de usá-lo para penetrar no cerne espiritual do que ele sempre esteve tentando nos dizer.
(p. 143)

No oitavo capítulo, intitulado Olhando os evangelhos com outros olhos: mito sublime não é
biografia, o autor defende que os evangelhos não dizem respeito a um Jesus histórico, mas somente
ao Cristo interior presente em cada um de nós.

[Os evangelhos] Eram coleções de aforismos egípcios, hebraicos e gnósticos, e portanto não podem ser interpretados por si
mesmos como prova de que o Jesus dos Evangelhos tenha vivido como um homem ou mestre. (p. 148)
(...) a narrativa acerca de Jesus é a narrativa sobre cada um de nós em forma alegórica. Como animais dotados de espírito,
somos crucificados na cruz da matéria; somos os portadores do Cristo interior e um dia ressuscitaremos para um destino
glorioso ao lado de Deus. Toda alma é crucificada na cruz quando vive no corpo físico, de acordo com a antiga sabedoria
esotérica. (p. 155)

No nono capítulo, intitulado Existiu um Jesus na história?, o autor defende que Jesus era imaterial
no primeiro século e tornou-se uma pessoa só depois de vários séculos. E defende que

(...) um cristianismo que incorpore e proclame um Khristós espiritual, ou Jesus Cristo, ao alcance de todos os corações
guardará outra vez o dinamismo intelectual e moral vivenciado inicialmente por São Paulo e pelos outros primeiros cristãos. (p.
184)

No último capítulo, intitulado O único caminho a seguir: um cristianismo cósmico, o autor defende
que uma compreensão mais espiritual do Cristo e do cristianismo teria livrado a humanidade de
perseguições, guerras e outras atrocidades cometidas pela Igreja.

Não acreditamos numa suposta pureza do cristianismo primitivo defendida por alguns teólogos
(Viola, 2003). Por isso, reconhecemos a importância de mostrar as semelhanças entre o cristianismo
e outras crenças consideradas pagãs. Mas buscar uma síntese entre o cristianismo e outras crenças –
se é que isto seja possível– não é, a nosso ver, o melhor caminho para a tolerância, do que o
reconhecimento das diferenças. Na busca afoita por esta síntese, o autor esqueceu que a fé cristã não
restringe-se à ortodoxia e sua leitura literalista.

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Esta resenha escrita por Silas Fiorotti foi publicada na revista Novos Diálogos, Rio de Janeiro, em 27/6/2011.
Referência do livro: Harpur, Tom. O Cristo dos pagãos: a sabedoria antiga e o significado espiritual da Bíblia e da história de
Jesus. São Paulo: Pensamento-Cultrix, 2008, 240pp.
8. A nova esquerda com a velha ortodoxia
Resenha do livro São Paulo de Alain Badiou.*

Alain Badiou é um intelectual francês com uma trajetória marcada pelo ativismo político –participou,
entre outras coisas, dos movimentos de 1968– e que busca a renovação do pensamento de esquerda.
Temos algumas obras de Badiou traduzidas ao português que foram publicadas no Brasil: Sobre o
conceito de modelo, Manifesto pela filosofia, Para uma nova teoria do sujeito, Ética: um ensaio
sobre a consciência do mal, O ser e o evento, Deleuze: o clamor do ser, Pequeno manual de
inestética, O século, e a obra em questão: São Paulo: a fundação do universalismo. O interesse de
Badiou, neste último livro, publicado originalmente em 1997, obviamente recai sobre o apóstolo
Paulo. Por que um ateu da chamada nova esquerda está interessado no apóstolo Paulo e utiliza
conceitos com teor teológico? A resposta de Badiou não deixa de ser provocante: “prefiro ser um
ateu revolucionário escondido sob uma língua religiosa que um ‘democrata’ ocidental perseguidor de
muçulmanos(as) e fantasiado de feminista laica” (p. 134, nota 11). Mas por que a insistência em se
afirmar como um ateu que não crê na mensagem de Paulo? Algo totalmente desnecessário diante dos
propósitos da obra.

Há um “retorno a Paulo” no pensamento da nova esquerda que, ao lado de Badiou, possui


representantes como Slavoj Žižek e Giorgio Agamben. Possivelmente a inspiração tenha vindo de
filósofos como Martin Heidegger e Walter Benjamin que também escreveram sobre este apóstolo.
Badiou está em busca de uma nova figura militante e, para ele, Paulo supostamente seria “aquele que
pratica e enuncia atos constantes característicos do que se pode denominar a figura militante” (p. 8).

No primeiro capítulo, intitulado Contemporaneidade de Paulo, Badiou apresenta a questão que


norteia a obra: “quais as condições de uma singularidade universal?” (p. 20). Ele busca responder
esta questão e ao mesmo tempo romper com o que chama de homogeneidade monetária,
universalidade abstrata do capital, reivindicação identitária e particularidade dos interesses de um
subconjunto. Sendo que Paulo supostamente queria tirar o Evangelho de uma reivindicação
comunitária ou particularista ou de uma determinação pelas generalidades disponíveis da época; por
isso, tratou-se de fazer valer uma verdade como singularidade universal que segue quatro exigências:
(1) “o sujeito cristão não preexiste ao acontecimento que ele declara”, (2) “a verdade é inteiramente
subjetiva”, (3) “a fidelidade à declaração é crucial, pois a verdade é um processo e não uma
iluminação”, e (4) “uma verdade é em si mesma indiferente ao estado da situação, por exemplo, ao
Estado romano” (p. 22).

No segundo capítulo, intitulado Quem é Paulo?, Badiou afirma que Paulo lutou contra as divisões
internas nas comunidades ou núcleos cristãos e considerou todos os convertidos, independentemente
da origem ou forma de adesão, como fiéis em pleno exercício. Segundo Badiou, o que era distintivo
para Paulo é a participação do fiel no processo da verdade sem intermediário e de forma subjetiva.

Badiou, no capítulo Textos e contextos, faz algumas observações a respeito da chamada


singularidade dos textos de Paulo e dos motivos pelos quais eles foram sacralizados. Depois, no
capítulo Teoria dos discursos, Badiou considera que o discurso cristão é absolutamente novo diante
dos discursos judaico e grego, porque Deus enviou seu filho como uma intervenção na história que
“intima-nos a não confiar mais em nenhum discurso que pleiteie a forma da dominação” (p. 54), seja
ela profética ou filosófica. Paulo supostamente propôs uma espécie de antifilosofia com “uma língua
em que a loucura, escândalo e fraqueza suplantam a razão do conhecimento, a ordem e o poder” (p.
58).

Já no capítulo A divisão do Sujeito, Badiou defende que há uma fórmula proposta por Paulo como um
destino universal dos novos sujeitos presente na Epístola aos Romanos: “visto que já não estais sob
a lei, mas sob a graça” (Rm 6.14b – TEB). O chamado acontecimento-Cristo, especificamente a sua
ressurreição, provocou uma ruptura que constitui estes novos sujeitos na forma dividida do “não...
mas” que, por sua vez, porta o universal.

Badiou, no capítulo A antidialética da morte e da ressurreição, defende que, para Paulo, “existe
uma completa disjunção entre a morte do Cristo e sua ressurreição” (p. 83); enquanto a primeira
estaria relacionada com a reconciliação, a segunda estaria relacionada com a salvação e não surgiu
por negação da morte.

Para Badiou, um dos nomes da morte é Lei. Por isso, no capítulo intitulado Paulo contra a lei, ele
defende que dois enunciados, também presentes na Epístola aos Romanos, concentram o ensinamento
de Paulo: (1) “O que nos salva é a fé, e não as obras” e (2) “Não estamos mais sob a lei, mas sob a
graça” (p. 89). Estes dois enunciados conteriam quatro conceitos para dispor as escolhas
fundamentais dos sujeitos: (1) a fé, (2) a obra, (3) a graça, e (4) a lei. A chamada via subjetiva da
carne e da morte organizaria a lei e as obras e a chamada via subjetiva do espírito e da vida
organizaria a graça e a fé. Ou seja, Badiou encontrou no pensamento de Paulo uma suposta teoria do
inconsciente subjetivo, estruturada pela oposição vida/morte.

Badiou ordenou em dois teoremas aquilo que supostamente teria valor materialista, o chamado
materialismo da graça: (1) “O Um [Deus] somente existe para todos e ele não pode proceder da lei,
mas do acontecimento”, e (2) “O acontecimento isolado, como contingência ilegal, faz advir uma
multiplicidade excessiva sobre si mesma e, portanto, a possibilidade de ultrapassar a finitude” (p.
96). Badiou ainda apresenta outros seis teoremas: (3) “A lei é o que constitui o sujeito como
impotência do pensamento”, (4) “Não há letra da salvação, ou salvação literal, de um procedimento
de verdade” (p. 98), (5) “Um sujeito transforma em lei não literal o destino universal da verdade
cujo processo ele sustenta” (p. 102), (6) “O que dá potência a uma verdade e determinada a
fidelidade subjetiva é o destino a todos da relação consigo mesmo induzida pelo acontecimento, e
não essa própria relação” (p. 105), (7) “O processo subjetivo de uma verdade é uma única e mesma
coisa que o amor dessa verdade” (p. 107), e (8) “Somente há singularidade se houver universal.
Senão, fora da verdade, somente há particular” (p. 113). Ou seja, para Badiou, Paulo acreditava que
os fiéis se subjetivam por uma declaração pública (fé), se universalizam por uma fidelidade (amor) e
com esta fidelidade identificam suas consistências subjetivas no tempo (esperança), as diferenças
seriam indiferentes e a universalidade do verdadeiro as deixariam de lado.

No capítulo Universalidade e travessia das diferenças, Badiou afirma que Paulo usou as chamadas
diferenças particularizantes para, através delas e nelas, passar o processo de abandono subjetivo
delas. Nas palavras de Badiou: “passar o igualitarismo universalizante por meio da reversibilidade
de uma regra desigualitária” (p. 122). Segundo Badiou, um exemplo dessa reversibilidade é
encontrado na Primeira Epístola aos Coríntios: “No entanto, a mulher é inseparável do homem e o
homem da mulher, diante do Senhor. Pois se a mulher foi tirada do homem [a regra desigualitária], o
homem nasce da mulher [a reversibilidade] e tudo vem de Deus [o igualitarismo]” (1Co 11.11-12 –
TEB).

Admitimos a importância de outras leituras bíblicas e, de um modo geral, dos desafios que elas
representam para os cristãos. Só não sabemos até que ponto Badiou ousou e desafiou as
compreensões teológicas mais tradicionais. Será que Badiou não está seguindo somente uma
formulação introspectiva de compreender Paulo? Será que ele não está perpetuando somente uma
construção teológica de Paulo como defensor da justificação pela fé versus obras e da graça versus
lei? Neste sentido, acreditamos que Badiou não enfatizou o sentido metafórico que Paulo dá, até
mesmo em oposição à ideologia imperial romana, para alguns termos religiosos (Horsley, 2004).
Além disso, consideramos que a indiferença ao estado da situação, incluindo as injustiças que são
cometidas, está longe de ser o melhor caminho para os que buscam a verdade do Evangelho –mesmo
na impossibilidade de alcançá-la plenamente–; ainda mais para os que vivenciam a fé como uma
experiência comunitária e compreendem a mensagem do Evangelho como libertação dos cativos.

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Esta resenha escrita por Silas Fiorotti foi publicada na revista Novos Diálogos, Rio de Janeiro, em 17/8/2012, e na revista Práxis
Evangélica, Londrina, n. 20 – 2012.
Referência do livro: Badiou, Alain. São Paulo: a fundação do universalismo. Tradução de Wanda Caldeira Brant e posfácio de
Vladimir Safatle. São Paulo: Boitempo, 2009, 144pp.
9. O milagreiro e pretenso messias de Aslan
Resenha do livro Zelota de Reza Aslan.*

Mesmo tratando-se de um best-seller do New York Times e da Amazon, que foi lançado com algum
alarde aqui no Brasil, o livro é bom. Não deixa de ser instigante a polêmica gerada nos EUA pelo
fato do autor de um livro sobre Jesus ser muçulmano, mas acreditamos que isso foi enfatizado como
estratégia publicitária. Reza Aslan é um pesquisador de origem iraniana que tem um bom
conhecimento sobre o Novo Testamento e apresenta um grande repertório de referências
bibliográficas. Como em outras traduções, não encontramos as referências das edições brasileiras de
algumas obras citadas. No final do livro, mais de quarenta páginas são dedicadas às Notas,
encontramos um belo material onde o autor apresenta as fontes das informações de cada um dos
capítulos de forma unificada e sem numeração, um recurso que deixou o texto mais enxuto e não faz o
leitor ir todo o tempo às notas.

O livro Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré é dividido em três partes, além do prefácio e da
introdução. Logo na introdução, Aslan já afirma que o livro trata-se de uma tentativa de recuperar o
Jesus histórico. Segundo o autor, nos evangelhos canônicos, Jesus “seria um homem de contradições
profundas” e, por isso, difícil de enquadrar em qualquer movimento como: o dos essênios, o dos
zelotas ou o dos sicários. Mas o Jesus que, segundo o autor, emerge da história é: “um revolucionário
fervoroso arrebatado, como todos os judeus da época o foram, pela agitação política e religiosa da
Palestina do século I” (p. 21). Neste sentido, Jesus teria sido um judeu zeloso comprometido com a
libertação de Israel do domínio romano, um zelota, mas não necessariamente um partidário dos
zelotas.

Na primeira parte do livro, Aslan tenta reconstituir como se deu o domínio romano sobre os judeus,
domínio que teria começado no ano 63 a.C., mas somente no ano 6 d.C. que a Judeia se tornaria
oficialmente província romana. O título do prólogo da primeira parte, Um tipo diferente de
sacrifício, sugere que este domínio se deu através do controle do Templo de Jerusalém, o que teria
levado ao assassinato ou “sacrifício” do sumo sacerdote Jônatas, no ano de 56 d.C., no Pátio dos
Gentios e à revolta judaica, no ano de 66 d.C. Segundo Aslan, havia um descontentamento entre os
judeus com a nobreza sacerdotal, os avarentos “amantes de luxo”, que insultavam Deus, pois
supostamente eram responsáveis pela escravidão dos judeus e obrigados a fazer sacrifícios em nome
do imperador romano no próprio Templo.

Na segunda parte do livro, Aslan levanta algumas evidências que supostamente colocam Jesus de
Nazaré como um messias com “zelo revolucionário”, que veio libertar Israel da dominação romana.
Através de episódios que estão presentes nos relatos de pelo menos três evangelhos canônicos –
como: Entrada triunfal em Jerusalém, Os vendedores expulsos do Templo, O imposto devido a
César, Prisão de Jesus, A crucifixão, Conspiração contra Jesus, Jesus perante o Sinédrio, entre
outros–, o autor conclui que Jesus de Nazaré “foi crucificado por Roma porque suas aspirações
messiânicas ameaçavam a ocupação da Palestina e sua exasperada devoção colocava em perigo as
autoridades do Templo” (p. 103). Além disso, a escolha de doze apóstolos representaria “a
restauração das doze tribos de Israel, há muito destruídas e espalhadas” (p. 122). Já os milagres
realizados por Jesus supostamente invalidavam o objetivo do sacerdócio. Por isso, Jesus de Nazaré
teria sido acusado, tanto pelas autoridades romanas como pelas judaicas, pelos crimes de sedição, de
blasfêmia, de assumir ambições régias, de rejeitar a lei de Moisés, de recusar-se a pagar o tributo, e
de ameaçar o Templo. Aslan conclui que Jesus, mesmo não cumprindo as exigências esperadas nos
distintos paradigmas messiânicos, foi bem-sucedido em suas próprias aspirações messiânicas como
outros pretensos messias, mas sem ser esquecido.

Na terceira parte do livro, Aslan defende que a disputa entre duas interpretações sobre Jesus de
Nazaré moldou o cristianismo como o conhecemos hoje. De um lado estaria o Jesus supostamente
defendido por Tiago, o “zelota revolucionário” que não conseguiu libertar os judeus da dominação
romana; do outro lado estaria o Jesus supostamente defendido pelo apóstolo Paulo, o Cristo,
“semideus romanizado” e filho literal de Deus, que seria totalmente desinteressado de qualquer
matéria terrena. No final do primeiro século, após a destruição de Jerusalém no ano de 70 d.C., este
Jesus defendido pelo apóstolo Paulo teria suprimido completamente o Jesus defendido por Tiago, o
Justo, o irmão de Jesus e “líder indiscutível do movimento que Jesus tinha deixado” (p. 217); sendo
que este Jesus, supostamente defendido por Tiago, seria o próprio Jesus histórico. Para Aslan, “a
constante diminuição de Tiago no cristianismo primitivo, (...) tem menos a ver com sua identidade
como irmão de Jesus ou sua relação com Pedro, e mais com suas crenças e sua oposição a Paulo” (p.
221).

O autor, Reza Aslan, enuncia um pouco da diversidade de interpretações que sempre esteve presente
no cristianismo. A grande contribuição do livro, agora para um público maior, vai no sentido de
desconstruir o chamado Jesus despolitizado, que para muitos cristãos ainda é o único Jesus possível.
No entanto, suspeitamos que a culpa desta despolitização não deve ser atribuída totalmente a Paulo,
pois uma leitura mais atenta dos escritos atribuídos a este apóstolo pode mostrar o sentido
metafórico, dado por ele, a alguns termos religiosos e títulos de Jesus, até mesmo em oposição à
ideologia imperial romana (Horsley, 2004a). E também, quando Aslan enfatiza somente a semelhança
de Jesus de Nazaré com outros pretensos messias e com outros milagreiros e exorcistas, deixando de
lado os contextos literários em que estão inseridos os milagres e os exorcismos de Jesus nos
evangelhos, ele deixa de notar a dimensão política na própria interpretação da tradição dos
evangelhos (Crossan, 1994; Horsley, 2004b).
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Esta resenha escrita por Silas Fiorotti foi publicada na revista Novos Diálogos, Rio de Janeiro, em 23/2/2014.
Referência do livro: Aslan, Reza. Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré. Tradução de Marlene Suano. Rio de Janeiro: Zahar,
2013, 304pp.
10. Toda tentativa de resgatar algum conteúdo
subversivo da mensagem de Jesus é bem-vinda
Resenha do livro Em 6 passos o que faria Jesus de Paulo Brabo.*

Paulo Brabo é um provocador contumaz que destila belas críticas à igreja como instituição, ele se
auto-intitula, no subtítulo do livro A bacia das almas, como “um ex-dependente de igreja” – este
livro é composto de textos, escritos entre 2004 e 2009, que estão presentes em sua página homônima.

O livro em questão, intitulado Em 6 passos o que faria Jesus: novíssimo manual de conduta do
seguidor de Jesus, não empolga pelo título –uma paródia com o título do famoso romance de Charles
Monroe Sheldon (1857-1946), de 1896– Em seus passos que faria Jesus? [título original: In his
steps]. Muito menos pelo fato de ter ganho, assim como o livro A bacia das almas, um prêmio da
Associação de Editores Cristãos, em 2010. Mas sim pela denúncia de que nós cristãos “aprendemos
a sensatamente desbastar todo o conteúdo subversivo da mensagem de Jesus” (p. 7).

Na tentativa de resgatar algum conteúdo subversivo da mensagem de Jesus, Paulo Brabo oferece seis
passos para os seguidores de Jesus alcançarem “rejeição imediata na terra e consagração a médio
prazo no céu” (p. 7). Acreditamos que não se trata de, numa atitude demasiadamente pretensiosa,
tentar resgatar uma suposta essência do cristianismo, mas sim algum conteúdo subversivo que
invariavelmente tentamos encobrir. Os passos são: (1) Viva a intolerância contra os religiosos, (2)
Faça o que os outros não esperam, (3) Desfrute sem possuir, (4) Viva inteiramente inserido no seu
mundo, (5) Permaneça disponível para o momento, e (6) Sensualize a sua espiritualidade.

Segundo Brabo, Jesus perdia a paciência e a compostura com os religiosos “que afirmavam terem o
monopólio de acesso ao Verdadeiro Deus” (p. 16) e, ao mesmo tempo, tolerava os pagãos. Brabo
destaca a “absoluta imprevisibilidade” de Jesus, por isso os cristãos supostamente devem ser
desbocados, independentes, provocadores, desarmantes, inesperados, incômodos e inclassificáveis.
O paradoxo de desfrutar sem possuir é necessário porque, segundo Brabo, Jesus defendia que a única
riqueza é a do espírito. Os cristãos precisam viver inteiramente inseridos no mundo porque, segundo
Brabo, o caminho de Jesus “é o da inclusão, da presença, do abraço irrefletido e incondicional do
mundo” (p. 40). Permanecer disponível para o momento porque Jesus supostamente fazia “aquilo que
o momento exigia, e não aquilo que queria ou achava que devia fazer” (p. 51). E, finalmente,
sensualizar a espiritualidade; ou seja, “procurar a espiritualidade no mundo sensorial, no mundo real,
o mundo da experiência e dos sentidos” (p. 57).

O romance de Sheldon não empolga tanto pelo esforço daqueles crentes, do final do século XIX, em
responderem a pergunta: Em nossos passos que faria Jesus?; quanto nos momentos em que os
degradados e excluídos, de Raymond e Chicago, interpelam eles e, especialmente, o reverendo Henry
Maxwell. E, diante deste romance, uma pergunta se impõe: será que estamos nos deixando interpelar
pelos degradados e excluídos da nossa sociedade? Mas a abordagem de Sheldon ainda é muito
previsível, mostra uma mudança que parte da liderança para guiar os crentes, mostra um cristianismo
que se renova internamente mas ainda aponta o inimigo ou demônio exterior, e uma cristandade que
cede à tentação de crer que, de alguma forma, mudará a sociedade através de seus próprios esforços.

Em que medida o livro do Brabo distancia-se do romance de Sheldon? Acreditamos que o livro do
Brabo se distancia do romance de Sheldon em pelo menos três passos. Os crentes do romance de
Sheldon supostamente não foram intolerantes com os religiosos, nem imprevisíveis (desbocados,
independentes, provocadores, desarmantes, inesperados, incômodos e inclassificáveis), nem viveram
totalmente inseridos no mundo. Os outros três passos foram atingidos, ainda que parcial e
timidamente, pelos crentes do romance.

Talvez a maior contribuição do livro do Brabo esteja no último capítulo, intitulado Além da
memória, em que ele afirma que Jesus demolia as certezas e não tinha ou dava respostas prontas. O
passo mais importante –seria este um sétimo passo?–, que os crentes do romance de Sheldon
supostamente nem cogitaram dar, é o passo de assumirmos nossa própria precariedade para, nas
palavras do Brabo, sermos “céticos generosos, inteiramente bondosos para com os outros e
inteiramente céticos com relação à sua [ou nossa] própria bondade” (p. 67).

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Esta resenha escrita por Silas Fiorotti foi publicada na revista Novos Diálogos, Rio de Janeiro, em 01/3/2012.
Referência do livro: Brabo, Paulo. Em 6 passos o que faria Jesus: novíssimo manual de conduta do seguidor de Jesus. São Paulo:
Garimpo, 2009, 80pp.
11. Uma missão cristã como transformação da
realidade a partir das vítimas
Resenha do livro Missão e educação teológica.*

Diante da atual falta de consenso sobre a missão do cristianismo e sua relação com a educação
teológica, este livro não deixa de ser pertinente ao levantar esta discussão. Os três autores –Néstor
Míguez, Jung Mo Sung e Lauri Wirth– são teólogos latino-americanos que pensam a missão do
cristianismo a partir dos desafios como a pobreza, a injustiça e a opressão, e defendem uma
contextualização desta missão a partir de uma opção pela vida dos seres humanos mais vulneráveis.
Sendo que, para estes autores, toda a educação teológica pressupõe uma ideia de missão.

O primeiro texto, O universalismo missionário dos cristãos e o colonialismo: uma visão a partir
da história do cristianismo, é do teólogo brasileiro Lauri Wirth, pastor luterano e professor da
Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Para Wirth, mesmo que, a partir do século IV, os
interesses do império, e posteriormente da chamada cristandade, tenham fornecido “as pautas da
reflexão teológica” e tenham delimitado “o horizonte de plausibilidade da vida comunitária”, há uma
tradição profética que sempre esteve e está presente no cristianismo que precisa ser valorizada.
Diante do cristianismo civilizador que herdamos, Wirth defende uma missão pautada no respeito pelo
contexto vivencial e na sensibilidade pelas demandas e saberes locais, com os evangelizados como
sujeitos de seu próprio processo de evangelização.

O segundo texto, Bíblia e missão na América latina, é do teólogo argentino Néstor Míguez, pastor
metodista e professor do Instituto Superior Evangélico de Estudos Teológicos (ISEDET). Míguez
propõe uma constante revisão das formas de leitura dos textos bíblicos, uma leitura de toda a Bíblia
e não apenas uma seleção dos “textos missionários”, que relacione os contextos históricos com os
chamados mandatos escriturísticos; uma revisão “em função dos desafios, chamados, vocações e
necessidades do povo no meio do qual e pelo qual há proclamação” (p. 90).

Os outros dois textos são do teólogo coreano Jung Mo Sung, leigo católico e professor da
Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). No texto O Espírito e a educação teológica, Sung
apresenta uma reflexão sobre o Espírito que chama e anima as comunidades cristãs e a educação
teológica, e propõe uma educação teológica mais compatível com a formação espiritual que “levará
pessoas a valorizarem mais a experiência de fé e sabedoria das pessoas simples no estudo, mas
profundos na vida espiritual e, com isso, a dialogarem mais com elas” (p. 125). E, no texto Educação
teológica e a missão, Sung apresenta uma reflexão sobre a relação entre a educação teológica e a
missão. Neste último ele apresenta instigantes reflexões sobre as noções de verdade, definições de
teologia, linguagens religiosas, experiências espirituais e conflitos presentes na educação teológica.
Destacamos o seguinte trecho:

Jesus não foi um educador, no sentido moderno, que veio para combater a ignorância ou o erro para levar o povo à civilização
baseada na técnica ou no conhecimento científico, o projeto civilizatório do Ocidente que justificou assim o projeto de
colonização e exploração do resto do mundo. Jesus veio para denunciar e combater a mentira que predomina no mundo e
justifica, até sacraliza, as injustiças que matam. A mentira ensina um falso caminho que leva à morte. A verdade de Jesus leva
ao caminho que leva à vida em abundância para todos. (p. 160)

É importante valorizar este tipo de teologia, apresentada nos textos deste livro, que relaciona a
missão com a educação teológica e, de alguma forma, valoriza a dimensão emocional da experiência
da fé; uma teologia que é feita com o coração, com sensibilidade, que se comove e está atenta “ao
grito dos excluídos, ao clamor dos escravizados, ao ferido que está ao lado do caminho” (p. 105).
Uma teologia que não é mera sistematização de doutrinas ou conjunto de verdades racionais e
lógicas, nem a educação teológica como mero ensino destas verdades.

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Esta resenha escrita por Silas Fiorotti foi publicada na revista Novos Diálogos, Rio de Janeiro, em 23/7/2012.
Referência do livro: Míguez, Néstor; Sung, Jung Mo; Wirth, Lauri. Missão e educação teológica. São Paulo: Aste, 2011, 185pp.
12. O atrevimento de papear com os
evangelhos
Resenha do livro Um Jesus popular de Néstor Míguez.*

Estamos diante de uma teologia muito atrevida. O autor se propôs a estudar as narrativas sobre Jesus
utilizando o mesmo estilo narrativo dos evangelhos. O autor coloca-se na mente dos autores bíblicos
e resgata os autores e as autoras não nomeadas, que aparecem anônimas, e até dialoga com elas no
texto. O resultado final é um texto extremamente prazeroso de se ler.

Néstor Míguez é um teólogo argentino, além disso é pastor metodista e professor do Instituto
Superior Evangélico de Estudos Teológicos (ISEDET). Míguez é co-autor dos livros Missão e
educação teológica e Para além do espírito do império: novas perspectivas em política e religião.
Nos seus textos, Míguez propõe uma constante revisão das formas de leitura dos textos bíblicos, uma
revisão “em função dos desafios, chamados, vocações e necessidades do povo no meio do qual e
pelo qual há proclamação” (Míguez, Sung e Wirth, 2011, p. 90).

No livro em questão, Um Jesus popular: para uma cristologia narrativa, Míguez parte da tese de
que os relatos bíblicos trazem em suas origens a memória e transmissão popular, porque em suas
leituras nas comunidades ou nas experiências sempre é possível incorporá-los com os próprios
relatos de vida das pessoas comuns. Por isso, não faria sentido um estudo dos relatos bíblicos com
aproximações doutrinais que reduzem a própria riqueza destes relatos. Não trata-se de negar os
condicionamentos culturais de qualquer estudo ou interpretação, nem de apresentar a melhor ou a
verdadeira interpretação, mas sim de buscar uma alternativa em que a interação dos relatos bíblicos
com os relatos propostos faça sentido.

Os relatos propostos são apresentados em seis partes. Logo no início da primeira parte, intitulada O
livro da origem de Jesus, o Messias, nosso amigo Néstor, como ele mesmo se coloca no texto, já nos
surpreende com o relato de Salomé, uma parteira de Belém. Néstor se coloca no contexto em que os
evangelhos foram escritos para ler os papiros com as anotações que não entraram nos evangelhos; ele
se transporta no tempo e no espaço, e, além da onisciência, dialoga com as “autoras”, aquelas
pessoas que entraram em contato com Jesus, principalmente as pessoas da chamada “gentalha
marginal” (p. 40).

Na segunda parte, intitulada O mistério do ministério, Néstor dialoga com Galiel, um ancião de
Nazaré; e passa pelo deserto juntamente com Jesus e suas maravilhosas reflexões. Na terceira parte,
intitulada E sua fama se propagava, Néstor passa pela aldeia de Sijar na ocasião do encontro de
Jesus com a samaritana; presencia dois banquetes opostos, o macabro banquete de Herodes Antipas e
o maravilhoso banquete de Jesus na margem do lago da Galileia; dialoga com o rico que recebeu uma
resposta nada cortês de Jesus; dialoga com Lucas que comenta sobre a história de Zaqueu; e dialoga
com Bartolomeu, o ex-cego.

Na quarta parte, intitulada O desenlace, impressiona a forma como Néstor mostra que a peregrinação
a Jerusalém, por conta da Páscoa, podia ter significados distintos para os judeus do primeiro século.
Um ancião da Galileia, que aclamou Jesus entrando em Jerusalém sobre um burrinho, diz:

Na verdade não tenho nenhuma simpatia por esses sacerdotes. São ladrões e exploradores. Mas todos querem estar bem com o
Senhor. Queremos celebrar a Páscoa, pedir que o Senhor liberte nosso povo, como na época de Moisés. (p. 124)

E Néstor propõe uma narrativa sobre como os passos de Jesus em Jerusalém, seus protestos e suas
palavras duras, recebem interpretações discordantes:

Para alguns, especialmente os que vieram da distante diáspora, trata-se de um louco que ameaça desbaratar-lhes a celebração
à qual tanto lhes custou chegar. Em contraposição, para o aldeões chegados da Galileia e arredores, é a manifestação do que
já esperavam no fundo de seus corações: um embate messiânico, o princípio de uma gestão libertadora, a restauração do povo
de Israel e do Israel do povo. (p. 141)

Depois encontramos o testemunho de Rode, uma serviçal, que presenciou a última ceia. Na quinta
parte, intitulada Aquela infausta sexta-feira, encontramos o testemunho de outro seguidor de Jesus,
seu nome é Malco, o guarda que teve a orelha decepada pela espada de Pedro e em seguida foi
curado por Jesus. Encontramos também o surpreendente testemunho de Ana, a viúva da oferta de duas
moedinhas fala sobre Jesus, um ano após a crucificação. Outro testemunho é o de Menahem, um
jovem camponês da Galileia que era amigo de Dimas; Menahem fala sobre Jesus:

(...) criticavam [Jesus] porque não guardava as normas de pureza. Isso especialmente os que querem ficar bem com os escribas
da cidade. Contudo, estes também não servem. São uns falsos, não sabem o que é a vida dos pobres. Falam de leis que ninguém
pode cumprir. Nisso Jesus era diferente, ele conhecia as coisas mais simples, tinha sido criado como nós. (p. 181)

Nesta parte, ainda encontramos os relatos de Esra, filho de José de Arimateia; de Barsabás, pescador
de Magdala; e de Simão, o Negro de Cirene; são aquelas pessoas mais simples que se aproximaram
de Jesus até mesmo no momento mais difícil, que “são escolhidos por Deus para envergonhar os
fortes, como disse Paulo” (p. 200).

Na sexta e última parte, intitulada A ressurreição, há um diálogo entre Maria de Magdala, a primeira
a ver Jesus ressuscitado, e o discípulo amado. Néstor ainda entrevista Abner, um viúvo natural de
Emaús; e presencia estupefato a aparição de Jesus aos apóstolos. E conclui dizendo:

(...) quem entra em contato com Jesus deixa de ser qualquer um: é uma semente de esperança, uma testemunha do mistério, uma
ferramenta da justiça, uma nova criação. (p. 238)

O que dizer após a leitura deste livro? Pareceu-nos que Néstor Míguez está levando a sério a
proposta do querido frei Carlos Mesters que, por sua vez, se deu conta de que invariavelmente, ou
“quando a vida aperta” como ele diria, os cristãos esquecem das regras exegéticas e fazem
interpretações próprias dos textos bíblicos. Isso supostamente acontece porque, como diria o frei
Carlos, não basta descobrir o sentido das palavras de Deus, “estas palavras querem alguma coisa de
nós. Querem iniciar uma conversa. Querem retomar uma conversa interrompida. Querem imprimir um
sentido à vida” (Mesters, 1974, p. 232). Querido Néstor, você bateu um belo papo com os
evangelhos.

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Esta resenha escrita por Silas Fiorotti foi publicada na revista Novos Diálogos, Rio de Janeiro, em 18/6/2014.
Referência do livro: Míguez, Néstor O. Um Jesus popular. Para uma cristologia narrativa. São Paulo: Paulus, 2013, 248pp.
13. Textos bíblicos que deformam qualquer
doutrina
Resenha do livro O que é apocalipse de Paulo Nogueira.*

A palavra apocalipse traz diversas imagens à nossa mente – a pintura Sobre O Juízo Final de
Hieronymus Bosch, que está na capa do livro, é bem sugestiva. Sabemos que é “uma palavra boa
para definir o sentimento que temos em relação ao nosso tempo” (p. 7) e que, este sentimento, é muito
explorado pelos filmes hollywoodianos. Entretanto, os apocalipses “não se referem apenas ao final
do mundo e às catástrofes que o antecedem, mas propõem uma nova compreensão do divino e da
espiritualidade” (p. 9). Por isso recomendamos a leitura deste livro.

O autor, o teólogo Paulo Nogueira, é docente e pesquisador do Programa de Pós-graduação em


Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Concentra suas pesquisas
nos seguintes temas: História de Israel e do Cristianismo Primitivo, Literatura do Cristianismo
Primitivo, Apocalíptica Judaica e Cristã-Primitiva, e Movimento de Jesus. Organizou o livro
Religião de visionários: apocalíptica e misticismo no cristianismo primitivo. É um dos editores da
página A Bíblia sob três olhares que deu origem ao livro homônimo lançado recentemente. E é
membro da comissão editorial da Oracula - Revista de Estudos de Apocalíptica, Misticismo e
Fenômenos Visionários.

O livro O que é apocalipse está dividido em sete capítulos. No primeiro capítulo, intitulado O
mundo dos apocalipses, o autor esclarece que existiam escritos apocalípticos ou escritos de
revelação há pelo menos duzentos anos antes da redação do Apocalipse, datado em torno de 90 d.C.,
escrito pelo profeta João de Patmos. Sendo que o “mundo dos profetas apocalípticos é o judaísmo
que passa por um processo de helenização” (p. 16), marcado pelo pessimismo e uma estrutura
dualista. O autor adverte que é uma simplificação entender estes apocalipses como “textos que falam
das coisas que acontecerão no final dos tempos” (p. 20). Para ele, estes textos “apresentam uma
forma de compreender o mundo na tensão ampla entre criação e final” (p. 20), são frutos do
pensamento mítico, essencialmente narrativos e jamais formam um conjunto doutrinário.
No segundo capítulo, As origens, o autor apresenta o Mito dos Vigilantes que é uma recriação do
capítulo 6 de Gênesis, e está contido no livro de 1º Enoque – coleção de diferentes apocalipses, que
datam entre o 3º e 2º séculos a.C., atribuídos a Enoque. E, para o autor, este texto apresenta “uma
teologia determinista na qual as ações humanas têm um poder mínimo, limitando-se a protestar,
talvez” (p. 29). Assim como “a ambigüidade em relação à cultura e ao mundo urbano”, a crítica ao
poder, a sexualidade como ponto crítico etc. E, o autor, cita uma das novas versões do Mito dos
Vigilantes, a do Livro dos Jubileus, e os seus desenvolvimentos:

No Apocalipse de João e no Novo Testamento, de forma geral, podemos ver como muitas das imagens do Mito dos Vigilantes
emergem e desempenham papel importante na estrutura da narrativa. (p. 35)

No terceiro capítulo, O visionário e sua jornada, o autor fala a respeito do “tipo de narrativa que
fundamenta toda a experiência de receber revelação” (p. 37) dos profetas apocalípticos. Para ele,
estes profetas teriam sido tomados de êxtase e recebido visões –os chamados “estados
religiosamente alterados de consciência” (p. 39)–, e narraram suas jornadas de ascensão aos céus
para contemplarem a Deus e receberem revelações.

No quarto capítulo, Desmascarando os poderes, o autor mostra, principalmente, “as estruturas de


poder celeste em torno do trono de Deus” (p. 49). Porque “Contemplar o trono de Deus é
dimensionar adequadamente as relações de poder no cosmo” (p. 50). E, o autor, mostra a importância
de conhecermos o livro de Daniel:

Não existiria, por exemplo, uma teologia fundamentalista protestante sem referências constantes às profecias de Daniel
atualizadas para os nossos dias. Daí a importância de conhecê-lo. (p. 51)

E, diante de ideias divergentes, o autor defende

a idéia de que da mesma forma como o livro de Daniel quer expressar sob a ótica religiosa como era viver sob a opressão dos
selêucidas, João mostra [no Apocalipse] como era a vida na ótica de minorias religiosas no Império Romano. (p. 67)
(...) o livro de Daniel foi relido e adaptado em outro contexto histórico e religioso no Apocalipse de João. (p. 71)

No quinto capítulo, Os poderes celestes irrompem sobre o mundo, o autor apresenta o Apocalipse de
João como uma obra radical. Supostamente, para o autor, há um certo “atrevimento” deste profeta e
visionário que fazia parte de um grupo de profetas e visionários carismáticos, e deve ser lido como
uma revelação direta de Deus e sua leitura deve desembocar em “prática”. Segundo o autor, a ênfase
do Apocalipse:

(...) não está na perspectiva temporal, ou seja, revelar coisas ocultas que acontecerão no futuro, mas na qualidade da
realidade, na qualidade do “tempo”. O livro não apresenta uma seqüência de ações lineares que acontecerão umas após as
outras, como uma lista de fatos. Na verdade o tempo escatológico é a revelação da realidade divina, tal como descrita nos
capítulos 4 e 5. É deste desvelamento de perspectiva que o livro trata, da revelação de uma dimensão profunda e oculta da
realidade. (pp. 79-80)

No sexto capítulo, As pragas, o fim dos tempos e o mundo refletido às avessas, o autor proporá uma
“interpretação alternativa”. Para ele,
a estrutura da narrativa das pragas do Apocalipse não enfatiza a linearidade das ações, mas uma repetição crescente, que, de
fato, leva o leitor a sincronizar diferentes aspectos problemáticos de sua realidade. (p. 89)

E destaca, como característica desta falta de linearidade, a impossibilidade do livro terminar ou


possuir um final sem fim.

O autor apresenta, no último capítulo, Sete chaves para ler o Apocalipse. Propõe a leitura a partir
de: (1) Agostinho (354-430), (2) Joaquim de Fiore (c. 1132-1202) – duas leituras que ainda marcam
a teologia: “Se para o primeiro não há mais nada a esperar na história, cabendo o fim apenas ao
mundo transcendente, para o segundo o milênio acontecerá na terra, na história” (p. 112) –, (3) da
obra o Jardim das Delícias do pintor Hieronymus Bosch (1450-1516), (4) das ilustrações Martírio
de São João e Quatro Cavaleiros do Apocalipse, do Apocalipse com Imagens de Albrecht Dürer
(1471-1528), (5) do filme Sétimo Selo de Ingmar Bergman (1918-2007), (6) dos poetas e profetas
populares, e (7) do estudo das idéias apocalípticas nos textos bíblicos e na história das doutrinas
religiosas através das obras de Norman Cohn e Jean Delumeau.

Acreditamos que a grande contribuição do autor, o teólogo Paulo Nogueira, foi mostrar que os textos
apocalípticos, especialmente o Apocalipse de João, são fruto do pensamento mítico, são
essencialmente narrativos e jamais formam um conjunto doutrinário como sugerem muitos
fundamentalistas.

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Esta resenha escrita por Silas Fiorotti foi publicada na revista Novos Diálogos, Rio de Janeiro, em 09/5/2011.
Referência do livro: Nogueira, Paulo. O que é apocalipse. São Paulo: Brasiliense, 2008, 134pp.
14. A tradição protestante não deve ser mero
tradicionalismo
Resenha do livro Piedade pervertida de Ricardo Quadros Gouvêa.*

Em 2007, quando lemos pela primeira vez este livro, fomos revigorados pelas palavras de Ricardo
Quadros Gouvêa. Livramo-nos, pelo menos em parte, daquele desânimo ou ressentimento por conta
da impressão de que o rompimento com a tradição protestante seria inevitável. Gouvêa apresenta a
possibilidade de seguirmos os fundamentos da fé cristã do protestantismo histórico sem cair na
chamada “piedade pervertida” do fundamentalismo teológico. Seu apelo é para que as igrejas
evangélicas tornem-se cada vez mais protestantes.

Ricardo Quadros Gouvêa é teólogo, pastor presbiteriano, co-fundador da Sociedade Brasileira de


Estudos de Kierkegaard, e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e do Seminário Servo
de Cristo. Concluiu sua pesquisa de doutorado sobre o pensamento de Kierkegaard no Westminster
Theological Seminary na Pensilvânia, nos EUA. Nos últimos anos, Gouvêa publicou diversos livros,
entre eles estão: O Anticristo na Bíblia e na história, Paixão pelo paradoxo: uma introdução a
Kierkegaard, A palavra e o silêncio: Kierkegaard e a relação dialética entre a razão e a fé, Uma
introdução ao pensamento de Karl Barth, e, mais recentemente, o livro O lado bom do calvinismo.
Não deixa de ser empolgante sua leitura de Kierkegaard como um autor, além de grande pensador,
comprometido com o cristianismo neotestamentário e que buscava traduzir os evangelhos para seu
tempo.

Logo na introdução de Piedade pervertida, talvez o melhor momento do livro, Gouvêa apresenta, de
forma breve, seu testemunho pessoal. Nesta parte, ele explica que está incomodado com o
fundamentalismo, e em nome dos fundamentos é que ele vem combatê-lo, porque, segundo ele, o
fundamentalismo abandonou estes fundamentos da fé cristã. Uma das consequências deste
fundamentalismo é que uma simples leitura, uma troca de ideias, um diálogo ou mesmo um embate de
opiniões pode ser considerado algo nocivo à vida espiritual. Gouvêa sentiu isso na pele; quando
retornou ao Brasil foi perseguido e considerado um herege, o que não teria acontecido nem em
círculos conservadores dos EUA.

Os primeiros capítulos do livro, capítulos de 1 a 3, soaram com um tom pessimista, mas é como uma
apresentação do atual “estado da arte” do fundamentalismo. Gouvêa, no primeiro capítulo, intitulado
O esmorecimento do protestantismo brasileiro, mostra que houve um abandono do “princípio
protestante” por grande parte das igrejas evangélicas. Ou seja, para Gouvêa, não se enfatiza mais o
caráter mutante da igreja e da tradição reformada, da Reforma como um ato permanente; não se
enfatiza mais o sacerdócio universal dos crentes; nem mesmo o sola scriptura, o sola fide et sola
gratia, e o solus Christus. Os fundamentalistas supostamente seguem uma “ortodoxia cartesiana” que
hipoteticamente seria combatida até mesmo pelos reformadores.

No segundo capítulo, intitulado O fundamentalismo como fenômeno religioso, destacamos a parte


que Gouvêa fala sobre a atitude contraditória dos fundamentalistas:

(…) diferentemente do que a maioria dos fundamentalistas imagina, é na razão (no racionalismo filosófico e na razão
instrumental pragmática) e não na fé, que o fundamentalista encontra apoio teórico para suas ações. (p. 37)

No terceiro capítulo, Gouvêa apresenta Os três pilares do fundamentalismo, nomeadamente: (1) o


sectarismo, (2) o legalismo, e (3) o dogmatismo. Contra o sectarismo, Gouvêa evoca a Parábola do
joio e do trigo; contra o legalismo cita outros textos do Novo Testamento onde podemos encontrar
admoestações neste sentido; e contra o dogmatismo, que coloca a Bíblia como “uma serva do dogma”
(p. 53) que não fala por si mesma, Gouvêa defende uma pesquisa bíblica e missiológica contínua.

Nos capítulos intermediários, capítulos de 4 a 7, o tom pessimista se acentua. Agora Gouvêa busca
definições para o que é Ser cristão hoje, para o que é ser igreja cristã hoje, para o que é ser pastor
cristão hoje, e para o que é fazer teologia cristã hoje. Talvez seja o pior momento do texto, porque
Gouvêa direcionou parte pequena das críticas ao protestantismo histórico e aparentemente pesou a
mão sobre todos os pentecostais. Gouvêa finaliza esta parte dizendo, em nome da preservação da
tradição teológica protestante, que é preciso combater três extremismos teológicos modernos: (1) o
carismatismo, (2) o liberalismo, e (3) o próprio fundamentalismo.

No oitavo capítulo, Gouvêa apresenta Um programa de ação para combater algumas características
básicas dos extremistas, para supostamente livrar as denominações do protestantismo histórico dos
“radicalismos puritânicos, fundamentalistas e carismáticos” (p. 71). Ou seja, o programa de ação
proposto por Gouvêa não é direcionado apenas aos fundamentalistas, mas também aos carismáticos e
aos liberais que compartilham algumas características básicas de atitude e comportamento.

Nos capítulos seguintes, capítulos de 9 a 18, Gouvêa apresenta os dez pontos programáticos. Para
cada característica de atitude e comportamento extremista ele oferece uma característica distinta: (1)
Tolerância em vez de intolerância; (2) Diálogo em vez de sectarismo; (3) Clareza em vez de
obscurantismo; (4) Espírito irênico em vez de espírito belicoso; (5) Confessionalidade em vez de
dogmatismo; (6) Humildade noética em vez de presunção epistêmica; (7) Dignificação da Bíblia
em vez de superficialismo biblicista; (8) Pluralidade em vez de exclusivismo ou inclusivismo; (9)
[Ação social e] Cumprimento do mandato cultural em vez de guetoísmo eclesiástico; e (10)
Princípios e responsabilidade [pessoal] em vez de legalismo e pragmatismo.

Destacamos que Gouvêa indica como os pontos programáticos apresentados estão relacionados. Ou
seja, a tolerância implica em diálogo, o diálogo faz a pessoa pensar por si mesma, quando a pessoa
pensa por si mesma ela passa a respeitar outras pessoas que podem até pensar diferente dela, e assim
por diante. Além disso, nestes capítulos finais, Gouvêa trabalha com exemplos concretos trazidos da
sua própria vivência no protestantismo histórico. Gouvêa cita exemplos de práticas de lavagem
cerebral empregadas em seminários teológicos; cita alguns jargões evangélicos que revelam práticas
obscurantistas; e até cita e questiona sua própria denominação para defender uma igreja protestante
confessional, mas não confessionalista. Nas próprias palavras de Gouvêa:

A confessionalidade da igreja não impede que ela seja também libertária para com seus membros, e aberta ao diálogo com os
de fora, irênica e amorosa para com todos. (p. 105)

Não há muito o que criticar neste apelo anti-fundamentalista e anti-extremista do Gouvêa. Talvez o
despropósito das críticas aos pentecostais brasileiros, já que trata-se de uma tentativa de “reconstruir
o evangelicalismo no Brasil” (p. 113) e, ao que tudo indica, dentro do protestantismo histórico. Caso
esta empreitada inclua os pentecostais, seria necessário reconhecer quais os importantes elementos
pentecostais que são negligenciados no protestantismo histórico. No mais, é reconhecer que o
próprio Gouvêa é um exemplo de que a tradição protestante não precisa ser mero tradicionalismo.

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Esta resenha escrita por Silas Fiorotti foi publicada na revista Novos Diálogos, Rio de Janeiro, em 09/8/2014.
Referência do livro: Gouvêa, Ricardo Quadros. Piedade pervertida: um manifesto anti-fundamentalista em nome de uma teologia
de transformação. 2ª. ed. Prefácio de Elienai Cabral Júnior. São Paulo: Fonte Editorial, 2012, 116pp.
15. Uma espiritualidade que valoriza o divino
que há no humano
Resenha do livro Humanos, graças a Deus de Jonathan Menezes.*

Por vezes, lemos e ouvimos diversas histórias de crentes vitoriosos que (quase) não apresentam
erros, dúvidas, incertezas, paradoxos ou contradições, nem parecem ser histórias humanas. Por isso,
é sempre bom ler os relatos mais honestos sobre a espiritualidade, mesmo com experiências
inusitadas e a partir de contextos distintos do nosso. O apelo do livro Humanos, graças a Deus!, de
Jonathan Menezes, vai neste sentido, de defender precariamente uma “verdade” provisória e uma fé
cristã que admite dúvidas e incertezas.

Jonathan Menezes é teólogo, historiador, e mestre em História Social pela Universidade Estadual de
Londrina (UEL). Além disso, é professor de História e Teologia na Faculdade Teológica Sul
Americana (FTSA), editor da revista Práxis Evangélica e membro da Fraternidade Teológica
Latino-Americana (FTL-BR). Ele faz parte de uma nova geração de teólogos evangélicos que é
desafiada e dialoga, entre outras coisas, com a chamada teologia latino-americana, que inclui todas
as vertentes da(s) teologia(s) da libertação e a teologia da missão integral. Destacamos que o autor
possui uma página pessoal chamada Escrever é transgredir, um espaço em que ele pode ser
interpelado pelos leitores cibernéticos.

O livro em questão, obviamente Humanos, graças a Deus!, é dividido em quatro partes: (1)
Interioridade; (2) Deus; (3) Alteridade; e (4) Teologia. Todas as partes do livro contêm pequenos
capítulos, como breves insights que estão dentro dos grandes temas. Por exemplo, na primeira parte
o autor apresenta o que ele chamou de interioridade humana que pode ser inquieta, paradoxal,
narcisista, torta, transgressora, vaidosa e frágil, entre outras coisas, e nem por isso menos espiritual.
Destacamos aqui os momentos em que o autor, a partir da leitura de Eclesiastes, defende o uso do
“eu não sei” e foge de respostas fáceis: “[a graça de Eclesiastes é] deixar com que as perguntas
falem tão alto que as respostas não possam ser simplistas, ou simplesmente não apareçam de cara”
(p. 46).

O que ele diz sobre Deus? Nesta segunda parte, há uma tentativa de ir além das definições mais
tradicionais de Deus. Ou seja, o autor apresenta sua visão de um Deus transgressor, amigo,
incompreensível, complexo, libertador, que possui senso de humor, que dança, e seu Espírito sopra
onde quer, entre outras coisas. Na terceira parte, intitulada Alteridade, o autor defende a valorização
da nossa própria vida e da vida dos outros (nossos próximos), da gratuidade nos relacionamentos, do
perdão, do respeito, do diálogo, da comunhão, do sexo e até mesmo da felicidade – porque o autor
supostamente entende a felicidade como um jeito de viver e se relacionar com o outro.

E, por fim, na quarta parte, o autor apresenta uma leitura do livro de Jó para propor uma teologia que
supõe uma integridade que é capaz de escandalizar nossos próprios amigos: “quando Jó abre a boca
e começa a escancarar seu coração e a lutar com Deus, tudo muda de figura, os amigos se
escandalizam” (p. 158). A teologia proposta aqui supõe ainda vulnerabilidade, provisoriedade,
vazio, desconforto, impossibilidade, limitação, fragilidade, simplicidade e complexidade, e
simultaneidade, além de ousadia, coragem, liberdade e autonomia. Ou seja, uma teologia
supostamente muito humana ou divinamente humana como sugere o título do epílogo, mesmo título do
livro do teólogo Jesus Urteaga, O valor divino do humano.

Reconhecemos a importância de diversas questões levantadas no livro, principalmente a fuga das


respostas fáceis. Reconhecemos também, nas nossas próprias amizades, a falta da honestidade que
foi evocada pelo autor. No entanto, não sabemos se foi só uma sensação de quietude após a leitura ou
se foi a “transgressão a si mesmo” (p. 42) que predominou por todo o livro e, de alguma forma,
abafou outras maravilhosas transgressões que contribuem com essa espiritualidade encarnada. Por
isso, seguindo um conselho da quarta parte, lançamos um desafio para mensurar a integridade
teológica do próprio livro: até que ponto seu conteúdo escandalizou os amigos e a igreja do autor?

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Esta resenha escrita por Silas Fiorotti foi publicada na revista Práxis Evangélica, Londrina, n. 22 – 2013.
Referência do livro: Menezes, Jonathan. Humanos, graças a Deus! – em busca de uma espiritualidade encarnada. Prefácio de Ziel
J. O. Machado. Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2013, 220pp.
16. Dialogando com o evangelicalismo
brasileiro
Resenha do livro As divinas gerações de Paulo Brabo.*

Paulo Brabo é um provocador contumaz que destila belas críticas à igreja como instituição, ele se
auto-intitula, no subtítulo do livro A bacia das almas, como “um ex-dependente de igreja” – este
livro é composto de textos, escritos entre 2004 e 2009, que estão presentes em sua página homônima.
Aqui, no livro As divinas gerações e a luta por uma eternidade mais justa, os textos apresentados
foram escritos entre 2009 e 2012.

Lembramos também do livro Em 6 passos o que faria Jesus: novíssimo manual de conduta do
seguidor de Jesus, em que Brabo denuncia que nós cristãos “aprendemos a sensatamente desbastar
todo o conteúdo subversivo da mensagem de Jesus” (p. 7) e tenta, de alguma forma, resgatá-lo. Ele
oferece seis passos para os seguidores de Jesus alcançarem “rejeição imediata na terra e
consagração a médio prazo no céu”: (1º) Viva a intolerância contra os religiosos, (2º) Faça o que
os outros não esperam, (3º) Desfrute sem possuir, (4º) Viva inteiramente inserido no seu mundo,
(5º) Permaneça disponível para o momento, e (6º) Sensualize a sua espiritualidade.

Voltando ao As divinas gerações..., trata-se de um livro com 87 pequenos artigos que já foram
publicados na página do autor e estão separados em dez partes. Brabo apresenta suas reflexões de
forma ensaística, sem rigor metodológico, sem compromisso institucional e, por vezes, suas opiniões
são contraditórias. Invariavelmente ele está dialogando com o evangelicalismo brasileiro,
demonstrando qual é o seu pano de fundo.

Desde os primeiros artigos, Brabo denuncia que os evangélicos supostamente não levam a sério os
evangelhos, e não dialogam com as pessoas e as circunstâncias, como Jesus dialogou. Ele denuncia o
fundamentalismo, denuncia o conservadorismo religioso, denuncia as interpretações bíblicas que
tornam-se instrumentos de dominação, e defende que Jesus fugiu das armadilhas conceituais da
teologia. Parece que o próprio Brabo está fugindo de qualquer orientação teológica, se é que isso
seja possível, e o motivo possivelmente revela-se, talvez despropositadamente, nesta sua pergunta
retórica: “Qual facção de interpretação cristã já resistiu à tentação de ser a mais correta?” (p. 22).

Brabo, de alguma forma, ataca o pessimismo sexual e a homofobia presentes entre os evangélicos.
Parte da culpa ele atribui a Paulo que teria normatizado o que a mensagem dos evangelhos
supostamente deixou em aberto. Mas Brabo não chega a questionar ou desqualificar alguns textos
atribuídos a este apóstolo, pois:

O que Paulo não tinha como prever é que as poucas regras que deixou (…) acabariam recebendo maior atenção e gerando
mais desdobramentos na vida real do que seu discurso central contra o legalismo e contra os sistemas de dominação, de
alienação e de controle deste mundo. (pp. 81-82)

Um dos pontos altos do livro é quando Brabo cita a história de vida de Andrew Marin,
especificamente no artigo O homem entre as marés. Marin é um evangélico norte-americano que era
ativista anti-gay e, com o lema “O amor é uma orientação”, passou a defender os gays da ação dos
evangélicos conservadores, em Chicago. Brabo conclui: “quando não estamos defendendo o amor,
estamos defendendo meramente a nossa convicção” (p. 93).

Destacamos ainda os momentos em que Brabo fala do papel do medo e da culpa na religião, dos
momentos em que ele defende a postura dos chamados “ateus lúcidos”, os momentos em que ele fala
sobre alguns mitos da modernidade, e os momentos em que ele fala da teologia da graça radical de J.
Harold Ellens. E, finalmente, talvez o ponto mais alto do livro esteja contido na seguinte citação:

(...) enquanto pretendemos ou fingimos voltar continuamente (...) ao Novo Testamento, o Novo Testamento propõe-nos
incessantemente que avancemos para além dele. Em sua inclusividade, em sua intransigência, em seu anti-imperialismo, em sua
visão comunitária, em sua generosidade e sua gentileza, o movimento do reino encarna esse ideal ativamente comprometido com
o incondicionado, o não-previsto, o sem precedentes. (p. 277)

Consideramos que este apelo, supostamente do Novo Testamento e enfatizado pelo Brabo aqui, para
avançarmos para além do próprio Novo Testamento, é algo louvável. Só não sabemos até que ponto o
Brabo levou adiante este apelo no livro. Se nos relatos bíblicos e na história do cristianismo houve
rompimentos necessários, como o próprio Brabo enfatizou, não seria necessário também romper de
alguma forma com a ortodoxia que é seguida pelo evangelicalismo?

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Esta resenha escrita por Silas Fiorotti foi publicada na revista Novos Diálogos, Rio de Janeiro, em 08/7/2014.
Referência do livro: Brabo, Paulo. As divinas gerações e a luta por uma eternidade mais justa. São Paulo: Fonte Editorial, 2013,
378pp.
17. Críticas valiosas de ex-seminaristas jesuítas
Resenha do livro Fora da Ordem de Antonio Carlos Bôa Nova.*

O livro Fora da Ordem: do claustro ao mundo secular, do sociólogo Antonio Carlos Bôa Nova,
apresenta uma pesquisa com vinte e quatro ex-seminaristas da Companhia de Jesus que não chegaram
a se ordenar. O próprio autor é também um ex-seminarista e isso contribuiu positivamente com a
pesquisa, pois ele já estava familiarizado com a linguagem e com as referências dos colegas e contou
com a confiança deles. O envolvimento com os pesquisados não é necessariamente ruim, é apenas um
viés como qualquer outro que precisa ser reconhecido em suas vantagens e desvantagens. Além
disso, Bôa Nova não pretende dar uma palavra final sobre os itinerários dos ex-seminaristas.

Bôa Nova realizou pesquisas sobre usos sociais da energia e sobre cultura de corporações de grande
porte, entre suas publicações estão: Energia e classes sociais no Brasil, Percepções da cultura da
CESP e Da Light à Eletropaulo. Mas destacamos também sua pesquisa de mestrado sob orientação
da professora Maria Isaura Pereira de Queiroz, intitulada Clero e povo no catolicismo latino-
americano, e que resultou na publicação do livro Clero e povo: o catolicismo da América Latina
nos anos 60. Ou seja, Bôa Nova também é um pesquisador da religião.

No livro em questão, obviamente Fora da Ordem: do claustro ao mundo secular, Bôa Nova busca
algumas pistas para compreender a experiência do claustro nos seminários jesuítas a partir dos
diferentes itinerários dos ex-seminaristas. Por isso, optou por entrevistar ex-seminaristas que
passaram pelo menos dez anos pelo claustro, entre os anos de 1945 e 1975. Esta experiência deu-se
nos chamados seminários menores, as escolas apostólicas em regime de internato, ou nas residências
à parte que eram dirigidas por padres, ou mesmo nos seminários (com as seguintes etapas:
Noviciado, Juniorado, Filosofia, Magistério, Teologia). Destacamos que, além de se valer das
entrevistas e de inúmeras mensagens de uma lista de discussão na internet de ex-jesuítas e ex-
seminaristas, o autor apresenta um belo repertório de leituras de apoio que utilizou para fazer
comparações com seus dados.
Os itinerários dos ex-seminaristas são divididos em seis partes que são referentes aos seis capítulos
do livro. O primeiro capítulo, intitulado Da família ao seminário, apresenta o background familiar
dos ex-seminaristas. A maioria deles cresceu no meio urbano e falou de “um clima intensamente
religioso em casa” (p. 41). Ainda mencionou-se a figura materna e o desejo de agradar e retribuir à
mãe ou o sentimento de culpa em relação a ela, como era feito o recrutamento através de
missionários ou pregadores, a ideia de ser padre, e a falta de reflexão sobre a própria vocação. Bôa
Nova afirma que não havia um momento de decisão, supunha-se que todos eram vocacionados ao
sacerdócio e, pior, que “deixar a vocação colocaria em perigo a salvação da alma” (p. 63), como
afirmou um dos entrevistados.

O título do segundo capítulo, As boas lembranças, pode sugerir um claustro ameno ou amigável. A
explicação dada pelo autor veio através da abordagem do sociólogo Maurice Halbwachs sobre o
modo como a memória reconstrói o passado. Nas próprias palavras de Halbwachs: “Quando
desaparece o sentimento de coerção, é natural que venha à tona o que havia de gratificante em nosso
contato com o grupo”, e segue afirmando que “[nossa reconstrução do passado] é incompleta, pois
apaga ou abranda os traços desagradáveis, e excessiva, uma vez que inconscientemente acrescenta
percepções mais recentes” (p. 77). No entanto, se a formação intelectual é vista pelos entrevistados
como de muito boa qualidade, as críticas recaem sobretudo ao modo de vida do seminário, e foram
apresentadas no terceiro capítulo intitulado Outros olhares. Mencionou-se a segregação que trazia
uma visão distorcida do mundo, a obsessão com sexo e a preservação da castidade, a distância do
mundo feminino, a ideia de pecado sempre presente, a desconstrução contínua da identidade anterior
dos noviços, os ritos penitenciais, e até mesmo os abusos sexuais. Triste é saber que o
comportamento da instituição diante dos abusos sexuais foi simplesmente realocar os padres
infratores, evitar que o assunto ressurgisse e esperar que caísse no esquecimento. Não houve nem um
pedido de desculpas aos abusados.

Falou-se dos motivos que determinaram a saída da Ordem no quarto capítulo, intitulado A saída.
Entre os principais motivos mencionados estão: “a falta de razões para se ter tomado o rumo do
sacerdócio” (p. 129), a questão dos votos serem perpétuos, a afetividade recalcada, as insatisfações
com a linha adotada pelos superiores jesuítas, e a falta de figuras inspiradoras entre os padres mais
velhos. O que chamou nossa atenção é que a exigência do celibato, por si só, não foi algo
determinante para a saída da maioria dos entrevistados, nas próprias palavras do Bôa Nova: “a
sexualidade – e com ela, a crítica ao celibato – pesava bastante, mas como componente do quadro
mais amplo de uma afetividade recalcada” (p. 136).

No quinto capítulo, intitulado Novos caminhos, falou-se do processo de adaptação ao mundo secular.
O que mais nos chamou atenção aqui, além da falta de qualquer esquema de apoio aos egressos por
parte da instituição, foi a imaturidade emocional dos ex-seminaristas. No sexto capítulo, intitulado O
legado, falou-se do legado da experiência vivida nas casas religiosas. E, por fim, no Pós-escrito, o
autor tenta traçar um perfil dos entrevistados, para ele são pelo menos quatro grupos: (1) os que
saíram pela “crescente sensação de mal-estar diante dos controles, restrições e estreitezas” e buscam
“afirmar o espaço pessoal e desenvolver a própria personalidade” (p. 234); (2) os que “continuam
até hoje cuidando de preservar os valores e os modos de pensar e de sentir assimilados naquele
período”, os “jesuítas leigos” (pp. 234-5); (3) aqueles que adotaram soluções intermediárias com
maior ou menor grau de preservação ou mudança; e (4) os que “se afastaram de toda forma de
religião institucional, embora prossigam cultivando, na intimidade, algum modo de interação com o
sagrado” (p. 235).

Reconhecemos a importância deste livro e recomendamos sua leitura no meio evangélico. Mesmo
que ele apresente somente itinerários de ex-seminaristas católicos, nada impede que façamos as
relações com as nossas instituições evangélicas, nossas igrejas e seminários. Será que estamos livres
do claustro em nossas instituições? Será que há espaço para questionamentos em nossas instituições?
Será que a autoridade ou poder espiritual continua sendo usado para líderes evangélicos cometerem
diversos abusos? Será que continuamos achando mais prudente “deixar para lá”? As críticas destes
irmãos podem nos ajudar.

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*
Esta resenha escrita por Silas Fiorotti foi publicada na revista Novos Diálogos, Rio de Janeiro, em 31/10/2013, e na página do Instituto
Humanitas Unisinos, São Leopoldo, em 29/11/2013.
Referência do livro: Bôa Nova, Antonio Carlos. Fora da Ordem: do claustro ao mundo secular. Prefácio de José de Souza Martins.
São Paulo: Esperanto Editorial, 2013, 240pp.
18. Lições de um grande profeta
Resenha do livro Nelson Mandela de Jack Lang.*

O autor deste livro se propôs a falar de Nelson Mandela (1918–2013) de uma perspectiva diferente.
Jack Lang foi ministro da Cultura e da Educação na França e sua atuação no campo da cultura inclui a
criação e direção de associações, teatros e festivais de teatros. Lang sabe que a arte também foi uma
paixão de Mandela e, por isso, o teatro é o cenário do seu estudo. Ou seja, Mandela é o personagem
principal dos cinco atos da tragédia sul-africana: Ato I. Antígona, Ato II. Espártaco, Ato III.
Prometeu, Ato VI. Próspero e Ato V. O rei Nelson. Lembramos que o livro ainda contém o prefácio
da escritora Nadine Gordimer (1923-2014) e três discursos de Mandela nos anexos: (1) “Estou
disposto a morrer” – Declaração de Nelson Mandela do banco dos réus na apresentação de sua
defesa, no julgamento de Rivonia; (2) Discurso de Nelson Mandela na entrega do Prêmio Nobel da
Paz; e (3) Discurso de Nelson Mandela no dia de sua libertação. Trata-se de um belo livro sobre
este grande homem.

No primeiro ato, Mandela é o irmão africano da heroína da tragédia de Sófocles que, a exemplo de
sua irmã, percebe que deverá transgredir as leis do apartheid porque elas eram injustas. Nas palavras
do arcebispo Desmond Tutu: “No tempo do apartheid, os sul-africanos brancos pensavam que o que
era legal era necessariamente moral. Ficavam furiosos quando nós lhes dizíamos que ninguém era
obrigado a obedecer leis injustas” (p. 29).

No segundo ato, Mandela é Espártaco, o líder de uma rebelião de escravos. O governo partiu para o
ataque, pôs na ilegalidade os movimentos antiapartheid e usou a violência contra manifestantes
pacíficos, como no conhecido massacre de Sharperville e muitos outros. Para Mandela, a não-
violência era uma tática que não estava funcionando; por isso, após todas as tentativas de
negociações pacíficas, diversos membros do Congresso Nacional Africano (CNA) e de outros
movimentos partiram para a tática da sabotagem e, por causa de todo o sangue de africanos inocentes
que já tinha sido derramado, preparavam-se para o pior, a eventualidade de uma guerra de guerrilha.
Nas palavras de Mandela: “a sabotagem era o caminho mais promissor para as futuras relações
raciais” (p. 116), “Adotamos a luta armada depois, e somente depois, que todas as outras formas de
resistência se mostraram inviáveis” (p. 153), “foi uma ação meramente defensiva” (p. 234).

No terceiro ato, Mandela é Prometeu, preso por quase trinta anos “por querer entregar aos homens o
fogo libertador” (p. 21). Ele permaneceu firme por tanto tempo, “esperando contra toda a esperança”,
porque lutar contra o racismo, pela dignidade humana e pela liberdade para todos infelizmente é uma
luta que nunca fica ultrapassada. Mandela nunca se afastou das novas gerações, por mais radicais,
simplistas e inflexíveis que fossem. Novos presos políticos chegavam e davam as notícias do que se
passava lá fora: a sangrenta revolta estudantil de Soweto, o surgimento do movimento Consciência
Negra que inspirou-se nos negros norte-americanos e, posteriormente, a tortura e o assassinato do
fundador deste movimento, Steve Biko.

No quarto ato, Mandela é Próspero, da comédia A tempestade de Shakespeare, o duque que exilou-se
numa ilha deserta e, através de seus poderes mágicos, livrou-se dos malefícios de Calibã. O recluso
de Robben Island, ausente dos olhos de todos, tornou-se muito presente nos espíritos. A opinião
pública do mundo inteiro se comovia com a situação dos negros sul-africanos, muitos pediam a
libertação de Mandela e protestavam por sanções econômicas e contra as empresas que alimentavam
o cruel regime do apartheid. O caminho para Mandela negociar a libertação estava se abrindo, mas
ele teve que lutar ainda mais para não cair em algumas armadilhas do governo e dos africânderes que
defendiam o apartheid ou na obstinação fanática de muitos negros que só queriam vingança.

No quinto ato, Mandela é o rei Nelson. Ele tem uma tarefa árdua, precisa construir, sobre as ruínas
do apartheid, uma só nação com brancos e negros. Uma reconciliação a partir da anistia ampla e
geral possivelmente só aumentaria o rancor das vítimas. O professor de direito Kader Ismal propôs
uma saída baseada na tradição africana do ubuntu, uma possibilidade do culpado se reintegrar à
comunidade a partir da sua confissão e do reconhecimento do mal que causou. Criou-se a Comissão
Verdade e Reconciliação presidida pelo arcebispo Desmond Tutu que afirmou: “não há futuro sem
perdão” (p. 201).

Acreditamos que o regime do apartheid guardou algumas semelhanças com o que passamos na
ditadura militar aqui no Brasil. Muitas atrocidades foram cometidas em nome do combate ao suposto
“perigo comunista”, os militantes que aderiram à luta armada foram estigmatizados como
“terroristas”, diversas igrejas apoiaram a ditadura militar, denunciaram seus próprios fiéis e tiraram
proveito disso, entre outras coisas. Ainda há tempo, principalmente para nós crentes, de aprendermos
com Mandela e os sul-africanos, de confessarmos e reconhecermos o mal que causamos no período
da ditadura militar, pelas nossas ações e omissões. Neste sentido, reconhecemos que Mandela foi um
grande profeta.

____________

*
Esta resenha escrita por Silas Fiorotti foi publicada na revista Novos Diálogos, Rio de Janeiro, em 12/8/2012.
Referência do livro: Lang, Jack. Nelson Mandela: uma lição de vida [Título original: Nelson Mandela: leçon de vie pour l’avenir].
Tradução de Rubia Prates Goldoni. Prefácio de Nadime Gordimer. São Bernardo do Campo: Mundo Editorial, 2007, 240pp.
19. A nossa intolerância "evangélica"
Resenha do livro Intolerância religiosa.*

O fenômeno do neopentecostalismo representa um desafio para os pesquisadores da religião no


Brasil. A análise do desenvolvimento e crescimento deste movimento, que começou na década de
1970, e seu impacto no campo religioso e na cultura brasileira se faz necessária. Lamentamos que
este crescimento tenha gerado um impacto negativo no campo religioso afro-brasileiro, como
podemos observar no livro Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo
religioso afro-brasileiro. Diante disso, constatamos a urgência de um debate mais amplo envolvendo
a sociedade civil em defesa dos direitos de liberdade de culto, tão propalados por diversos grupos
evangélicos, e respeito à diversidade cultural. O livro em questão, que foi organizado pelo
antropólogo Vagner Gonçalves da Silva e contém oito artigos de pesquisadores da religião,
representa uma grande contribuição para esta luta.

O livro contém um prefácio do organizador, intitulado Prefácio ou Notícias de uma guerra nada
particular: os ataques neopentecostais às religiões afro-brasileiras e aos símbolos da herança
africana no Brasil. O autor dá provas do acirramento, nas últimas duas décadas, dos ataques das
igrejas neopentecostais, entre outras, contra as religiões afro-brasileiras; algo constatado não
somente no Brasil, mas também na Argentina e Uruguai. Ele sistematizou e classificou diversos casos
de intolerância segundo seis critérios: (1) ataques feitos no âmbito dos cultos das igrejas
neopentecostais e em seus meios de divulgação e proselitismo, (2) agressões físicas in loco contra
terreiros e seus membros, (3) ataques às cerimônias religiosas afro-brasileiras realizadas em locais
públicos ou aos símbolos dessas religiões existentes em tais espaços, (4) ataques a outros símbolos
da herança africana no Brasil que tenham alguma relação com as religiões afro-brasileiras, (5)
ataques decorrentes das alianças entre igrejas e políticos evangélicos, e (6) as reações públicas
(políticas e judiciais) dos adeptos das religiões afro-brasileiras. O livro, segundo Silva, “é um
esforço coletivo de analisar, sob vários pontos de vista, o impacto do crescimento das igrejas
neopentecostais, (...), no campo religioso afro-brasileiro e do Cone Sul e em outras áreas da vida
social (direitos civis e discriminação por orientação sexual)” (p. 24).
O primeiro artigo do antropólogo Ari Pedro Oro, intitulado Intolerância religiosa iurdiana e
reações afro no Rio Grande do Sul, apresenta uma análise da Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD) mostrando como esta igreja se apropria e dá novos significados a elementos de crenças de
outras igrejas e religiões e, de alguma forma, aproxima-se das religiões afro-brasileiras que
combate. Estas últimas, por sua vez, não conseguem reagir à altura do(s) combate(s) que sofrem.

O segundo artigo, intitulado Exportando guerras religiosas: as respostas dos umbandistas à Igreja
Universal do Reino de Deus na Argentina e no Uruguai, é de autoria de Alejandro Frigerio. O autor
mostra que o conflito entre a IURD e a umbanda estende-se para a Argentina e o Uruguai, sendo que
as disputas nestes países sul-americanos supostamente são pautadas pelas disputas que acontecem em
Porto Alegre.

No terceiro artigo, intitulado Pentecostais em ação: a demonização dos cultos afro-brasileiros, o


sociólogo Ricardo Mariano mostra que o combate aos demônios e, consequentemente, a demonização
dos cultos afro-brasileiros não tratam-se apenas de estratégias de evangelização dos pentecostais e
neopentecostais, mas é fruto da ortodoxia cristã de perspectiva dualista que enfatiza a crença na ação
e no poder maléficos do diabo e seus demônios sobre a humanidade.

O quarto artigo, intitulado Um projeto de cristianismo hegemônico, é de autoria do antropólogo


Emerson Giumbelli. O autor faz alguns comentários sobre as articulações entre a religião e a política
ocorridas nos Estados Unidos e na Índia a fim de ajudar a entender a articulação que a IURD propõe.
Giumbelli defende a tese de que a IURD, no seu projeto de cristianismo hegemônico, interage com
seus opositores; seja seguindo o principio de assimilação daquilo que combate, em relação ao
universo afro-brasileiro, ou travando uma disputa indireta em busca de posição análoga, em relação
ao catolicismo. O mais interessante é que, ao contrário do que é defendido por Mariano no artigo
anterior, Giumbelli defende que a centralidade do demônio e seu enfrentamento não determinam as
principais características da IURD e contribuem para a própria relativização ou dissolução da
perspectiva dualista.

O quinto artigo, intitulado Dez anos do “chute na santa”: a intolerância com a diferença, é de
autoria do antropólogo Ronaldo de Almeida. O autor afirma que após o episódio do “chute na santa”
a IURD, por conta da repercussão negativa, colocou-se como vítima, apelou à liberdade religiosa e
adotou um recuo estratégico; mas não abandonou a intolerância religiosa, principalmente em relação
às religiões afro-brasileiras, e seu impulso para tornar-se hegemônica.

O sexto artigo e um dos mais instigantes, intitulado Entre a gira de fé e Jesus de Nazaré: relações
socioestruturais entre neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras, também é de autoria do
organizador da obra. Primeiramente Silva destaca a chamada batalha espiritual como uma
característica distintiva do neopentecostalismo. Com o crescimento do neopentecostalismo
supostamente houve um acirramento desta batalha espiritual e convocação, por parte das igrejas e
líderes, para os fiéis cometerem atos caracterizados como intolerância religiosa. Silva analisa a
literatura de batalha espiritual e afirma que há três temas centrais que estão presentes nos livros:
(…) (1) identificação das divindades do panteão afro com o demônio; (2) libertação pelo poder (maior) do sangue vivo de
Jesus (em oposição ao sangue “seco” ou “fétido” da iniciação ou oferendas) e, em consequência da libertação; (3) a
conversão. (p. 196)

Estes livros apresentam diversas fotos dos rituais das religiões afro-brasileiras:

(…) Mas o impacto maior decorre da reprodução fotográfica de inúmeras cenas de rituais secretos de iniciação, como o orô
(momento do sacrifício do animal sobre a cabeça do iniciado). Essas cenas são, de fato, o “calcanhar de Aquiles” dos cultos
afros, sobretudo quando retiradas de seu contexto, visando criar a imagem dessas religiões como “sangrentas”, “selvagens” ou
“primitivas”. (p. 202)

O mais interessante é que Silva indica o fato de haver continuidades estruturais e entrelaçamento
entre os sistemas em conflito, do neopentecostalismo e das religiões afro-brasileiras. Ele afirma que
a teologia da batalha espiritual parece “fornecer uma ‘pedagogia’ na qual o léxico e a gramática do
sistema combatido são aproveitados em benefício próprio” (p. 255). Ao mesmo tempo que os
adeptos das religiões afro-brasileiras são convidados a abandonarem determinados locais e
renunciarem as práticas, os crentes neopentecostais devem ir aos locais para supostamente lutarem
contra o diabo. A chamada guerra espiritual é central e, consequentemente, o sistema combatido
torna-se parte integrante do sistema que combate.

O livro ainda contém outros dois artigos. O sétimo artigo, intitulado Religião e intolerância à
homossexualidade: tendências contemporâneas no Brasil, dos pesquisadores Marcelo Natividade e
Leandro de Oliveira, propõe que a aceitação da orientação sexual pode ser um caminho contra a
intolerância religiosa. E o último artigo, intitulado Notas sobre sistema jurídico e intolerância
religiosa no Brasil, de autoria do advogado Hédio Silva Júnior, que aponta os aspectos jurídicos da
discriminação étnica atrelada ao fator religioso.

É inegável a contribuição deste livro. Com relação ao termo neopentecostalismo, os artigos já


indicam que esta definição não está dando conta, ela parece muito genérica. Como evangélicos,
precisamos rever o rumo que estamos tomando, principalmente no que diz respeito ao proselitismo
de batalha espiritual e ao conflito doentio com outras religiões. Mas não há só intolerância no meio
evangélico, Ronaldo de Almeida lembrou bem dos evangélicos que atuam na instituição ecumênica
Koinonia que “visa à possibilidade de convivência entre distintas orientações religiosas” (p. 187).
Axé!

____________

*
Esta resenha escrita por Silas Fiorotti foi publicada na revista Novos Diálogos, Rio de Janeiro, em 18/1/2013, e na revista Práxis
Evangélica, Londrina, n. 23 – 2014.
Referência do livro: Silva, Vagner Gonçalves da. (org.), Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso
afro-brasileiro. São Paulo: Edusp, 2007, 328pp.
20. Para os crentes lembrarem que os animais
também sentem dor
Resenha do livro Libertação animal de Peter Singer.*

Em 2004, quando lemos pela primeira vez este livro, fomos impactados pelas ideias nele contidas.
Após a sua leitura, termos como: libertação animal, direitos animais, especismo, vivissecção,
crueldade, vegetarianismo, custo ambiental, entre outros, passaram a ter maior sentido.
Definitivamente não trata-se apenas de um marco no movimento pelos direitos dos animais ou de um
manual dos respectivos ativistas, estamos diante de uma grande obra de ética.

Peter Singer é um filósofo australiano e professor de bioética na Universidade de Princeton, nos


EUA. Ele é autor de diversos livros e artigos. Além do livro Libertação animal, que foi publicado
originalmente em 1975 e recebeu revisões posteriores, outros livros de Singer foram publicados no
Brasil, entre eles: Um só mundo: a ética da globalização, Quanto custa salvar uma vida?, e Ética
prática.

Esta edição do livro Libertação animal, além dos seis capítulos, contém dois novos prefácios do
autor, de 2003 e 2009, e uma parte final com seus depoimentos e um artigo, publicado em 2003. Nos
prefácios, Singer faz um breve balanço dos avanços, a partir da década de 1990, em relação aos
direitos dos animais na Europa e nos EUA. Para Singer, os maus-tratos contra os animais estão sendo
combatidos por conta da divulgação de informações e imagens, porque supostamente “não é a
indiferença, mas a ignorância que permite que a crueldade institucionalizada e maciça continue
existindo” (p. xx).

No primeiro capítulo, intitulado Todos os animais são iguais...: ou por que o princípio ético no
qual se baseia a igualdade humana exige que se estenda a mesma consideração também aos
animais, Singer utiliza os argumentos contra o racismo e o sexismo para propor o que ele chama de
especismo que “é o preconceito ou a atitude tendenciosa de alguém a favor dos interesses de
membros da própria espécie, contra os de outras” (p. 11). Aqui não trata-se de defender que os
animais tenham direito ao voto ou coisa do tipo, mas que os direitos dos animais sejam concedidos
com relação aos seus interesses, de modo que eles não sofram nem morram pelo bem-estar e para a
alimentação dos humanos. O que está em jogo não é a autoconsciência, a capacidade de pensar o
futuro ou ter esperança, mas a capacidade de sofrer dos animais. Ou seja, Singer segue o que ele
chama de “princípio da minimização do sofrimento” (p. 34).

Singer, nos próximos capítulos, explora dois exemplos centrais de especismo que são as práticas que
envolvem o maior número de animais nos EUA. No segundo capítulo, intitulado Instrumentos de
pesquisa...: como seus impostos são utilizados, Singer fala sobre a experimentação animal, a
vivissecção. No terceiro capítulo, intitulado Visita a um criador industrial...: ou o que aconteceu
com seu jantar quando ele ainda era um animal, ele fala sobre a criação de animais para servir de
alimento. O primeiro exemplo envolveria 10 milhões de animais e o segundo exemplo envolveria
mais de cinco bilhões de animais por ano, isso somente nos EUA. Acreditamos que o mais grave
nestas denúncias de Singer é o fato de que parte do sofrimento imposto aos animais não reverte-se,
ou pelo menos não se revertia na época, em benefício aos humanos, seria algo totalmente inútil e sem
sentido. Para Singer, outra coisa sem sentido seria a diferença de tratamento que é dada aos animais
domésticos e aos animais silvestres, de um lado, e aos “animais de produção”, de outro lado.

No quarto capítulo, intitulado Tornando-se vegetariano...: ou como provocar menos sofrimento e


produzir mais alimentos com baixo custo ambiental, Singer defende que a adesão a uma dieta
vegetariana é o primeiro passo daqueles que se opõem à crueldade contra os animais, supostamente
“trata-se de uma recusa prática, viva, aos métodos utilizados nos produtores industriais” (p. 240).
Além disso, Singer mostra que os custos ambientais de uma dieta vegetariana são menores do que os
de uma dieta que inclui a carne.

O quinto capítulo, intitulado O domínio do homem...: uma breve história do especismo, foi aquele
que mais chamou a nossa atenção. Aqui Singer tenta mostrar que as atitudes ocidentais para com os
animais –especismo ocidental– foram e continuam sendo justificadas principalmente pelo
pensamento cristão. Para Singer, o cristianismo não teria como escapar do especismo pois ele estaria
presente em diversos momentos da narrativa bíblica. Singer acredita que a defesa do domínio dos
seres humanos sobre os animais pode ser fundamentada em diversos relatos do livro de Gênesis; ele
cita o relato em que o próprio Deus teria vestido Adão e Eva com peles de animais; cita o relato de
Abel que era pastor de ovelhas e fazia oferendas de seu rebanho; cita o relato em que Noé, após o
dilúvio, agradeceu a Deus com oferendas de animais e Deus, por sua vez, abençoou Noé dando aos
seres humanos o domínio sobre os animais e a permissão para se alimentarem deles. Portanto,
segundo Singer, apesar de algumas passagens esparsas no Antigo Testamento estimularem algum grau
de bondade para com os animais, “não há um desafio sério à visão geral, estabelecida no Gênesis, de
que a espécie humana é o pináculo da criação e tem a permissão de Deus para matar e comer
animais” (pp. 273-274).

Já com relação ao Novo Testamento, Singer lembra que Jesus induziu dois mil porcos a se lançarem
ao mar, um ato supostamente desnecessário. Singer afirma que “o cristianismo propalou a ideia de
que toda vida humana –e tão somente a vida humana– é sagrada” (p. 278). O especismo ainda seria
identificado na importância conferida pelo cristianismo à alma imortal do ser humano, e também na
reinterpretação da lei mosaica de Deuteronômio feita pelo apóstolo Paulo. Esta leitura de Paulo, de
que supostamente o bem-estar dos animais deve estar condicionado ao bem-estar dos humanos, foi
seguida por Agostinho, Tomás de Aquino e outros pensadores cristãos. Diante disso, e também diante
da aceitação da teoria de Darwin, Singer conclui: “Somente aqueles que preferem a fé religiosa a
crenças assentadas em raciocínio e em provas podem ainda afirmar que a espécie humana é a
‘queridinha’ especial de todo o universo” (p. 300).

No sexto e último capítulo, intitulado O especismo hoje...: defesas, racionalizações, objeções à


libertação animal e avanços feitos para superá-las, destacamos que Singer defende que a ideia de
que “seres humanos vêm em primeiro lugar” (p. 320) é usada como pretexto para não levarmos a
sério a capacidade dos animais de sentirem dor e, consequentemente, não combatermos de todas as
formas a crueldade contra eles.

O que podemos destacar após a leitura do livro é o apelo do autor para levarmos a sério a
capacidade dos animais de sentirem dor. Acreditamos que não precisamos acusar Singer de ter feito
uma leitura rasa de diversos textos bíblicos, mesmo que isso tenha acontecido de fato. Mas trata-se
de uma boa oportunidade para nós cristãos refletirmos sobre nossas próprias leituras bíblicas de
modo a excluir qualquer pretexto que possa justificar a crueldade contra os animais.

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Esta resenha escrita por Silas Fiorotti foi publicada na sua página pessoal, em 04/7/2014.
Referência do livro: Singer, Peter. Libertação animal. Tradução de Marly Winckler e Marcelo Brandão. Revisão técnica de Rita
Paixão. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, 492pp.
Inconclusões finais
Termino com a sensação de que eu deveria ter indicado muitos outros livros. No entanto, o
importante é que os 20 livros apresentados aqui levantam questões complexas para os crentes e as
crentes refletirem. Não são questões fáceis de serem resolvidas com respostas simples do tipo: “sim
ou não”, e “a favor ou contra”, como muitas vezes estas mesmas questões são tratadas. Se eu
consegui sinalizar isso nas resenhas, já me dou por satisfeito.
Sobre o autor
Silas Fiorotti é de São Paulo e considera-se um cristão libertário. É bacharel em Ciências Sociais,
mestre em Ciências da Religião e doutorando em Antropologia Social. Participa do Coletivo por uma
Espiritualidade Libertária e da comissão editorial da revista eletrônica Espiritualidade Libertária.
Atua como pesquisador colaborador no Centro de Estudos Rurais e Urbanos (CERU/USP) e no
Centro de Estudos de Religiosidades Contemporâneas e das Culturas Negras (CERNe/USP), como
tutor na UFABC e como articulista na revista Novos Diálogos.

Contato do autor:

silas.fiorotti@gmail.com

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Referências bibliográficas
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_____. (2010b) [1889-99], Padre Sergio. Tradução de Beatriz Morabito. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify.
_____. (2010c) [1899], Ressurreição. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac Naify.
_____. (2010d) [1894-1905], Khadji-Murat. Tradução de Boris Schnaiderman. São Paulo: Cosac Naify.
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Imaginário.
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13-19.

A última tentação de Cristo. Filme, título original: The Last Temptation of Christ, (EUA, 1988), baseado no romance de
Níkos Kazantzákis de 1951, direção: Martin Scorsese, elenco: Willem Dafoe, Barbara Hershey, Harvey Keitel, David Bowie, entre
outros. Duração: 162 minutos.

Urteaga, J. (1967), O valor divino do humano. São Paulo: Quadrante.


Índice remissivo

A
A última tentação de Cristo 1, 2
Abel 1
abusos sexuais 1
Adão 1, 2
Adélia Prado 1, 2
Agamben 1
Albrecht Dürer 1
Almeida 1, 2
ambigüidade 1
América Latina 1, 2
anarquia 1, 2, 3
Anarquia e cristianismo 1, 2, 3
Anselmo 1, 2, 3
Antigo Testamento 1, 2
Antígona 1
apartheid 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7
Apocalipse 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14
Apocalipse com Imagens 1
Arca de Noé 1
Argentina 1
As divinas gerações 1, 2, 3, 4, 5
Aslan 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7
ateu 1, 2, 3, 4, 5
ativismo 1
autoridade 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7
Azevedo 1, 2

B
Badiou 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7
Ballou 1
Barth 1, 2, 3
Bartolomeu 1
Belém 1
Benjamin 1
Bíblia 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24
Bôa Nova 1, 2, 3, 4, 5, 6
Bosch 1, 2, 3
Brabo 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12
Brasil 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20

C
Caifás 1, 2, 3
campo religioso 1, 2, 3
catolicismo 1, 2, 3, 4, 5
Censo de 2010 1
Charbonneau 1, 2
classes sociais 1, 2
claustro 1, 2, 3, 4, 5
Clemente 1
clero 1, 2, 3
Cohn 1, 2
Colossenses 1
Comissão Verdade e Reconciliação 1
Companhia de Jesus 1
Constantino 1, 2
contradição 1, 2
Coríntios 1, 2, 3
crentes 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21
cristianismo 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38,
39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50
Cristianismo pagão 1, 2, 3, 4
cristianismo primitivo 1, 2, 3, 4
Cristo 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21
Crossan 1, 2
culpa 1, 2, 3, 4, 5
culto 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9
cultura 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10
D
Daniel 1, 2, 3, 4, 5
Delumeau 1
desobediência 1
Deus 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39,
40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60
Deuteronômio 1
diálogo 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8
direitos animais 1
discursos 1, 2, 3, 4, 5
ditadura militar 1
dízimo 1
dominação 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7
Dymond 1

E
Eclesiastes 1, 2
educação 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8
educação cristã 1
Efésios 1
Egito 1, 2
Ellens 1
Ellul 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26
Em 6 passos o que faria Jesus 1, 2, 3, 4, 5
Em seus passos que faria Jesus? 1
Engels 1, 2
escândalo 1, 2, 3, 4
Espártaco 1, 2
especismo 1, 2, 3
Espírito 1, 2, 3, 4, 5, 6
espiritualidade 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7
Espiritualidade Libertária 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9
esquerda 1, 2, 3, 4
estado 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7
EUA 1, 2, 3, 4
Europa 1
Eva 1
Evangelho 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9
evangelicalismo 1, 2, 3, 4
evangélicos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13

F
fé 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26
fé cristã 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9
Ferrari 1, 2
Filemom 1
Filipenses 1
filosofia 1, 2, 3
Fiorotti 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23
Fora da Ordem 1, 2, 3, 4, 5
França 1, 2, 3
fraqueza 1
Freire 1, 2
Frigerio 1
fundamentalismo 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7

G
Gálatas 1, 2
Galileia 1, 2, 3
Gandhi 1
Garrison 1
Gênesis 1, 2
Gervais 1, 2
Giumbelli 1
Gordimer 1, 2
Gouvêa 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7
governo 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7
graça 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10
graça radical 1
H
Halbwachs 1
Hanson 1, 2, 3
Harpur 1, 2, 3, 4, 5
Heidegger 1
heresia 1, 2, 3, 4
Hieronymus Bosch 1
Higgins 1
história 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20
Horsley 1, 2, 3, 4, 5
Hórus 1, 2, 3, 4
humanidade 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10
Humanos, graças a Deus 1, 2, 3, 4, 5

I
IBGE 1
ideologia 1, 2
igreja 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23
Igreja Mundial do Poder de Deus 1
Igreja Universal do Reino de Deus 1, 2
Império Romano 1
Ingmar Bergman 1
injustiças 1, 2, 3, 4
instituições 1, 2, 3, 4, 5
intolerância 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10
intolerância religiosa 1, 2, 3, 4
Israel 1, 2, 3
Iusa 1

J
Jesus 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39,
40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76
Jó 1, 2
João 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8
João Batista 1
João Crisóstomo 1
Joaquim de Fiore 1
Judas 1
justiça 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7

K
Kader Ismal 1
Kheltchitsky 1
Kierkegaard 1, 2, 3, 4, 5, 6
Koinonia 1
Kuhn 1

L
Lang 1, 2, 3, 4, 5
leigo 1, 2, 3, 4, 5
Leonel 1
liberalismo 1
libertação animal 1, 2
libertários 1
Livro dos Jubileus 1
Livro dos Mortos 1
loucura 1
Lucas 1, 2
Lutero 1, 2

M
Maillot 1
Mandela 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9
Manifesto comunista 1
Marin 1
Martin Scorsese 1
Martírio de São João 1
Marx 1, 2
Massey 1, 2, 3
Mateus 1, 2
Menezes 1, 2, 3, 4
messias 1, 2, 3
Mesters 1, 2
Míguez 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10
Minha religião 1, 2, 3, 4
missão 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15
Missão e educação teológica 1, 2, 3, 4
missão integral 1, 2
mito 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11
Mito dos Vigilantes 1, 2, 3
Moisés 1, 2, 3
monoteísmo 1
mulher 1, 2, 3
Musser 1

N
não-potência 1, 2
não-resistência ao mal 1, 2
não-violência 1, 2, 3
Natividade 1
Nazaré 1, 2, 3, 4, 5
negro 1
neopentecostalismo 1, 2, 3, 4, 5
Nogueira 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8
Novo Testamento 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11
Novos Diálogos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18

O
O Cristo dos pagãos 1, 2, 3, 4
O Deus escandaloso 1, 2, 3, 4
O que é apocalipse 1, 2, 3, 4
O reino de Deus está em vós 1, 2, 3, 4, 5
Oliveira 1
Oro 1
ortodoxia 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9

P
pacifismo 1
Paiva 1, 2
Pannenberg 1, 2, 3
paradoxo 1, 2, 3, 4
Páscoa 1, 2
Paulo 1
Pedagogia do oprimido 1, 2
Pedro 1, 2, 3, 4
Piedade pervertida 1, 2, 3, 4
pobres 1
poder 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19
poesia 1, 2
política 1, 2, 3, 4, 5, 6
princípio protestante 1
profetas 1, 2, 3, 4, 5
profetas apocalípticos 1, 2
Prometeu 1, 2
protestantismo 1, 2, 3

Q
quakers 1
Quatro Cavaleiros do Apocalipse 1
Queiroz 1

R
razão 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7
rebeldia 1, 2, 3
Reforma 1, 2
reino de Deus 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9
religião 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15
religiões afro-brasileiras 1, 2, 3, 4
Rieger 1
Rode 1
Roma 1, 2, 3, 4, 5
Romanos 1, 2, 3, 4

S
sacerdócio universal 1
Schnaiderman 1
Schnaidermann 1
Scorsese 1, 2
Se és o filho de Deus 1, 2, 3, 4, 5
Sermão da Montanha 1, 2
Sétimo Selo 1
sexualidade 1, 2, 3
Shakespeare 1
Sheldon 1, 2
Silva 1, 2, 3, 4, 5, 6
Silva Júnior 1
Singer 1, 2, 3, 4, 5, 6
Smith 1
Sobre O Juízo Final 1
Sófocles 1
Steve Biko 1
Stott 1, 2, 3
sujeito 1, 2, 3, 4
sul-africanos 1
Sung 1, 2, 3, 4, 5, 6

T
TEB 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8
teologia latino-americana 1
teólogos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10
Tessalonicenses 1, 2
textos apocalípticos 1
textos bíblicos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8
Tiago 1, 2
Timóteo 1, 2
Tito 1
Tognini 1
Tolstói 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37
tradição profética 1, 2, 3
transgressão 1, 2
Troude-Chastenet 1, 2
Tutu 1

U
ubuntu 1
Um Jesus popular 1, 2, 3, 4
Urteaga 1
Uruguai 1

V
Valdemiro Santiago 1
vegetarianismo 1
verdade 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21
verdade de Jesus 1, 2, 3
Viola 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8
violência 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12

W
Westhelle 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7
Wirth 1, 2, 3, 4, 5

Z
Zabatiero 1
Zaqueu 1
Zelota 1, 2, 3, 4

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