Cada potência possui um rei entre seus atos e um outro entre seus objetos;
para a mente, reina o conceito, triunfa a agudeza... Entendimento sem agu-
deza nem conceitos, é sol sem luz, sem raios. [...] O que é para os olhos a
beleza e para os ouvidos a consonância, equivale o mesmo para o entendi-
mento, o conceito. (Benedetto Croce)
Introdução
Na primeira metade do século XX, estudiosos herdeiros de uma tradição wargbur-
guiana procuraram interpretar as variadas configurações simbólicas presentes nas artes
visuais, considerando suas relações narrativas, alterações de significado e variações
iconográficas na busca de um método de análise fundamentado em bases históricas.
O contraponto dos estudos pautados na gênese das imagens – a iconologia –
foi a formulação de uma metodologia sociológica ancorada em um estruturalismo
que importou o modelo lingüística de Pierce para a abordagem antropológica da
cultura. Merleau-Ponty afirma: a tarefa, pois consiste em ampliar a nossa razão a
fim de torná-la capaz de compreender o que em nós e nos outros precede e excede
a razão – ou seja, a estrutura.
A busca de uma legitimidade das ciências humanas na construção do saber e, no
caso específico, das diversas formas de interpretação das artes produz uma série de ques-
tionamentos: os nomes das coisas nascem de uma postura arbitrária ou da colagem da
natureza? O arbitrário do signo, encontrado na língua, repete-se no esquema visual?
Desde o fim dos anos sessenta, o esforço dos mais importantes teóricos da arte
era o de procurar romper tanto com a crítica de cunho literário quanto com uma
filosofia da arte ancorada na fenomenologia e na iconologia, que buscavam o sen-
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o jogo conceitual disposto no meio intelectual a partir dessa tipologia literária que reu-
nia imagens e texto por meio de um projeto distinto da iluminura medieval.
Se autores contemporâneos como Santiago Sebástian (1986) dão sustentabili-
dade à esta tese, considerando o levantamento da tratadística em suas pesquisas,
poucos historiadores da arte portugueses ou brasileiros detêm um levantamento
substancial das bases literárias que deram suporte aos programas visuais dipostos
tanto nas artes gráficas, quanto nas artes decorativas das igrejas, conventos ou es-
paços seculares. É incontestável a percepção de que estampas, gravuras e impres-
sões – avulsas, em séries ou inclusa em livros (missais, breviários, manuais ...) – ter
sido um dos veículos mais importantes para a divulgação do imaginário desse pe-
ríodo.
No Brasil, levantamentos pontuais confirmam a presença dessa tratadística:
Hanna Levy, em Modelos europeus na pintura colonial (1978); Carlos Ott, em Es-
cola Baiana de Pintura (1982) e Valadares (1969) dão sustentação aos seus estudos
por meio do encontro com textos clássicos de tratadísticas.
Fontes importantes referentes à construção do pensamento religioso do século
XVIII são encontradas em arquivos e bibliotecas brasileiras: O Theatro moral de la
vida humana y de toda la philosophia de los antigos y modernos, escrito em 1648
e localizado no Convento Franciscano de Salvador; El museo pictórico y escala
óptica (1715) de Antônio Palomino Castro y Velasco e de outros manuais exausti-
vamente utilizados pelos pintores setecentistas na área ibérica, como instrumento
de aprendizagem e prática perspectiva. Iconologia de Césare Ripa, com uma edi-
ção de 1764, pode ser encontrada em seus cinco volumes na Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro. Alguns poucos manuais práticos e filosóficos sobrevivem nas
bibliotecas e arquivos eclesiásticos, no entanto, a prova mais contundente da influ-
ência de modelos europeus encontra-se registrada nas próprias obras dos artistas
coloniais.
Partindo dos estudos de Mário Praz, torna-se imprescindível resgatar a influên-
cia dos estudos emblemáticos e dos tratados iconológicos para a sustentação de
teses interpretativas das fontes visuais relacionadas à devotio moderna. Conside-
rando esta proposição, proporemos a aplicação do método disposto nos estudos de
emblemática para a apreciação de onze estampas dispostas em Exposição Fúnebre
e Symbólica por ocasião das Exéquias de D.Maria Francisca Dorotéia (1771).
PRAZ, 1989, p:24. Empresa: conjunto de emblemas de um mesmo conteúdo conceitual ou
programa moral; Emblema: representação figurativa, alegórica ou simbólica, acrescida de
uma tarja ou bandeira escrita (neste caso, a representação tem mais força que as palavras).
Epigrama: metáfora poética acrescida de imagem para reforçar a mensagem alegórica (neste
caso, a linguagem é mais forte que a imagem plástica).
SCHOPENHAUER. Die Welt. Apud PRAZ, 1989, p:18.
Yacy-Ara Froner - 711
GONZÁLEZ DE ZARÁTE, 1989, p. 245-255.
CESÁRE RIPA (1593), Apud GOMBRICH, 1986, p: 232.
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Sob a égide da devotio moderna, ambos buscaram a pureza dos sentidos em suas
formas de expressão: acaso porque sua imaginação era demasiado vívida, busca-
ram abrigo em um mundo vazio de percepção, no inefável.
Os emblemistas, munidos de fontes clássicas e medievais – conteúdos filosófi-
cos, poéticos e pictóricos de tradições antigas – recorreram a toda sorte de material
disponível para a elaboração de seus tratados. Estes, impressos por editores espe-
cializados, foram divulgados pelo mundo moderno, influenciando outros gêneros
de pinturas e ilustrações, colaborando no processo de doutrinação nos quatro can-
tos da terra, inclusive nos países coloniais.
Além da ampla divulgação, a composição emblemática, organizando formas e
palavras no jogo das ilustrações místicas, adquire uma certa abrangência e totalidade no
sistema de educação moral e religiosa da Igreja: se por um lado atinge o espírito através
da representação plástica, por outro desperta a consciência e aguça o processo de asso-
ciação cognitiva através da mensagem exposta nas frases demarcadas (epitáfios).
No final do século XVI o jogo intelectual se intensifica, orientando cada vez
mais a construção dos emblemas: quanto mais complexa e repleta de significados for
sua execução, mais conceituado será o seu construtor: Emblemas, Hieróglifos, Apó-
logos e Empresas são como pedras preciosas no ouro de um elegante discurso.
No entanto, a complexidade das formas emblemáticas ao invés de contribuir
à sua disseminação promoveu, na verdade, o impedimento de sua leitura: somente
alguns poucos privilegiados eram capazes de traduzir e decifrar as ilustrações que
cada vez mais se tornaram jogos intelectuais.
Neste sentido, já no século XVII, Plunche propõe a claridade como perfeição
alegórica no discurso emblemático de fundo religioso, pois, apenas sua compreensão
poderia justificar sua existência: pois uma obra está apenas destinada a me induzir à
meditação, é, portanto ridículo que eu me esforce por entendê-la. A procura de uma
maior clareza na transmissão das mensagens morais e religiosas viriam de encontro
às propostas da Reforma Tridentina, que reforçando o processo de conversão pelos
sentidos, incentivou todos os mecanismos que levassem à submissão pela fé.
Desse modo, a questão doutrinal do XVII determina uma certa mudança no
caráter discursivo do jogo emblemático: se num primeiro momento as palavras ti-
nham por objetivo intensificar o enigma proposto na teia das figurações, em um
outro momento elas procuraram integrar e afirmar o significado da construção pic-
tórica, a fim de transmitir uma mensagem mais clara, inteligível e acessível aos fi-
éis. Assim, a construção emblemática também se modificaria para atender às novas
exigências da Igreja.
PRAZ, 1989, p: 18.
GRACIÁN (1649), Apud PRÁZ, 1989, p: 20.
PLUNCHE (1748), Apud GOMBRICH, 1986, p: 213.
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Mira una bóveda: entra en ella con la consideración, y ponte a mirar tus padres
o tu mujer: mira qué silencio. No se oye ruido: sólo el roer de las carcomas y
gusanos tan solamente se percibe. Y el estruendo de pajes y lacayos, ? dónde
está? Acá se queda todo. Llega a un osario, que está lleno de huesos de difuntos,
distingue entre ellos el rico del pobre, el sabio del necio, el chico del grande:
todos son huesos, todos calaveras, todos guardan la igual figura12.
CROCE, 1957, p: 438.
VIEIRA, 1655, AEPNSP-OP (FI). “Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três
coisas: olhos, espelho e luz...”
10
TESAURO, Apud PRAZ, 1989, p: 20.
11
SEBÁSTIAN, 1986, p: 93.
12
MAÑARA, Miguel (1675). Apud SEBÁSTIAN, 1986, p: 94.
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13
Exposição Fúnebre e Symbólica..”. de autoria do Reverendo João de Souza Tavares e ou-
tros escritos compostos por ocasião das exéquias de D.Maria Francisca Dorothéia, Infanta
de Portugal. Exposição oficiada no Arraial do Paracatú por determinação de D.José Luiz de
Menezes Castelo Branco e Abranches, Conde de Valadares, Governador e Capitão general
da Capitania das Minas Gerais (1771). IEB-USP (MS).
Yacy-Ara Froner - 715
Apesar deste tipo de produção estar destinada a todas as pessoas – pois ela
encontra-se instalada em locais públicos –, o programa de construção deste imagi-
nário é decorrente de uma proposta da elite, cuja sensibilidade se expressa por
meio de uma reflexão elaborada ao redor do espírito do tempo, pautada principal-
mente por uma construção intelectual e uma agudeza de espírito, cuja leitura do
pensamento acerca da fragilidade do mundo e de sua destruição eminente perpas-
sa por princípios filosóficos discutidos nos meios eruditos e cristalizadas por meio
de motivos alegóricos.
No dicionário latino encontramos: Vanitas (Vanus) – 1.Aparência vã; aparência
não real, mentira, falsidade; 2.Futilidade, frivolidade, vaidade 3.Inutilidade; 4.Vazio,
oco, fútil, vaidoso. Vanum - 1.nada. O Vanitas, um gênero característico de pintura
moral, geralmente remete a dois contextos específicos: citações bíblicas, principalmen-
te aquelas retiradas do livro de Eclesiastes; e pinturas ilustrativas, muitas vezes associa-
das à Natureza Morta. O tema da morte, o qual gerou representações específicas na
Idade Média – como a Roda da Fortuna; Os três mortos e os três vivos; a Dança Maca-
bra; Ars moriendi –, também triunfou nas obras de Petrarca e Dante, nos mausoléus de
Michelangelo Buonarrotti e nos afrescos de Lorenzo Costa, do Renascimento italiano.
Contudo, o retrato macabro ou a natureza morta de fundo meditativo, reuniu conceitos
de tradições variadas, definindo novos significados a alegorias antigas.
O retrato macabro, comum no final do século XV e início do XVI, principal-
mente nas regiões dos Países Baixos, se apresenta geralmente sob a forma de dípti-
co: em uma face aparece a ilustração da vida e em outra a representação da morte;
remetendo à juventude e à velhice; ao frescor e à podridão. Este tipo de pintura irá
influenciar mais à frente a elaboração de naturezas mortas voltadas para a reflexão
macabra. A partir destas obras, uma série de retratos macabros se desenvolveu no
decorrer do século XVII por meio de um gênero que se tornou bem popular: a na-
tureza morta macabra ou Vanitas. A vida silenciosa da natureza que se extingue
aparece neste tipo de representação por meio da composição de coisas vivas e
inanimadas, dispostas no quadro de maneira aparentemente desconexa e casual,
guardando, porém, significados intrínsecos. Geralmente acrescido de epitáfios,
este tipo de representação pode ser classificado como emblema, sendo que as fra-
14
VOVELLE, 1986, p: 100.
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ses mais comumente empregadas são: Vanitas, vanitatun; Sic transit glorie mundi;
Memento Mori.
Os tratados de emblemática constituem um artigo sempre presente nos catálo-
gos de vendedores de livros antigos, demonstrando a abrangência e o nível de circu-
lação que estas fontes impressas tiveram no decorrer dos séculos XVII e XVIII. Os
editores do mundo moderno, ao perceberem o interesse despertado ao redor deste
tipo de obra, produziram um número elevado de publicações, sendo a maioria escri-
ta em latim, principalmente quando se trata de obra de origem eclesiástica. A divul-
gação deste tipo de fonte nos países coloniais contribuiu de maneira relevante no
processo de transmissão do pensamento de origem européia, influenciando tanto à
literatura quanto às artes plásticas. De acordo com Sylvio de Vasconcelos, o próprio
Antonio Francisco Lisboa haveria de ter recebido lições de composição e princípios
de heráldica com o mestre gravador e o abridor de cunhos, João Gomes Batista, con-
tratado pela Casa de Fundição (Vila Rica – 1724), a partir de 1751. Por outro lado:
15
LEVY, 1978, p: 98.
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16
SEBÁSTIAN, 1990, p: 249.
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também presente nas bibliotecas dos jesuítas, permitiu o contato com exercícios de
emblemas e empresas dentro dos ensinamentos de retórica. Na obra de Santiago
Sebástian, vários exemplos demonstram a aplicação de conceitos de emblemática
em modelos decorativos: o programa moral da casa do fundador de Tunja (Colôm-
bia); os programas místicos de Cuzco e Arequipa baseados em Affectos divinos con
emblemas sagradas (Valladolid, 1638) e Pia desideria, do jesuíta Hugo Herman.
Falta-nos, ainda, aplicar a metodologia iconográfica calcada nos tratados de em-
blemática estruturados em Mario Praz e Santiago Sebástian às fontes selecionadas. É
preciso cruzar os referências textuais com os manuais disponíveis e, assim, apreender
os sentidos dispostos nas imagens atreladas aos epitáfios. De uma maneira geral, os
icogramas representativos da igreja em chamas; da mulher repleta de chagas ao
lado de um esqueleto que segura uma ampulheta; do pássaro fênix; do cipreste e
da rosa; do sol poente; do barco na tempestade; da própria alegoria do amor sagra-
do; das rosas espelhadas; do leão caído e da torre destruída por um raio, de ime-
diato nos remetem ao poder de Deus, à efemeridade da vida e à esperança da fé na
redenção e na ressurreição. Considerando tais questões, as bases conceituais para
este estudo já estão postas.
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Emblema II: Nefeis hora veniam, sem- Emblema III: Ut vivam in aeternum
per vigila