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TONBO Copyright © 1996 by Bernard Lepetit Dados Internacionais de Catalogagao na Publicagio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Lepetit, Bernard Por Uma Nova Hist6ria Urbana/ Bernard Lepetit; selegtio de textos, revisto critica ¢ apresentagao Heliana Angotti Salguei- 10; tradugiio Cely Arena, ~ Sao Paulo: Editora da Universidade de Sao Paulo, 2001 Bibliogratia. ISBN 85-314-0612-9 1. Cigncias Sociais ~ Historia 2. Historia social L Heliana Angouti. I. Titulo. 01-1037 CDD-306 Indices para catalogo sistemitico: 1. Hist6ria urbana: Sociologia 306 Direitos em lingua portuguesa reservados & Edusp — Bditora da Universidade de $a0 Paulo Ay. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, 374 6° andar ~ Bd. da Antiga Reitoria ~ Cidade Universitaria 05508-900 - Sao Paulo ~ SP — Brasil - Fax (Oxx11) 3818-4151 Tel. (Oxx11) 3818-4008 / 3818-4150 www.usp.br/edusp — e-mail: edusp@edu.usp.br Impresso no Brasil 2001 Foi feito 0 depésito legal N°CLASS, 301.363 Z alsa a= QIAGA 8. A HISTORIA LEVA OS ATORES A SERIO?* O ato ea agao por muito tempo foram preteridos em beneficio das estruturas de longa duragdo, O eclipse do ator parece chegar ao fim. A sociedade é agora vista como produto da interagio, como uma categoria da pritica social. Assistimos a uma verdadeina reviravolta pragmdtica. A postura do historiador modifica-se quando ele considera, no processo histérico, um presente em andamento. Partamos da superficie das coisas. Eis dois diciondrios, cada um desti- nado a desenhar os contornos ¢ a especificar a organizagao de um campo disciplinar, ambos editados na mesma série. O primeiro, o Dictionnaire eriti- que de la sociologie, publicado em 1982, contém relativamente poucos verbe- tes (menos de uma centena), que podem ser qualificades, em sua maioria, como conceitos analiticos', Nele se encontra uma definigéo de sociologia baseada na definigao dos fatos sociais: “os fatos sociais devem ser interpreta dos como relagdes entre uma pluralidade de atores ou de agentes” (p. XIII); * “histoire prend-elle les acteurs au sérieux?", em Eypacer Temps ls eahiers, 1995, n. 59-60-61 (Le temps efléchi, Uhistive au vsgue des bistorien), pp. W12-122. 1. R. Boudon e F Bourricaud, Dictionnaire critique de la sociologi, Paris, PUR, 1982. [Ed em portugues: Diciondrio Critico de Sociologia, Sao Paulo, Atica, 1993, (N. da Org.)] 227 Bernarp Leperit os dois primeiros verbetes intitulam-se respectivamente “agio” e “aco coleti- va”. O segundo, o Dictionnaire des sciences historiques, publicado quatro anos _ mais tarde, € 0 produto do trabalho de um contingente muito numeroso (quase uma centena de pesquisadores); ¢ bastante representativo, portanto, de uma pratica modal da histéria da qual constitui a expresso consensual, Verbetes em quantidade (mais de duzentos ¢ vinte) aproximam, ao acaso da ordem alfabética, conceitos analiticos, areas de civilizagao, subcampos disci- plinares ou metodolégicos, escolas histéricas, autores (de Ariés a Wélfflin). Poderfamos deduzir dai que se faria uma abordagem naturalmente menos conceptualista ¢ modelizadora da histéria, mas as diferengas que eu gostaria de destacar esto em outra parte, Percorramos as entradas dos verbetes. Encontra-se, por exemplo, em histéria, “estrutura” (no dicionario de sociologia também) e “conjuntura” (ausente nos socidlogos), mas nao se encontra “ato” ou “agdo”. Seus substi- tutos possiveis também faltam: nem “pratica”, nem “comportamento”, no singular ou no plural. “Fat”, se é que se pode considerd-lo produto de uma agao (intencional ou nao, coletiva ou nao), também nao consta, mas consta “histéria factual”, que ¢ um género e, desse modo, nao define o objeto, e sim a operagio de conhecimento, Enfim, observaremos, para retomar adiante, que um importante verbete “mentalidades” est presente € que o verbete “meméria coletiva” nao conduz as praticas (a que uma Icitura de Halbwachs, alids ausente do sumério, poderia ter conduzido): do ponto de vista do objeto, conduz & questao da identidade (correlato “histéria nacional”), e do ponto de vista dos métodos, & especificidade da documentagio (correlato: “histéria oral”). 2.8, Bourguitte (dit), Dictionnaire des sciences bistoriques, Paris, PUB, 1986. Por uma Nova Historia URBANA Dessa breve comparagio se concluird, eufemisticamente, que a historiografia francesa dedica 4 ago uma atensao limitada. Atendo-me apenas & esfera dos esquemas explicativos que ela utilizou nas duas ou trés Ultimas gera- ges, tentarei indicar os motivos do longo eclipse do ator, antes de buscar as implicagées de sua possivel reconsideragao pela disciplina. Para isso, negligen- ciarei voluntariamente a dimensao social das praticas intelectuais dos pesquisa- doves: aliangas disciplinates, organizacéo da pesquisa, locais ¢ modalidades de comparagio dos modelos historiograficos. A anilise interna de uma produgao diversificada corte varios riscos, dos quais os mais importantes sfo estabelecer apenas posigées relativas ou entao ctiar, de modo implicito, uma hierarquia normativa. Para fugir a isso, a postura constatativa que escolho obriga-me a adotar, de inicio, um ponto de referencia exterior. Eu o tomarei emprestado, como Vincent Descombes, de Kant’. Em 1798, idoso demais para lecionar, Kant publica o texto de seus cursos dos anos anteriores. O pequeno livro que contém as aulas do semestte de inverno, reeditado a partir de 1800, intitula-se Anthropologie du point de vue prigmatique. Nele se encontra uma definigao fundadora das ciéncias do homem distintas das ciéncias da natureza: “O conhecimento fisiolégico do homem tende a exploragao daqui- lo que a natureza faz do homem; o conhecimento pragmético, daquilo que 0 homem, enquanto ser de livre atividade, faz ou pode ou deve fazer de si mes- mo”. Baseada num postulado (o homem é um “ser de livre atividade”), essa defini¢go confere um objeto as ciéncias antropolégicas: as modalidades praticas da instituigéo do homem por ele mesmo. Ela também propée, em poucas pala- vras, as declinagées dessas capacidades auto-institutivas: os atos (“fato”), os poderes ¢ os saberes (“pode fazer”), as normas ¢ os valores (“deve fazer”). Nao V, Descombres, “Seiences sociales, sciences pragmatiques”, Critique, 529-530, jun.-jul. 1991, pp. 419-426, BeRNarp Leretit utilizarci essa definigéo da ciéncia pragmatica nem como emblema (ela figuraria entio como exergo), nem como ponto de encontro (eu fingiria entao descobri- la a0 fim de minha explanagio), mas apenas, por sua feigao sistematica, como gtade destinada a situar melhor, uns em relagio aos outros, os diferentes ele- mentos da paisagem historiografica de hoje. EXPLICAR SEM ATORES Esbogada em grandes linhas, essa paisagem organiza-se, desde o segundo pés-guerra, em duas grandes cortentes. * A primeira, dominada pelos trabalhos de Ernest Labrousse ¢ de Fernand Braudel, propée & histéria um programa: estabelecer como, con- forme quais ritmos ¢ com que conseqiiéncias para os grupos cujo conjunto formava a sociedade o desenvolvimento moderno se produzira ou, em cer- tos momentos ¢ em certos locais, fracassara em produzir-se, A histéria conjuntural, da qual os volumes da Histoire économique et sociale de la France constituem a aplicacéo completa‘, ¢ 0 modelo da economia-mundo extrai- do dos trabalhos de Wallerstein e retomado na stimula braudeliana (Civilisation matérielle, économie et capitalisme®) constituem respectivamen- te suas vertentes temporal ¢ espacial. A abordagem macroecondmica € 0 estudo das estruturas espaciais, instrumentalizados pela estatistica descriti va, constituem seus embasamentos. Nenhum apelo ao ator, aqui. Recordemos somente, & guisa de sintoma, 2 primeira frase de um artigo emblematico de Labrousse, “1848-1830-1789. Como 4.F Braudel e E. Labrousse, Histoire économique et sociale de la France, 1, Paris, PUB, 1970. raucel, Civilisavion masrielle éeonomeet capitalime, XVE-XVIIF stele, Pars, Armand Colin, 1979. Por uma Nova Historta URBANA nascem as Revolugées?”: “as RevolugGes se fazem apesar dos revolucionérios”®, Esse mesmo artigo permite que se estabelecam, de maneira empirica, os moti- vos de uma declaragio propositalmente tdo provocadora. O primeiro deve-se buscar do lado do modelo de cientificidade escolhido. Contra uma histéria historicizante que limitava seu programa & reconstituigio dos fatos tais como tinham “efetivamente acontecido” e dos motivos das personagens que estavam em sua origem, este toma o essencial emprestado a Durkheim por intermédio de Simiand, Trata-se de indicar variagdes concomitantes regularidades estrutu- rais, isto é, de submeter dados agrupados a tratamentos estatisticos adequados. Um segundo motivo deve-se buscar do lado do esquema causal adotado. O artigo de Labrousse contém dois modelos explicativos nao-contraditérios. Um resulta de uma explicacao pelo primeiro motor. Trata-se do ritmo da econo- mia, que o autor, para efeito retérico e por referéncia & atualidade da época, personifica ¢ eleva & condicio de personagem central: “Falou-se, a respeito de problemas recentes, de um misterioso ‘maestro’. O maestro, em 1848 ¢ quando das duas revoluges precedentes, nao € sendo o ritmo anénimo da produsio capitalista’. © outro modelo € construfdo sobre a concordancia das séries, A Revolugio inscreve-se entio tomo o efeito de uma conjungao de causas inde- pendentes que se desenvolvem segundo suas temporalidades préprias: tempo longo “quase desde sempre” das oposigses sociais, tempo ciclico das evolugées econdmicas, tempo curto das estratégias ¢ das imputagées politicas. Desde que © tempo, como causa primeira ou como conjungio, é portador da explicagao de suas proprias rupturas, torna-se possivel concomitantemente construir um mo- delo dinamico e esquecer 0 ator. Poderfamos reler La Mediterranée de Braudel 6.E, Labrousse, “Comment naissent les Révolutions?”, em Actes dt congrts historique dela Révolution de 1848, pp. 1-20. 231 Bernaro Levetit da mesma mancira: no fim do livro, a morte do rei, ator derrisério, assume valor emblematico’. REPRESENTAGOES COMUNS A segunda corrente historiogréfica, cuja descrigio poderia ser orientada pelo conjunto da obra de Jacques Le Goff ¢ pelos trabalhos da segunda fase de Emmanuel Le Roy Ladurie, caracteriza-se inicialmente pela predominancia de novos objetos, O corpo (¢ nao mais a mortalidade), a vida amorosa (¢ nfo mais a fecundidade legitima), as maneiras & mesa (¢ no mais as rages alimentares), as estruturas de parentesco € os ritos de passagem (¢ nio mais as categorias sociais, ordens ou classes), as linguas, as imagens, os mitos (e nao mais as técnicas de produgio, as condigGes das forgas produtivas ou 0 produto) dese- nham agora 0 verdadeiro estado desta ou daquela sociedade antiga. Dessa mu- danga de objeto resulta uma desqualificagio do método quantitativo em favor da atividade interpretativa (para a qual a historiografia francesa, por tradigio, no estava muito equipada), Daf resulta ainda uma modificagao dos esquemas temporais de referéncia: a inércia das categorias fundamentais das culturas leva prestar menos atengio a variabilidade dos tempos sociais ou as rupturas de ritmos do que a eficdcia duradoura de fendmenos extraidos de uma historia quase imével. Braudel jé escrevera: “as representagées mentais sio prisdes de longa duragao”. Um termo caracteristico da historiografia francesa encabeca o catélogo dos objetos particulares cujo estudo se tornou entao pertinente: as “mentalidades”. E em sua definicio, completamente empitica, que se encontram sem diivida os 7.J, Rancitre, Les noms de Ubistoire. Euai de poétigue du savoir, Patis, Scuil, 1992. Por uMaA Nova Historia URmaNna motivos do esquecimento do ator. Ela “privilegia o coletivo em vez do individual, 0s processos culturais impessoais em vez da cultura dos atores ¢ das obras, 0 psicoldgico em vez do intelectual, automético em vez do refletido”*. A questio dos atores dissolve-se no postulado da indiferenciagao de identidades culturais partilhadas de que apenas a escala (ou seja, a identificagéo dos limites dos grupos queapartilham) esté por determinar. A natureza das relacbes entre a representagao a acio, embora nao explicitada, est4 contida nessa definigao. Representagao ¢ ago pertencem a esferas separadas: de um lado ha normas, valores, categorias que dio sentido 20 mundo; e, de outro, comportamentos e atos que os instrumenta- lizam. Talvez porque a representagao e a ago se estendem em temporalidades muito diferentes (2 longa duragio das mentalidades opde-se a brevidade descontinua das intervengGes ativas), a primeira precede a segunda, motiva-a e lhe dé sentido. Mais abrangente, a representagio possui, assim, uma dignidade maior que justifi- cao fato de Ihe darem uma atengao preferencial. Por simetria, nessas condicées, a acao possui, em relagao 4 representacio, o estatuto de sinal ou de indice: quando séo repetidos, ¢ por sua propria repetic¢ao, os comportamentos revelam represen- tages do mundo que os sustentam (e, dessa forma, 0 ntimero de missas que devem ser rezadas para o repouso da alma dos defuntos ou o das velas que devem set acesas sao tomados como indicadores pertinentes nao da pratica religiosa, mas do grau e dos conteridos da crenca’). E possivel registrar as conseqiiéncias que essas definigdes acarretam em termos da contribuigao dos atores para os processos histéricos. Seja o grande livro de Albert Soboul, Les sans-culottes parisiens en lan II, publicado em 1958. Aqui ele tem valor cmblemético na medida em que pretende relacionar um, 8. Dictionnaire de sciences historique, op-ct. 1.2, p- 456 9.M. Vovelle, Piété baroque et déchrstianisation en Provence au XVIIF siécle, Pats, Plon, 1973. 233 Beanarp Leretit sistema de agdes a um conjunto de representagées sociais!”, Na verdade, trata- se, para Soboul, de “indicar 0 verdadeiro lugar dos sans-culottes parisienses, [...] (de) recuperar seu papel nos acontecimentos da Revolugao” e, para isso, de examinar como se conciliaram, no decorrer das seqiiéncias revolucionarias, “o comportamento” e “as aspiragées” préprias aos sans-cielottes com as necessidades da ditadura revolucionéria e as exiggncias da burguesia. O fracasso (nesse ponto) do projeto evidencia-se no Ambito mais geral, 0 do plano do livro. Duas partes inteiramente dedicadas & agio politica e minuciosamente divididas em capitulos cronolégicos emolduram uma parte central toda dedicada 4 mentalidade sans- culotte e tio bem desindexada do processo revolucionério, que pode ser objeto, em 1968, de uma publicagao independente. De um lado, uma légica do aconte- cimento, e de outro um comportamento cotidiano atribuido a uma mentalida- de tao distanciada dos registros dos valores familiares quanto normas econémi- cas ou formas legitimas de intervengio politica podem aparecer separadas. A posicao historiogréfica do projeto autoriza esta solucio: ressaltar a “especificidade” da “corrente popular” é um modo de resolver as questées de escala que evociva- mos acima para definir a posigéo ¢ a extensio de um grupo unificado em torno de um sistema de representagées partilhadas. O quadro teérico em que 0 trabae Iho é pensado permite-o igualmente: posigdes de classe explicam o contetido dos dois niveis de andlise ao mesmo tempo. Mas isso significa resolver de fora a questio da contribuigéo mitua das mentalidades, da acio e do processo revolu- ciondrios!', 10. A, Soboul, Les sans-culeites parsiens en Lan IL Mouvement populaire et governement révolesionnaire (179% 1794), Patis, Seuil, 1958, 11. J. Guithaumou, Marseille républicaine (1791-1793), Pats, Presses dela NSP, 1992, Por uma Nova Historia URBANA A SOCIEDADE? UM DECALQUE Uma hipétese gencralizante permitira que se unam os dois momentos de uma historiografia que nés separamos, mas que tém em comum o esquecimen- to do ator. As relagses de produgao ¢ a referencia ao produto constitufam os elementos pertinentes de um quadro histérico no primeito caso, e a referencia asi, 20s outros ¢ a0 mundo no segundo: a uma abordagem econdmica do social sucedia uma abordagem cultural, Assim, as duas historiografias ocupavam po- sigdes simétricas. Nas duas figuras, a redugao da opacidade do social resultava de uma estratégia de contornamento, depois de reducao ao idéntico. Em ou- ttos termos, a definigao de qualquer sociedade antiga era obtida por dedugio, explicita ou implicita: as caracteristicas de sua economia ow as de suas mentali dades forneciam, como por decalque, todos os seus elementos. A questio, portanto — plagiando voluntariamente a definicao kantiana da pragmatica -, nao era saber 0 que a sociedade, sendo formada de seres de livre atividade, faz ou pode ou deve fazer de si mesma, A questio € saber 0 que a economia (em Labrousse ou em Braudel) ou as representagées do mundo (em Le Goff ou em Le Roy Ladurie) fazem da sociedade e, concomitantemente, dizem a respeito dela, © desaparecimento do ator e a desqualificagio de fato dos modelos de auto-instituigéo do social caminham juntos. © RESTABELECIMENTO DA CONFIANCA A andlise, para ser completa, deve agora percorrer a vertente inversa para apresentar, pelo exemplo e pelo fato, as caracteristicas e as implicagdes metodolégicas de uma historiografia pragmatica. O fato revolucionario poderd, com essa finalidade, continuar servindo como fio condutor. O Diretério e o 235 Bernard Lererit inicio do Consulado aparecem entéo como um perfodo de crise: as desordens politicas ¢ financeiras, a desorganizagio dos circuitos da economia, a generaliza- gio da pilhagem sao seus aspectos descritos com mais freqiiéncia. Juntos, eles atestam 0 enfraquecimento das normas, impostas ou interiorizadas, que regule- vam as diferentes formas do jogo social. No dominio da producao industrial, por exemplo, a falsificacao dos produtos, as rupturas de contrato, os furtos de matéria-prima que se multiplicam, mostram que a Revolugio fracassou em subs- tituir por um novo conjunto de regras ¢ de comportamentos aceicos a antiga referéncia corporativa. A boa-fé desapareceu das relacdes sociais de produgio. Em dois artigos, publicados em 1987 ¢ em 1992, Alain Cortereat, cujas anélises sociolégicas sao sempre aplicadas a histéria, procurou analisar minucio- samente as modalidades de restabelecimento da confianga na esfera econdmi- cal, Na origem disso esto 0s atores sociais, que negociam e experimentam localmente antes de obter a sangao do Estado. Instaura-se uma série de disposi- tivos novos que sio ao mesmo tempo o contexto de elaboracéo, o ponto de ancoragem e uma das condigées da eficiéncia das novas normas. Dentre eles, os conselhos de prud’hommes, destinados a regulamentar as relagdes entre patrdes ¢ operatios, que se instalaram primeiro em Lyon, em carter experimental, em 1806, ¢ depois se generalizaram progressivamente nas cidades fabris até o fim do Império, fornecem um material particularmente rico para andlise. Na origem de qualquer caso apresentado aos prud hommes, situa-se uma questéo particular, que nasce da pratica cotidiana da produsio, tomada em 12, A. Couttereau, “Justice et injustice ordinaire sur les lieux de travail d’aprés les audiences prud’hommales (1806-1866)", Le Mouvement Social, out.-det. 1987, pp. 25-59, "Espace public et capacité de juger. La stabilisation d’un espace public en France aux lendemains de la Revolution”, Reisons Praciguesn 3, Pais, 1992, pp. 239-273. Por UMA Nova Historia URpana sua dimensio mais singular: um tecelao que sofreu uma redugao de salério por haver realizado um ato que nao considera contratio aos regulamentos ou aos habitos locais do trabalho apresenta queixa diante dos prud hommes. O caso se desenvolve como uma relagao direta entre individuos, que nao podem fazer-se representar ou ser secundados por conhecedores da lei. As pessoas envolvidas confrontam seus pontos de vista sobre 0 caso cada uma reescreve, dotando-o de um sentido particular, o fato que as opée. Na maioria das vezes, elas chegam a conciliar seus pontos de vista e concordam em dar ao episédio uma significagao idéntica, isto é, em interpreté-lo com base na mesma regra de relagio de trabalho (em fungao da qual o comportamento de uma serd julgado desviante, ¢ o da outra, adequado). A acomodagao opera-se, assim, nao sé em beneficio de uma solugao do conflito, mas também (e sobretudo, por reitera- ao) em beneficio do principio reconhecido de regulamentacio social. Nos casos — menos numerosos — de divergéncias irredutiveis, a intervenga0 dos conselhciros prud hommes que deliberam conduz a um resultado semelhante. O procedimento recai, portanto, num uso localizado (a empresa em causa). Mas, seja porque a conciliacaorreforga seu cardter de uso reconhecido, seja porque a decisao do conselho Ihe confere uma sanio jurfdica, por generaliza- ¢S0, 0 uso torna-se uma ordem legitima, nascida da interagao social, no ambi to da jurisdic local. Uma mudanga de escala e de tipo de andlise desqualificaria, se necessirio, qualquer idéia de uma geragéo espontinea desse dispositive socioinstitucional. Ainstituigio reativa uma forma institucional do Antigo Regime. Varios memo- randos propdem, a partir do ano VIII, que os conflitos do trabalho sejam arbi- trados por jtiris formados de pattdes ¢ empregados: embora com grande pru- déncia retérica, eles estabelecem um elo entre esses jiris ¢ as jurandas de outrora. Entretanto, o funcionamento dos conselhos de priid hommes, a0 mesmo tempo, 237 Bernarp Leperit afasta a instituigao das priticas do Antigo Regime. Poucos casos, como disse- mos, chegam a julgamento. A conciliagao ¢ feita na presenga de terceiros (um conselheiro patronal e um conselheiro operitio), mas nao apela para sua arbitra- gem. Diferentemente do Antigo Regime, em que numerosos contflitos se resol- viam com recurso a uma terceira pessoa em situacao social superior a dos prota- gonistas, a solugo apéia-se numa dindmica igualitéria, em vez de reativar, ¢ desse modo reforgar, a hierarquia social. Trata-se, pois, da duplicagao de princi- pios revoluciondrios? Poderiamos crer que sim, j4 que essa pratica organiza um espaco piiblico onde a decisio resulta da deliberacao de individuos cujas condi- ges a instituigdo tem por fungao exatamente igualar por um momento. Mas a escala em que se edifica e se regulamenta esse espago priblico introduz uma diferenga decisiva: nao mais a Nagao, e sim 0 escalao local; nao mais a delegagao eletiva, ¢ sim o frente-a-frente dos protagonistas; nao mais a lei universal, e sim a regra local. A reativagio na ago, a custa de uma espécie de bricolagem inter- pretativa de experiéncias indexadas em passados diferentes, encontra-se assim inserida no principio de um elo social cujas condigées de estabelecimento ¢ modalidades estao historicamente situadas. A SOCIEDADE? UMA CATEGORIA DA PRATICA Vé-se que hi interesse em recordar mais longamente esse episédio analitico. De um lado, trata-se desta ver “daquilo que 0 homem, enquanto ser de livre atividade, faz ou pode ou deve fazer de si mesmo”: cis a diferenga construida em relagio aos modelos historiogrificos precedentes. De outro, gragas a seu detalhamento, esse modelo parece muito propicio ao ajuste dos efeitos provocados pela inclusio da aco ¢ do ator nas proposigées interpretativas. Destacarei os prin- cipais efeitos disso sobre duas questées: a do objeto e a do modelo interpretativo. 238 Por uma Nova Historia URBANA Em primeiro lugar, a sociedade volta a ser 0 objeto privilegiado da histé- tia. Ela nao é mais definida como uma das dimensées particulares das relagdes de producio ou das representagdes do mundo, mas como 0 produto da interagao, como uma categoria da pratica social. Para organizar suas estruturas ou regular suas dinamicas, a sociedade nao dispée de nenhum ponto fixe (de natureza econémica ou cultural) que lhe seja exterior ¢ que a transcenda. No jogo entre 08 atores que a formam e a instituem, ela encontra suas préprias referéncias. Estas podem ser de natureza econdmica ou cultural — ¢ outra questdo: a recons- truco de uma dada ordem manufatureira passa pela ativagio social, na esfera econdmica, de principios ¢ esferas de ado de natureza politica e cultural. A sociedade constitui para si mesma (ou seja, para todos eles) seu proprio motor e suas proprias fontes. A coeréncia do modelo analitico leva a tranferir para todas as escalas 0 mesmo principio pragmético fundamental. Os atores sociais inscrevem-se num sistema de posigdes ¢ de relagées estabelecidas e definidas na situacao, na interagio que os une por um momento. Também as identidades sociais (0 tecelio, 0 manufaturador) ou os elos sociais (instituidos, por exemplo, pela organizagao técnica da produgao ou por uma disciplina de atelié) nao tém mais natureza, apenas usos. Isso significa que, dentro dos limites impostos pela situagio, eles efetivamente ocorrem de maneira ndo monétona'’. Definida desse modo, a sociedade encontra-se privada de principios de coeréncia @ priori. Nenhuma determinacao exégena, nenhuma estrutura macroscépica essencial (o Estado, a empresa ou a familia; a nobreza ou a bur- guesia) assegura sua estabilidade, ja que, a cada momento, elas se tornam aquilo 13.B. Lepeti (dir), Les formes de Lexpértence, Paris, Albin Michel, 1995, 239 BERNARD LeEPETIT que, provisoriamente, os homens ¢ as mulheres engajados na agio fazem que elas sejam. Ao mesmo tempo, o que faz uma socicdade manter-se coesa (sem 0 que ela perderia, na anomia, seu cardter de sociedade) torna-se um mistétio'. A hierarquia das questdes importantes e dignas de interesse encontra-se reorgani- zada em fungio disso: acordo que sustenta o elo social, e no mais o desenvol- vimento ¢ sua partilha ou entéo as modalidades de uma relagao coletiva com 0 mundo, encontra-se algado ao primeiro plano das interrogagées!®. As declinae g6es da questéo séo numerosas, pois trata-se de saber como se chega a um acordo entre sujeitos, sobre sujeitos (por exemplo, o que é um desemprega- do?" ou sobre coisas (0 que é um atelié de caridade?); como 0 acordo se faz (vejam-se os conselhos de prud’hommes), fracassa em fazer-se, ou se desfaz (as belas anilises de Steven Kaplan sobre os pretensos complds da fome mostram, por exemplo, como, antes da Revolucio, a adesdo popular & monarquia foi abalada ¢ como 0 acordo sobre o papel eminente do monatca foi desfeito por causa disso"). A lista das ocorréncias histéticas ligadas & questio ¢ intermindvel em razio da multiplicidade dos objetos a que ela se aplica (desde a organizagio da troca econémica até a natureza do regime politico, pasando pelas formas da estratificacao social ¢ os canais da mobilidade, ou pelo teor dos questiondrios em determinado dominio do saber'*) e em razao da diversidade das escalas em que cla ocorre (desde 0 caso de rapto de criangas na Paris de 1750” até o 14, J-P Dupuy, La panique, avis, Synthé-Labo, col. “Les empécheurs de penser en rond”, 1991 15. L Boltanskie L. Thévenot, Dela justification. Les économies de la grandeur, Pasis, Gallimatd, 1991. 16. C. Topalov, Naissance di chémeur, 1880-1910, Paris, Albin Michel, 1994. 17. S.Kaplan, Lecomplor de famine. Histoire d'une rumeur au XVI stele, Pars, Armand Colin, 1982. 18, A. Desrosizves, La politique des grands nombres. Histoire de a raison statstigue, Pati, La Découverte, 1993; E. Brian, La mesure de UEtat. Administrateur et géomiires au XVIIF stele, Ptis, Albin Michel, 1994, 19, A. Farge. Revel, Lagiqnes de la foule ine desenlbvements enfants, Paris, 1750, Pars, Hachette, 1988 240 Por uma Nova Historia URBANA problema da anterioridade francesa no dominio do controle da natalidade). As mudangas de paradigmas sio reconhecidas por sua capacidade para esse tipo de reorganizagio de conjunto. O PRESENTE DA ACAO Seguindo Alain Cottereau, narrei a histéria do restabelecimento das nor- mas de relagio na manufatura utilizando trés cronologias. A primeira conta-se em dias: vai da queixa, manifestagio de um desacordo, ao estabelecimento com- binado ow imposto de um acordo. A segunda conta-se em anos e desenvolve-se em duas escalas geogrificas ~ ela descreve, de um lado, 0 processo de reiteragéo das solugSes de conflitos que resulta, por acumulagio, na formacio de uma quase-legislagio regional do trabalho; de outro lado, 0 movimento de difusio que, por imitagio de experiéncias bem-sucedidas, leva a se criar uma instituigio semelhante no centro das principais regides industriais. A ultima cronologia, enfim, é menos precisa (seria mais dificil traduzi-a num sistema de datas, a menos que espacadas) e concerne a varias décadas: nela so evocados tanto 0 momento revolucionério quanto um Antigo Regime com fronteiras nao defini- das. Tal disposigao analitica nao € exclusiva para os conselhos de prud’hommes. Eu poderia ter adotado 0 mesmo esquema para relatar o estabelecimento concomitante de uma ordem comercial (as cimaras de comércio) ou civil (as justigas de paz). Poderia narrar da mesma mancira o estabelecimento, hoje, de uma nova ordem territorial na Europa central. Esses modelos temporais diferem dos modelos historiogréficos preceden- tes em varios pontos. Todas as cronologias que acabo de expor brevemente revalotizam 0 curto prazo, o do acontecimento entendido como ago situada (tal atitude diante dos prud/hommes, em Lyon, em 1807; 0 “restabelecimento” 241 Bernard LeretiT das cimaras de comércio nas principais pragas comerciais da Repiblica em 1802), o da experiéncia humana, direta ou indireta. Elas no desqualificam o longo prazo (as jurandas dos protagonistas dos episédios da restauracéo de uma or- dem econémica durante o Consulado so, em parte, desejadas, e suas virtudes remetem a um antigo passado elaborado para as necessidades da causa: naquele momento, e ainda quando de sua supressio no inicio da Revolucao, e ainda depois, quando das medidas tomadas por Turgot em 1776 e do debate feroz que elas suscitaram...), mas um recorte feito do exterior, ¢ a priori, das duragées ¢ de sua articulagdo. Assim, essas cronologias fazem do presente da agio 0 tempo da historia”. Reinhardt Koselleck chamou a atengio na antologia publicada em francés com o titulo Le fistur passé, para a variacao histérica dos modelos temporais empregados na agio e para a pluralidade das formas de articula~ 40, no presente, do passado e do futuro”. Levar suas anélises a sério € esforgar-se por reconstituir o carater dos horizontes temporais dos atores da histéria. Estes pdem a prova, na agio presente, formas passadas ¢ valo- res recebidos segundo modalidades que nao séo necessariamente as nossas, porque nao sao nem de sempre nem de qualquer lugar. Eles arbitram, no presente, entre o interesse vindouro ¢ o do momento; antecipam e tentam reduzir a incerteza do futuro de maneira diferente (a recondugao do passa- do 0 projeto constituem duas imagens possiveis disso). Assim, num modelo pragmatico de anélise do social, a determinagao das escalas crono- logicas pertinentes passa pela reconstituicao das categorias temporais au- téctones. 20. B. Lepetit, "Le présent de I'histoize”, sm Les formes de Vexpérience, op. 13, pp. 273-298. 21, R Koselleck, Leficur passé. Contribusion tla sémantique des temps bistorigues Patis, Ed. de YEHESS, 1990. 242 Por uma Nova HisToOrta URBANA A postura analitica do historiador é responsavel por isso. Ver no processo histérico um presente em andamento, entender a histéria, em razao da interagio social ¢ da irreversibilidade do tempo, como “evolugao criadora” (a expressio de Bergson) coloca-o em posigao constatativa. Como tém sua fonte na seqiién- cia das situagdes que instituem, os estados sucessivos da sociedade aparente- mente nao encontram sua razio de ser em nenhuma outra parte que nao em seu proprio desenrolar. Como explicar, entéo? A explicagao pela correlagao perde a forca a partir do momento em que a histéria é analisada em sua dinamica. A explicagao pelos fins esbarra no postulado da diversidade social ¢ do carater criador da interagdo. A explicagio pelas causas fica desqualificada, por ser tautoldgica, quando os processos se mostram dependentes de sua propria mar- cha e das seguidas bifurcagSes que experimentam. Parece, entao, que sé resta dizer como as coisas aconteceram sucessivamente, ¢ assim renunciar a varias décadas de elaboragio metodolégica e de reivindicagio de cientificidade, em nome de uma vantagem pouco significativa para um regime interpretativo par- ticularmente fraco. A proposigao, entretanto, s6 é exata na esfera do modelo explicativo das ciéncias sociais. Para fazer frente & objegao, uma solugio consiste em explorar outras. O modelo descritivo, para 0 qual 0 socidlogo Louis Queré, em especial, yem chamando a atengio ha varios anos, € desse tipo*. Modelo mais fraco de apreensao do mundo? A questao merece aprofundamento coletivo. Notaremos apenas, aqui, que esse modelo de inteligibilidade ¢ mais precisamente especificavel, j que permite a0 mesmo tempo responder 4 questi “como?” (entio se falara em descrigao processual, que apreende a ago segundo suas coor- denadas espacial c temporal) ¢& questo “por qué?” (entio se falara que a descri- 22. Louis Quéser, “Le tournant descriptifen sociologie", Current Sociology vol. 40,1. 1, 1992, pp. 139-165, 243 Bernarp Lererit do é semAntica, uma vez que ela relaciona a ago a seus contextos de sentido). A andlise que apresentei dos conselhos de prud hommes resultou sucessivamente desses dois registros (em cuja articulagao ainda é preciso pensar). Destaque-se também, pois € preciso terminar, que suas capacidades heuristicas esto histori- camente atestadas: ela constituiu no século XVIII uma das bases do projeto dos Enciclopedistas™ e suscita, nos confins da observacio cientifica ¢ das considera- ges sobre as linguagens, uma reflexio cujo dossié hoje valeria a pena reabrir. 23. Denis Reynaud, “Pour une théorie de la description au XVIII sitcle", Dix-Huititme Sitce,n.22, 1990, pp. 347-366, 244

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