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A CARBONÁRIA PORTUGUESA

Marco Monteiro e Vera Grilo, historiadores

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Abordar um tema como a Carbonária Portuguesa torna-se extremamente difícil uma vez que,
apesar de ter marcado profundamente a nossa sociedade sobretudo no que concerne à
implantação da República, era contudo uma sociedade secreta.

Todavia, o estudo que se segue tem em vista a compreensão dos objectivos concretos desta
sociedade desde o seu aparecimento em Portugal, tentando a todo o custo explicar a sua
organização, as suas práticas e rituais, e demonstrando todo o desenvolvimento de uma
sociedade que se mostrou diferente da tão conhecida Maçonaria.

Na verdade, quando se fala da Carbonária é frequente associá-la de imediato à Maçonaria e


muitas vezes confundir estas duas distintas sociedades. No entanto, esta associação não se
aparenta assim tão linear e muito menos a Carbonária funcionou como braço armado da
Maçonaria como muitas pessoas têm escrito e falado. Quando muito, a Carbonária poderia ser
não mais do que uma associação paralela da Maçonaria, embora nem todos os maçons fossem
carbonários.

A Carbonária em Portugal encontrou o seu berço na Carbonária Italiana que, segundo a sua
história, remontará ao século XIII, época em que apareceram em Itália os primeiros
carbonários, ligando-se à continuação das lutas que se haviam travado na Alemanha entre os
Guelfos, partidários do Papa e os Gibelinos, partidários do imperador. Os primeiros defendiam
precisamente a não interferência de estrangeiros nos destinos de Itália, enquanto que os
Gibelinos defendiam o poder do império germânico, mantendo-se esta luta até ao século XV.

O termo “carbonário” advém da palavra italiana carbonaro que significa carvoeiro, uma vez
que os Guelfos encontravam subterfúgio no interior das florestas, mais concretamente nas
choças dos carvoeiros. Contrariamente a estas origens existe quem defenda que a Carbonária
ganhou os seus contornos em França, no entanto, será o figurino de Garibaldi, Cavour e
especialmente de Mazzini(1) que servirá de motor de arranque para o início da Carbonária
Portuguesa.

Por volta de 1818, foi fundada uma sociedade secreta (indícios de uma pequena Carbonária)
em que os seus actos viriam a desencadear a revolução liberal de 1820. Já em 1828, “A
Sociedade dos Divodignos” foi fruto da organização de um grupo de estudantes da
Universidade de Coimbra que criaram um núcleo secreto, com bases carbonárias, com o
objectivo primordial de combate à monarquia absoluta liderada por D. Miguel. Contudo, esta
sociedade acabou em maus lençóis e a maioria dos seus intervenientes, depois de
descobertos, acabaram enforcados.

Mais tarde, em 1844, surgiu uma nova sociedade secreta com inspiração carbonária e liderada
pelo general Joaquim Pereira Martinho, embora posteriormente o patrono da “Carbonária
Lusitana”, assim se chamava a nova sociedade, fosse António de Jesus Maria da Costa, um
padre anti-jesuíta de nome simbólico Ganganelli. A vitalidade demonstrada por esta nova
sociedade permitiu a sua expansão em vários pontos do país, em que os seus membros faziam
as reuniões das suas barracas (conjunto de 20 chefes de choças) e ainda das suas choças
(núcleo composto por 20 carbonários).

Apesar de tudo, a “Carbonária Lusitana” acabou por decair e pouco mais se poderia fazer para
retomar os objectivos inicialmente pensados.

Tal desígnio coube a Artur Augusto Duarte da Luz Almeida, bibliotecário das Bibliotecas
Municipais que desde muito cedo participou nas conspirações que decorriam por todo o reino
de Portugal.

Em 1896 surgiria enfim a “Carbonária Portuguesa”, com forte inspiração nos princípios
carbonários italianos e com o intuito imediato de recrutar todos aqueles que tivessem
dispostos a sacrificar tudo pela Implantação da República, resultando desta forma a queda da
Monarquia em Portugal.

Desta feita, a Carbonária Portuguesa era distinta de todas as outras sociedades secretas, pois
apresentava uma diferença notória que passava pela aceitação de elementos pertencentes a
qualquer classe social, sendo menos selectiva e exigente no que concerne à admissão de novos
membros.

Na verdade, esta nova Carbonária surgida agora em Portugal pelas mãos de Luz de Almeida
propunha-se a alterar todos os processos de conspiração, os rituais exacerbados e os métodos
exigentes e anarquistas utilizados por outras sociedades secretas.

É precisamente da sua estrutura interna, da sua organização e dos seus objectivos que
falaremos a seguir, no segundo capítulo deste estudo.

Organização e Estrutura Interna da Carbonária Portuguesa

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Luz de Almeida

Como foi referido no capítulo anterior, Luz de Almeida foi o fundador da Carbonária
Portuguesa e atraiu a esta organização inúmeras personagens ilustres cujos objectivos eram
precisamente os mesmos do fundador: lutar pela causa da Revolução e instituir em Portugal a
República.

Na verdade, o espírito de acção levado a cabo por Luz de Almeida viria a resultar na
consumação de um acto heróico marcado pela Revolução de 5 de Outubro de 1910. Todo o
mérito da organização de uma sociedade que se queria secreta devia-se, acima de tudo, a este
homem que se lançou numa luta necessária ao país, sem hesitações nem precipitações, e que
resultou numa sociedade hierarquicamente organizada onde os letrados não faziam falta.
Aquilo de que a Carbonária precisava era de gente humilde e com vontade de lutar pela queda
da monarquia, representada maioritariamente pela classe de trabalhadores e operários de
diversas profissões.

Antes de percebermos como se efectuavam os recrutamentos para a Carbonária de Luz de


Almeida, é pertinente verificarmos como se encontrava organizada esta sociedade secreta
onde todos os seus membros se conheciam por primos.

Apesar de ter sofrido diversas modificações ao longo do tempo, a Carbonária era constituída
por choças (composta por 20 membros da sociedade secreta), barracas (conjunto de 20 chefes
de 20 choças), vendas (conjunto de 20 barracas com os respectivos chefes) e Alta Venda que
era o resultado da organização de vinte vendas em que os seus dirigentes resolviam elegê-la
como sendo a Suprema Alta Venda da Carbonária.

No que concerne à divisão hierárquica os rachadores ocupavam a última categoria desta


organização, seguindo-se os carvoeiros, os mestres e finalmente os mestres sublimes. (Vide
Anexo A) Estas duas últimas categorias distinguiam-se por serem as únicas a ter acesso às
barracas e às choças (presididas pelos mestres) e em que os mestres sublimes se destacavam
pela possibilidade de serem eleitos para a Alta Venda. O mais alto dignitário da carbonária era
Luz de Almeida, o Grão-Mestre Sublime desta revolucionária organização.

O simbolismo da nova sociedade secreta

Todos os elementos que se propunham integrarem a Carbonária Portuguesa eram sujeitos a


alguns rituais de recrutamento.

O sigilo era a principal arma desta organização e as características do promitente carbonário


passavam pela coragem, pela força e pela vontade de quebrar com a monarquia, mesmo que
para tal tivesse de perder ou tirar a vida a alguém.

Dentro da misteriosa sociedade apenas o Grão-Mestre Sublime e Alta Venda conheciam todos
os seus membros, porém, a sua identidade era desconhecida de todos.

Depois de garantido o sigilo por parte do proponente à nova organização secreta, chegava a
hora das iniciações. Estas, por sua vez, tinham preferencialmente lugar em casas ou mesmo
escritórios desabitados que fornecessem a segurança e o sigilo necessário ao bom
desempenho das acções a que a carbonária portuguesa se dedicara desde muito cedo.

Os membros que assistiam a estas iniciações eram algo enigmáticos, cobrindo os seus rostos
com máscaras de cor azul correspondentes à Alta Venda ou de cor encarnada para os
restantes primos. O chefe carbonário responsável por estas iniciações era assistido por dois
secretários e dois vogais, em que um deles vigiava o local onde se processava a respectiva
iniciação.
Passando por estas etapas de olhos sempre vendados, o futuro membro carbonário só poderia
olhar em seu redor depois de realizado o juramento e de ser devidamente aceite,
processando-se nesta altura o respectivo compromisso de honra.

Desde o início até ao fim deste ritual, todo o clima gerado pelas iniciações eram de um enigma
total. O novo carbonário não chegava a conhecer nenhum dos elementos que faziam parte
desta iniciação, e até mesmo o local onde esta se efectuava ficava sob desconhecimento
absoluto.

Apesar de aceite como um novo elemento carbonário, a sua admissão definitiva dependia
ainda de uma sessão de prova, presidida por três elementos da choça onde o iniciado fora
admitido. Era necessário obter a certeza absoluta de que o novo membro da organização
cumpriria todas as missões que lhe forem incumbidas e, acima de tudo, que fosse fiel ao sigilo
prometido no seu compromisso de honra.

Com em todas as sessões deste género, a parte litúrgica é sempre aquela que marca mais
profundamente todos os seus intervenientes. Desta feita, também nos rituais carbonários o
valor litúrgico surgia como um factor simbólico altamente marcante, apesar de alguns
elementos carbonários não apreciarem muito a forma como estes se processavam.

Porém, na Carbonária Portuguesa a significação emblemática passava essencialmente pelo


valor da sua simbologia, nomeadamente, através de alguns símbolos materializados que eram
frequentemente utilizados.

Para além disso, era também usual a utilização de alguns sinais que formavam uma espécie de
código somente perceptível entre os carbonários. Entre alguns destes códigos encontrava-se o
tratamento por tu e ainda a utilização de senhas e contra-senhas, alguns apertos de mão ou
até com armas de fogo que os ajudavam facilmente a reconhecerem-se.

O próprio vestuário estava revestido de uma grande simbologia carbonária, distinguindo


inclusive, as diversas divisões hierárquicas existentes dentro da organização. Assim, a folha de
carvalho na lapela era utilizada pelos rachadores e pelos carvoeiros. As cores dos cintos
utilizados pelos mestres eram indicativas do seu grau, estando dispostas em aspa e punhal,
enquanto que os mestres sublimes se diferenciavam por um colar de moiré com as cores
carbonárias do último grau, sendo ainda observável um pedaço de carvão cortado em aspa,
pendente neste colar.

Ao Grão-Mestre Sublime estava destinado e em exclusivo o uso do símbolo solar, utilizado nas
várias sessões magnas que decorriam.

Uma Organização cosmopolita

Embora a maior parte das pessoas ligadas à Carbonária Portuguesa pertencesse à classe
trabalhadora e operária, a organização abria as suas portas a todos aqueles que estivessem
interessados em lutar pela causa republicana. Desta forma, a sociedade era profundamente
cosmopolita no que concerne aos diversos tipos de classes sociais que dela faziam parte,
transformando-a rapidamente numa frente popular forte e consistente.

Desde professores, engenheiros, estudantes, médicos, enfermeiros, militares do Exército e da


Armada (oficiais e sargentos), funcionários públicos, comerciantes, artistas (actores, etc.),
pessoal ferroviário, polícias, entre tantos outros, constituíram durante muito tempo esta
sociedade secreta.

Contudo, e como anteriormente já foi afirmado, a carbonária triunfou e distinguiu-se


precisamente da Maçonaria, porque a sua principal força foi a massa popular, ou seja, aqueles
que no fundo deram ímpeto à combatividade desta organização revolucionária.

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A Ditadura de João Franco

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João Franco

Se existiu um momento mais inspirador que incentivasse a Carbonária Portuguesa a avançar


para a causa republicana, esse momento seria marcado certamente pela ditadura levada a
cabo por João Franco, o chefe do governo de D. Carlos I.

João Franco era um homem destemido que enfrentava de uma forma cruel qualquer um que
se mostrasse contrário à sua razão de ser.

Em relação aos republicanos o seu ódio não podia ser maior e as várias tentativas de por cobro
aos revolucionários do reino provam o seu desdém por estes homens, e preferencialmente por
toda e qualquer associação secreta.

Porém, a forma como desenvolveu a sua política não foi a mais favorável à manutenção da
monarquia, vindo a desencadear raivas e rancores por parte daqueles que se consideravam
prejudicados por um governo que “roubava” descaradamente o seu povo.

Perante este quadro político, acorriam cada vez mais à carbonária gentes de todas as classes
dispostas a conspirar contra o poder monárquico e a acabar decididamente com este período
de despotismo.

Para além das críticas dirigidas a João Franco, o próprio rei D. Carlos era imputado de
“criminoso” e de “ladrão do reino”, pois os salários absorvidos pela família real ultrapassavam
em muito os rendimentos auferidos por outros reinos, por sinal em melhores condições
financeiras que o português.
Deste modo, as cartas estavam lançadas e o ditador servira de rampa de lançamento para uma
revolução à muito desejada, com objectivos bem delineados e em que o estado de ânsia dos
seus colaboradores permitia prever o sucesso da república.

Quem não parecia muito incomodado com esta situação, pelo menos não o demonstrava, era
João Franco que teimava em fazer frente às hostes republicanas incitando, inclusive, o rei a
assinar um decreto que sentenciava à morte todos aqueles que discordavam da política do
reino.

Não fosse a revolução organizada pela carbonária a 28 de Janeiro de 1908 contra o ditador
João Franco ter falhado, por motivos relacionados essencialmente com a imprudência dalguns
dos membros da organização, talvez o regicídio pudesse ter sido evitado.

Mas a verdade é que a revolução falhou e a próxima vítima, ao invés do ditador, será
precisamente o penúltimo rei de Portugal: El Rey Dom Carlos I.

O Regicídio

(01 de Fevereiro de 1908)

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Eram cinco e meia da tarde. Quando a carruagem que transportava o rei, a rainha e os
príncipes, regressados de Vila Viçosa, voltava do Terreiro do Paço para a Rua do Arsenal,
soaram tiros. Um popular aproximou-se da carruagem descoberta e desfechou uma carabina
sobre o rei. A rainha, o príncipe D. Luís Filipe e o Infante D. Manuel levantaram-se para
proteger D. Carlos mas dois novos tiros foram disparados por outro indivíduo atingiram
mortalmente D. Luís Filipe. D. Manuel ficou ferido num braço e a rainha procurou afastar os
agressores, enquanto o cocheiro fustigou os cavalos e entrou, com a carruagem crivada de
balas, no pátio do Arsenal.

Os regicidas, Manuel da Silva Buiça e Alfredo Luís da Costa, foram imediatamente abatidos.
Um oficial de ourives, José Sabino Costa, que ia colocar uma carta no correio, foi tido também
como regicida e morto por engano.

Os vários tiros disparados no local feriram alguns populares, que tiveram de ser socorridos. À
noite, os cadáveres do rei e do príncipe foram levados, sob escolta, para o Palácio das
Necessidades, onde foram recebidos pelo médico de serviço, D. Tomás de Melo Breyner que,
obviamente já nada pudera fazer.

Embora não fosse o alvo directo a abater, o rei estava morto e o caminho para a revolução
estava trilhado. D. Manuel II tinha em mãos um conflito político muito difícil de resolver e a
República nunca estivera tão perto como agora. Entretanto, os “assassinos” da monarquia
tornavam-se em heróis meritórios de um verdadeiro culto popular. A sua imagem difundir-se-
ia em todos os jornais incitando a propaganda revolucionária. No seio de uma sociedade
envolvida pelo desejo de mudança, assistia-se a um recrudescimento da influência do Partido
Republicano Português (PRP).

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