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Transhomens no ciberespaço: micropolíticas das resistências

João Walter Nery1, Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho2

Resumo: João Walter Nery, autodeclarado transhomem, e Eduardo Meinberg de Albuquerque


Maranhão Filho, autodeclarado entre-gêneros, analisam, nesta comunicação, alguns dos
múltiplos discursos de transhomens (ou homens transexuais) brasileiros através de narrativas
produzidas em ambiente virtual (fóruns, grupos do Facebook e diálogos proporcionados por
correio eletrônico). Esta cartografia de ciberespaços foi construída a partir da análise dos
conteúdos coletados por observação participante. A revisão teórica permitiu complementar o
estudo com impressões socioculturais e pesquisas acadêmico-científicas em relação à
transidentidade e seu amplo espectro de masculinidades.

Palavras-chave: Transidentidades, transhomens, homens transexuais, fóruns de discussão


virtuais.

Transmen in cyberspace: micropolitics of resistances

Abstract: João Walter Nery, self-declared transman, and Eduardo Meinberg de Albuquerque
Maranhão Filho, self-declared “in-between-genders”, analyze, in this paper, some of the
multiple discourses of Brazilian transmen (transsexual men) through narratives produced in
virtual environment (forums, Facebook groups, and dialogues exchanged by e-mails). This
cyberspace cartography has been constructed over analysis of the topics collected by
participant observation. The bibliographical review allowed complementing the study with
social and cultural impressions, as well as academic-scientific research concerning
transidentities and its spectrum of masculinities.

Keywords: Transidentities, transmen, transexual men, internet, virtual discussion forums.

1
Graduado em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
professor universitário, psicoterapeuta e pesquisador em gênero, especializado em Sexologia pelo Instituto
Estadual de Diabetes e Endocrinologia (IEDE), ex-mestrando em Psicologia da Educação pela Universidade
Gama Filho (UGF). Depois da publicação de Viagem Solitária: memórias de um transexual trinta anos depois e
depoimentos na mídia, tornou-se referência nacional como ativista pelos direitos da causa LBGTTTI. Contato:
joaownery1@gmail.com.
2
Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em História pela Universidade
de Santa Catarina (UDESC), especialista em Marketing e Comunicação Social pela Fundação Cásper Líbero,
graduado em História pela USP. Contato: edumeinberg@gmail.com.
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Meu pai me disse: meu filho tá muito cedo,
Eu tenho medo que você case tão moço.
Eu me casei e veja o resultado,
Tô atolado até o pescoço.

Minha mulher, apesar de ter saúde


Foi pra Hollywood, fez uma operação
Agora veio com uma nova bossa,
Uma voz grossa que nem um trovão
Quando eu pergunto: o que é isso, Joana?
Ela responde: você se engana
Eu era Joana antes da operação
Mas de hoje em diante o meu nome é João

Não se confunda, nem troque meu nome


Fale comigo de homem pra homem
Fique sabendo já de uma vez
Que você me paga tudo que me fez

Agora eu ando todo encabulado


E essa mágoa é que me consome
Por onde eu passo todo mundo diz
Aquele é o marido da mulher que virou homem

Jackson do Pandeiro e Elias Soares

Neste texto em conjunto, os pesquisadores João Walter Nery, autoidentificado transhomem,


provavelmente o primeiro do Brasil, operado em 1977, e Eduardo Meinberg de Albuquerque
Maranhão Fº, atualmente autodeclarado entre-gêneros, realizam um estudo sobre pessoas que
se identificam como transhomens3.

Ainda são escassas as pesquisas brasileiras que destacam trabalhos de campo no ciberespaço,
como os de Jungblut (2009, 2010a, 2010b, 2011, 2012), de Rifiotis (2012), de Pace e Giordan
(2012) e de Segata (2009a, 2009b, 2010, 2012a, 2012b). Sobre a circulação de pessoas trans
através da internet, destacam-se os trabalhos de Ávila e Grossi (2010), Amaral (2012), Amaral
e Toneli (2013) e Coacci (2013).

3
Os autores utilizarão o termo transhomem em substituição a outros sinônimos: homens trans, transexuais
masculinos e/ou FTMs (female to male). Serão abordados o uso deste termo e suas definições nas considerações
sobre masculinidades.
395
Também são poucos os trabalhos que analisam as transvivências, ou experiências subjetivas
de transhomens. Ávila e Grossi (2010, p. 1) argumentam que:

que são praticamente inexistente, no Brasil, estudos sobre transmasculinidade e


que os transexuais masculinos parecem ter menos visibilidade que as transexuais
femininas, tendo em vista a ampla variedade de estudos sobre travestilidades
femininas, como os de Marcos Benedetti (2005), Don Kulick (1996, 1997,1998),
Roger Lancaster (1998) e Fernanda de Albuquerque e Maurizio Janelli (1995), e
transexualidade feminina, como o estudo de Berenice Bento (2006) em
comparação com a quase inexistência de similares sobre transexualidade masculina.

Os pesquisadores realizaram uma cartografia digital de inspiração etnográfica, fundamentada


em análise de conteúdo e observação participante em fóruns e grupos da rede social Facebook.
A coleta de dados ainda contou com relatos pessoais enviados por correio eletrônico. Os
conteúdos das conversas provenientes dos grupos de discussão foram complementados com
experiências pessoais e referências bibliográficas, algumas das quais escritas por pessoas que
se designam transhomens (ZOBY, 2011, ALMEIDA, 2012, HALBERSTAM, 2012,
OLIVEIRA, 2013, ZAMUR, 2013).

Foram analisadas discussões em grupos como FTM Brasil, FTMS, Disforia de Gênero, MTF
& FTM, FTMachos, Empregos para trans, Homens Trans Héteros e ABHT – Associação
Brasileira de Homens Trans. Tal trabalho de etnografia digital foi complementado através de
conversas com integrantes desta rede social e referências bibliográficas.

As vozes acolhidas através de narrativas em fóruns fechados e mensagens privadas não foram
identificadas por seus nomes reais. Optou-se por manter o conteúdo das narrativas em seu
formato original, linguagem típica da comunicação via internet. A média de idade nos fóruns
de transhomens do Facebook varia de 16 a 40 anos. Após algumas considerações sobre
masculinidades e pessoas assignadas como mulheres no espectro da transidentidade masculina,
ou transmasculinidade. Os autores apresentam temas distintos, como as resistências dos

396
transmeninos, transfobia vivenciada pelos transadolescentes, o uso de sanitários, a
(in)visibilidade trans e questões relacionadas à documentação. Por fim, sem a intenção de
finalizar o assunto, os pesquisadores trazem considerações inconclusivas sobre um tema
caracterizado pelo recente diálogo e troca de informação entre pessoas cujas subjetividades se
fortalecem através da criação de laços e construção de pertencimento.

1. Masculinidades: algumas considerações

Alguns relatos acerca de adequações de gênero do feminino para o masculino estão presentes
em mitos, como o de Tirésias e o de Santo Onofre da Capadócia, mas também em
experiências reais de coletivos específicos, como as mulheres-homens da Albânia 4 e os/as
nguiu do México5.

Autores como Henry Fielding (1746) comentaram sobre pessoas designadas como mulheres,
que se apresentavam socialmente como homens e se casavam com mulheres, denominando
tais pessoas como female husbands (CLAYTON, 2004, p. 152). Jack Halberstam, que também
se apresentou como Judith, seu nome de registro, usa o termo female husband para designar
6
Anne Lister, que não seria “uma travesti feminina” (HALBERSTAM, 1998, p. 67). A
condição de “mulher no nascimento”, para muitas dessas pessoas, foi somente percebida após
a morte, como no caso de James Allen, em 1829, citado no artigo de Halberstam, ou do
instrumentista de jazz Billy Lee Tipton7 (1914-1989), retratado no livro O Trompete (KAY,
1998).

De acordo com Coll-Planas e Missé (2010), pessoas transexuais entendem que a não
correspondência entre sexo e gênero podem demandar modificação corporal mediante

4
Conheça as mulheres homem da Albânia. Disponível em: <http://www.hypeness.com.br/2012/12/conheca-as-
mulheres-homem-da-albania/>. Acesso em: 22 mar. 2013.
5
Nguiu é uma espécie de termo guarda-chuva utilizado pelo povo zapoteca, do sul do México, que identifica
pessoas assignadas como mulheres e autoidentificadas como homens. Muxe and Nguiu. Disponível em:
<http://www.qualiafolk.com/2011/12/08/muxe-and-nguiu>. Acesso em: 24 mar. 2013.
6
Ou “a female tranvestite”, conforme termo original.
7
Batizado como Joss Moody, de acordo com a narrativa de Kay.

397
cirurgias e hormonização. A definição de transidentidades, para a pesquisadora Simone Ávila8,
abrange diversos contextos em que “uma pessoa sente o desejo de adotar, temporariamente ou
permanentemente, o comportamento e os atributos sociais de gênero (masculino ou feminino),
em contradição com o sexo genital”.

O termo transhomem é uma das muitas classificações dentro das transidentidades, sendo uma
das autodesignações adotadas por pessoas que “nasceram mulheres” 9, ou melhor, designadas
como tal a partir do nascimento ou ainda no período de gestação, no entanto, identificam-se
como homens. Além deste termo, são também utilizados: homens trans, FTMs 10 , homens
transexuais, transmen e transmasculinos. Os termos mais utilizados por ativistas são homem
trans ou FTMs. Tais autodefinições acabaram por convergir em uma aquarela de
masculinidades (ALMEIDA, 2012). Ainda acredita-se relevante mencionar que, entre as
discussões virtuais que possibilitaram esta pesquisa, os transhomens costumes tratar-se por
man, brother e véi.

11
Em 2010, Simone Ávila lançou a página virtual “Sou transhomem... e daí?” , criado
adotando o termo a partir da tradução do inglês (transman) e do francês (transhomme). Assim,
o nome que designa tal sujeito torna-se um substantivo, palavra com que se denomina, não
como o adjetivo, que qualifica um objeto. Ao usarmos “masculino” ou “feminino” após
“transexual” (transexual masculino, transexual feminino), ou ao usarmos “transexual” após
homem ou mulher (homem transexual, mulher transexual) estamos qualificando o
sujeito”. Esta forma de nomear também afasta a lógica do binarismo de gênero, “como, por
exemplo, homem/mulher, masculino/feminino” (ÁVILA et al, 2011, p. 4).

Almeida (2012) classifica as identidades de transhomens em quatro grupos, com a hipótese de


que ocorra uma transitividade entre eles. O primeiro grupo é formado por pessoas que não
querem um total descolamento do feminino, permanecendo “como „mulheres‟ por diferentes e

8
Transidentidades. Disponível em: <http://soutranshomemedai.webnode.com/transidentidades>. Acesso em: 20
mar. 2013.
9
Os autores farão o uso de aspas, neste trecho e em outros, com o objetivo de marcar o sentido irônico referente
a tais termos.
10
Do inglês female to male, que se traduz “de mulher para homem”).
11
Disponível em: <http://soutranshomemedai.webnode.com>. Acesso em: 20 abr. 2013.
398
variados condicionantes”: familiares, subjetivos, objetivos e sociais, o “que não as impede de,
na intimidade, utilizarem nomes ou apelidos masculinos, alguns objetos característicos da
indumentária masculina” e conciliá-los “com signos sociais que permitem preservá-las
(quando desejado ou necessário) na identidade feminina”. (ALMEIDA, 2012, p. 515-516).

Outro grupo é “formado por „homens‟ que não optam por modificações corporais cirúrgicas
nem hormonais. Fazem uso de outros recursos culturais disponíveis para terem a aparência
próxima do gênero com o qual mais se afinam” e se dizem “satisfeitos e efetivamente
pertencentes ao gênero masculino”. Um terceiro coletivo é influenciado pelas “perspectivas
de „desnaturalização das identidades‟, como as de Judith Butler e Beatriz Preciado”,

que constroem performances públicas em que os gêneros se misturam, expressando,


dessa forma, insatisfação com o „binarismo dos gêneros‟ e/ou com a
„heteronormatividade‟. Eles/as explicitam o desejo de modificações corporais às
vezes pela via, inclusive, da ingestão de testosterona, mas não querem a
mastectomia ou outros procedimentos cirúrgicos. (ALMEIDA, 2012, p. 515-516).

Finalmente, um último grupo é composto por:

indivíduos que fazem e/ou desejam modificações corporais através da


hormonização por testosterona e uma ou mais intervenções cirúrgicas, além de se
valerem em larga medida de outros recursos sociais (roupas e calçados masculinos,
faixas torácicas – a fim de dissimular o volume dos seios – e próteses penianas de
uso público). Buscam também frequentemente o reconhecimento jurídico do sexo e
do nome masculinos e têm se tornado mais visíveis na cena pública brasileira, em
função do processo transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS), que
favorece o acesso a modificações corporais de alta complexidade (ALMEIDA,
2012, p. 515-516).

399
Transhomens, assim como os outros termos de autodesignação, procuram dar vistas ao
conflito entre características masculinas e femininas designadas/atribuídas/assignadas a partir
da observação (anterior ou posterior ao nascimento) de órgãos genitais e a subjetividade do
gênero das pessoas. Essas transubjetividades ultrapassam o binarismo esperado, fissuram a
heteronorma da sexualidade e negam que a anatomia dos corpos possa ser tomada como único
destino possível.

São, assim, pessoas que, para a medicina, ciências „psi‟ e sociedade em geral, “nasceram
mulheres”, mas por se identificarem como homens, transformam-se através de uma adequação
corporal ao gênero declarado. Além das autodefinições elencadas, muitas destas pessoas tem
se identificado no Facebook, como menino, homem ou man. O termo trans quase não é usado.
Para alguns destes indivíduos, designar-se homens, meninos, guris, garotos ou men, significa
entender a transexualidade como um estado transitório, efêmero, que desembocará na
adequação ao gênero de identificação.

Em movimento contrário, há pessoas que se identificam como trans, ou outra variação


terminológica, com fins de acesso ao processo de hormonização e cirurgias proporcionadas
pelo Sistema Único de Saúde (SUS), ou de reconhecimento jurídico, ou para atuarem como
ativistas em políticas públicas, reivindicando direitos, como é o caso de João W. Nery.

Algumas destas pessoas se identificam ora como homens, ora como transhomens. Alguns não
querem rótulos – lembrando que as autoidentificações são múltiplas e contingenciais. As
diferenças devem ser entendidas a partir da diversidade de experiências pessoais em relação a
marcadores sociais distintos: classe, orientação sexual, status acadêmico e profissional,
geração, limitações físicas (pensadas aqui como sinônimo de “deficiências”), origem, etnia,
raça, moradia, preferências culturais, religião, dentre outros. Tal perspectiva auxilia numa
desuniversalização, desessencialização, desmedicalização e despatologização das
transidentidades.

Transexperiências são distintas, pessoais e únicas. A grande variedade existente de termos e


definições linguísticas deve servir como recurso didático e heurístico, podendo ser colocada
sob-rasura (MARANHÃO Fº, 2012a, 2012b), especialmente porque o termo transexual foi
cunhado em um contexto de medicalização de pessoas com identidade de gênero
400
“transtornada”. Para Maranhão Fº, tais pessoas podem ser entendidas como entre gêneros
(MARANHÃO Fº, 2012b)12, que caminham entre mobilidades identitárias diversas. Dentre
tais experiências entre-gêneros, destacam-se, neste trabalho, as transvivências masculinas, ou
as peregrinações de gênero dos transhomens – termo preferido por Nery e Maranhão Fº para
designar estes sujeitos específicos.

Há diversas demandas pessoais e coletivas de transhomens. Algumas dizem respeito à


inserção e participação no ativismo trans, às relações afetivas e sexuais, à permanência e/ou
exclusão escolar, à inclusão no mercado de trabalho, ao uso do nome social, à retificação de
prenome e sexo13.

Ser transhomem, muitas vezes, tem a prerrogativa de desafiar normas de gênero. A resistência
à generificação sexista das pessoas e dos objetos é uma reação intrínseca a um poder
coercitivo, manifestado através do binarismo compulsório, que tenta imprimir um modelo
hegemônico na sociedade, onde corpo, subjetividade, desejo e práticas sexuais sejam lineares
e “coerentes” entre si.

2. A resistência e as peculiaridades dos transmeninos

Poucos trabalhos têm identificado vivências de transmeninos e transmeninas, ou como define


Gaspodini (2013), as transcrianças. Conforme o argumento do autor,

12
A expressão entre gêneros refere-se a pessoas que vivenciam experiências de trânsito e/ou bricolagens
identitárias de gênero. Dentre estas pessoas, destacam-se as que não se identificam com o gênero e/ou o sexo
atribuídos no nascimento ou a partir de biotecnologias (como ecogramas e ultrassons) que “identificam sexo” – e
sinalizam para o gênero. Tal conceito procura identificar algumas das diversas situações de deslocamentos
identitários individuais e coletivos relacionados a gênero. Tais pessoas – como todas as outras –, tem atribuídas a
elas, na gestação e/ou no nascimento, não só um sexo (detectado especialmente por conta da presença de vagina
ou pênis) como um gênero (feminino/masculino). Por terem um gênero atribuído/designado na gestação e/ou
nascimento que não as contemplam (feminino/masculino) e se identificarem com o gênero distinto, vivenciam
experiências entre gêneros. Estão entre o gênero de atribuição e aquele o qual se identificam e/ou se expressam.
Há também as pessoas que se encontram entre o gênero de designação e os dois outros gêneros, com os quais se
expressam e/ou identificam (como ocorre com pessoas que se identificam bigêneras ou pangêneras). A expressão
entre gêneros pode acolher, igualmente, pessoas que se percebem entre o gênero que lhes foi assignado e
nenhum outro gênero de identificação e/ou expressão – como é o caso dos agêneros (MARANHÃO Fº, 2012b).
13
Lembramos que em documentos, em sua vasta maioria, escolhe-se por definir o sexo biológico dos indivíduos
em detrimento do gênero.
401
Grande parte do sofrimento na transexualidade advém do fato de perceber-se não-
cisgênero. Não são as características biológicas macho/fêmea que predeterminam a
identificação com as categorias homem/mulher, construídas sócio-historicamente.
O sofrimento desse “não-pertencimento” se intensifica a partir das ações dos
adultos, guiados por um sistema de crenças e normas, que acabam por negar à
criança a autonomia de sua construção identitária (GASPODINI, 2013, 342).

A primeira manifestação da resistência dos transhomens costuma ser na é na infância. Apesar


de não possuírem ainda o que alguns descrevem como “terríveis caracteres sexuais
secundários” 14, quando se percebe a sensação de estranheza. Inicia-se o enfrentamento dos
conflitos e, conscientemente ou não, reações de resiliência.

“Destruí minhas Barbies e bonecas Eliana” é uma das narrativas sobre roupas e brinquedos,
provenientes dos fóruns de discussão. Muitos concordaram no fato de terem possuído objetos
considerados femininos, como bonecas – geralmente desnudadas, riscadas, com os seios
amputados e os cabelos cortados. Outros as tratavam como namoradas, beijando-as e usando-
as para reforçar suas próprias identidades, figuras masculinas em construção. Os transmeninos
parecem traduzir, de forma lúdica, através da brincadeira e sua relação com objetos, aspectos
de sua subjetividade.

Alguns transmeninos foram obrigados por suas mães ao uso de faixas nos cabelos compridos
e mencionaram que colavam chiclete ou tentavam pegar piolho na escola para forçarem seus
cortes de cabelo (Leo gostava da faixa, porque o Tai do Digimon também usava uma). Poucos
conseguiram ganhar bonecos, como afirmou também Leo: “Brincava sempre com o Ken kkk,
tive a sandália e o óculos do Seninha e usava uma calça do Tigor T”. A maioria teve tamanco
da Carla Perez, camiseta da Lilica Ripilica, botas brancas ou rosas da Xuxa – motivos de
grande constrangimento e descontentamento.

Narrativas como estas parecem demonstrar que, numa determinada aprendizagem do que é
“ser um menino”, brincar (ou cuidar) de bonecas não é permitido – visto que tal atividade é

14
Os caracteres sexuais secundários são modificações do corpo que ocorrem devido ao funcionamento do
sistema reprodutor
402
associada desde a infância com características femininas (especialmente maternais). Nessa
espécie de pedagogia do gênero masculino, talvez brincar de bonecas, só fosse permitido “só
quando adulto e se forem infláveis”.

Quando perguntados sobre as brincadeiras prediletas a maioria respondeu: lutas, futebol,


carrinhos, pipa, peão, soldadinhos, bola de gude, carrinho de rolimã, espião, videogame,
casinha (quando eram o pai), jogos de ação, que envolviam corrida, como piques (esconde,
bandeira), polícia e ladrão, bicicleta, skate e jogos competitivos. Ramon complementa:

brincar de faz de conta pq dai eu podia ser um cara nas brincadeiras, tipo power
rangers. Inventar e desenhava as coisas, que eu falava que ia construir kkkk mas no
fim só ficava no papel mesmo... Gostava mt de legos tb, coisa de montar... brincar
de espião na rua da casa da minha vó, foi uma infância bem aproveitada até, apesar
do sofrimento... Eu sofria mais na escola mesmo, que eu não me soltava, era
MUDO, não falava com ninguém. No jardim eu falava por sinais com a professora
kkkk.

3. Transfobia na adolescência: a estraga-prazeres

Embora alguns autores abordem o universo de adolescentes que se autodesignam como


15
travestis e transmulheres (DUQUE, 2011, AMARAL, 2012, 2013), estudos sobre
transhomens adolescentes são insuficientes. Nery e Maranhão Fº não identificaram trabalhos
sobre esta temática específica.

15
Seguindo a escolha linguística para o gênero masculino, o mesmo acontece no feminino, quando
transmulheres são sinônimo de mulheres trans, MTF (male to female), transwomen ou transfeminina.

403
Para o transhomem adolescente, é extremamente indesejável o desenvolvimento de
características sexuais secundárias, sendo este sofrimento acentuado pela percepção de
rejeição advinda do preconceito social em relação à mobilidades de gênero. Esta violência
recebe o nome de transfobia, definida por Jaqueline de Jesus como o “medo ou ódio com
relação a pessoas transgênero” (DE JESUS, 2013), especificada assim por diferir das outras
LGBTfobias16.

De um modo geral, a adolescência é o período em que os transhomens preferem ser


confundidos com travestis, moleques imberbes ou gays17, do que com sapatões. Thiago é um
dos que “passam batidos” como uma figura masculina e achou incrível quando a mãe ( que
não o vê assim), veio lhe perguntar: “Mas se ele é gay, como que dá em cima de você?”. Na
escola, além da discriminação, alguns são instigados à violência como “comprovação de
masculinidade”, explicitando a lógica do “se você quer ser homem, aprenda a brigar como
homem”.

Muitos se tornam quase mudos, com medo do efeito da voz mais aguda do que o desejado. A
preocupação também permanente com o disfarce das mamas ou com a gesticulação, nem
sempre “máscula o suficiente” gera muita ansiedade, introspecção e sentimentos persecutórios.

A questão do nome social permeia diversos espaços sociais dos transhomens, como a procura
por um trabalho, por exemplo. Segundo Luis, “as empresas sempre dão um „jeitinho‟ de dizer
não quando te veem, e se te admitem muitos não querem colocar o nome social no crachá!”.
Na hora de preencher um currículo, não se sabe qual nome causará menos problemas.

Transhomens com escolaridade de nível superior, que conseguem empregos valorizados e/ou
de sucesso, geralmente, permanecem com o nome de registro para não perder o cargo. Um
deles, mestre em Antropologia, não aguentando o “enxotamento” da universidade, preferiu
trabalhar como autônomo, lavando pets.

Nos hospitais, inclusive os credenciados pelo SUS, transhomens não são respeitados com seu
nome social conforme estabelece a legislação. Poucos frequentam ginecologistas ou

16
Homofobia, lesbofobia, bifobia, transfobia e intersexofobia são formas de violência específicas relacionadas à
população LGBT.
17
por aparentarem ter todos corpos masculinos.
404
psicoterapeutas particulares, porque estes não estão preparados/as para recebê-los. Impedidos
de realizar doação de sangue, alguns sofrem injúria, como Vitor, ao ser insultado por um
atendente como “lésbica escrota”.

Nos presídios, poucos sabem da existência da transexualidade masculina e muitos se veem


como “lésbicas caminhoneiras” 18 . Dois representantes da ABHT constataram este fato no
Presídio do Bom Pastor, em Recife e doaram um exemplar do livro Viagem Solitária (Nery
2011), como forma de propulsionar o debate.

Raros são os que têm apoio familiar. Em grande maioria, são considerados “lésbicas doentes
ou safadas”, que envergonham os familiares e a vizinhança, como é o caso de Samuel:

Meu pai sente vergonha de andar comigo na rua, insiste em corrigir as pessoas
quando me tratam no masculino e mesmo assim, estou fazendo questão de não tirar
a barba. De vez em quando ele joga na minha cara que não entende uma pessoa
querer ser homem e arrumar um „viado‟ pra namorar (se referindo à minha
namorada q é MTF). Ainda bem q moro sozinho.

A família é, muitas vezes, o espaço de relações sociais mais fortemente reprodutor de


sofrimento, sobretudo se muito religiosa, utilizando-se do pecado e da culpa para condená-los.
Citamos, entre as atrocidades cometidas, o “estupro corretivo” 19, inclusive com participação
de familiares, como forma de “tratamento”. Os que ainda não desenvolveram recursos
suficientes para abandonar tal contexto de violência veem-se obrigados a suportá-lo, como
Kaio:

Eu desisto, não aguento mais levar porrada (física e mental) nem preciso abrir a
boca pra mãe enfiar a mão na minha cara, basta me ver vestido com roupas

18
Nem todas são necessariamente transhomens.
19
é uma prática criminosa a qual um ou mais homens estupram mulheres lésbicas ou que parecem ser,
aparentemente com o objetivo de corrigir suas orientações sexuais.
405
masculinas e binder20. Ontem tentou me enforcar, porque meu pai a acusou de não
ter me criado direito. Vou voltar com o meu nome de registro, me vestir como uma
garota e afogar meu próprio ser. Meu único desejo ultimamente tem sido a morte,
mas me recuso a morrer como mulher, isto não aceito de forma alguma.

E também Silas:

Hoje no telefone com minha mãe, ela ficou constantemente me chamando de


“querida”' (mas num tom de pirraça mesmo) Pedi que ela parasse com isso e o que
ela me respondeu: Vai para o quinto dos infernos! e desligou na minha cara. Os
pais sempre acham q é só um super homossexualismo.

Como ocorre com as pessoas cisgêneras 21 , há pessoas transgêneras que se declaram


heterossexuais, homossexuais, bissexuais, pansexuais e assexuais. A orientação sexual
também é motivo de discriminação em ambos os segmentos, sendo que nos transhomens, a
confusão e a invisibilidade são maiores ainda, como demonstra Breno: "Quando digo que sou
um transgay, ninguém entende, perguntam logo: Mas se vc gosta de homem, pra que deixou
de ser mulher???". Transgay, como refere Breno, é o transhomem que se sente atraído e/ou
envolvido afetivamente por outro homem (trans ou cisgênero).

Em meio às próprias inter-relações entre a população LGBT também há reclamações de


discriminação, como demonstram Lino e Alceu, respectivamente: “Sofro no meio gay, por não
ter uma aparência de um macho alpha com um pinto no meio das pernas e para a maioria, um
ftm continua sendo visto como uma mulher” .

Por incrível que parece o meio LGB e até o T também é o mais preconceituoso. As
pessoas heteros são mais tranquilo. Pelo menos comigo foi assim. Não tive e não
tenho problemas com homem cis e até os gays que conheço também não tive

20
Binders são coletes para a faixa torácica, servindo para esconder as mamas.
21
Pessoas cisgêneras identificam-se com características de gênero atribuídas ao seu sexo biológico.
406
muito, mas as lésbicas... PQP... É tenso!!! Mas, como não dou muita confiança, eu
corto logo.

4. Transhomens (in) visíveis

Outra discussão levantada pelos transhomens refere-se à sua (in)visibilidade política e


midiática. Azimute Zamur comenta: “falando em política, acredito que graças a pessoas como
eu, outras tantas estão descobrindo que é possível mudar de gênero, de sexo e de vida”
(ZAMUR, 2013, p. 568).

André Lucas Guerreiro Oliveira se denomina Menino Guerreiro, cuja escolha deu-se
conforme relata:

Menino porque sempre me encantou a doçura e a genialidade da infância que se


contenta em brincar de ser feliz e guerreiro porque aprendi a ser mais forte que o
sofrimento, mais estratégico que os obstáculos e mais valente que o ódio e a
aversão a mim desferidos (OLIVEIRA, 2013, p. 533).

Como se percebe, a resistência é experiência que pode ser contínua. Halberstam argumenta
sobre a menor visibilidade de transhomens. Para o mesmo, transgênero

pode ser uma mulher que deseja se tornar homem, mas ninguém faz muito caso
disso e ela se torna invisível. Quando um homem quer se tornar uma mulher, há
ideia de que é fácil, porque a mulher já é artificial, então basta se vestir, usar
maquiagem e salto. A mulher que quer se tornar um homem enfrenta mais
problemas porque há tanto poder social investido na categoria homem que não
acreditamos que isso possa acontecer. Acreditamos que masculinidade é uma
prerrogativa de corpos biológicos e um lugar de privilegio social. Então a
sociedade se interessa menos por mulheres que se tornam homens que por homens
407
que se tornam mulheres, que são considerados fabulosos, expressivos
culturalmente. O homem transgênero, por outro lado, é alguém que está invadindo
o território da masculinidade, que é protegido por homens, para os homens. Então
eles passam despercebidos. (HALBERSTAM, 2012, p. 9-10).

Ainda acerca da invisibilidade, Almeida entende que grande parte do corpo social ignora a
condição dos transhomens grande em parte devido ao

olhar falocêntrico que impregna as representações sobre a experiência masculina.


Nesse sentido, é como se os comportamentos e os significados considerados
masculinos emanassem necessariamente da presença material original do pênis.
Tais representações tornam-se evidentes quando muitas pessoas, na presença de
homens trans – especialmente dos que dispõem de corpos peludos e musculosos e
não fizeram faloplastia – manifestam extrema perplexidade, como se esses
contrariassem toda a lógica e é comum que em seguida utilizem expressões, tais
como “como pode ser tão perfeitinho?” (ALMEIDA, 2012, p. 519).

Guilherme Almeida acrescenta outra motivação para a menor visibilidade: o resultado das
adequações corporais de transhomens. Com a mamoplastia masculinizadora (mastectomia
bilateral) e o uso de testosterona, os “homens trans, ao contrário do que ocorre com as
mulheres trans, tornam-se bastante próximos fisicamente às expectativas sociais de como
deve parecer um homem, o que contribui para invisibilizá-los”. Relata que “por esse motivo,
não sei se homens trans desejam comunidades reais e muito menos formar grupos políticos,
ou se a necessidade de encontrar pares se basta nesses encontros pontuais e/ou virtuais de
socialização”, pois o desejo mais forte pode ser o “de sumir na multidão, o „direito à
indiferença‟”. (ALMEIDA, 2012, p. 519).

Transhomens convivem com a urgente necessidade de politização e desenvolvimento de


estratégias de visibilidade. No Brasil, o marco da representatividade dessa categoria

408
identitária se deu a partir da organização e fundação da Associação Brasileira de Homens
Trans (ABHT), em São Paulo, em 30 de junho de 2012, no Centro de Referência da
Diversidade (CRD).

No endereço eletrônico da ABHT22, uma pergunta se faz claramente visível: “onde estão os
homens trans no Brasil?”. Ao acessar o link, uma série de indicações de blogs e canais da
internet sobre o tema, tanto no Brasil como no exterior possibilitará uma variedade de
caminhos para compreender essas subjetividades. Os blogs indicados são o de João Nery, o
Vídeos Transgêneros, o Transexualidade FTM, o Becoming Bernardo, o Trans-Boy, Meu
Segundo Nascimento e TechnoHombre. Os canais sugeridos são Power Rangers FTM, FTM
Brasil, Kaito Felipe, Leonardo Peçanha, Bruno Oliveira, Jack A. Macalister e Jack Akai.

Ao que tudo indica, um movimento crescente de resiliência entre os transhomens acontece


através da organização de uma associação específica, e de diversas plataformas cibernéticas
de compartilhamento de informações.

Narrativas coletadas no Facebook evidenciam esta crescente visibilidade: Juliano comentou:


“foi graças a João Nery e outros homens trans que eu saí de todos os armários possíveis.
Agora me admito homem trans com muito orgulho na escola e no trabalho e o mais
importante, em casa também. Mas sei q a luta eh longa.”

Para Marquinho, “se a gnt não der a cara pra bater e se mostrar socialmente, como vamos ter
nossos direitos assegurados na sociedade?”. É graças à persistência de alguns transhomens
que políticas públicas têm sido implementadas, reavaliadas ou melhoradas. Terry anunciou:

HOMENS TRANS DE RECIFE / REGIÃO METROPOLITANA: Conseguimos o


endocrinologista! A secretária da gestora da Secretaria de Saúde ligou para mim
hoje à tarde e disse que conseguiram atendimentos endocrinológicos para vocês no
Hospital Barão de Lucena e no Hospital Agamenon Magalhães. Ela me pediu para
eu enviar para elas vários dados de vocês... Me passem tudo inbox o mais
URGENTE possível. Nome de registro, nome social, endereço, nome da mãe,
22
Associação Brasileira de Homens Trans. Disponível em: <http://homenstrans.blogspot.com.br>. Acesso em:
20 dez. 2012.
409
número do Cartão SUS (se tiver, se não tiver, não precisa), data de nascimento, RG
e telefone. Quem precisar de laudo, como alguns de vocês já sabem, uma
conselheira do Conselho Regional de Psicologia já se ofereceu para facilitar isto.
Nossa primeira vitória, nosso primeiro passo para o início dos atendimentos do
Processo Transexualizador no SUS aqui em Pernambuco!

Zoby comenta que a maior visibilidade tem refletido nos hospitais que realizam tratamento
pelo SUS: “alguns, como o HUB (Hospital Universitário de Brasília), já estão criando grupos
exclusivamente masculinos” (ZOBY, 2011, p. 4). Uma das principais reivindicações
(hormonização a partir dos 16 anos) foi conseguida no SUS em São Paulo, assim como o uso
de bloqueadores hormonais no início da adolescência. Os transhomens de outros estados
reivindicam esta melhoria também em suas localidades.

Com o objetivo de emponderar os transhomens brasileiros acerca de seus direitos ao exercício


da cidadania e incentivar o protagonismo da militância, será realizado o 1º Encontro de
Homens Trans do Norte e Nordeste, de 14 a 16 de junho, em João Pessoa, com o apoio da
prefeitura local.

Entretanto, a questão da visibilidade/invisibilidade de transhomens perpassa


impreterivelmente a situação de registros jurídicos de reconhecimento.

5. Documentação

A questão dos documentos aparece como um dos problemas principais. Os transhomens


passam por dificuldades financeiras por não conseguirem trabalho, têm seu pedido de nome
social negado na lista de chamada das escolas e em seus documentos. O mesmo acontece com
a carteira de habilitação a motoristas. Apenas Beto não quis mudar os documentos: “Sou
mulato, moro no Nordeste e toda hora sou parado na rua para ser revistado. Prefiro ter
410
documentos femininos porque assim, pelo menos, tenho a lei Maria da Penha 23 para me
proteger. Tá maluco ir parar numa prisão masculina”. Em relação a esta lei, contudo, deve-se
destacar que uma de suas lacunas está no recebimento de transhomens (em diversos estágios
de adequação de gênero) nas delegacias de mulheres: os/as funcionários/as responsáveis,
assim como a lei, não estão suficientemente preparados/as para atender a este público.

Uma forte tendência entre transhomens é o isolamento social, sobretudo no próprio quarto,
como forma de se preservar do sofrimento em contato com as relações sociais. Pensamos ser
esta uma das razões pelas quais as discussões no ciberespaço têm proporcionado o diálogo e a
troca de experiências, bem como a criação de laços e redes de apoio mútuo. Alguns buscam
informações no Facebook sobre como adequarem o nome e o sexo em seus documentos,
como Mathias: “Prezados, algum de vocês é (ou conhece) um homem trans que conseguiu
alterar o nome e o sexo em decisão de 1º grau em Santa Catarina? Por favor, entrem em
contato comigo. Obrigado”.

Enquanto em alguns países, como a Inglaterra, o critério “sexo” já foi abolido dos passaportes,
no Brasil é aprovado o novo modelo de documento de identificação, constando como
obrigatória a definição sexual, o que ocasionou revolta e indignação a Cris: “E pra quem não
mudou judicialmente o sexo, vai passar mais constrangimento ainda? Só vou andar com a
carteira de motorista que tá num plástico velho e nem dá pra ler”.

23
A Lei Maria da Penha é uma lei de gênero e baseia-se no princípio da isonomia. Prevê também, no âmbito
familiar, a proteção de homens agredidos ou ameaçados por mulheres.
411
Figura 1

Vitório relata: “não paro de pensar nisso, vai ser horrível. Só vou mudar meu RG quando não
der mais pra usar em lugar nenhum”. Joaquim acrescenta: “ai...e o Brasil, ou engatinha ou
escorrega na maionese 4 vezes prá trás, precisamos fazer pressão política para retirar o campo
„sexo‟ desta nova carteira, como também do passaporte”.

Em outra postagem acompanhada de imagem ilustrativa (Figura 1), Joaquim comentou:

Sinto-me enganado mais uma vez pelo Governo Federal. Anunciaram no dia 29 de
Janeiro que o Cartão SUS teria o nome social de pessoas trans. Olhem o cartão
novo e me digam se também não se sentem enganados? Além de ter em letra maior
o nome de registro tem também bem visível o sexo. Sabem quando aqueles
funcionários preconceituosos, que estão na base, vão chamar a gente pelo nome
social? NUNCAAAAAAAA!

Trans brasileiros reivindicam a aprovação de um projeto de lei semelhante ao aprovado na


Argentina, pela Lei de Identidade de Gênero. Em nosso país, os deputados federais Jean
Wyllys e Erika Kokay, em 20 de fevereiro de 2013, protocolaram o Projeto de Lei 5002/13,
412
intitulado Lei de Identidade de Gênero – João W. Nery 24 . Esta lei garante o direito do
reconhecimento à identidade de gênero de todas as transidentidades no Brasil, sem
necessidade de autorização judicial, laudos médicos ou psicológicos, cirurgias e
hormonioterapias. Preserva todo o histórico do indivíduo, assegura o acesso à saúde no
processo de transexualização, enfim, auxilia na despatologização das transidentidades.

O contexto atual aponta para diversas lacunas na asseguração de direitos de pessoas trans em
relação às cisgêneras, daí a importância de articulação política e estratégia de um movimento
social preocupado com estas demandas específicas.

Considerações inconclusivas

Como visto, desde crianças muitos transhomens procuram transgredir / transcender as normas
de gênero que a sociedade impõe a seu respeito, os definindo como mulheres, em contradição
ao modo como se percebem e se sentem.

A reelaboração contínua de suas identidades e representações subjetivas e sociais se dá a


partir da adequação às masculinidades, e na agenda política dos transhomens emergem
assuntos fundamentais, especialmente associados à aparência corporal e ao nome, vistos
serem estes dois referentes identitários dos mais importantes. O ativismo transhomem,
emergente no Brasil, tem procurado se articular para resistir a medidas governamentais que
são fonte de constrangimento a estas pessoas.

As transidentidades ainda podem ser consideradas incompreendidas em diversos contextos


sociais, grande em parte na produção (ou não) de conhecimento sobre o assunto. É recente a
articulação dos transhomens brasileiros, facilitada pelas relações virtuais nos ciberespaços.

24
Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/1059446 .pdf.>. Acesso em: 15 mar. 2013.
413
A troca de experiências de vida entre essas pessoas e contextos fortalece a autonomia de
subjetividades através da criação de laços de pertencimento, fazendo com que muitos
procurem se fortalecer politicamente, resistindo a medidas governamentais que lhes seriam
fonte de constrangimento, bem como para garantir seus direitos a adequações jurídicas que
atendam a algumas de suas necessidades. O ativismo político e a articulação em movimentos
sociais parece ser a melhor forma de conquistar visibilidade, garantir direitos e construir
sentimentos de comunidade e identidade.

Este artigo não pretende esgotar a reflexão e produção de conhecimento acerca da


transmasculinidade. Questões que envolvem a vida e as subjetividades dos transhomens são
emergentes e, por esta razão, este trabalho apresenta primeiras considerações sobre o assunto,
convidando a novas discussões e desdobramentos.

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