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COLEÇÃO ANIMA

RICHARD I. EVANS

ENTREVISTAS com CARL G. JUNG


E AS REAÇÕES DE ERNEST JONES
Tradução de ÁLVARO CABRAL

eldorado
Título do original em inglês: CONVERSATIONS WITH CARL G. JUNG AND
REACTIONS FROM ERNEST JONES

Copyright 1964 by Litton Educational Publishing, Inc. A presente tradução baseou-


se na edição publicada por Van Nostrand Reinhold Company, New York, 1964.

Direitos desta tradução reservados à


LIVRARIA ELDORADO TIJUCA LTDA.

Departamento Editorial:
Maura Ribeiro Sardinha Cristina Mary P. da Cunha Carmen Lúcia R. de Oliveira

Capa: AG Comunicação Visual e Arquitetura Ltda.

impresso no Brasil Printed in Brazil

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Rua Conde de Bonfim 422, loja K, Rio de Janeiro Tels.: 254-2615 e 264-0398
— GB

minha adorável esposa


ÍNDICE
PREFáCIO 11

AGRADECIMENTOS 13

PARTE I. PRÓLOGO A UM EMPREENDIMENTO PROVOCANTE 15

PARTE II. JUNG E FREUD 43

1. Relacionamento de Jung com Freud, Adler e Rank 45

2. A Opinião de Jung sobre o Desenvolvimento Psicossexual Freudiano 48

3. A Opinião de Jung sobre os Conceitos Estruturais de Freud: Id, Ego e


Superego 57

PARTE III. O INCONSCIENTE 65

4. O Inconsciente: Arquétipos 67

5. O Inconsciente: Conceptualizações Gerais 75

PARTE IV. A TEORIA DE INTROVERSAO-EXTROVERSÃO E A MOTIVAÇÃO ...


85

6. As Teorias Tipológicas de Introversão-Extroversão 87

7. Conceitos Motivacionais 102

PARTE V. ALGUMAS REAÇÕES CONCERNENTES A TESTES PSICOLÓGICOS,


PSICOTERAPIA, TELEPATIA MENTAL S OUTRAS INTROVISÕES PESSOAIS
107
8. Jung sobre as Práticas de Diagnóstico e de Terapia 109

9. Jung sobre os Problemas Psicológicos Contemporâneos 126

10. Introvisões Pessoais, Reminiscências e Experiências com Grandes Figuras


139

PARTE VI. REAÇÕES DE ERNEST JONES .... 143

PARTE VII. CONCLUSÃO: ALGUMAS OBSERVAÇÕES GERAIS E TEÓRICAS


SOBRE O CONTEÚDO DO DIÁLOGO 173

APÊNDICE A — Relatório sobre o Projeto de Filme Jung-Jones: Submetido pela


Universidade de Houston ao Fund for the Advancement of Education . . 183

APÊNDICE B — Uma Investigação Exploratória do Impacto Psicológico e


Educacional de un Diálogo Filmado com Carl Jung 189

BIBLIOGRAFIA 197
Prefácio
Na opinião do autor, o diálogo apresentado neste volume forneceu ao Dr.
Jung um veículo que permitiu o que talvez constitua a mais excitante e lúcida
apresentação até hoje registrada de muitos dos seus conceitos fundamentais.
Espera-se que esta apresentação não sirva apenas como introdução às idéias de
Jung para estudantes das Ciências do Comportamento, mas que também
proporcione uma visão estimulante de algumas contribuições fundamentais de
Jung a quantos têm sido sempre desencorajados de ler a obra de Jung, por causa
da sua alegada obscuridade, imprecisão, exorbitante complexidade e misticismo.

Quanto ao estudioso junguiano, o autor espera que um vislumbre mais


íntimo dos processos de pensamento de Jung tenha sido proporcionado, na
medida em que ele reage espontaneamente a uma seqüência ordenada de
perguntas. Jung insistiu em não ser previamente instruído sobre a natureza das
perguntas que haviam sido preparadas para as entrevistas.

As reações de Ernest Jones não só fornecem novas e interessantes


elaborações da teoria freudiana, alguns dos interesses pessoais de Jones e seus
conceitos sobre Sigmund Freud, o homem, mas também proporcionam um estudo
incisivo e final para estabelecer o contraste entre Jung, a poderosa figura cujo
rompimento con Freud o perturbou profundamente, e Jones, o seguidor devotado
e duradouramente leal.

O autor, graças à recente concessão de uma bolsa da National Science


Foundation, estará habilitado a cornpletar tais entrevistas didáticas com muitos
outros e eminentes contribuidores para a teoria da personalidade. Entretanto,
sabe que nunca mais terá um privilégio tão profundo quanto o de registrar o que,
virtualmente, fo-

11
PREFÁCIO

ram os últimos pensamentos de dois indivíduos que estiveram em contato tão


direto com as fases iniciais da Psicanálise — talvez a mais significativa revolução
no pensamento relativo à natureza do homem.

RICHARD I. EVANS

Houston, Texas

12
Agradecimentos
No longo processo envolvido na filmagem dos diálogos com Carl Jung e
Ernest Jones na Europa, assim como na sua transcrição para o presente volume,
o autor reconhece sua divida a numerosas personalidades. Embora o espaço
proíba mencionar todos quantos me ajudaram tão amavelmente, desejo expressar
o meu apreço, pelo menos, a algumas daquelas pessoas que colaboraram. O Dr.
John W. Meaney, hoje da Universidade do Texas, que atuou de forma soberba nas
exigentes funções de produtor-diretor-cinegrafista para os filmes originais e sem
cujo apoio todo o projeto teria sido impossível, deve ser citado com o maior
destaque.
A especial consideração e assistência da Senhora Aniela Jaffé, secretária-
assistente do Dr. Jung e hoje uma autora consagrada por méritos próprios, foi de
um valor a toda prova, ajudando-nos a organizar e completar com êxito as
entrevistas com o Dr. Jung. O incentivo e apoio do Dr. Joe Wheelwright, o
eminente psiquiatra junguiano da Langley Porter Cünic, de São Francisco da
Califórnia, proporcionou o decisivo endosso pessoal de que necessitávamos para
obter a cooperação do Dr. Jung.
A amabilidade da Srª Ernest Jones, assistindo-nos para a realização da
entrevista com o Dr. Jones, não será esquecida tão cedo.
A boa-vontade da Schlumberger Corporation, em Paris, e do Instituto
Federal de Tecnologia, em Zurique, para proporcionar as facilidades físicas que
ensejaram a realização das entrevistas, também merece o nosso grande apreço.
A proficiência e imaginação da Sr ta Joy Byrne, como assistente editorial,
ajudaram-me imensamente na preparação do manuscrito e estou sinceramente
grato pelos seus esforços. Também desejo agradecer aos estudantes pós-
graduados de Psicologia, Alberí Ramirez e Gary Blank, por sua assistência.

13
AGRADECIMENTOS

Finalmente, estamos gratos pela bolsa concedida pelo Fund for lhe
Advancement of Education. A tolerância do Fundo, ao permitir-nos que nos
desviássemos de um plano original, que teria redundado, simplesmente, no
registro de lições, forneceu a assistência financeira e a latitude sem as quais este
projeto não teria sido concretizado.

14
PARTE I
PRÓLOGO A UM EMPREENDIMENTO PROVOCANTE

Na seção que se segue, o autor tentou descrever, com alguns detalhes, a


provocante série de acontecimentos que precederam as entrevistas com o Dr.
Jung e o Dr. Jones.

Nesta seção, o autor também articula as suas impressões e percepções do


processo concreto de consecução das entrevistas, incluindo certos vislumbres de
personalidade obtidos pelo autor e baseados no seu limitado, mas extraordinário,
contato com, essas notáveis figuras.
15
Prólogo
A idéia de filmar uma série de entrevistas com o Dr. Carl Jung parecia ser
apenas, quando ocorreu pela primeira vez, uma possibilidade remota. Sabíamos
que o Dr. Jung tinha sido abordado sem êxito, no passado, por numerosas
emissoras de televisão comercial e produtores de filmes. Entretanto, achei que
valia a pena tentar.

Alguns meses antes disso, a Universidade de Houston recebera uma


dotação de 18.700 dólares do Fundo para o Progresso da Educação, com a
finalidade de explorar algumas novas dimensões na instrução universitária. O Dr.
John Meaney, que nessa época era diretor do Radio and Television Film Center
da Universidade de Houston, estava empenhado nesse projeto quando entrou em
contato com o autor sobre a possibilidade de utilizar essa verba em algum projeto
que dissesse respeito à Psicologia. Começamos então a estudar possíveis
abordagens que pudessem ser exploradas, no caso de um projeto-piloto ser
iniciado, em Psicologia, com esses fundos.

Durante anos, como tantos outros professores universitários nas


faculdades de Artes e Ciências, eu ia ficando cada vez mais cônscio da tendência
entre grande número de estudantes para se mostrarem menos interessados na
leitura das obras originais dos grandes contribuidores. Contentavam-se,
meramente, em ler fontes secundárias ”pré-dirigidas” que, com freqüência,
desvirtuavam as intenções desses pensadores mais significativos. Por exemplo,
sempre me espantou verificar que uma quantidade surpreendentemente grande
de estudantes, mesmo nos cursos avançados de Psicologia, nunca tinha lido as
obras originais de Freud, mas, em vez disso, lera sobre Freud, através das
palavras de outros autores. Pareceu-me existir uma imperiosa necessidade de
motivar os estudantes para se debruçarem diretamente sobre os escritos originais
de inovadores da envergadura de

17
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

um Freud, se quisessem ficar verdadeiramente informados e apreciar suas idéias,


Daí resultou a convicção de que poderíamos respondefa um desafio se, com os
fundos da nossa bolsa, dese%o|vêssemos uma técnica estimulante que fosse
capaz de encorajar os estudantes a explorar tal contato primái0 com idéias
próprias de importantes contribuidores.
A simples realização de fumes de aulas dadas por esses indivíduos, nas
quais e|es apresentavam oralmente o mesmo material sobre % haviam escrito,
não me pareceu ser o meio mais eficaz para os nossos propósitos. A armadilha
potencial ness5 método é facilmente discernível em muitos cursos dem-ve|
universitário pela televisão. Especificamente, o intelectual, tanto em suas aulas
como em seus escritos, é propenso a tornar-se algo pedante na sua forma de
expor! perdendo assim o interesse de boa parte do seu público. ocorreu-me que
talvez uma técnica que poderia ser utilizada para evitar essa indesejável e
iminente possibilidade era a entrevista filmada. Mediante o uso da entrevista, o
contribuidor poderia apresentar as suas idéias numa atmosfera de
espontaneidade que concorreria para ”humanizá-lo”, proporcionando ao
estudante uma experiência mais agradável e estimulante do que a propiciada
amiúde pelo caráter neutro da aula
A entrevista, é claro, é utilizada há muito tempo como uma técnica em
campos tais como o jornalismo, o Direito, a psicoterapia, o aconselhamento e a
clínica médica; e, obviamente, constituj um recurso fundamental em nossa cultura
para formar Uma opinião sobre outras pessoas e suas idéias. Por que não
poderiam ser organizadas entrevistas cuidadosamente planejadas e filmadas com
eminentes psicólogos, para fins didáticos? Através do entrevistador, poderiam ser
sistematicamente apresentados ao estudante os pontos de vista de um grande
contribuidor. Gostanios da idéia.
Um curso que eu apresentara durante muitos anos, Approaches to
Personality, pareceu ser um veículo aceitável para tal empreendimento de modo
que tudo o que faltava era descobrir uma forrna de utilizar essa técnica da
maneira mais teatral possível. Assim se originou a
18
PRÓLOGO
idéia de entrevistar o Dr. Carl Jung, o único membro sobrevivente dos ”Três
Grandes” (Jung, Freud e Adler).
A maioria das pessoas mostrou-se muito cética a respeito das nossas
probabilidades de êxito, quando anunciamos que iríamos entrar em contato com
Jung e explorar a possibilidade de filmar em Zurique uma série de entrevistas, a
fim de inaugurar o nosso projeto de entrevistas didáticas. Entretanto, quer
redundasse em êxito ou fracasso, a idéia de entrevistar o Dr. Jung era por demais
atraente, de modo que nos preparamos para escrever-lhe.
A redação dessa carta tornou-se, por si só, uma tarefa hcomum. Se jamais
nos havíamos encontrado com Jung e apenas o conhecíamos como um quase
anacronismt no mundo moderno, perguntávamos a nós próprios de que modo
poderia ser melhor solicitado o seu interesse oara tal projeto. Além disso, quando
passamos tantos anos de nossa vida estudando teoria da personalidade e
acabamos apreciando plenamente a importância histórica de Jung para o
movimento psicanalítico, a tarefa de escrever-lhe rodeia-se de um ar de
excitação.
A fim de ganhar uma certa perspectiva para essa tarefa, decidi entrar em
contato com o Dr. Joe Wheelwright, um proeminente psiquiatra junguiano da
Langley Porter Clinic, em São Francisco da Califórnia. Ele mantivera
Consideráveis contatos com o Dr. Jung e poderia prestar-nos uma grande ajuda
como intermediário em nossos esforços para obter a colaboração do Dr. Jung.
Assim, foi com grande satisfação que o meu colega e eu recebemos não só o
confessado interesse do Dr. Wheelwright no projeto proposto, mas também a sua
permissão para mencionar, na carta subseqüentemente enviada ao Professor
Jung, solicitando a sua participação na entrevista inicial da nossa série, que
contávamos com o apoio do eminente psiquiatra de São Francisco. Essa carta foi
do seguinte teor:

19
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
2 de abril de 1957

Professor Doutor C. G. Jung


Seestrasse 228
Küsnacht-Zürich
Suíça

Caro Professor Doutor Jung:

Uma destacada fundação dos Estados Únidos, The Fund for the
Atívancement of Education, concedeu-nos uma pequena bolsa que possibilitará
o início da filmagem, para uso de estudantes dos anos mais adiantados dos
cursos de Psicologia, de uma série de lições, conferências e debates.
Ao planejarmos um curso filmado de Psicologia, ocorreu-nos que a
presença em filme de alguns dos homens verdadeiramente grandes em
Psicologia seria um motivo de inspiração e estímulo para os nossos estudantes
americanos nessa área. Naturalmente, o primeiro nome que nos acudíu à idéia foi
o seu. Há muito que l nos interessamos pela sua obra, e a sua presença no
filme enriqueceria apreciavelmente, em nossa opinião, a aprendizagem dos
nossos estudantes.
Se estiver disposto a participar, poderíamos voar para a Suíça, a fim de
realizar as filmagens de acordo com as suas conveniências pessoais. Não
exigiríamos grandes preparativos, como seria o caso de lições formais, mas, pelo
contrário, solicitaríamos a sua participação numa série de quatro entrevistas
informais. Submeteríamos, é claro, os tópicos à sua aprovação prévia e, de fato,
acolheríamos com a maior satisfação os seus conselhos sobre a escolha desses
tópicos. Isso permitiria que refletisse inteiramente sobre muitas facetas
interessantes de sua obra. Para evitarmos abusar do seu tempo, essas
entrevistas poderiam ser intervaladas, de forma que as filmagens se realizassem
ao longo de uma semana ou mais. Faríamos planos para permanecer uma
semana ou mais na Suíça e, se isso convier aos seus próprios programas,
poderíamos chegar por volta de 5 de agosto.
20
PRÓLOGO
O Dr. Joe Wheelwright, com quem falamos a respeito deste assunto, deseja
expressar o seu encorajamento para que o senhor colabore conosco na
realização desses filmes. Ele compartilha da nossa convicção de que isso seria
de grande valor educativo para os nossos estudantes de Psicologia, não só nesta
universidade, mas em todos os Estados Unidos. Cópias dos filmes seriam postas
à disposição de todas as faculdades americanas que as desejassem.
O Dr. John Meaney, diretor do Radio-TV Film Center desta universidade,
como titular da dotação do Fundo, produziria os quatro filmes. Ele já produziu
numerosas e estimulantes séries educativas para grupos profissionais de nível
universitário e para a televisão educativa. Através da minha própria experiência
de trabalho com ele, considero-o um estudioso sumamente compreensivo e
entusiástico de Psicologia; por isso estou certo de que o seu trabalho obteria os
melhores resultados possíveis.
Se nos permitir fazê-lo e nos sugerir uma quantia apropriada, teremos o
maior prazer em efetuar o pagamento de honorários pela sua participação nesses
quatro filmes.
Aguardamos esperançosamente uma resposta sua sobre este assunto,

Cordialmente seu

Dez dias depois, recebemos a seguinte resposta do Dr. Jung:

Prof. Dr. C. G. Jung KÜSNACHT-ZÜRICH


Seestrasse 228
abril de 1957

Prof.
Richard I. Evans, Ph. D. University of Houston
Cullen Boulevard
Houston 4, Texas

21
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

Caro Prof. Evans:

Estou disposto a satisfazer o seu pedido, se puder limitar-se a quatro


entrevistas em dias consecutivos, a partir de 5 de agosto, por volta das 4 horas da
tarde.
Quanto à natureza das suas perguntas, prefiro deixá-las à sua iniciativa.
Ignoro em que aspectos da Psicologia o senhor está particularmente interessado
e tampouco posso pressupor que os seus interesses coincidam com os meus.
Cada entrevista não deve durar mais de uma hora, no máximo, dado que me
fadigo facilmente em conseqüência da minha avançada idade.
Como não estou informado sobre o montante da sua bolsa, gostaria que
me dissesse francamente qual é a sua idéia no tocante aos honorários.
Espero que esteja suficientemente cônscio da precariedade que a minha
idade impõe aos meus compromissos. Tudo o que prometo está necessariamente
sujeito à ulterior decisão do destino, que pode inesperadamente interferir.

Sinceramente seu

Estou certo de que os leitores poderão imaginar o prazer com que recebi esta
resposta e a pressa com que passamos a elaborar o planejamento das medidas
subseqüentes. A correspondência que se seguiu entre o Dr. Jung, eu próprio e a
secretária do Dr. Jung, a Srª Aniela Jaffé, explica-se por si mesma e descreve a
evolução dos acontecimentos que nos levaram a fixar um encontro para quatro
dias de agosto de 1957.

18 de abril de 1957

Professor Dr. C. G. Jung


Seestrasse 228
Küsnacht-Zürich
Suíça
22

PRÓLOGO
Caro Professor Doutor Jung:

Ficamos encantados com a sua carta de 12 de abril. No dia em que a sua


carta chegou, aconteceu que estávamoo discutindo algumas de suas
contribuições para a teoria da personalidade na minha classe de Psicologia da
Personalidade e quando li a carta para os alunos foi, na verdade, um momento
emocionante.
As datas que nos indica em que nos poderia receber para o propósito de
entrevistas filmadas, 5, 6, 7 e 8 de agosto, são simplesmente ótimas. O Dr.
Meaney e eu chegaríamos provavelmente a Zurique alguns dias antes, é claro.
Examinando o nosso orçamento, um honorário de quinhentos dólares
pareceu-nos viável. Acha essa quantia suficiente? Caso contrário, queira nos
informar e faremos todos os esforços ao nosso alcance para realizar algum
ajustamento.
Quanto ao conteúdo das entrevistas e o tipo de perguntas que lhe farei,
seria nosso desejo orientar o debate para o nível do estudante universitário de
Psicologia. Exemplos das áreas de discussão que seriam de interesse nesse nível
incluem o inconsciente, introversãoextroversão e as formas como essas
tendências interatuam nos fatores da sua tetrassomia {pensamento, sentimento,
percepção e intuição), o Método de Associação Verbal, pontos de vista sobre o
desenvolvimento e maturidade da personalidade humana etc. Naturalmente,
esforçar-nos-emos em todos os sentidos por orientar as nossas entrevistas de
molde a receberem a sua completa aprovação.
Em nome do Dr. Meaney, do pessoal docente do nosso Departamento de
Psicologia e da administração da Universidade de Houston, desejo agradecer a
sua benevolência em aceitar a nossa proposta, assim permitindo que o nosso
projeto se inicie sob uma tão distinta égide.

Cordialmente seu

23
ENTREVISTAS com CARL G. JUNQ

abril de 1957

Richard l. Evans, Ph. D.


University of Houston
Cullen Boulevard
Houston 4, Texas
USA

Caro Professor Evans:

Agradeço a sua amável carta. Os honorários propostos de quinhentos


dólares satisfazem-me completamente.
Agradeço também ter-me fornecido um esboço do questionário que me
será proposto. Espero sinceramente não ser excessivamente complicado em
minhas respostas.
Na expectativa do nosso encontro, subscrevo-me, caro Prof. Evans,

Sinceramente seu

16 de maio de 1957

Professor Doutor C. G. Jung


Seestrasse 228
Küsnacht-Zürich,
Suíça

Caro Professor Jung:

Estamos encantados pelo fato do honorário de quinhentos dólares ter sido


considerado satisfatório. Também nos satisfaz saber que concorda com as áreas
de discussão geral que indicamos.
Permita-me que ventile um ponto adicional. O Dr. Meaney que, é claro,
estará filmando as nossas entrevistas, gostaria de conhecer a sua opinião sobre
as condições de luz, as quais, como sabe, são muito importantes para o trabalho
cinematográfico. Por exemplo, às
24
PRÓLOGO

quatro horas da tarde, durante os primeiros dias de agosto, quando temos o


nosso encontro programado, a luz externa é suficiente para que possamos
realmente filmar as entrevistas ao ar livre, diante de sua casa, talvez? De um
ponto de vista técnico, isso tornaria então dispensável instalar equipamento
especial de iluminação, o que seria necessário se as entrevistas tivessem de ser
filmadas no interior de sua residência. O som também poderia ser mais
eficazmente registrado em gravação externa. Os seus comentários sobre estes
pontos seriam imensamente apreciados.
Por uma questão de rotina, a nossa Universidade requer a sua assinatura
no impresso anexo. Ficaríamos muito gratos se o assinasse no espaço acima do
seu nome. A cópia extra é para os seus arquivos. Queira fazer o obséquio de
devolver o exemplar assinado com a resposta a esta carta.
Seria desnecessário acrescentar que o Dr. Meaney e eu estamos muito
emocionados com a viagem e a perspectiva de o conhecermos e passarmos
algumas horas na sua companhia. Os nossos alunos já nos perguntam quando
poderão ver os filmes das entrevistas. Reiteramos os nossos agradecimentos por
nos ter possibilitado este empreendimento.

Cordialmente seu

30 de maio de 1957

Prof. Richard l. Evans, Ph. D.


Üniversity of Houston
Cullen Blvd.
Houston 4, Texas
USA

Caro Dr. Evans:

Suponho que conhecerá as condições caóticas do tempo europeu.


Qyerendo Deus, temos o mais belo e

25
ENTREVISTAS com CARL G. JTJNG

brilhante dos sóis. Mas se Zeus Nephelegeretés prefere envolver o nosso amado
país em dobras de neblina e chuva, pode até acontecer que tenhamos de acender
luzes na sala. Se o tempo estiver bom e quente, teremos muito barulho perto de
casa, em virtude de uma pisrina pública que existe nas suas vizinhanças. Nesse
caso, letirar-nos-íamos para um canto remoto do jardim, onde não existe
eletricidade. Para tal eventualidade, os senhores necessitariam de cerca de 100
metros de cabo. bom, tenho que deixar essas decisões técnicas ao vosso
cuidado.
Estou juntando também a declaração assinada.
Au revoir no verão!

Sinceramente seu,

Decidimos que seria tão oportuno quanto valioso, no interesse do nosso


projeto, entrevistar outro psicólogo eminente durante a nossa estada na Europa.
com base nessa decisão, solicitamos uma entrevista com Anna Freud. Ela, porém,
desejou que transferíssemos a solicitação para o Dr. Ernest Jones, um
proeminente psicanalista e intelectual que dedicara grande parte de sua vida a
apoiar e defender os pontos de vista de Sigmund Freud. A entrevista com o Dr.
Jones seria um digno complemento das entrevistas com o Dr. Jung. Além disso,
como ambos esses distintos cientistas tinham tido contato primário corn Freud e
tinham saído desse contato pessoal com pontos de vista divergentes,
proporcionariam um contraste empolgante para os estudantes a quem eram
destinados os filmes.
Tivemos sorte em garantir um encontro com o Dr. Jones, de modo que a
nossa primeira escala na Europa foi Paris. Quando chegamos a Paris para
completar a nossa entrevista com o Dr. Jones, realizava-se uma sessão do
Congresso Internacional de Psicanálise. Quando entramos no vasto auditório
onde se celebrava uma sessão plenária, vimos, sentado no palco entre várias
personalidades significativas do movimento psicanalítico, uma figura que
imediatamente atraiu a nossa atenção.
26
PRÓLOGO

Nos seus últimos anos de vida, o Dr. Jones deixara crescer a barba, modificando
a sua aparência e dando a impressão, por um momento, de que o próprio Freud
ali estava sentado.
Sabendo que o Dr. Jones estava em condições de saúde extremamente
precárias, vítima de câncer terminal e de uma recente crise das coronárias, não
teríamos ficado surpreendidos se ele não quisesse dar continuidade à entrevista.
Contudo, um contato inicial com o Dr. Jones dissipou todas as apreensões.
Embora estivesse muito ocupado, no momento, com uma hoste de amigos e
conhecidos que solicitamente se aglomeravam à sua volta, ele prontamente nos
apresentou à Senhora Jones, que nos garantiu que o marido estaria presente na
hora e local marcados para a entrevista. Os funcionários de uma firma de
Houston, a Schlumberger Corporation, tinham tido a amabilidade de
providenciar para que os escritórios da sua filial de Paris ficassem à nossa
disposição para a entrevista e foi nesse cenário que nos encontramos com Ernest
Jones.
A perspicácia e a penetração com que o Dr. Jones abordou a situação de
entrevista são facilmente discerníveis através de suas respostas francas e
reveladores às minhas várias perguntas. A doença letal que diariamente
devastava seu corpo, roubando-lhe o pouco vigor que ainda lhe restava, não
conseguira levar a melhor sobre o seu intelecto arguto e perceptivo; além disso,
como o leitor notará, a precária saúde do Dr. Jones de maneira nenhuma embotou
o ferrão de mordacidade de suas palavras, quando decidia dar essa tônica às
suas respostas,.
Sentindo-nos extremamente satisfeitos com o êxito cia primeira parte da
nossa missão, o meu colega e eu despedimo-nos do Dr. Jones e partimos
imediatamente para Zurique, o cenário para o coroamento da nossa iniciativa.
com que ansiedade antegozávamos o eminente encontro com o notável e tão
controvertido Professor Carl Jung!

Ernest Jones morreria sete meses depois dessa entrevista, em fevereiro de 1958. (N. do T.)

27
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

O ínterim causado pela viagem até Zurique propiciou uma oportunidade


para meditação e reflexão sobre os últimos meses, o que inevitavelmente
conduziu a um reexame mais detalhado de Jung e sua obra. Como muitos
psicólogos americanos, eu há muito tempo respeitava e me interessava pelo Dr.
Jung como um importante pioneiro e figura histórica nos anais da Psicologia. Era
igualmente verdade, porém, que eu compartilhava de uma certa dose de
ceticismo, abundantemente em evidência, que cercava muitac das noções
fundamentais de Jung. De um modo geral, os psicólogos americanos
consideravam a obra do Dr. Jung excessivamente nfetica e filosófica para
satisfazer aos critérios de uma sólida pesquisa científica. De fato, é interessante
assinalar que as idéias de Jung são mais caracteristicamente difundidas pelos
membros dos departamentos de Filosofia e Letras das universidades do que
pelos habitantes dos departamentos de Psicologia.
Da Psicologia contemporânea, com sua ênfase na análise e métodos
científicos, dificilmente poderia esperar-se que aceitasse tais conceitos
metafísicos, postulados por Jung, como ”inconsciente racial” ou ”concepções
transcendentes do eu”, e muito menos a sua suçestão de que os antigos escritos
sobre alquimia podem fornecer conhecimentos sobre o processo de crescimento e
desenvolvimento do indivíduo. Conceitos como esses tinham acarretado para
Jung a condição de persona non grata entre grande número de psicólogos
americanos.
Entretanto, poucos, ou talvez nenhum, negam que certas idéias defendidas
por Jung converteram-se em potáveis contribuições para a Psicologia. A sua
tipologia introvertido-extrovertido passou a fazer parte integrante do vocabulário
ativo de um incontável número de pessoas que não receberam qualquer
educação formal em Psicologia; e termos clássicos tais como ”cornplexo”, apenas
um dos muitos termos introduzidos pelo Dr. Jung, foram tão bem assimilados na
linguagem moderna que se converteram, essencialmente, em palavras de ”uso
doméstico”. Além disso, como criador do teste de ”associação verbal”, forneceu
um instrumento que a
28
PRÓLOGO

maioria dos psicólogos de todas as correntes considera extremamente útil.


Por outra parte, seria injusto não mencionar a existência de alguns psicólogos
americanos que aceitaram as concepções de Jung sobre a natureza da
personalidade humana com a maior seriedade. Um exemplo notável foi o
eminente, respeitado e, na minha opinião, sumamente estimulante Dr. Henry
Murray, da Universidade Harvard. O Dr. Murray, que teve considerável contato
com Jung, continua exaltando a sua obra. Também os Drs. Calvin Hall e Gardner
Lindzey, num cornpêndio amplamente usado e divulgado, Theories of
Personality (12), escreveram um capítulo sobre Jung que me parece ser uma das
descrições mais laudatórias e positivas das idéias de Jung apresentadas na
literatura da Psicologia americana contemporânea. Assim, o Dr. Jung não estava
inteiramente sem um séquito de distintos adeptos nesta terra de céticos.
Quando me debrucei sobre a idéia de entrevistar Jung, fui obrigado a
decidir qual deveria ser a finalidade das entrevistas iminentes. Como tantos
outros professores dos cursos de Personalidade, eu vinha ensinando há muitos
anos a teoria junguiana; e, é claro, a situação docente implica um contexto em
que a avaliação critica é muito importante. Entretanto, nessas entrevistas,
parecia-me preferível não criar uma atmosfera em que a avaliação crítica da obra
do Dr. Jung desempenhasse qualquer papel crucial.
Para apresentar objetivamente os pontos de vista de Jung, achei que seria
melhor facultar uma oportunidade para que o Dr. Jung formulasse e expressasse
as suas idéias de uma forma tão direta e sistemática quanto possível, sobretudo
aquelas idéias pertinentes à teoria da personalidade. As perguntas que preparei
permitiriam ao entrevistado estabelecer um contraste entre as suas concepções e
as de Freud e, partindo daí, expor as suas próprias e originais constribuições. (O
leitor notará que usarnos freqüentemente as reações de Jung à teoria de Freud
como um meio não só para permitir ao estudante uma comparação entre os dois
homens, mas também como um meio para provocar em Jung um desenvolvimento
29
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

de suas idéias.) Essa forma de apresentação, dentro de uma estrutura inteligível


para os estudantes de Psicologia contemporânea, proporcionará uma
oportunidade de maior clareza na comunicação.
Após a chegada à Suíça, entramos imediatamente em contato com a Srª
Jaffé, secretária do Dr. Jung. O encontro foi ern Küsnacht, no dia 2 de agosto.
Fiquei encantado ao ouvir que o Dr. Jung teria muito prazer em receber-me em
seu jardim na manhã seguinte, para falarmos brevemente sobre as entrevistas
que teriam lugar nos próximos dias. Entrementes, o Dr. Meaney entregava-se à
tremenda tarefa de instalar o equipamento de filmagem no Instituto Federal de
Tecnologia, onde as entrevistas se realizariam.
Os problemas do nosso cinegrafista-diretor e coprodutor, o Dr. Meaney,
para reunir uma equipe técnica, não foram de pouca monta. Enquanto ele
batalhava com esses problemas, no dia seguinte, caminhei do hotel em Küsnacht
até a residência do Dr. Jung, situada a poucas quadras de distância. Fui recebido
pelo Dr. Jung em seu jardim. As suas primeiras palavras foram estas:
— Por que é que vocês, psicólogos americanos, me detestam tanto?
Tenho a certeza de que não preciso expressar a desconcertante surpresa
de minha parte, diante de tal pergunta feita de chofre; mas é igualmente verdade
que se eu tivesse conhecido o Dr. Jung, mesmo superficialmente, o impacto da
surpresa não teria, provavelmente, ocorrido. Contudo, apesar de nos
conhecermos há monentos, apenas, não reagi a essa declaração, pronunciada
com a maior serenidade, tão seriamente quanto poderia ser esperado, por causa
de uma cintilação irônica e marota que surpreendi no olhar do Dr. Jung, enquanto
me espiava através dos óculos.
Embora o Dr. Jung contasse, nessa altura, 82 anos de idade, tinha toda a
aparência de gozar de excelente saúde. Fisicamente, era uma imponente figura
de homem, bem proporcionada, de mais de um metro e oitenta de altura, cujos
gestos e pose eram cheios de dignidade. Suas maneiras eram cordiais e
encantadoras e conseguir relacionamento com ele era coisa fácil de se
30
PRÓLOGO

realizar. Poderia ainda acrescentar, entretanto, que nenhum elemento na


personalidade do Dr. Jung seria mais agradável, nos dias seguintes, do que a já
referida ”cintifação” em seus olhos, em evidência sempre que ele queria troçar ou
ironizar sobre alguma coisa, por um momento.
Respondi à pergunta inicial do Dr. Jung com a única resposta legítima de
que dispunha; isto é, eu tinha de admitir que havia, por certo, um grande número
de psicólogos americanos, provavelmente a maioria, de fato, que não aceitava
muitas de suas idéias, embora ”detestar” fosse uma palavra demasiado forte para
usar em referência aos sentimentos deles.Também sublinhei, entretanto, que
havia na América outro grupo de psicólogos muito familiarizado com a sua obra e
muito mais positivo na avaliação que fazia dela.
A conversa que se seguiu com o Dr. Jung revelou que, de fato, ele estava
inteiramente ao corrente do escrutínio crítico a que alguns dos seus conceitos
tinham sido submetidos. Por exemplo, não era segredo para ele que a sua
tipologia introversão-extroversão, sobretudo no passado, tinha servido a muitos
dos nossos compêndios introdutórios de Psicologia como uma espécie de ”bode
expiatório”, numa tentativa para advertir o estudante principiante para não
prefigurar as pessoas como tipos ou colocá-las em categorias inflexíveis, nesse
caso, apondo-lhes simplesmente o rótulo de introvertidas ou extrovertidas. Nesse
ponto, entretanto, expliquei-lhe que muitos psicólogos, talvez mais familiarizados
com a sua obra, tinham perfeita consciência de que ”ele jamais pretendjera que
essas tipologias fossem alguma coisa mais do que um útil guia para ajudar na
compreensão do indivíduo.
Nessa altura, foi servido chá e sentamo-nos para começar a discutir uma
porção de coisas diferentes. O Dr. Jung estava particularmente interessado, como
o leitor poderá ter notado pelo conteúdo da sua primeira carta a nós, nos objetivos
educacionais do nosso projeto. Queria saber a quem se destinavam essas
entrevistas filmadas. Expressei a esperança de que os filmes seriam um veículo
de introdução de sua obra junto dos
31
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

estudantes, o que, por seu turno, impunha a necessidade das entrevistas


transcorrerem num nível de linguagem compreensível até para um estudante dos
primeiros anos. O Dr. Jung manifestou uma clara compreensão disso.
À medida que a nossa conversa progredia, a natureza educativa ao nosso
empreendimento continuou despertando um interesse genuíno da parte do nosso
anfitrião. Num determinado ponto, perguntei-lhe por que concordara em participar
nessas entrevistas. De um modo bastante interessante, respondeu que, de algum
modo, sentira intuitivamente que esses professores de Houston, a Universidade
de Houston, em ”Houston, Texas, uma nova fronteira nos Estados Unidos”,
estariam ansiosos por conduzir a situação de uma forma que ele aprovasse.
O inglês do Dr. Jung, expressado com um delicioso sotaque germânico, era
excelente; comecei a enxergar uma qualidade dinâmica em seus maneirismos,
sua expressividade e seu colorido fraseado. Enquanto falávamos, tornou-se
evidente que tínhamos em Carl Jung não só um sujeito que possuía muito a
oferecer intelectualmente, mas também um indivíduo que daria excelente conta de
si mesmo numa situação de entrevista espontânea.
Sugeri ao Dr. Jung que, se a autêntica espontaneidade pudesse ser
atingida nessas entrevistas, isso seria muito mais emocionante e interessante
para os estudantes, o que imediatamente mereceu a sua concordância. Na
verdade, embora eu tivesse preparado as perguntas a serem formuladas durante
as quatro entrevistas de uma hora, ele nem sequer quis vê-las, preferindo em vez
disso ouvir as perguntas pela primeira vez durante as entrevistas reais.
A importância dada à espontaneidade como objetivo altamente desejável,
somada ao período de uma hora estabelecido para cada entrevista, criou, porém,
uma séria consideração a ser levada em conta. A espontaneidade pode resultar
em demasiada conversa irrelevante e digressiva; e, nesse caso, como queríamos
as reações do Dr. Jung a todas as perguntas preparadas, cada minuto de cada
hora contava. Assinalei esse ponto, ex-
32
PRÓLOGO

plicando-lhe que nos empreendimentos comerciais desse tipo, com mais tempo
disponível para entrevistas, muitas horas são freqüentemente reduzidas a um par
de horas na mesa de montagem do filme que será finalmente exibido. Nas
próximas entrevistas com eie, porém, não dispúnhamos, virtualmente, de margem
de tempo para cones. Uma vez mais, o Dr. Jung mostrou compreender a situação.
houve tantos aspectos emocionantes em nosso empreendimento que seria
impossível descrevê-los todos, contudo, um que se destaca por ter acrescentado
uma nota interessante a nossa tarefa foi a indicação de bom dizer, um membro ao
stt de Paris da revista Time, para razer a coberlura jornalística da nossa história.
Por indicação ao serviço de informações da nossa Universidade, tínhamos
imormado o taiecido W.lliam mehale, nessa época Chefe do Escritório de Paris do
Time, sobre a natureza do nosso projeto, assim como a data aa nossa chegada a
Paris. O projeto, consistindo em dois professores americanos que vinham ao
encontro do Dr. Gari Jung para um empreendimento desse gênero fora do comum,
levou McHale a destacar um membro do seu siaff para fazer a reportagem das
entrevistas.
ton Dozier iniciou os preparativos para o seu artigo do Time cobrindo,
primeiro, a entrevista com o Dr. Ernest Jones e, depois, acompanhou-nos a
Zurique, onde solicitou e obteve permissão, tanto nossa como do Dr. Jung, para
testemunhar as quatro entrevistas filmadas de uma hora cada. A sua interessante
descrição do nosso esforço foi publicada na edição da revista Time de 19 de
agosto de 1957. Reproduzimos em seguida alguns extratos da reportagem de torn
Dozier, antes de ter sido publicada pelo Time, tal como foi publicada no Houston
Post de 16 de setembro de 1957:
”O velhote, com seu fino cabelo branco e um fulgor de penetrante argúcia
nos olhos, estava recostado numa cadeira de braços e tirava deliberadamente
longas baforadas de seu inseparável cachimbo. Aparentemente indiferente ao
microfone em torno do pescoço e às lentes da câmera que o fixavam do outro
lado da sala, Carl Gustav Jung falava através do halo de fumaça que lhe
33
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

coroava a cabeça. Sua voz era forte e retumbante, o seu inglês só ligeiramente
matizado de sotaque germânico.
”— O mundo — disse Jung — está suspenso de um fio muito tênue, e esse
fio é a psique do homem... Não é a realidade da bomba de hidrogênio que
devemos temer, mas o que o homem fará dela. Suponhamos que certos
camaradas em Moscou se enervem, então o mundo será envolto em chamas e
fogo. Mais do que nunca, o mundo depende da psique do homem.
”Portanto, explicou o velho sábio, o estudo e compreensão da psique
humana é mais importante do que nunca.
”Durante uma hora, em quatro dias diferentes, Jung, o psicólogo analítico,
em seus viris 82 anos, derradeiro sobrevivente entre os Três Grandes pioneiros
da Psicologia moderna, sentou-se diante de uma câmera de televisão, numa sala
de paredes envidraçadas do Instituto Federal de Tecnologia, em Zurique, e
explicou os pontos sutis e mais intricados da abordagem junguiana do estudo da
mente humana. Delicadamente guiado pelo entrevistador, Richard Evans, do
Departamento de Psicologia da Universidade de Houston, Jung percorreu toda a
volumosa complexidade das SUES teorias e conclusões sobre a psique.
”Por vezes, fustigava moderadamente os dois outros Titãs seus colegas,
Freud e Adler, corrigia repetidamente o que considerava interpretações errôneas
de suas idéias, explicava em detalhe as suas teorias sobre introversão,
extroversão, persona, intuição, a interpretação, dos sonhos e os símbolos
inconscientes a que chamou arquétipos...
”O desempenho de Jung era tão extraordinário quanto fascinante. Ele
aparecia pela primeira vez diante de uma câmera de TV, fazia a sua primeira
reverência a uma platéia americana desde que lecionara Psicologia e Religião em
Yale, em 1938, e, excetuando-se algumas conferências em Zurique, era essa a
sua primeira aparição pública em mais de uma década. E, apesar da sua vigorosa
aparência de boa saúde, os espectadores ficavam impressionados pela
possibilidade de estarem testemunhando a última fala de um grande e
34
PRÓLOGO

magistral ator... um gênio aposentado que evita as aparições em público porque


”tenho um trabalho infernal para fazer as pessoas entenderem o que quero
dizer...”
”... Jung gracejava e parecia radiante, adorando imensamente tudo aquilo.
Quando Meaney afivelou o microfone em torno do pescoço de Jung e lhe ligou o
fio, o velhote comentou, risonho:
”— bom, esta foi a primeira vez que alguém me colocou uma trela...
”No estúdio, seus olhos brilhavam atrás dos óculos de aro metálico e seu
eriçado bigode branco tremia quando Jung esboçava um sorriso. Como estava
falando para estudantes e como, de qualquer modo, ele é ireqüentemente
obscuro, muito do que ele disse foi altamente técnico e difícil de traduzir para a
linguagem cotidiana. ..”
No decorrer das quatro entrevistas de uma hora. aconteceram numerosas
coisas interessantes, através da interação com o Dr. Jung, que nos permitiram
uma certa e intrigante visão do seu íntimo como pessoa. O leitor talvez esteja
interessado em algumas dessas experiências, tendo em mente que, como elas
refletem apenas um contato limitado, dificilmente poderiam fornecer as bases
para uma compreensão verdadeiramente profunda.
Todos os dias, num Plymouth alugado, dirigíamo-nos ao local das quatro
entrevistas, o Instituto Federal de Tecnologia da Suíça. Eu tinha feito um
meticuloso mnpa do percurso, para não encontrar dificuldades na localização do
Instituto e não correr o risco de atrasos imprevistos. Mas tudo isso provou ser
uma cautela desnecessária. Descobri que o Dr. Jung gostava de guiar seu carro
pela Europa toda e conhecia todos os cantos e recantos dessa cidade. De fato,
vim a saber mais tarde que o Dr. Jung era o orgulhoso proprietário de uma
Mercedes Benz muito ”veloz”. Todos os dias o Dr. Jung

* De fato, embora Jung viesse a falecer somente quatro anos depois, em junho de 1961, foi
esta a sua última aparição em púbrco e também a última vez que consentiu em
serentrevistado. (N. do T.)

35
ENTREVISTAS com CARL, G. JUNG

nos assinalava o caminho, mostrando-me sempre um novo percurso e


proclamando:
— Todos sabem que Jung nunca vai duas vezes pelo mesmo caminho.
Além disso, quando chegávamos ao Instituto e eu cuidadosamente tentava
conduzi-lo para um elevador que nos deixasse no segundo andar, o Dr. Jung
investia corajosamente para a escada, numa passada vigorosa que me deixava
sem fôlego.
ton Dozier, o jornalista do Time, ficava sentado durante todas as
entrevistas, prestando uma obstinada atenção e tomando notas das perguntas
que nos queria fazer no final da entrevista em curso. Numa ocasião, se bem me
lembro, ele regressou do Instituto em nosso carro. Ia sentado em silêncio no
banco traseiro enquanto o Dr. Jung e eu conversávamos em ton despretensioso e
informa! sobre os netos e bisnetos do Dr. Jung. De súbito, Dozier interrompeu o
nosso ”papo” para fazer a Jung uma pergunta realmente excelente sobre um
ponto técnico que tinha sido debatido durante a entrevista desse dia. Num ton
muito firme, o Dr. Jung rechaçou essa excelente representante de um semanário
mundialmente lido, declarando apenas:
— Meu caro senhor, estamos neste momento falando de algo que é um
pouco mais importante. Por que não pergunta mais tarde ao Dr. Evans?
A revista Time publicara anteriormente algumas reportagens muito boas,
todas favoráveis a Jung, de modo que o seu comportamento nesse episódio não
era, indubitavelmente, um reflexo específico de sua hostilidade para com a
revista. O incidente apenas demonstrou claramente a característica falta de
interesse de Jung pelos canais usuais do que poderíamos chamar a pressão da
sociedade, a cujo respeito nos habituamos a sentir grande preocupação.
Observamos que, no quarto dia, o Dr. Jung começou a ficar um tanto
fatigado. Estávamos quase dispostos a não insistir na conclusão dessa quarta
entrevista, mas ele foi o primeiro a instar para que se completasse. De fato,
indicou jovialmente que estava gostando muito da experiência. Não pude deixar
de sentir que isso ilus-
36
PRÓLOGO

trava o fato da sua aceitação do nosso convite para ser entrevistado ter sido um
gesto sincero. Penso que o processo de educar um grande número de
estudantes dessa maneira representava para ele um verdadeiro desafio.
Posteriormente, enviei-lhe de presente uma cópia de uma das entrevistas
filmadas. Recebemos da sua secretária, a Srª Jaffé, a seguinte carta:

28 de novembro de 1958

Prof. Richard l. Evans


University of Houston
Cullen Blvd.
Houston 4, Texas

Caro Professor Evans:

Quero informá-lo que todos nós gostamos imensamente de ver o seu filme.
Foi um grande êxito e pretendemos repetir a exibição na primavera. O Prof. Junq
pediu-me que lhe agradecesse muito pelo envio da cópia. Ele não esteve
presente a essa exibição, mas esperamos que compareça na próxima vez.
Estamos certos de que ele gostará também.
O Prof. Jung pergunta se o filme foi um presente para ele ou se terá de
devolvê-lo. Ficaria muito grato para uma breve resposta.
Tivemos conhecimento de que o senhor possui quatro desses filmes. É
verdade?
Reiterando os nossos agradecimentos,

Sinceramente sua,
Aniela Jaffé, Secretária

Soubemos posteriormente que o Dr. Jung ficou deveras encantado com a


forma como apareceu nessas entrevistas.
De regresso aos Estados Unidos, tratamos de revelar rapidamente os
filmes e começamos a pensar num
37
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

meio de os tornarmos acessíveis aos estudantes e out’os grupos interessados.


Para nossa grande satisfação, o interesse por esses filmes foi enorme.
Atendemos pedidos de cópias provenientes, literalmente, de todo o mundo. Um
pedido recente, por exemplo, chegou-nos de um grupo junguiano em Perth, na
Austrália Ocidental.
Como acontece freqüentemente com os que trabalham no campo da
Psicologia, não estamos interessados apenas em obter um produto, mas
queremos avaliá-lo com o maior cuidado. Sem sobrecarregar o leitor por ora com
uma análise minuciosa a respeito das avaliações que fizemos desses filmes, a
citação de um estudo que realizamos será suficiente como indicação, em certa
medida, do sucesso do projeto. Esse estudo comparou grupos equiparados de
estudantes que leram os traslados das entrevistas e viram as entrevistas filmadas,
em função do que tinham aprendido para além da leitura norrnal das idéias de
Jung em outras fontes. Os resultados da nossa pesquisa sugeriram que as
entrevistas não só facilitaram uma comunicação mais eficaz das idéias de Jung,
mas também tiveram um efeito definido sobre as atitudes e sentimentos sobre
Jung. Até alguns estudantes de Psicologia que tinham sido antes extremamente
hostis a Jung e seus pontos de vista pareciam demonstrar agora uma atitude mais
favorável em relação a Jung, o homem, quando se defrontaram com essa técnica
de apresentação das, suas idéias. Para nós, é claro, isso foi sumamente
interessante e certamente, para consideração futura, parece sugerir que tal
técnica de entrevista constitui um instrumento educativo francamente promissor.
De fato, estamos atualmente testando essa possibilidade em bases mais sólidas,
através de toda uma série de entrevistas que está sendo levada a efeito com
alguns dos mais notáveis psicólogos contemporâneos. Esse empreendimento
está sendo realizado nos termos de uma bolsa que nos foi recentemente
concedida pela National Science Foundation.
Nas páginas que se seguem, tentamos organizar os materiais das
entrevistas de tal modo que se facilitasse

* Ver o Apêndice B.

38
PRÓLOGO

a máxima comunicação entre o leitor e a página impressa. Tomamos o mínimo de


liberdade possível com o texto. De fato, não acredito que, em qualquer momento,
tivéssemos modificado materialmente as respostas de Jung és perguntas das
primeiras três entrevistas. Na última entrevista, porém, fizemos realmente muito
poucas perguntas a Jung, permitindo-lhe que discorresse livremente e sem
intervenção do orientador. Como era natural, de certo modo, essa abordagem
final acarretou algumas divagações e não suscitou o gênero sucinto de respostas
que teria sido ideal. Além disso, Jung dedicouse, sobretudo, nessa última
entrevista, a completar e ampliar suas respostas anteriores às perguntas
formuladas nas primeiras três entrevistas; assim, tomamos a liberdade de
sintetizar e reorganizar, em certa medida, pelo menos, essas ampliações sobre
pontos que já tinham sido tratados, a fim de tornar o texto mais comunicativo e
legível.
A ordem em que as perguntas e respostas ocorreram foi alterada, algumas
vezes, para fins de clareza e, no mesmo propósito e interesse, algumas das
perguntas foram submetidas a revisões secundárias, para torná-las mais sucintas.
Como um todo, porém, o material consubstanciado nos capítulos que se seguem
reflete fielmente as respostas de Jung às nossas perguntas.
Quando o leitor começar a esmiuçar esse material, talvez note certas
diferenças na maneira como um psicólogo americano usaria termos específicos e
na maneira como esses mesmos termos são empregados pelo Dr. Jung. Em certa
medida, isso ocorreu em função do alemão de Jung e da influência que
exerceu.no seu inglês. Para citar um exemplo, a palavra instinto na Psicologia
americana de hoje pode ser simplesmente definida como lima tendência de
resposta não-aprendida. Jung usa o termo instinto, entretanto, em referência a
uma resposta aprendida, no sentido de ser um hábito.
Ao examinar este material, o leitor também notará que, ocasionalmente, há
uma tendência para o uso de uma frase que, superficialmente, não parece ter um
significado particular. Por exemplo, num dado momento, -Jung-está discorrendo
sobre o inconsciente e diz que
39
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

não podemos realmente saber muita coisa sobre o inconsciente porque... ”é


realmente inconsciente!” Nesses momentos, recordamos o lampejo sarcástico nos
olhos de Jung, quando tentava fazer um pouco de humor às custas do
entrevistador e talvez abrir a porta para uma nova discussão. Por outras palavras,
em muitas ocasiões, o leitor não deve, por causa do senso de humor de Jung e
seus invuloares recursos de comunicação, tomar as suas expressões num sentido
demasiado literal. Muitas de suas respostas devem ser interpretadas no contexto
da resposta total a uma dada pergunta.
Foi com muito interesse que li recentemente numa revista de âmbito
nacional, a Atlantic Monthly, e no livro Memores, Dreams, Reflecttons (17), alquns
reaistros das idéias do Dr. Junq apresentadas pela Srª Aniela Jaffé, a secretária
de Junq. A sua perspicácia, discernimento e compreensão sensível das idéias de
Jung, e de Jung como opssoa, merecem uma nota especial de louvor e
admiração.
Em Nova York, a 1° de dezembro de 1961, foi realizado um encontro em
memória de Jung, patrocinado conjuntamente pela Associação às Psicologia
Analítica de Nova York e pelo Clube de Psicologia Analítica de Nova York. Nesse
encontro, ficamos particularmente empolgados pelos interessantes e eloqüentes
comentários do Dr. Henry Murray sobre o falecido Dr. Carl Jung. Permitimo-nos
citar o Dr. Murray, quando disse:
”Jung era humilde diante do inefável mistério de cada eu variante com que
deparava pela primeira vez, quando se sentava em sua escrivaninha, cachimbo
na mão, todas as faculdades em sintonia, meditando sobre o portento do que lhe
estava sendo dito. E nunca hesitou em reconhecer a sua perplexidade na
presença de um estranho e inescrutável fenômeno, nunca hesitou em admitir a
natureza provisória dos comentários que tinha de fazer ou em enfatizar as
dificuldades e limitações da possível realização no futuro.
”— Quem quer que venha até mim — diria ele — toma sua vida nas mãos.
”O efeito de tal declaração, o efeito da sua maneira de expressar o seu
reconhecimento da incerteza e sus-

40
PRÓLOGO

pense, não diminui, mas aumenta, a fé do paciente em suas posições, em sua


indestrutível integridade, assim como deixa claro ao paciente que deve aceitar o
fardo da responsabilidade por quaisquer decisões que possa tomar.”
Fui até ao Dr. Jung não como um paciente em busca da sua ajuda, mas
como um professor de Psicologia que ali estava para entrevistá-lo. As mesmas
qualidades atribuídas a Jung no trecho acima citado, contudo, foram igualmente
discerníveis nesse contexto muito diferente. com efeito, Jung possui humildade, a
espécie que acompanha a mais ampla expansão do intelecto e dos sentidos. No
texto do material das entrevistas que apresentamos em seguida, sinceramente
esperamos que o leitor esteja apto a interatuar com Jung, tanto quanto a
aprender de Jung.
41
PArTE II

JUNG E FREUD

Nesta parte das entrevistas, o autor esforçou-se por sondar, com o Dr.
Jung, os acontecimentos que cercaram o seu envolvimento inicial com o Dr.
Freud. Também foi feita uma tentativa para traçar as Unhas mestras Já estrutura
fundamental da teoria psicanalítica, permitindo a Jung que reagisse a cada parte
da mesma.
À medida que Jung responde às perguntas relativas ao desenvolvimento
psicossexual e aos conceitos freudianos de Id, Ego e Superego, um
surpreendente grau de compreensão é transmitido ao leitor sobre a maneira como
Jung discorda de Freud, as áreas em que eles concurdavam e algumas das idéias
que Jung desenvolveu como reação ao pensamento freudiano.

43
Relacionamento de Jung com Freud, Adler e Rank
Dr. Evans: Dr. Jung, muitos dentre nós que leram uma boa parte de sua obra
estão cônscios do fato de que, em seus primeiros trabalhos, o senhor estava
associado ao Dr. Sigmund Freud. E sei que seria de grande interesse para muitos
saber como foi que teve conhecimento da existência do Dr. Freud e como acabou
por compartilhar de algumas de suas obras e idéias.
”Dr. Jung: Bem, de fato, foi no ano de 1900, em dezembro, pouco depois
de ter sido publicado o livro de Freud sobre a interpretação dos sonhos, que fui
solicitado pelo meu chefe, o Professor Bleuler, a escrever um comentário crítico
sobre o livro. Estudei-o com a maior atenção e não entendi muitas coisas nele, as
quais não me eram nada claras; mas, em outras partes, tive a impressão de que
esse homem sabia realmente sobre o que estava falando. E pensei: ”Isto é
certamente uma obra-prima... cheia de futuro.”
Nessa época, eu não tinha idéias próprias; estava apenas começando. Isso
foi, justamente, quando eu iniciava a minha carreira como assistente na clínica
psiquiátrica. E dava os primeiros passos no campo da Psicologia Experimental ou
Psicopatologia. Eu aplicava os métodos de associação experimental de Wundt, os
mesmos que tinham sido aplicados na clínica psiquiátrica de Munique, e estudava
os resultados obtidos. A minha idéia era que alguma coisa poderia sair daí. Assim,
fiz uso dos testes de associação e concluí que faltava neles a coisa mais
importante, pois não é interessante ver que na uma reação — uma certa reação
— a um estímulo verbal. Isso é mais ou menos despido de interesse. Mas

45
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

o ponto verdadeiramente interessante é averiguar por que as pessoas não


reagiam, ou não eram capazes de reagir, a certos estímulos verbais, ou então só
reagiam de uma forma inteiramente inadequada.
Foi então que comecei a estudar aqueles pontos, no experimento, em que
a atenção ou a capacidade dessa pessoa começam, aparentemente, a vacilar ou
a desaparecer, e não tardei em descobrir que se tratava de questões pessoais
muito íntimas que preocupavam as pessoas, ou que estavam nelas próprias,
mesmo que, momentaneamente, não pensassem nessas coisas, por outras
palavras, quando essas coisas eram inconscientes; tratava-se de uma inibição
oriunda do inconsciente e que perturbava a expressão através de palavras.
Então, ao examinar todos esses casos com o maior cuidado possível, percebi que
se tratava daquilo a que Freud chamava repressões. Também compreendi o que
ele entendia por simbolização.
Dr. Evans: Por outras palavras, graças aos seus estudos sobre associação
verbal, algumas das coisas ditas em A Interpretação de Sonhos (10) começaram
a fazer sentido.
Dr. Jung: Sim! E escrevi então um livro sobre a Psicologia da demência
precoce, como então se lhe chamava... agora chamam-lhe Esquizofrenia. Enviei
um exemplar do livro a Freud, escrevendo-lhe sobre os meus experimentos de
associação e como estes confirmavam, até então, a sua teoria. Assim foi que teve
início a minha amizade com Freud.
Dr. Evans: Houve outras pessoas que também se interessaram pela obra
do Dr. Freud e uma delas foi o Dr. Alfred Adler. Em sua opinião, o que foi que
levou o Dr. Adler a interessar-se pelos trabalhos do Dr. Freud?
Dr. Jung: Fazia parte do seu círculo; era um dos jovens médicos que o
rodeavam. Havia cerca de vinte jovens médicos que seguiam Freud e que
formavam...

46

RELACIONAMENTO com FREUD, ADLER E RANK


que tinham uma espécie de pequeno clube. Aconteceu que Adler estava lá e
aprendeu... estudou a Psicologia de Freud nesse círculo.
Dr. Evans: Outro indivíduo, é claro, que se juntou a esse grupo foi Otto
Rank, que não era médico, como o senhor, Freud e Adler. Não era formado em
Medicina. Isso foi encarado no seu grupo, nessa época, como algo inusitado, que
alguém sem formação médica pudesse ficar interessado em tais idéias?
Dr. Jung: Oh, não! Conheci muitas pessoas que representavam diferentes
faculdades, mas estavam interessadas em Psicologia. Todas as pessoas que
lidavam com seres humanos estavam naturalmente interessadas: teólogos,
advogados, pedagogos. Todos eles têm algo a ver com os processos da mente
humana e era natural que mostrassem interesse.
Dr. Evans: Portanto, o seu grupo, incluindo Freud, não pensava que se
tratava de uma área exclusivamente de interesse para o médico? Que, pelo
contrário, era algo que podia interessar a muitos?
Dr. Jung: Claro que sim! Não se esqueça que cada paciente que nos
chega fica interessado em Psicologia. E quase todos eles pensam,
inevitavelmente, que nasceram para ser psicanalistas!

47
A Opinião de Jung sobre o Desenvolvimento Psicossexual Freudiano

Dr. Evans: Uma das idéias fundamentais da teoria psicanalítica original foi
a concepção freudiana da libido como uma espécie de energia psicossexual de
natureza essencialmente dinâmica. Todos nós sabemos, é claro, que o senhor
começou a sentir que o Dr. Freud talvez tivesse dado excessiva importância à
sexualidade em suas teorias. Quando foi que começou a sentir isso?
Dr. Jung: No princípio, eu tinha certas prevenções, naturalmente, contra
essa concepção, mas superei-as, passado algum tempo. Pude fazê-lo graças à
minha sólida formação biológica. Não podia negar os impulsos do instinto sexual.
Mais tarde, porém, apercebi-me de que se tratava, realmente, de uma
concepção unilateral, porque o homem, como o senhor sabe, não é
exclusivamente governado pelo instinto sexual; também existem outros instintos.
Por exemplo, em Biologia, vemos que o instinto de nutrição é tão importante
quanto o instinto sexual. Embora a sexualidade desempenhe um papel nas
sociedades primitivas, a alimentação tem um papel muito mais importante. A
busca de alimentos constitui o interesse e o desejo de importância suprema. O
sexo... isso é uma coisa fácil de obter em qualquer lugar, não exige grande
esforço para procurar. Mas o alimento é difícil de obter e por isso constitui o
principal interesse.
Depois, em outras sociedades... refiro-me a sociedades civilizadas... o
instinto de poder desempenha um papel muito maior que o sexo. Por exemplo,
existem muitos homens de negócios que são impotentes porque toda a sua
energia é investida no impulso de ganhar

48
DESENVOLVIMENTO PSICOSSEXUAL FREUDIANO

Dinheiro ou de ditar os papéis de todo mundo. Isso é muito mais interessante para
eles do que estar às voltas com mulheres.
Dr. Evans: Assim, num certo sentido, quando começou a analisar a ênfase
dada pelo Dr. Freud ao impulso sexual, o senhor começou também a pensar em
função de outras culturas e pareceu-lhe que essa ênfase não possuía suticiente
universalidade para que se justificasse a atribuição de uma importância
primordial.
Dr. Jung: bom, de fato, era-me impossível deixar de fazê-lo, porque eu
tinha estudado Nietzsche. Conhecia muito bem a sua obra. Nietzsche tinha sido
professor na Universidade de Basiléia, onde era assunto obrigatório de toaas as
conversas; por isso tive, naturalmente, de estudar suas obras. E partindo daí,
vislumbrei uma Psicologia inteiramente diferente, que também era Psicologia...
uma Psicoiogia perfeitamente coerente, mas fundada sobre o instinto de poder.
Dr. Evans: Acredita ser possível que o Dr. Freud ignorasse Nietzscne ou
que talvez não quisesse ser influenciado por ele?
Dr. Jung: A sua pergunta refere-se à motivação pessoal de Freud?
Dr. Evans: Sim.
Dr. Jung: Claro que era um preconceito pessoal. Como sabe, era um de
seus temas principais que certas pessoas se interessam, principalmente, por um
aspecto das coisas e outras pessoas por outro aspecto. Assim, veja, o Dr. Adler,
mais jovem e mais fraco, tinha, naturalmente, um complexo de poder. Sendo
inferior a Freud, ele queria ser o homem bem sucedido. Freud triunfara, era um
homem bem sucedido; estava no apogeu e por isso estava unicamente
interessado no prazer e no princípio de prazer, ao passo que Adler estava
interessado no instinto de poder.

49
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

Dr. Evans: Acha que isso era, portanto, uma espécie de função da
própria personalidade do Dr. Freud?
Dr. Jung: Sim, é perfeitamente natural que assim fosse. É uma das duas
maneiras de encarar a realidade. Ou você faz da realidade um objeto de prazer,
se já for bastante poderoso; ou faz dela o objeto do seu desejo de se apoderar, de
possuir.
Dr. Evans: Alguns observadores especularam sobre a hipótese de que os
pacientes vistos pelo Dr. Freud na Viena desse período eram, na grande maioria
dos casos, indivíduos sexualmente tão reprimidos que podiam ser representantes
de um tipo cultural; ou, por outras palavras, como esses pacientes faziam parte da
sociedade vienense, que se acredita ter sido uma sociedade ”reprimida”, os
pacientes do Dr. Freud talvez manifestassem uma tendência exagerada para
reagir à frustração sexual, assim reforçando as suas idéias sobre uma libido
sexual.
Dr. Jung: Sim, não há dúvida de que no final da era vitoriana se registrou
no mundo inteiro uma reação contra os chamados tabus sexuais. As pessoas já
não entendiam mais, de forma apropriada, porque sim ou porque não; e Freud
pertence a essa época, uma espécie do libertação mental desses tabus.
Dr. Evans: Houve, portanto, uma reação contra a cultura bitolada, inibida,
em que ele vivia?
Dr. Jung: Sim. Freud, nesse sentido... por esse lado, pertenceu realmente
à categoria dos espíritos nietzschianos. Nietzsche libertara a Europa de um
grande número de tais preconceitos, mas somente no que diz respeito ao instinto
de poder e às nossas ilusões sobre as motivações da nossa moralidade. Foi uma
época crítica para a moralidade.
Dr. Evans: Assim, o Dr. Freud, num sentido, estava fazendo o mesmo
noutra direção...

50
DESENVOLVIMENTO PSICOSSEXUAL FREUDIANO

Dr. Jung: Sim. Além disso, como o sexo é o principal instinto e o instinto
domimante numa sociedade mais ou menos estável, quando as condições sócias
estão mais ou menos seguras, a sexualidade pode predominar porque as pessoas
me dão uma atenção especial. Elas tem suas posições, em suficiente
alimentação. Quando não há necessidade de caçar, de coletar alimenlos ou coisa
paiecida, então é muito provável que os pacientes que nos consultam tenham
todos, em maior ou menor grau, algum complexo sexual.
Dr. Evans: Portanto, o instinto sexual é, potencialmente, o impulso que,
nessa sociedade particular, tem mais probabilidades de ser inibido?
Dr. Jung: Exato. É uma questão de astúcia, quase, descobrir que aiguém é
movido peio instinto de poder e que o sexo apenas serve os propósitos do poder.
Por exemplo, veja o caso de um sedutor: todas as mulheres o consideram um
verdadeiro conquistador de corações; ele é, de tato, uma fábula, sob a qual se
esconde o instinto de poder, como Don Juan. A mulher não é o seu problema; o
seu problema consiste em saber como dominar., Assim, em segundo lugar após o
sexo, surge o instinto de poder e isso ainda não é o fim.
Dr. Evans: Para avançarmos no exame da concepção psicanalítica
ortodoxa, tem-se prestado muita atenção, como sabe, ao que Freud denominou o
desenvolvimento psicossexual: o indivíduo defronta-se com uma série de
problemas, em seqüência, que tem de resolver para que possa amadurecer
progressivamente. Segundo parece, um dos primeiros problemas que o indivíduo
tem de resolver gravita em torno, diríamos, das satisfações orais primitivas ou
experiências da zona oral, incluindo o desmame, que representa para a criança
algumas de suas primeiras frustrações.
Dr. Jung: Acho que, quando Freud diz que um dos primeiros e o mais
importante centro de interesse é a alimentação, ele não tinha necessidade
alguma de

51
ENTREVISTAS com CARL. G. JUNG

recorrer a esse tipo peculiar de terminologia como ”zona cral”. É evidente que a
comida se mete na boca!
Dt. Evans: Então, quer dizer que o senhor encara o nível oral de
desenvolvimento, proposto por Freud, num sentido menos complicado e sem
conotação sexual?
Dr. Jung: A ciência consiste, em grande parte, em considerações a
respeito de comida.
Dr. Evans: Em resumo, então, Dr. Jung, com referência ao nível oral de
desenvolvimento, o senhor prefere considerá-lo, de um modo bastante literal, uma
espécie de instinto de fome ou instinto de nutrição.
Outro ponto fundamental no desenvolvimento do ego, segundo a
concepção psicanalítica ortodoxa, é que ao nível oral se segue outra fase crítica,
um nível anal de desenvolvimento. Nesse segundo nível crucial, também ocorrem
algumas frustrações primordiais, isto é, as frustrações que gravitam em torno do
problema de adestramento para a higiene pessoal e o asseio. No tocante ao
desenvolvimento do Ego e posterior formação do caráter, Freud considerou que a
resolução precária de tais problemas acarretava sérias conseqüências.
Dr. Jung: bom, é lícito usar semelhante terminologia porque é um fato que
as crianças estão imensamente interessadas em todos os orifícios do corpo e
gostam de fazer toda sorte de coisas nojentas; por vezes, tais peculiaridades
persistem ao longo da vida. É verdadeiramente espantoso o que se pode ouvir a
esse respeito. Ora, é igualmente verdade que as pessoas em quem prevalece tal
comportamento também desenvolvem um caráter peculiar.
No começo da infância, já existe um caráter. Entenda, uma criança não
nasce tábula rasa, como alguns supõem. A criança nasce dotada de uma alta
complexidade, com determinantes que nunca cedem nem oscilam ao longo de sua
vida e dão à criança o seu caráter. Já no início da infância a mãe reconhece a
individual-
52
DESENVOLVIMENTO PSICOSSEXUAL FREUDIANO

dade do filho; e assim, se você observar cuidadosamente, descobrirá tremendas


diferenças, mesmo em crianças muito pequenas.
Essas peculiaridades exprimem-se de inúmeras maneiras. Primeiro, as
peculiaridades expressam-se em todas as atividades infantis... na maneira como a
criança brinca, nas coisas por que se interessa. Há crianças que se mostram
tremendamente interessadas em todas as coisas que se movem, sobretudo no
próprio movimento, e em tudo o que, no entender delas, possa afetar-lhes o
corpo. Por isso se interessam pelo que os olhos fazem, o que os ouvidos fazem,
até onde podem enfiar o dedo no nariz. E farão o mesmo com o ânus; farão o que
lhes apeteça com seus órgãos genitais. Por exemplo, quando eu estava na
escola, roubamos uma vez o livro da classe onde eram registrados todos os
castigos e nele a nossa professora de Religião tinha anotado: ”Fulano, castigado
com duas horas porque estava brincando com seus órgãos genitais durante a
aula de Religião.”
Nas crianças, esses interesses expressam-se de um modo tipicamente
infantil. Mais tarde, manifestam-se em outras peculiaridades que ainda são as
mesmas, mas isso não decorre do fato das pessoas terem feito uma vez isto ou
aquilo na infância. É o caráter o responsável por isso. Existe uma complexidade
definida e, se se quiser saber alguma coisa sobre as razões possíveis, terse-á de
recorrer aos pais.
Em todos os casos de neurose infantil, recorro aos pais e trato de apurar o
que se passa com eles, pois as crianças não têm uma psicologia própria, numa
acepção literal. Estão de tal forma imbuídas da atmosfera mental dos pais, em tão
grande participation mystique com os pais... Estão imbuídas da atmosfera
materna ou paterna e expressam essas influências em seu modo infantil. Tome,
por exemplo, o caso de um filho ilegítimo. Essas crianças estão particularmente
expostas às dificuldades do meio ambiente, como o infortúnio da mãe etc, etc. e
todas as complicações. A essas crianças fará falta, por exemplo, um pai. Ora,
para compensar isso, é como se elas escolhessem ou nomeassem uma parte

53
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

do corpo como pai, um substituto para o pai, e desenvolvem, por exemplo, a


masturbação. Isso ocorre com muita freqüência nos filhos ilegítimos; tornam-se
terrivelmente auto-eróticos e até criminosos.
Dr. Evans: com referência ao papel dos pais no desenvolvimento, uma das
partes centrais do desenvolvimento psicossexual na teoria psicanalítica ortodoxa
é o nível edípico de desenvolvimento. É nesse nível que emerge o problema da
sexualidade prematura, em relação ao sexo oposto, representado pelo pai ou a
mãe. Esse problema, como os outros anteriormente mencionados, também deve
ser resolvido, caso contrário resultará na formação de um complexo de Édipo.
Dr. Jung: Isso é justamente aquilo a que chamo um arquétipo. Foi o
primeiro arquétipo que Freud descobriu; o primeiro e único. E pensou que esse
ERA o arquétipo. É claro que existem muitos desses arquétipos. Dê uma olhada
na mitologia grega e aí encontrará quantos quiser. Ou considere os sonhos e aí
descobrirá mais uma porção deles. Entretanto, para Freud, o incesto era algo tão
impressionante que ele adotou a expressão ”complexo de Édipo por se tratar de
um dos mais notáveis exemplos de um complexo de incesto. Entretanto, atente
bem, isso é a forma masculina, pois as mulheres também têm um complexo de
incesto o qual, para Freud, não era um Édipo. Seria alguma outra coisa? Ele viu
isso apenas como a designação de uma forma arquetípica de comportamento. No
caso de um homem. .. a relação de um homem, digamos, com a mãe. Também diz
respeito à relação com a filha, pois o que ele era para a mãe se-lo-á também para
a filha. Podemos ver as coisas desta ou daquela maneira.
Dr. Evans: Então o senhor acredita, por outras palavras, que o complexo
de Édipo não constitui, por si mesmo, uma influência tão importante quanto Freud
lhe atribuiu, mas que é apenas um entre muitos arquétipos?
Dr. Jung: Sim. É apenas uma das muitíssimas formas de comportamento.
O Édipo dá-nos um excelente

54
DESENVOLVIMENTO PSICOSSEXUAL FREUDIANO

exemplo de comportamento de um arquétipo. É sempre uma situação total. Há


uma mãe; há um pai; há um filho; portanto, há uma história completa sobre o
modo como uma tal situação se desenrola e até onde pode, finalmente, levar. Isso
é um arquétipo.
Um arquétipo é sempre uma espécie de drama sintetizado. Começa de tal
e tal maneira, amplia-se em virtude de tal ou tal complicação e encontra a sua
solução desta ou daquela forma. Este é o modelo comum. Por exemplo, considere
o instinto nos pássaros para construir o ninho. Na forma como constróem os
ninhos há um princípio, um meio e um fim. Os ninhos são feitos apenas para
receber um determinado número de filhotes. O fim já está previsto. É o que faz a
dificuldade do arquétipo. Não há temporabilidade; é uma condição intemporal em
que o princípio, meio e fim são dados em conjunto, três situações em uma só. Isso
é apenas uma indicação sobre o que é e o que pode fazer um arquétipo,
entende? Mas trata-se, de fato, de uma questão complicada.
Dr. Evans: Gostaria de discutir mais especificamente o conceito freudiano
do complexo de Édipo. Ora, ainda nos limites da teoria psicanalítica ortodoxa,
uma idéia muito comum é que, num certo sentido, os modelos iniciais de
comportamento em família, nas relações da criança com a mãe, o pai etc., serão
repetidamente revividos e podem ser considerados uma ”compulsão de
repetição”. Por exemplo, quando um jovem se casa, poderá reagir em relação à
esposa como fazia em relação à mãe, ou então poderá procurar alguma mulher
que seja como a mãe. Analogamente, a filha, ao procurar um marido, poderá estar
procurando um pai. Isso poderá repetir-se incessantemente.
Ora, isso parece constituir o núcleo do que os primeiros freudianos
estavam teorizando. E pergunto: Esse tipo de recapitulação da situação edípica
primitiva é compatível com as suas próprias concepções?
Dr. Jung: Não. Veja, Freud fala do complexo de incesto exatamente da
maneira como você descreveu, mas omite completamente o fato de que, com
esse
55
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

complexo de Édipo, ele está apenas dando o contrário, isto é, a resistência contra
o incesto. Por exemplo, só o modelo edípico fosse realmente predominante,
teríamos sido sufocados em incesto há meio milhão de anos. pelo menos.
Mas existe uma compensação. Em todos os níveis primitivos de civilização
vamos encontrar leis de matrimônio, a saber, as leis exogâmicas. A primeira
forma, a mais elementar, estatui que o homem pode casar com sua prima do lado
materno. A forma seguinte estipula que o homem só pode casar com sua prima
em segundo grau, ou seja, descendente de uma avó comum. Existem cuatro
sistemas os casamentos em quarto grau, os sistemas de 8 e 12 e um sistema de
6. Na China, ainda existem vestíaios dos sistemas 6 e 12. E trata-se de
conseqüências para além do complexo de incesto e contra o comoplexo de
incesto. Ora, se a sexualidade fosse predominante, em particular a sexualidade
incestuosa, como é que isso poderia desenvolver-se?
Essas coisas desenvolveram-se numa época muito anterior a qualquer
idéia de se ter um filho... digamos, da minha irmã. Está completamente errado.
Muito pelo contrário, era uma prerrogativa real entre os reis caanitas da Pérsia e
entre os faraós egípcios, portanto, em énocas historicamente recentes, que o
faraó tivesse uma filha de sua irmã; ele esposava essa filha e tinha uma filha dela,
casando em seguida com a neta. Porque isso era uma prerrogativa do rei. A
preservação do sanaue real era semore uma espécie de atentado contra a
altamente apreciada restrição incestuosa do número de ancestrais, porque isso
significa uma perda de ancestrais. Ora, isso também deve ser explicado. E não é
o único exemplo que existe de compensação. O senhor sabe que isso
desempenha um importante papel na história da civilização humana.
_Freud estava sempre inclinado a explicar essas coisas por influências
externas. Por exemplo, a pessoa não se sentiria impedida de fazer qualquer
coisa, se não existisse uma lei contra essa coisa. Ninguém é impedido pelo seu
próprio eu. E isso foi, precisamente, o que ele jamais pôde admitir.

56
3

A Opinião de Jung sobre os Conceitos Estruturais de Freud: Id, Ego e Superego

Dr. Evans: Avançando ainda mais no desenvolvimento da teoria do Dr.


Freud, a qual o senhor reconhece constituir um fator siqnificativo no
desenvolvimento de muitas de suas próprias idéias iniciais, o Dr. Freud, é claro,
falou muito sobre o inconsciente.
Dr, Jung: Quando a pesquisa aborda a questão do inconsciente, as coisas
tornam-se necessariamente nebulosas, porque o inconsciente é algo que... é
realmente inconsciente! De modo que não temos objeto... nada. Apenas podemos
fazer referências, deduções, dado que não podemos vê-lo. Assim, temos de criar
um modelo dessa possível estrutura do inconsciente.
Ora, Freud chegou ao conceito do inconsciente a partir, principalmente, da
mesma experiência que eu tivera em minhas pesquisas sobre associação; isto é,
que as pessoas reagiam... diziam coisas... faziam coisas. .. sem saber que as
tinham feito ou tinham dito. Isso é alqo que se pode observar no experimento de
associação; por vezes, as pessoas são incapazes de recordar, posteriormente, o
que fizeram ou disseram num momento em que um estímulo verbal atinge o
complexo. No experimento de reprodução de associação verbal, a pessoa
percorre toda a lista de palavras. Verá que a memória falha quando há uma
reação complexual eu bloqueio. Foi sobre esse fato muito simples que Freud
baseou a sua idéia do inconsciente.
O senhor sabe que não têm fim as histórias que poderíamos contar sobre o
modo como as pessoas se

57
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

denunciam a si mesmas, dizendo uma coisa que não queriam dizer; contudo, o
inconsciente quis que elas dissessem precisamente essa coisa. Isso é o que
podemos observar, repetidas vezes, quando as pessoas cometem um lapso ao
falar, caem em deslizes verbais ou dizem algo que não pretendiam dizer;
cometem algumas gafes ridículas. Por exemplo, quando a pessoa quer expressar
as suas condolências num funeral e se dirige a alguém dizendo: ”Os meus
parabéns”. Isso é bastante penoso, claro, mas acontece e é verdade. Há nisso
algo paralelo à idéia geral de Freud sobre a psicopatologia da vida cotidiana.
Em Paris, Pierre Janet abordava por outro ângulo o problema da
compreensão das reações inconscientes. Ora, Freud refere-se muito pouco a
Pierre Janet, mas estudei com ele enquanto estive em Paris e seus ensinamentos
ajudaram imensamente na formação das minhas idéias. Ele era um observador de
primeira categoria, embora não tivesse uma teoria sistemática de Psicologia
Dinâmica; tinha uma espécie de teoria fisiológica dos fenômenos do inconsciente.
Existe uma certa despotencialização da tensão da consciência; essa
tensão cai abaixo do nível de consciência e, por conseguinte, torna-se
inconsciente. Esse era também o ponto de vista de Freud, mas dizia que tal
queda ocorria porque era ajudada; era reprimida desde cima. Foi este o meu
primeíro ponto de divergência com Freud. Penso que houve. casos, em minhas
observações, em que não ocorria qualquer repres’são de cima; aqueles
conteúdos que se tornaram inconscientes se tinham retirado por si próprios e não
porque tivessem sido recalcados.
Pelo contrário, têm uma certa autonomia. O conceito de autonomia foi
descoberto como simples conseqüência do fato desses conteúdos que
desaparecem terem o poder de se movimentar independentemente da minha
vontade. Ou aparecem quando quero dizer alguma coisa precisa; ou interferem e
falam eles próprios em vez de me ajudarem a dizer o que quero dizer; ou
impelem-me a fazer algo que não quero absolutamente
58
CONCEITOS ESTRUTURAIS DE FREUD

fazer; ou retiram-se no momento em que quero usá-los. E desaparecem, sem


dúvida alguma!
Dr. Evans: E isso, portanto, é independente de qualquer, vamos
dizer assim, das pressões só bre a consciência sugeridas por Freud?
Dr. Jung: Exato. Tais casos podem acontecer, sem dúvida, mas além deles
também há casos que nos mostram que o conteúdo inconsciente adguire uma
certa independência. Todos os conteúdos mentais, pelo fato de possuírem uma
certa tonalidade sensível que é de natureza emocional, têm o valor de uma
experiência emocional... a tendência para se tornarem autônomos. Assim,
qualquer pessoa que esteja presa de uma emoção dirá e fará coisas pelas quais
não pode responsabilizar-se. Ela deve desculpar-se de um erro; ela estava non
compos mentis.
Dr. Evans: O Dr. Freud suqeriu que o indivíduo nasce sob a influência do
que ele chamou o Id, que é inconsciente e rudimentar, uma coleção de impulsos
animais. Não se compreende muito facilmente donde é que vêm esses impulsos
primitivos... todos esses instintos.
Dr. Jung: Ninguém sabe donde vêm os instintos. Eles aí estão e a gente os
descobre, é tudo. É uma história que aconteceu há milhões de anos. A
sexualidade desses Instintos foi inventada e ignoro como foi ’pue isso aconteceu;
eu não estava lál O instinto de alimentação foi inventado há muito mais tempo, há
mais tempo até que o instinto sexual, e como e porquê foi inventado não sei. De
modo que não sabemos donde vem o instinto. É perfeitamente ridículo specular
sobre uma tal impossibilidade. Logo a questão resume-se apenas nisto: de onde
se originam aqueles casos em que o

Expressão latina: ”Não está senhor do seu juízo” ou ”Não está na posse de suas faculdades
mentais”. Em termos correntes, ”está fora de si”. (N. do T.)

59
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

instinto não funciona. Isso já é algo que está no nosso alcance, visto que
podemos estudar os casos em que o instinto não funciona.
Dr. Evans: Poderia o senhor nos dar alguns exemplos específicos do que
entende por casos em que o instinto não funciona?
Dr. Jung: Bem, vejamos... No lugar do instinto, que é uma forma habitual
de atividade, tomemos qualquer outra forma de atividade habitual. Consideremos
uma coisa sob absoluto controle que falha em seu funcionamento; de repente,
piora e a pessoa não é capaz de pensar em qualquer outra coisa. Por exemplo,
um homem que escreve fluentemente começa, de súbito, a cometer erros
ridículos; portanto, o seu hábito não funcionou. Outro exemplo: quando o senhor
me pergunta alguma coisa, supõe-se que sou capaz de reagir ao que me disse;
mas certamente que, se a pressão exercida sobre mim for além das marcas ou se
o senhor lograr atingir um dos meus complexos, então verá que fico inteiramente
perplexo. Faltam-me as palavras.
Dr. Evans: Ainda não o vimos perplexo, Dr. Jung.
Dr. Jung: Sou um bom exemplo para a Psicologia, sabe? Um sujeito que
sabe a fundo a sua matéria... o professor faz-lhe uma pergunta e ele não é capaz
de soltar uma palavra.
Dr, Evans: Bem, continuando com o nosso assunto, outra parte da teoria
do Dr. Freud, que, é claro, se tornou muito importante e a que já fizemos alusão,
foi a idéia do consciente; isto é, dessa ”estrutura” inconsciente, Instintiva, que é o
Id, surge um Ego. .Freud sugeriu que esse .Ego resultava do.contato do
organismo com a realidade, talvez um produto jde frustração quando o princípio
de realidade é imposto ao indivíduo. O senhor aceita essa concepção freudiana
do Ego?
Dr. Jung: O que o senhor está perguntando é se o homem possui
realmente um Ego. Ah, caímos
60
CONCEITOS ESTRUTURAIS DE FREUD

no mesmo caso de antes: eu não estava lá quando foi inventado. Entretanto,


nesse caso, o senhor pode observá-lo, até certo ponto, numa criança.
Definitivamente, uma criança começa num estado em que não existe Ego e, por
volta dos quatro anos ou ainda antes, a criança desenvolve um sentimento de
ego: ”Eu, a mim, meu”.
Em primeiro lugar, há uma certa identidade com o corpo. Por exemplo,
quando a pessoa interroga criaturas primitivas, elas enfatizam sempre o corpo.
Quando se pergunta: ”Quem trouxe esta coisa para aqui?”, o negro dirá: ”Trouxe
isto”, sem aceituar o ”eu”, simplesmente ”trouxe”. Então, se indagarmos: ”Por que
é que TU trouxeste isto?”, ele dirá, ”MIM, MIM, sim, EU MESMO aqui”, tal ou tal
coisa ou objeto. ”Portanto, a identidade com o corpo é uma das primeiras coisas
que fazem um Ego; é a distinção espacial que, segundo parece, induz o conceito
de um Ego.
Depois, é claro, há uma porção de outras coisas. Mais tarde, há as
diferenças mentais e outras diferenças pessoais de todos os gêneros. O Ego está
continuamente se construindo; jamais é um produto acabado, porquanto está em
permanente elaboração. Não passa um ano sem que não se descubra um novo
aspecto pelo qual se é mais ego do que se imaginava,
Dr. Evans: Dr. Jung, houve muita discussão sobre a forma como certas
experiências, nos primeiros unos de vida, influenciam a formação do Ego. Por
exemplo, um dos pontos de vista mais extremos a respeito de tal influência foi
defendido por Otto Rank. Ele falou de um trauma de nascimento e sugeriu que o
trauma de ter nascido não só provocaria um impacto muito poderoso sobre o ego
em desenvolvimento, mas teria uma influência residual durante toda a vida do
indivíduo.
Dr. Jung: Eu diria que, de fato, deve ser muito importante para um ego que
tenha nascido. Cair do céu, sabe, é certamente muito traumático.
Dr. Evans: Contudo, o senhor aceita literalmente a posição do Dr. Otto
Rank, que o trauma de nas-

61
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

cimento exerce um profundo efeito psicológico sobre o indivíduo?


Dr. Jung: Claro que influencia. Se o senhor acredita na filosofia de
Schopenhauer, dirá: ”Ter nascido é um trauma dos demônios.” bom, existe um
velho aforismo grego que diz: Ӄ belo morrer na flor da juventude, porem a mais
bela de todas as coisas é não ter nascido.” Isso é filosofia, claro.
Dr. Evans: Mas o senhor não aceita isso como um evento psíquico, num
sentido literal?
Dr. Jung: O senhor não vê que isso é uma coisa que acontece a toda a
gente que existe? Que cada homem teve um momento em que nasceu? hntao?
loaos os que nasceram e estão por nascer tem de superar esse trauma, de modo
que a palavra perdeu o seu significado. E um fato geral e não se pode dizer: é
um trauma”. É, pura e simplesmente, um fato, Visto que não podemos observar a
psicologia de quem não tiver nascido. Só se isso fosse possível é que poderíamos
dizer o que é o trauma de nascimento. Até que haja essa possibilidade, não
podemos falar sequer de tal coisa; e apenas uma falta epistemológica.
Dr. Evans: Em seus últimos escritos, em aditamento ao Ego, Freud
introduziu outro termo para descrever uma função específica do Ego. Esse termo
foi Superego. De um modo geral, o superego seria responsável pela função
”moral” restritiva do ego.
Dr. Jung: Sim, isso é o Superego, quer dizer, o código do que podemos
fazer e do que não podemos fazer.
Dr. Evans: As proibições internas que Freud achava poderem ser em parte
adquiridas e em parte inatas.
62
CONCEITOS ESTRUTURAIS DE FREUD

Dr. Jung: Sim. Mas Freud não distinguiu o que era inato e o que era
adquirido. Veja bem, quase tudo deve estar inteiramente dentro do eu, deve
estar interiorizado, pois caso contrário não pode existir equilíbrio algum no
indivíduo. E quem demônio inventou o Decálogo? Ele não foi inventado por
Moisés, mas é a verdade eterna no próprio homem, porque ele se controla a si
próprio.

63
PARTE III

O INCONSCIENTE

Talvez a área de maior concentração e análise na teoria de Jung seja a


área do inconsciente. Em contraste com o desenvolvimento por Freud de um
inconsciente início, o qual, sobretudo em suas primeiras obras, era a fonte de
todo o princípio de prazer, dos imperativos instintivos que se formavam no íntimo
do indivíduo, assim como o domínio do material reprimido, Jung jpostulou a
existência de um inconsciente pessoal e de um inconsciente racial ou coletivo,
talvez a sua contribuição mais controvertida. De particular importância no
inconsciente coletivo é a afirmação de Jung de que os Arquétipos, potencialidades
inatas do comportamento, herdadas no que talvez pudesse ser descrito como um
sentido quase-lamarckiano, são as determinantes decisivas do desenvolvimento
humano.
Nestas entrevistas, Jung explica de forma explícita os arquétipos e
conceitos afins, como Persona, Ego e Eu. O leitor notará que o conceito de Freud,
o Ego, que para ele é o núcleo unificador da personalidade humana, é
essencialmente o que Jung entende por Eu.
65
4
O Inconsciente: Arquétipos
Dr. Evans: Dr. Jung, o senhor mencionou antes que a situação edípica
freudiana era um exemplo de um arquétipo. Quer fazer agora o obséquio de
pormenorizar esse conceito, o arquétipo?
Dr. Jung: Bem, o senhor sabe o que é um padrão de comportamento, o
modo como o joão-de-barro constrói seu ninho. É uma forma herdada nele, um
código inato. Ele aplicará certos fenômenos simbióticos, enire insetos e plantas.
São padrões herdados de comportamento. E o homem também tem, é claro, um
esquema herdado de funcionamento. Seu fígado, seu coração, todos os seus
órgãos, funcionarão sempre de uma certa maneira, de acordo com o seu padrão.
A pessoa poderá ter alguma dificuldade em aperceber-se disso porque não há
qualquer possibilidade de comparação. Não existem outros seres semelhantes ao
homem, capazes de falar e explicar como funcionam. Se fosse esse o caso,
poderíamos... sei lá o quêl Mas, como não temos meios de comparação, somos
necessariamente inconscientes a respeito da totalidade de condições.
Contudo, é inteiramente certo que o homem nasce com um certo
funcionamento, um certo modo de funcionar, um certo padrão de comportamento
que está expresso na forma de imagens arquetípicas, ou formas arquetípicas. Por
exemplo, o modo como um homem deve comportar-se é expresso por um
arquétipo. É por isso, como o senhor sabe, que os primitivos contam histórias.
Uma boa parte da educação faz-se através de contar histórias. Por exemplo, eles
reúnem os jovens e dois homens mais velhos representam, diante dos olhos dos
67
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

mais moços, todas as coisas que eles não devem fazer. Depois dizem:
— Pois bem, isto é exatamente o que vocês não farão. Outra forma de agir
consiste em dizer-lhes tudo o que não devem fazer, como no Decálogo: ”Tu não
farás...”, e isso é sempre apoiado por contos mitológicos.
É claro que isso me proporcionou um motivo para estudar os arquétipos,
pois comecei a vislumbrar que a estrutura daquilo a que eu então chamava o
inconsciente coletivo era, realmente, um aglomerado de tais imagens típicas,
cada uma das quais tinha uma qualidade específica e única.
Ao mesmo tempo, os arquétipos são dinâmicos. São imagens instintivas
que não foram intelectualmente inventadas. Estão sempre presentes e produzem
certos processos no inconsciente que poderíamos comparar melhor com os mitos.
Está aí a origem da mitologia. A mitologia é a expressão de uma série de imagens
por meio das quais se formula a vida dos arquétipos.
Assim, os enunciados de toda e qualquer religião, de muitos poetas etc.,
são declarações sobre o processo mitológico interno, o que é uma necessidade
porque o homem não está completo se não estiver cônscio desse aspecto das
coisas. Por exemplo, os nossos ancestrais fizeram isto e aquilo, e assim faremos.
Ou um herói tal e tal fez assim e assado, e esse é o nosso modelo. Nos
ensinamentos da Igreja Católica, por exemplo, há muitos milhares de santos. Eles
mostram-nos como fazer... Eles têm as suas lendas... e isso é a mitologia cristã.
Na Grécia, como o senhor sabe, havia Teseu e havia Hércules, modelos de
excelentes homens, de perfeitos cavalheiros; e eles nos ensinam como nos
devemos comportar. São arquétipos de comportamento. Passei a respeitar cada
vez mais os arquétipos, e isso, naturalmente, levou-me a estudá-los
profundamente. E agora, por Júpiter, aí está um fator enorme, muito importante
para o nosso desenvolvimento e bem-estar, que deve ser levado em conta.
68
O INCONSCIENTE: ARQUÉTIPOS

Foi difícil, é claro, saber por onde devia começar, porquanto se trata de um
campo imensamente vasto. E a pergunta seguinte que fiz a mim próprio foi esta:
”Ora bem, houve alguém no mundo que se tivesse ocupado desse problema?”
Descobri que ninguém se preocupara com isso, exceto um peculiar movimento
espiritual que surgiu simultaneamente com os primórdios do Cristianismo, os
gnósticos, e isso foi, realmente, a primeira coisa que descobri a tal respeito. Eles
estavam preocupados com o problema dos arquétipos e disso fizeram uma
filosofia peculiar. Cada um é tentado a formular uma filosofia particular a propósito
dos arquétipos, quando os aborda ingenuamente e ignora que eles são elementos
estruturais da psique inconsciente. Os gnósticos viveram nos séculos l, II e III da
nossa era; e eu quis apurar o que é que houve entre essa época e hoje, quando
deparamos subitamente com os problemas do inconsciente coletivo que eram os
mesmos há dois mil anos, embora não estejamos preparados para reconhecer
esse problema. Eu estava sempre em busca de algo intermediário, algo que fosse
o elo entre esse passado »emoto e o momento presente.
Para meu espanto, descobri que era a alquimia, aquilo- que é entendido
como uma história da Química. Poderíamos quase afirmar que a alquimia é tudo
menos isso. Tratava-se de um movimento espiritual ou de um movimento filosófico
de características muito peculiares. Os alquirnistas intitulavam-se a si próprios
filósofos, como narcisismo.
E passei então a ler toda a literatura acessível, latina e grega. Estudei-a
porque era imensamente interessante. É o labor mental de 1.700 anos, no qual se
armazenou tudo o que poderia ser dito sobre a natureza dos arquétipos, de um
modo peculiar que é amiúde burlesco ou absurdo. Não foi tarefa simples. A
maioria dos textos não voltou a ser publicada desde a Idade Média, as edições
mais recentes datavam de meados ou do final do século XVI, todos em latim;
alguns textos são em grego, não dos mais importantes. Isso deu-me um trabalho
interminável, mas o resultado foi sumamente satisfatório, porque me mostrou o
desenvolvimento da nossa relação inconsciente com o inconsciente coletivo e as
variações
69
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

sofridas pela consciência; por que motivo o inconsciente do ser humano se


preocupa com essas imagens mitológicas.
Por exemplo, atente-se para um fenômeno como Hitlar. Trata se de um
fenômeno psicológico e temos de entender essas coisas. Para mim, é claro, foi
um problema enorme, porque é um fator que determinou a sorte de milhões de
europeus e americanos. Ninguém pode negar que sofreu a influência da guerra.
Isso foi tudo obra de Hitler... e isso é tudo Psicologia, a nossa absurda Psicologia.
Mas só podemos chegar a compreender essas coisas quando entendemos os
antecedentes, as fontes donde elas promanam. É como se, no momento em que
grassa uma terrível epidemia de tifo, alpuém dissesse: ”Isso é o tifo... Não acham
que é uma doença maravilhosa?” A epidemia pode assumir proporções enormes e
ninguém sabe coisa alguma a seu respeito. Ninguém se ocupa do abastecimento
de áqua. ninguém pensa em examinar a carne e outros alimentos; mas todos
afirmam, simplesmente: ”Isto ó um fenômeno.” Sim, ó um fenômeno, mas ninguém
o entende.
É claro, não posso falar-lhe em detalhe sobre a alquimia. Ela está na base
da nossa maneira moderna de conceber as coisas e, portanto, é como se
estivesse, precisamente, no limiar da consciência. uma excelente Imaem do
desenvolvimento dos arquétipos, do movimento dos arquétipos, tal como se
apresentam quando os observamos numa perspectiva mais ampla. Talvez que
hoje, olhando para trás, se possa ver como o momento presente derivou do
passado. É como se a filosofia alqufmista... Isto soa de forma um tanto bizarra;
deveríamos dar-lhe um nome Inteiramente diferente. Na realidade. tem um nome
diferente. Também se lhe chamou Filosofia Hermética, embora isso, é claro, diga
tão pouco quanto o termo Alquimia... Mas, dizia eu, é como se essa filosofia fosse
um desenvolvimento paralelo, tal como o Narclsismo fôl, ao desenvolvimento
consciente do Cristianismo, da nossa filosofia cristã, de toda a Psicologia da
Idade Média.
Assim, como vê, em nossos dias possuímos tal ou tal concepção do
mundo, uma filosofia particular, mas no inconsciente temos uma diferente.
Podemos ver Isso
70
O INCONSCIENTE: ARQUÉTIPOS 71

através do exemplo da filosofia alquimista, que se comportava em relação à consciência


medieval como o inconsciente se comporta em relação a nós próprios. E podemos
conceber ou até prever o inconsciente de nossos dias quando sabemos o que ele foi
ontem.
Ou, por exemplo, para citar um arquétipo mais conciso, como o arquétipo do
vau... o vau para atravessar um rio. É uma situação complexa. A pessoa tem que
atravessar um rio a vau; está metido na água; e há uma armadilha ou um animal
aquático, digamos, um jacaré ou coisa parecida. Há perigo e vai acontecer alguma coisa.
O problema é como escapar. Temos, assim, uma situação total, que constitui um
arquétipo. E esse arquétipo tem agora um efeito sugestivo sobre a pessoa. Por exemplo,
ela está metida numa situação, mas não a conhece, não sabe em que consiste essa
situação. Subitamente, é invadida por uma emoção ou presa de um encantamento; e
comporta-se de uma certa maneira que não tinha previsto... Faz algo que é
completamente estranho a si mesma.
Dr. Evans: Isso poderia ser também descrito como espontâneo?
Dr. Jung: Inteiramente espontâneo. E isso é feito através do arquétipo
correspondente. É claro, temos um caso famoso em nossa história suíça, o do Rei
Alberto, que foi assassinado no vau do Royce, não multo longe de Zurique. Seus
assassinos seguiam-no, ocultos, desde Zurique; e, depois de longas deliberações, não
conseguiam chegar ainda a acordo sobre se queriam matar ou não o rei. No momento
em que o rei meteu o cavalo na água, para cruzar o Royce a vau, eles pensaram:
”Matar!” E gritaram: ”Por que é que consentimos que ele abuse de nós?” Foi então que o
mataram, porque era esse o momento preciso em que uma emoção específica os
dominava; era o momento certo. Assim, quando se viveu em circunstâncias primitivas, na
floresta primeva, entre populações primitivas, então conhece-se esse fenômeno. A
pessoa é presa de um certo conjuro, de um encantamento, ou como lhe queira chamar, e
faz coisas Inesperadas.
71
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

Muitas vezes, durante minhas estadas na África, encontrei-me em


situações dessas que, depois, me deixavam perplexo. Certo dia, eu estava no
Sudão e encontrava-me, realmente, numa situação muito perigosa, que não
reconheci no momento. Mas fui tomado por uma intuição. Fiz algo que jamais teria
esperado fazer e que não podia ser, de forma alguma, a minha intenção.
O arquétipo é uma força. Possui autonomia e pode, subitamente, apoderar-
se de nós. É como um transe, um acesso repentino. Por exemplo, apaixonar-se à
primeira vista é um desses casos. O indivíduo tem em si mesmo, sem o saber,
uma certa imagem da mulher — de qualquer mulher. Então, vê aquela moça ou,
pelo menos, uma boa imitação do seu tipo, e tem instantaneamente o acesso: foi
apanhado. Mais tarde, poderá descobrir que foi um terrível equívoco. Um homem
é perfeitamente capaz, ou é suficientemente inteligente para ver que a mulher de
sua escolha não foi uma escolha. Ele foi capturado! Percebe então que ela não
presta, que a vida virou um inferno e vem me contar isso. Diz ele:
— Por amor de Deus, doutor, me ajude a ficar livre dessa mulher.
Mas não o consegue, ele é como barro nos dedos dela. Isso é o arauétfoo.
Tudo Isso aconteceu por causa do arauétipo da an^ma, se bem que ele pensasse
tratar-se de toda a sua alma. É como no caso da mulher... de qualquer mulher.
Quando um homem canta num realstro vocal multo alto, por exemplo, quando
solta um dó de peito, ela pensa que o sujeito deve ter um maravilhoso caráter
espiritual e fica terrivelmente desapontada quando casa com essa ”nota”. Bem,
Isso é o arquétipo do anfmus.
Dr. Evans: Aqora, Dr. Jung, para ser ainda um pouco mais específico, o
senhor sugeriu que, na nossa sociedade, em todas as sociedades, existem
símbolos que, num certo sentido, dirigem ou determinam o que um homem faz.
Depois, também sugeriu que, de algum modo, esses símbolos tornam-se ”Inatos”
e, em parte, ”hereditários”.
72
O INCONSCIENTE: ARQUÉTIPOS

Dr. Jung: Eles não se tornam; eles são. Para começar, eles são. Nós
todos nascemos num modelo; somos um modelo. Somos uma estrutura que foi
preestabelecida através dos genes.
Dr. Evans: Recapitulando, então, o arquétipo é apenas uma ordem
superior de um padrão instintivo, como no seu exemplo anterior de um pássaro
que constrói um ninho. Foi assim que pretendeu descrevê-lo?
Dr. Jung: É uma ordem biológica do nosso funcionamento mental,
exatamente como, por exemplo, a nossa função biológico-fisiológica obedece a
um padrão. O comportamento de qualquer pássaro ou inseto obedece a um
padrão e o mesmo acontece conosco. O homem tem um determinado padrão que
o faz especificamente humano e nenhum homem nasce sem ele. Só que estamos
profundamente inconscientes desses fatos, porque vivemos pelos nossos
sentidos e fora de nós próprios. Se um homem pudesse olhar para dentro de si,
poderia descobrir tudo isso. Nos nossos dias, quando um homem o descobre,
pensa que está doido, realmente doido.
Dr. Evans: O senhor diria que o número de tais arquétipos é limitado ou
previamente determinado, ou que o seu número pode ser aumentado?
Dr. Jung: Bem, não sei o que devo pensar sobre isso, é tão impreciso para
que possamos saber algo com exatidão. Não dispomos de meios de comparação.
Sabemos e vemos que existe um comportamento, como o incesto; ou que existe
um comportamento de violência, uma certa espécie de violência; ou que existe um
comportamento de pânico, de poder etc. São áreas em que, por assim dizer,
existem numerosas variações. Podem expressar-se desta ou daquela maneira. E
sobrepõem-se. Muitas vezes, é impossível dizer onde uma forma começa ou
acaba.
Nada existe de preciso, porque o arquétipo, em si mesmo, é
completamente inconsciente e só podemos ver os seus efeitos. Podemos ver, por
exemplo, quando sabemos que uma pessoa está possuída por um arquétipo;
73

ENTREVISTAS com CARL G. JUNG


então, podemos conjeturar e até prever desenvolvimentos possíveis. Isso é
verdade porque, quando vemos que um homem é cativado por um certo tipo de
mulher, de um certo modo muito específico, sabemos que ele foi cativado pela
anima. Então, a coisa toda terá tais e tais complicações e tais e tais
desenvolvimentos, porque isso é típico. O modo como a anima é descrita ó
superlativamente típico. Não sei se o senhor conhece She, de Rider Haggard, ou
L’Atlantide, de Pierre Benoit... c’est Ia femme fataie. *
Dr. Evans: Para ser mais explícito, Dr. Jung, o senhor usou os conceitos de
anima e animus, que está agora Identificando em termos de sexo, masculino e
feminino. Gostaria que o senhor discorresse sobre esses termos, talvez de um
modo mais específico. Comecemos pelo termo anima. Isso também faz parte da
natureza herdada do indivíduo?
Dr. Jung: Bem, o senhor sabe que isso é um tanto complicado, mas vou
tentar. A anima é uma forma arquetípica, expressando o fato de que um homem
tem uma minoria de qenes femininos. Isso é alqo que não aparece e desaparece
nele, que está constantemente presente e funciona como uma fêmea no homem.
Já no século XVI os humanistas tinham descoberto que o homem possuía
anima e que cada homem carrega uma fêmea dentro de si. Eles assim o
disseram; não é uma invenção moderna. O caso do animus é Idêntico. É uma
imagem masculina na mente feminina que, por vezes, é perfeitamente consciente,
outras vezes menos consciente. Mas panha vida no momento em que a mulher
encontra um homem que diz as coisas certas. Então, porque ele as disse, é tudo
verdade e ele é o homem, seja o que for que ele seja, não importa. Esses dois
arquétipos estão particularmente bem fundamentados. E podemos apoiar-nos em
suas bases.

Em francês no original: ”É a mulher fatal”. (N. do T.)


74
5

O Inconsciente: Conceptualizações Gerais

Dr. Evans: Dr. Jung, prosseguindo em nossa discussão do inconsciente,


passemos a abordar a situação particular de um sonho e sua interpretação. Se
bem compreendi a sua concepção do inconsciente, o que o senhor encontra no
sonho não é, necessariamente, uma imagem ou símbolo do que aconteceu no
passado do indivíduo.
Dr. Jung: Oh, não! É apenas um símbolo do... O símbolo, entenda, é um
termo especial... É a manifestação da situação do inconsciente, vista desde o
inconsciente. Eu digo-lhe, por exemplo, algo que é o meu ponto de vista subjetivo
pessoal. Depois, se eu perguntar a mim próprio: ”Muito bem, você está realmente
convencido disso?”, bem, devo confessar que tenho certas dúvidas. Existem
certas dúvidas, não no momento em que lhe falo, mas são dúvidas no
Inconsciente. Quando se tem um sonho e esse respeito, essas dúvidas vêm à
superfície. É a maneira de ver do Inconsciente. É como se o Inconsciente
dissesse: ”O que você afirmou está tudo muito certo, mas omitiu inteiramente tal e
tal ponto.”
Dr. Evans: Ora, se o inconsciente atua sobre a situação presente, vendo as
coisas em amplos termos motivacionais, esse efeito do inconsciente não será
algo que é um resultado da repressão, no sentido que lhe é dado pelo
psicanalista ortodoxo? Nesse caso...
Dr. Jung: Pode ser que o que o Inconsciente tem a dizer seja tão
desagradável que a pessoa prefira não ouvir e, na maioria dos casos, as pessoas
seriam,
75
Entrevistas com Carl G. Jung

Provavelmente, menos neuróticas se pudessem admitir essas coisas. Mas estas


são sempre um tanto difíceis ou desagradáveis, inconvinientes ou algo parecido,
de modo que há sempre uma certa dose de repressão. Mas isso não é o principal.
O principal é que essas coisas são realmente inconscientes. Se a pessoa é
inconsciente a respeito de certas coisas que deviam ser conscientes, então está
dissociada. Nesse caso, é um homem cuja mão esquerda nunca sabe o que a
direita está fazendo e contraria ou atrapalha a mão direita. Ora, um homem
nessas condições está impedido de agir.
Em 1918, escrevi uma dissertação sobre a relação entre o ego e o
inconsciente. Tentei formular as experiências que são mais ou menos
observáveis, nos casos em que a consciência está exposta a dados
inconscientes, a interferências ou intrusões; em que o inconsciente é considerado
um fator autônomo que tem de ser levado à sério; em que não se deve substimar
o inconsciente, supondo que nada mais é do que resíduos descartados da
consciência. É um fator investido de sua própria dignidade e um fator muito
importante, porque pode gerar as mais horríveis perturbações.
Quando escrevi este trabalho, em 1918, foi publicado em francês e
ninguém o entendeu. É que ninguém tivera uma experiência semelhante; era
nesse nível que a questão tinha de ser explorada até ao fim. Para fazê-lo, é
imprescindível que o inconsciente seja levado a sério e o consideremos um fator
real e concreto que pode determinar o comportamento humano num grau muito
considerável.
Dr. Evans: Encarando o inconsciente dessa maneira, o senhor disse: “Se é
inconsciente, como poderemos conhecê-lo?” Mas, apenas como um exemplo
ilustrativo, consideremos um determinado indivíduo que foi criado numa cultura
como, digamos, a cultura da índia. Seria esse indivíduo na índia, se pudéssimos
examinar o seu inconsciente, de um determinado indivíduo que tivesse vivido na
Suiça, por exemplo, toda a sua vida?
76

CONCEPTUALIZAÇÕES GERAIS
O senhor já falou antes sobre esses universais. Haveria muita equivalência entre
o inconsciente de um indivíduo que foi criado numa cultura e de outro indivíduo
criado numa cultura inteiramente distinta?
Dr. Jung: Bem, a pergunta também é complicada porque, quando falamos
do inconsciente, Jung diria: ”Qual inconsciente?” Trata-se daquele inconsciente
pessoal que é característico de uma certa pessoa, de um certo indivíduo?
Dr. Evans: Em suas obras o senhor falou sobre um inconsciente pessoal
como um tipo de inconsciente, não é verdade?
Dr. Jung: Sim. No tratamento, por exemplo, no tratamento de neuroses,
temos de lidar com esse inconsciente pessoal durante um certo tempo e somente
depois que os sonhos começam a revelar o inconsciente coletivo é que este pode
ser abordado. Enquanto houver material de natureza pessoal, temos de lidar com
o inconsciente pessoal; mas quando tocamos uma questão, um problema que já
não é meramente pessoal, mas também coletivo, então temos de lidar com
sonhos coletivos.
Dr. Evans: Portanto, a distinção entre o inconsciente pessoal e o
inconsciente coletivo consiste em que o pessoal pode estar mais envolvido na
vida imediata do indivíduo e o coletivo seria universal, isto é, um domínio
inconsciente composto de elementos que são idênticos em todos os homens?
Dr. Jung: Sim, que são coletivos. Por exemplo, a psique tem problemas
coletivos, convicções coletivas etc. Somos muito influenciados por esses
elementos e não faltam os exemplos para prová-lo. A pessoa pertence a um certo
partido político ou a uma certa confissão religiosa; isso pode ser uma
determinante muito séria do seu comportamento. Ora, se sobrevier uma questão
de conflito pessoal, o inconsciente coletivo não é atingido. Ele está fora de
questão e não aparece. Mas no mo-
77
ENTREVISTAS com CARL G. JUNQ

mento em que a pessoa transcende a sua esfera pessoal e entra em contato


comuma determinante impessoal — por exemplo, quando reage a uma questão
política ou a qualquer outra questão social que realmente lhe importa — então
está em confronto com um problema coletivo; e terá sonhos coletivos.
Dr. Evans: Outro conceito ou idéia muito interessante em sua obra é a
persona. Parece ser sumamente importante para a existência cotidiana do
indivíduo. O senhor importaríar-se-ia de explicar um pouco mais detalhadamente
como foi que elaborou esse termo, persona?
Dr. Jung: É um conceito prático de que precisamos para elucidar as
relações das pessoas. Observei nos meus pacientes, sobretudo as pessoas que
estão na vida pública, que têm uma certa maneira de se apresentar. Por exemplo,
um médico. Ele tem uma maneira própria; apresenta-se de um modo
característico e comporta-se como esperamos que um médico se comporte. Ele
pode até identificar-se com isso e acreditar que é o que parece ser. Tem de
aparecer de uma certa maneira, caso contrário, as pessoas não acreditarão que é
médico. O mesmo acontece com um professor; também só espera que o seu
comportamento seja tal que aceitemos a plausibilidade dele ser professor. Assim,
a persona é, em parte, o resultado das exigências da sociedade.
Por outro lado, é o fruto de um compromisso com o que uma pessoa gosta
de ser ou gosta de parecer que é. Observe-se, por exemplo, um pároco. Ele
também tem a sua maneira particular e, ó claro, vai ao encontro das expectativas
gerais da sociedade; mas também se comporta de outra maneira que combina a
sua persona com aquilo que a sociedade lhe impõe, de tal forma que a sua ficção
de si mesmo, a sua idéia sobre si mesmo, é mais ou menos retratada ou
representada.
Assim, a persona é um determinado sistema complexo de comportamento
parcialmente ditado pela sociedade e parcialmente ditado pelas expectativas ou
desejos que a pessoa alimenta sobre si mesma Ora, isso não é a personalidade
real. Apesar do fato das pessoas
78
Conceptualizações gerais

Garantirem que tudo isso é perfeitamente honesto e real, não é. Um tal


desempenho da persona está muito certo, desde que se saiba que não é idêntico
ao que parece ser; mas se se estiver inconsciente desse fato, então está-se
condenado a entrar, por vezes, em conflitos muito desagradáveis. Por exemplo,
as pessoas não deixarão de notar, que em casa, a pessoa é muito diferente do
que parece ser em público. As pessoas que não sabem disso podem acabar
cometendo tremendos Equívocos. Elas negam ser assim, mas são assim; é o que
são. Então já não se sabe qual delas é o homem real. É o homem tal como como
se conduz em casa ou em relações íntimas, ou é o homem que aparece em
público?
É o dilema de Jekyll e Hyde. Ocasionalmente, é tão grande a diferença que
quase poderíamos falar de uma culpa personalidade; e, quanto mais pronunciada
for essa diferença, mais as pessoas são neuróticas. Ficam neuróticas porque têm
duas maneiras distintas de se comportar: contradizem-se o tempo todo e como,
além disso, não têm consciência de de si mesmas, ignoram essas contradições.
Pensam ser um todo uno e coeso, mas toda a gente vê que são duas. Alguns só
conhecem um lado delas; outros só conhecem o outro lado. E depois ocorrem
situações que se chocam, porque a maneira como o indivíduo é gera certas
situações com as pessoas de suas relaçoes e essas duas situaçoes não
condizem; de fato, elas são simplesmente desonestas, e quanto mais for esse o
caso mais as pessoas são neuróticas.
Dr. Evans: O senhor diria, realmente, que o indivíduo pode ter até mais de
duas personas?
Dr. Jung: Não temos capacidade para desempenhar muito bem mais de
dois papéis, mas conheço casos em que as pessoas têm até cinco
personalidades diferentes.Em casos de dissociação de personalidade, por
exemplo, uma pessoa -- chamamos-lhe A – ignora a existência da pessoa B, mas
B conhece A. Pode haver uma terceira personalidade, C, que ignora as outras
duas. Existem tais casos na literatura psicopatológica, mas são raros.
79
ENTREVISTAS com C ABL G. JUNG

Dr. Evans: Muito raros?


Dr. Jung: Nos casos correntes, trata-se apenas de uma vulgar dissociação
de personalidade. Chamamos-lhe uma dissociação sistemática, para distingui-la
da dissociação caótica ou assistemática que se manifesta na esquizofrenia.
Dr. Evans: Qual é a diferença entre o termo ”ego”, tal como o senhor o
entende, e o termo persona?
Dr. Jung: Bem, supõe-se que o ego é o representante da pessoa real. Por
exemplo, no caso de B conhecer A, mas A ignorar B, diríamos que o ego está mais
do lado de B, visto que o ego possuí um conhecimento mais completo e A é uma
personalidade dividida.
Dr. Evans: O senhor também emprega o termo ”eu”. A palavra ”eu” tem,
então, um significado diferente de ”ego” ou persona?
Dr. Jung: Sim, quando digo ”eu”, não se deve pensar em termos de ”eu-
mesmo”, porque isso é apenas o meu eu empírico, que está coberto pelo termo
”ego”; mas, quando se trata de ”eu”, então é uma questão de personalidade e é
mais completo do que o ego, visto que o ego consiste apenas naquilo de que
estamos cônscios, naquilo que sabemos ser. Por exemplo, tomemos de novo o
caso de B que conhece A, mas A não conhece B. B encontra-se, relativamente, na
posição do eu, quer dizer, o ego está de um lado e o eu do outro, a personalidade
inconsciente que é controlada por cada um... não controlada, muitas vezes é
justamente o inverso: o inconsciente é que controla a consciência. Mas isso é
outro caso.
Ora, enquanto estou falando, estou consciente do que digo; estou
consciente de mim mesmo, do eu-mesrno, mas até um certo ponto. Muitas coisas
acontecem. Quando faço gestos, não estou consciente deles. Eles ocorrem
inconscientemente. O senhor pode vê-los. Posso dizer ou usar palavras e não me
lembrar de tê-las usado e até, no momento, não estar consciente de que
80
CONCEPTUALIZAÇÕES GERAIS

as pronunciei. Assim, muitas coisas inconscientes ocorrem durante a mmha


condição consciente. Nunca estou totalmente consciente de mim mesmo.
Enquanto procuro, por exemplo, elaborar um argumento, existem
simultaneamente processos inconscientes que continuam, talvez um sonho que
tive a noite pás sada, ou uma parte de mim mesmo pensa em sabe Deus o quê,
de uma viagem que vou fazer ou de tal ou tal pessoa que encontrei. Ou quando
estou escrevendo um artigo, estou continuando a escrever esse artigo
mentalmente, sem o saber. Podemos descobrir essas cqisas, digamos, nos
sonhos ou, se formos perspicazes, na observação imediata do indivíduo. Então
descortinaremos nos gestos, ou na expressão do rosto, que existe aquilo a que se
chama ”une arrière penses”, * algo que se situa além da consciência. Finalmente,
teremos a sensação, bem, o pressentimento de que o sujeito tem alguma coisa
escondida na manga e poderá perguntar: ”Em que é que você está realmente
pensando? Você tem estado o tempo todo com o pensamento em outro lado.”
Contudo, ele está inconsciente disso... ou pode estar.
Existem, é claro, grandes diferenças individuais. Há indivíduos que
possuem um surpreendente conhecimento de si mesmos, das coisas que se estão
passando neles mesmos. Mas até essas pessoas seriam incapazes de saber o
que se está desenrolando em seu inconsciente. Por exemplo, elas não têm
consciência do fato de que, enquanto vivem uma vida consciente, um mito está-se
desenrolando no inconsciente, um mito que se estende ao longo dos séculos;
refiro-me às idéias arquetípicas... a esse sonho alimentado por idéias
arquetípicas que se desenrola no indivíduo através dos séculos. Na realidade, é
como um fluxo contínuo que surge à luz do dia nos grandes movimentos,
digamos, nos movimentos políticos ou nos movimentos espirituais. Por exemplo,
na época anterior à Reforma, as pessoas sonhavam com a grande transformação.
É essa a razão pela qual tão grandes transformações puderam ser previstas.

Em francês no original: ”uma segunda intenção”. (N. do T.)


81
Se alguém for suficientemente arguto para ver o que se passa na mente
das pessoas, na mente inconsciente, está apta a Prever. Por exemplo eu
poderia ter previsto a ascensão nazista na Alemanha, através da observação dos
meus pacientes Alemães. Eles tinham sonhos em que tudo isso era antecipado e
com uma considerável riqueza de detalhes. E eu estava absolutamente certo...
nos anos que antecederam Hitler, antes de Hitler ter chegado, eu poderia dizer o
ano, foi em 1919... eu estava certo de que algo ameaçava a Alemanha, algo
muito grande catastrófico. Eu sabia isso apenas através da observação do
inconsciente.
Existe algo de muito particular em cada uma das diferentes nações. É um
fato peculiar que o arquétipo da anima desempenha um grande papel na
literatura Ocidental, Francesa e Anglo-saxônica. Mas, no tocante à Alemanha, são
extraordinariamente poucos os exemplos, na literatura alemã, em que a anima
desempenha um papel... Ela não existe se não tiver um título. Assim, é como
se... desculpe se isso parece um tanto drástico, mas ilustra a minha tese... é como
se na Alemanha não existisse realmente mulheres. Existe a Frau Doutor, a Frau
professor, a frau avó, a frau sogra, a irmã, a filha. Esta é a idéia, o senhor sabe
nenhuma mulher... la teme Írmã’ tma enorme n’existe pas.* Ora, esse fato é de
uma enorme importância, por quanto mostra que, na mente alemã, se desenrola
um mito particular, algo muito particular. Os psicólogos deveriam realmente
ocupar-se dessas coisas, mas preferem pensar: “Eu sou importante.”
Dr. Evans: Ai está, sem dúvida, um conjunto deveras interessante e
extraordinário de declarações. Como veria Hitler, à luz desses conceitos? Vê-lo-ia
como uma personificação, um símbolo do “pai”?
Dr. Jung: Não, em absoluto. Eu não poderia explicar em termos simples
esse fato muito complicado que Hitler representa. É complicado demais. Ele era

Em francês no original: “A mulher não existe”. (n. do T.)

82
CONCEPTUALIZAÇÕES GERAIS

vuma figura de herói e a figura de herói é muito mais importante do que quaisquer
pais que tenham existido até hoje. Ele era um herói no mito alemão, note bem, um
herói religioso. Era um salvador, aquele que estava destinado a trazer a
redenção. Foi por isso que colocaram o seu retrato até em altares. E foi por isso
que alguém mandou gravar na pedra de seu túmulo que era feliz porque seus
olhos haviam contemplado Hitler e agora poderia repousar em paz. Hitler era,
simplesmente, um herói mítico.
Dr. Evans: Voltando, mais especificamente, à idéia do eu...
Dr. Jung: O eu é, meramente, um termo que designa a personalidade total.
A personalidade do homem, como um todo, é indescritível. A sua consciência
pode ser descrita; o seu inconsciente não pode ser descrito porque.... repito uma
yez mais... é sempre inconsciente. E como é realmente inconsciente, o homem
não o conhece. E, assim, desconhecemos a nossa personalidade inconsciente.
Temos certos indícios e certas idéias a seu respeito, mas, na realidade,
desconhecemo-la.
Ninguém pode dizer onde termina o homem. É aí que está toda a beleza da
coisa. Todo o seu grande interesse. O inconsciente humano oculta sabe Deus que
segredos. Temos ainda grandes descobertas a fazer.
Dr. Evans: O que parece ser uma parte muito fundamental de seus escritos
e uma de suas principais idéias está refletido no termo mandala. Como é que isso
se ajusta no contexto do seu exame do eu?
Dr. Jung: Mandala... Bem, trata-se apenas de uma for. ma característica de
arquétipo. É o que se chama ultmo exquadra circulae, a quadratura do círculo ou
a circulatura do quadrado. É um símbolo antíqüíssimo que remonta à pré-história
do homem. Encontramo-lo por toda parte da Terra e expressa ou a Deidade ou o
eu; e estes dois termos estão, psicologicamente, muito
83
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

relacionados, o que não significa que eu acredite que Deus é o Eu ou que o Eu é


Deus. Afirmei que existe uma relação psicológica e temos abundantes provas
disso.
É um arquétipo muito importante. É o arquétipo da ordem interna e é
sempre usado nesse sentido, quer para significar a ordenação dos numerosos
aspectos do Universo, um plano cósmico, quer para ordenar num esquema os
complicados aspectos da nossa psique. Expressa o fato de que existe um centro
e uma periferia, e tenta abranger o todo. É o símbolo da totalidade. Assim,
durante o tratamento de um paciente, num momento em que tudo é caos e
desordem na mente de um homem, o símbolo pode aparecer, quer sob a forma de
uma mandala num sonho, ou quando ele faz desenhos imaginários e fantásticos,
ou ainda de outras formas.
Uma mandala aparece espontaneamente como arquétipo compensatório
durante os períodos de desordem. Aparece trazendo ordem, mostrando a
possibilidade de ordem e centralidade. Assinala um centro que não coincide com
o Ego, mas com a totalidade — é totalidade — aquela totalidade a que dei o nome
de Eu. ”Eu” é o termo para totalidade. Não sou todo em meu ego, dado que o meu
ego é apenas um fragmento da minha personalidade; assim, como vê, o centro de
uma mandala não é o ego.
É a personalidade total, o centro de toda a personalidade, e o grande papel
que desempenha pode ser observado, por exemplo, na cultura do Oriente,
passada e presente. Na Idade Média, desempenhou um papel igualmente
importante no Ocidente; mas aqui perdeu-se e, hoje, é meramente considerado
uma espécie de motivo alegórico, decorativo. Na realidade, porém, é sumamente
importante e superlativamente autônomo, um símbolo que aparece em sonhos
etc. e no folclore, nas tradições populares. Diríamos que é o principal arquétipo.
84

Parte IV
A TEORIA DE INTROVERSÃO-EXTROVERSÃO E A MOTIVAÇÃO

Talvez a mais conhecida contribuição do Dr. Jung seja a sua teoria dos
tipos psicológicos, na qual estabeleceu a dicotomia entre introvertidos e
extrovertidos. Como foi sublinhado no primeiro capítulo, Jung estava muito
desgostoso a respeito da interpretação errônia de suas idéias pelos americanos
e, além disso, estava ciente de que a sua tipologia introversão-extroversão tinha
sido o alvo de muitas dessas más interpretações. Nestas entrefistas, Jung reflete
a sua impaciência com a distorção de que o significado e o uso corretos desses
termos tinham sido vítimas.
Esforça-se por explicar em grande detalhe as relações que existem entre
aquilo a que se refere como as quatro funções – pensamento, sentimento,
percepção e intuição – e o que designa como orientações de introversão e
extroversão. Particularmente difícil para uma plena compreensão é o seu tipo
introvertido intuitivo, pelo que Jung nos oferece alguns exemplos concretos e
deveras interessantes para ilustrar essa orientação num indivíduo.
Ako discutir as suas concepções motivadoras, primordialmente o seu
conceito da libido, ele explica a sua noção oriental de energia, tal como se
manifesta no indivíduo. Ele também parece aceitar a importância dos fatores
históricos na compreeensão do intivíduo, mas sem excluir o realce que deve ser
dado ao entendimento dos acontecimentos atuais que influem sobre a pessoa,
isto é, a importância de uma abordagem de campo.
85

As Teorias Tipológicas de Introversão-Extroversao


Dr. Evans: Dr. Jung, outro conjunto de idéias que tiveram origem no senhor
e são muito conhecidas no mundo, gravita em torno dos termos ”introversão” e
”extroversão”. Sei que o senhor está inteiramente a par de que esses termos
ganharam tal popularidade que o homem da rua emprega-os constantemente para
descrever os membros de sua família, os seus amigos etc. Creio que se tornaram
os conceitos psicológicos mais freqüentemente usados, hoje em dia, pelos leigos.
Dr Jung: Tal como a palavra ”complexo” — que também inventei, como o
senhor sabe, durante os neus experimentos de associação — esses dois termos
são, simplesmente, práticos, porque há certas pessoas que são, definitivamente,
mais influenciadas pelo meio que as cerca, pelas pessoas à sua volta, do que
pelas suas próprias intenções, enquanto que outras pessoas são mais
influenciadas por fatores subjetivos. Ora, os fatores subjetivos, que são muito
característicos, foram interpretados por Freud como uma espécie de
autocentrismo patológico. Isso é um erro. A psique tem duas importantes
condições. Uma é a influência ambiental e a outra é a psique como dado inato.
Conforme lhe disse ontem, a psique de modo nenhum pode ser
considerada uma tábula rasa e sim uma combinação e mistura definida de genes,
que existem em nós desde o primeiro momento de vida; e imprimem um
determinado caráter, mesmo à criança muito pequena. Isso é um fator subjetivo,
visto de fora. Mas, se o observarmos de dentro, então é como se estivéssemos
observando o mundo. Quando a pessoa observa o mun-
87
ENTREVISTAS com CARL G JUNG

do, vê outras pessoas, vê casas, vê o céu; vê objetos tangíveis. Mas, quando se


observa interiormente, vê imagens animadas, um mundo de imagens que são, em
geral, conhecidas como fantasias.
Contudo, essas fantasias são fatos. É um fato que o homem tem esta ou
aquela fantasia; e é um fato tangível que, por exemplo, quando um homem tem
uma certa fantasia, outro homem pode perder a vida ou uma ponte ser construída.
Todas essas casas foram fantasias. Tudo o que se faz aqui, tudo isso, todas as
coisas, começaram por ser fantasia. E a fantasia tem uma realidade própria. Isso
não deve ser esquecido; a fantasia não é o nada. Certo, não é um objeto tangível;
não obstante, é um fato.
A fantasia é uma forma de energia, apesar de não podermos medi-la. É
uma manifestação de algo e, portanto, é uma realidade. É uma realidade como,
por exemplo, o Tratado de Paz de Versalhes ou coisa parecida. Nada mais é do
que isso; não se pode mostrá-la: mas aconteceu e por isso é um fato. E assim é
que os eventos psíquicos são fatos, são realidades. E quando se observa o fluxo
de imagens Interiores, está-se observando um aspecto do mundo, do mundo
interior, porque a psique, se a entendermos como um fenômeno que tem lugar no
organismo vivo, é uma qualidade da matéria. Descobrimos que essa matéria tem
outro aspecto, ou seja, um aspecto psíquico. E, assim, é simplesmente o mundo
interior, visto desde o interior. É como se a pessoa estivesse observando outro
aspecto da matéria. Esta idéia não foi Invenção minha. Os antigos credos já
falavam do soiritus atomis. Isto é, o espirito que esfá inserido nos átomos. Isso
significa que o psquismo é uma qualidade aue aparece na matéria. Não interessa
se o compreendemos ou não, mas é essa a conclusão a que chegamos, se
formos capazes de raciocinar e extrair conclusões sem preconceitos.
Assim, o homem que é conduzido pelo mundo exterior, pela influência do
mundo que o rodeia — diqamos, a sociedade ou as percepções sensoriais —
pensa que é mais válido e mais realista, porque essas coisas são válidas e reais;
e o homem que se orienta pelo fator subjetivo não é realista, porque o fator
subjetivo nada é.
88
AS TEORIAS DE INTROVERSÃO EXTROVERSÃO

Mas isso é um erro. Esse homem está tão bem fundado quanto o outro, porquanto
se baseia no mundo interior. E, portanto, está inteiramente certo quando diz: ”Oh,
são apenas as minhas fantasias.” É claro, este é o introvertido; e o introvertido
está sempre receoso do mundo externo. Ele próprio o dirá quando alguém lhe
perguntar. Mostrar-se-á contrito a esse respeito e dirá: ”Sim, eu sei, são as
minhas fantasias.” E está sempre ressentido com o mundo em geral.
A América é um exemplo característico de extroversão. O introvertido não
tem aí lugar, porque ignon que contempla o mundo de dentro. Isso confere-lhe dig
nidade, confere-lhe sequrança, porque é isso a psique do homem. Hoje em dia,
sobretudo, o mundo está suspenso de um tênue fio. Suponha que uns certos
camaradas em Moscou se enervam ou perdem o senso comum por alguns
instantes; então o mundo inteiro ficará envolto em violentas chamas. Atualmente,
não somos tão ameaçados por catástrofes elementares. Nada existe comparável
à bomba H... e isso é uma criação do homem. Nós é que somos o grande periqo.
A psique é o grande perigo. O que acontecerá se algo falhar na psique? E isso
nos demonstra, em nossos dias, qual é o poder da psique, como é importante
sabermos algo a seu respeito. Mas nada sabemos sobre ela. Ninguém daria
crédito à idéia de que o processo psíquico do homem comum possa ter alguma
importância. Pensa-se: ”Oh, o que ele tem na cabeça pouco interessa; ele é o que
o seu meio fez dele; foi ensinado a fazer isto e aquilo, acredita nesta e naquela
coisa e, sobretudo, se estiver bem alimentado e bem alojado, então não terá idéia
nenhuma. ” E aí reside o grande equívoco, porque ele é o mesmo homem que era
ao nascer e não nasceu como tabula rasa, mas como realidade.
Assim, comecei um exame das atitudes humanas e, notadamente, como
funciona a nossa consciência. Eu não podia deixar de observar, por exemplo, a
diferença entre Freud e Adler, uma diferença típica. Um partia do princípio de que
as coisas evoluíam sequndo as diretrizes do instinto sexual. O outro admitia que
as coisas se desenvolvem de acordo com as diretrizes do instinto de poder. E ali
estava eu... entre os dois.
89
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

Eu podia ver a justificação do ponto de vista de Freud e também compreendia a


exatidão do de Adler; e sabia que as coisas podiam ser ainda encaradas de uma
porção de outra maneiras. Assim, considerei meu dever científico examinar
primeiro a condição da consciência humana, aquela que é originadora das várias
maneiras de encarar as coisas, das diversas abordagens possíveis. É o fator que
gera atitudes, atitudes conscientes, em relação a certos fenômenos. Assim,
quando sabemos, por exemplo, que há pessoas que vêem a diferença entre
vermelho e verde, podemos concluir que todo o mundo vê essa diferença? Em
absoluto. Existem casos de cegueira cromática. Uns vêem isto, outros vêem
aquilo.
Por isso tentei descobrir quais eram as principais diferenças. Daí resultou o
meu livro sobre os tipos. * Considerei em primeiro lugar as atitudes introvertidas e
extrovertidas, depois certos aspectos fundamentais e, finalmente, quais das
quatro funções são predominantes.
Dr. Evans: É claro, um dos erros de interpretação mais comuns a respeito
de sua obra entre alguns dos autores americanos é, pelo menos em minha
opinião, que eles caracterizaram o seu estudo da introversão e extroversão como
se fosse sugerido que o mundo se compõe apenas de duas categorias de
pessoas: introvertidos e extrovertidos. Estou certo de que o senhor se apercebeu
disso. Quer comentar a esse respeito? Por outras palavras, o senhor concebe o
mundo como sendo unicamente composto de indivíduos que são introvertidos
integrais e indivíduos que são extrovertidos integrais?
Dr. Jung: Bismarck disse certa vez: ”Deus me proteja dos meus inimigos
posso me encarregar sozinho.” Você sabe como são as pessoas. Escolhem uma
palavra como lema e depois esquematizam tudo de acordo com essa palavra.
Não

Psychologrlschc Typen, 1921. Existe tradução brasileira: Tipos Psicológicos, Zahar Editores. 1967,
tradução e apresentação de Álvaro Cabral. (N. do T.)
90
AS TEORIAS DE INTROVERSÃO-EXTROVERSÃO

existe o introvertido puro ou o extrovertido puro. Tal homem estaria num


manicômio.
Trata-se apenas de termos para designar um^a certa inclinação, uma certa
tendência. Por exemplo, a tendência para ser mais influenciado por fatores
ambientais ou mais influenciado por fatores subjetívos... só isso. Há pessoas
que são razoavelmente equilibradas, isto é, que são tão influenciadas pelas
realidades exteriores como pelas interiores... ou tão pouco influenciadas por umas
e outras. E, como no caso de todas as classificações definitivas, o senhor sabe,
elas são Apenas uma »espécie de ponto de referência para nossa orientação.
Não existe coisa alguma a que se possa chamar uma classficação esquemática.
Com freqüência, experimenta-se até grande Dificuldade em discernir a que
tipo um homem pertence quer porque ele é um indivíduo muito bem equilibrado
quer porque é um neurótico declarado. Este último difícil de determinar porque,
quando um indivíduo é neurótico, manifesta sempre uma certa dissociação de
personalidade. E, bem entendido, as próprias pessoas tampouco sabem quando
estão reagindo conscientemente ou guando as suas reações são inconscientes.
Assim, podemos estar falando com uma pessoa e pensar que ela está cônscia do
que diz. Sabe do que está falando para nosso espanto, descobrimos daí a pouco
que ela está Inteiramente Inconsciente e não sabe o que diz.
É um procedimento longo e penoso descobrir do que é que um homem está
consciente e do que não está consciente, porque o inconsciente age sobre ele o
tempo todo. Certas coisas são conscientes; outras são inconscientes; mas nem
sempre podemos distinguir. Temos de perguntar às pessoas: ”Está. consciente do
que diz neste momento?” ou ”Deu-se Cofta do que disse?” E, de súbito,
descobrimos haver uma porção de coisas que essas pessoas ignoravam
completamente. Por exemplo, certas pessoas têm numerosos motivos que toda a
gente vê. Elas são as únicas que os ignoram inteiramente.
Dr. Evans: Então, toda essa questão de Categorias extremas, Introvertidos
e exfrovertidos, não pas-
91
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

sa de uma abordagem esquemática, de um quadro de referência.


Dr. Jung: Todo o meu plano tipológico consiste, meramente, numa espécie
de orientação. Existe um fator, a introversão; existe outro fator, a extroversão. A
classificação de indivíduos nada significa. Trata-se apenas de um instrumento, ou
aquilo a que chamo ”psicologia” prática, usada para explicar, por exemplo, o
marido a uma esposa ou vice versa.
Ocorre com muita freqüência, por exemplo... eu diria tratar-se quase de
uma regra, mas não quero esta belecer demasiadas regras, para não ser
esquemático. acontece freqüentemente, dizia eu, o caso de um introvertido casar
com uma extrovertida para compensação ou, por outras palavras, um tipo casar
com um contratipo, a fim de se complementar. Por exemplo, um homem que
ganhou muito dinheiro é um bom homem de negócios, mas não tem educação. O
seu sonho, é claro, é ter um piano de cauda em casa e cercar-se de artistas,
pintores, cantores ou Deus sabe o quê, e conviver com intelectuais; e, assim,
preferirá casar com uma mulher desse tipo, com a finalidade de possuir tudo isso
Ela o tem e casa com ele porque é rico, porque põe à sua disposição muito
dinheiro, Essas compensações são um fato da vida corrente. Quando estudamos
os casa mentos, podemos verificar isso facilmente, - E, é claro. nós,
psicanalistas, temos de lidar bastante com casamentos, particularmente com os
casais em apuros, porque os tipos são muito diferentes e, por vezes, não se
entendem reciprocamente.
Como o senhor sabe, os principais valores do extrovertido são execrados
pelo introvertido, que diz: ”O mundo que vá para o diabo!” A esposa interpreta
isso como megalomania do marido. Mas é, simplesmente, como se o extrovertido
dissesse ao introvertido: ”Escute aqui, amíqo. Os fatos são estes, esta é a pura
realidade.” E tem razão! E o outro diz: ”Mas eu penso, eu sustento que...” e isso
parece absurdo ao extrovertido, porque não sabe que o outro, sem se aperceber
disso, está contemplando um mundo Interior, uma realidade interior, e que tanto
pode estar certo como errado, mes-
92
AS TEORIAS DE INTROVERSAO-EXTROVERSAO

mo que se baseie em Deus sabe que sólidos fatos. Vejamos, por exemplo, a
interpretação de estatísticas. Podemos provar quase tudo o que quiser com
estatísticas. E o que é que existe de mais objetivo que uma estatística?
Dr. Evans: Sabemos, é claro, que o senhor vinculou a sua tipologia da
introversão-extroversão quatro funções: pensar, sentir, perceber e intuir. Seria
muito interessante ouvirmos uma explicação mais desenvolvida do significado
desses termos, em relação com as orientações introvertido-extrovertido.
Dr. Jung: Bem, há uma explicação muito simples para esses termos e ela
mostra, ao mesmo tempo, como chegamos a essa tipologia. A sensação diz-nos
que existe alguma coisa. O pensamento, de um modo geral, diz-nos o que é essa
coisa. A percepção informanos se essa coisa é agradável ou não, se deve ser ou
não aceita, admitida ou rejeitada. E a intuição... aqui deparamos com uma
dificuldade porque, normalmente, não sabemos como a intuição funciona. Quando
um homem tem um palpite, não podemos dizer exatamente como obteve esse
palpite ou donde foi que este veio. A intuição é uma coisa engraçada.
Vou contar uma pequena história. Tive dois pacientes. O homem era do
tipo sensitivo e a mulher do tipo intuitivo. É claro, eles sentiam uma certa atração
mútua, de modo que tomaram um pequeno barco e desceram rumo ao lago de
Zurique. E aí, no lago, havia aqueles pássaros que mergulham nas águas para
apanhar peixes, como o senhor sabe, que sobem passado um certo tempo, mas
que ninguém pode dizer quando. Os meus dois pacientes começaram então a
apostar quem veria primeiro o pássaro emergir. Ora, poderíamos pensar que o
vencedor seria aquele que observa a realidade muito cuidadosamente, pondo
nessa observação todos os seus sentidos, isto é, a função de sentir. Nada disso.
A mulher ganhou todas as apostas. Ela derrotava-o em todos os pontos porque,
pela intuição, sabia antes. Como é possível? Podemos realmente descobrir como
a intuição funciona se encontrarmos os elos intermediários. Trata-
93
ENTREVISTAS corn CARL G. JUNG

se de uma percepção por elos intermediários e nós apenas obtemos o resultado


final de toda a cadeia de associações. Por vezes, conseguimos reconstituí-la,
porém o mais freqüente é não o conseguirmos.
Portanto, a minha definição de intuição é uma percepção por vias ou meios
inconscientes. É o mais perto que posso chegar. É uma função muito importante,
porque quando vivemos em condições primitivas é provável que nos aconteça
uma porção de coisas imprevisíveis. Nesse caso, precisamos da intuição, porque
as nossas percepções sensoriais não têm possibilidade alguma de dizer o que é
que vai acontecer. Por exemplo, estamos caminhando nas florestas primitivas. Só
podemos ver alguns passos à nossa frente e é possível que nos orientemos pela
bússola. Ignoramos o que existe adiante; não existe um mapa da região. Se
usarmos a nossa intuição, então teremos palpites; e, quando vivemos em tais
condições primitivas, estamos instantaneamente cônscios de palpites. Há lugares
que são favoráveis e lugares que não são favoráveis. É impossível explicar por
que, mas será melhor seguir esses palpites, porque tudo pode acontecer, as
coisas mais imprevistas. Por exemplo, no fim de uma longa jornada, chegamos às
margens de um rio. Ignorávamos que existisse ali um rio, mas, inesperadamente,
deparamos com ele. Por quilômetros não há qualquer habitação humana. Não
podemos atravessar o rio a nado; está cheio de crocodilos. E agora? Tal
obstáculo não tinha sido previsto. Talvez nos acuda, porém, o palpite de que
deveríamos permanecer nesse local nada promissor e aguardar o dia seguinte; ou
de que deveríamos construir uma jangada ou coisa parecida; ou apenas um
palpite de que devemos esperar e examinar as diversas possibilidades.
Também podemos ter intuições... isto acontece constantemente... em nossa
selva habitual, a que chamamos cidade. Podemos ter um palpite, um
pressentimento, de que alguma coisa está indo mal, principalmente quando
dirigimos um automóvel. Por exemplo, naquele dia em que vimos as enfermeiras
na rua. Na esquina de uma rua, uma enfermeira correu para a frente do carro.
Poderia tratar-se de algo interessante, como um suicídio; ser atropelado,
aparentemente, é brutal de-
94
AS TEORIAS DE INTROVERSÃO-EXTROVERSÃO

mais. Então sentimos, realmente, uma impressão estranha, pois na esquina


seguinte uma segunda enfermeira se precipitou diante do automóvel. Uma
multiplicidade de casos, pois a regra é que tais acontecimentos fortuitos
aconteçam em grupos.
Assim, temos advertências ou premonições constantes que consistem, em
parte, num leve sentimento de intranqüilidade, incerteza, medo. Ora, em
circunstâncias primitivas prestamos atenção a essas coisas; elas teriam um
significado. Mas em nossas condições de vida, feitas pelo homem e
aparentemente seguras, não precisamos tanto dessa função. Entretanto,
verificamos a sua existência e usamo-la. Verificaremos, por exemplo, que os tipos
intuitivos, alguns banqueiros, os homens de Wali Street, seguem palpites, guiam-
se por diagnósticos de toda espécie. Encontramos freqüentemente esse tipo entre
os médicos, porque isso os ajuda em seus prognósticos. Por vezes, um caso pode
parecer como se fosse perfeitamente normal e não se prevê qualquer
complicação; contudo, uma voz íntima nos diz: ”Preste atenção a isto ou aquilo.
Cuidado, porque há algo que não é inteiramente normal.”
É impossível dizer por que ou como, mas temos muitas percepções
subliminares, percepções sensoriais de que, provavelmente, extraímos grande
parte das nossas intuições. Mas isso é percepção através do inconsciente e
podemos observar isso nos tipos intuitivos. Por exemplo, aconteceu-me certa vez
que tinha uma paciente pela manhã, às nove horas. Ora, eu fumo freqüentemente
o meu cachimbo e, vez por outra, um cigarro ou um charuto. Quando a paciente
chegou, disse:
— Quer dizer que o senhor começa a trabalhar cedo, antes das nove
horas. Deve ter recebido alguém às oito.
Retruquei:
— Como é que a senhora sabe?
De fato, eu já recebera um paciente às oito da manhã. E ela respondeu:
— Oh, tive apenas um palpite de que um homem devia ter estado aqui esta
manhã.
E perguntei:
— Como a senhora sabe que era um homem?
95
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

— Bem — disse ela — a atmosfera me deu a impressão de que um homem


tinha estado aqui.
Durante todo esse tempo, o cinzeiro estivera sob o nariz dela e havia nele
um charuto que não chegara a ser fumado; mas a paciente não o notara. Assim,
como o senhor vê, o intuitivo é um tipo que não descortina um obstáculo diante
dos pés, mas fareja a caça a quinze quilômetros.
Dr. Evans: Como foi que desenvolveu as suas conceptualizações dessas
quatro funções?
Dr. Jung: Preste bem atenção: essas quatro funções não foram um
esquema que eu tenha simplesmente inventado e aplicado à Psicologia. Pelo
contrário, necessitei de muito tempo para descobri-las. Veja, por exemplo, o tipo
pensante, como julgo que é o meu tipo. Isso é humano, claro. Não acha que é?
Há outras pessoas que decidem os mesmos problemas com que me defronto e
têm de decidir a respeito, mas tomam suas decisões de um modo inteiramente
diferente. Encaram as coisas de uma forma completamente distinta; têm valores
inteiramente diferentes. São, por exemplo, tipos emotivos.
E assim foi que, algum tempo depois, descobri a existência dos tipos
intuitivos. Deram-me muito trabalho. Precisei de mais de um ano para ter uma
idéia clara sobre a existência dos tipos intuitivos. E o último... e o mais inesperado
de todos, foi o tipo sensitivo. E somente mais tarde percebi que esses são,
naturalmente, os quatro aspectos da orientação consciente.
Assim, encontramos nossa orientação, nosso norteamento, na abundância
caótica de impressões, através das quatro funções, esses quatro aspectos da
orientação humana total. Se o senhor puder indicar-me qualquer outro aspecto
pelo qual adquire a sua orientação, ficarei muito grato. Não consegui encontrar
mais e não foi por falta de procurar. Mas estou convencido de que os quatro
cobrem tudo.
Por exemplo, o tipo intuitivo, para discuti-lo mais uma vez, que é muito
pouco compreendido, tem uma função muito importante, pois é aquele que se
orienta
96
AS TEORIAS DE INTROVERSÃO-EXTROVERSÃO

por palpites, por pressentimentos. Vê do outro lado das esquinas; fareja um rato a
quilômetros de distância. Pode-nos dar uma percepção e uma orientação em
situações em que os nossos sentidos, o nosso intelecto e as nossas sensações
não servem de nada. Quando estamos em grande apuro, uma intuição pode
mostrar um buraco por onde teremos possibilidade de escapar. Isso é uma função
muito importante em condições primitivas que não e possível dominar pelas
regras da lógica.
Assim, através do estudo de toda espécie de tipos humanos, cheguei à
conclusão de que devem existir muitas lormas aiterentes de encarar o mundo,
através dessas quatro orientações típicas... pelo menos 16, e poderemos
perfeitamente dizer 360. Podemos aumentar o numero ae princípios orientadores
ou subjacentes, mas conclui que a maneira mais simples, como lhe disse, é a
divisão por quatro, a simples e natural divisão do círculo. Ora, não fui eu quem
criou o simbolismo dessa classificação particular. Somente quando estudava os
arquétipos é que me apercebi de que isso constituía um modelo arquetipico muito
importante que desempenha um enorme papel.
Dr. Evans: O senhor estabelece uma distinção entre um extrovertido
intuitivo e um introvertido intuitivo?
Dr. Jung: Sim, esses tipos não podem ser todos semelhantes.
Dr. Evans: Mais especificamente, o que seria um exemplo da diferença
entre um extrovertido intuitivo e um introvertido intuitivo?
Dr. Jung: Bem, o senhor escolheu um caso bastante difícil, porque um dos
tipos que oferecem maiores dificuldades é, justamente, o introvertido intuitivo...
Encontramos o extrovertido intuitivo em todas as espécies de banqueiros,
jogadores etc., o que é, aliás, multo compreensível. O introvertido é mais difícil
porque tem intuições no tocante ao fator subjetivo, isto é, o mundo interior; e, é
claro, isso é muito difícil de enten-
97
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

der porque aquilo que ele vê são coisas extremamente mcomuns, coisas de que
ele não gosta de falar, se não for um imbecil. Se o fizer, estragara o seu próprio
jogo contando o que vê, porque as pessoas não entenderão isso.
Por exemplo, tive certa vez uma paciente, uma jovem de uns 27 ou 28
anos. Imediatamente depois de se sentar, ela disse:
— Sabe, doutor, vim consultá-lo porque tenho uma cobra no abdome.
O quê!
— Sim, uma cobra preta enroscada no baixo ventre. Devo ter feito uma
careta horrível, porque ela imediatamente acrescentou:
— O senhor sabe que não estou falando literalmente.
Eu disse:
— Se a senhora afirma que ó uma cobra, é uma cobra.
Mais tarde, numa conversa que teve lugar mais ou menos no meio do
tratamento, o qual durou apenas dez sessões, a paciente recordou-me algo que
havia pressagiado. Ela havia dito no começo:
— Virei dez vezes e depois tudo ficará bem. Ao que respondi com a
pergunta:
— Como é que a senhora sabe? Ela respondeu:
— Oh, tive um palpite.
Agora, na quinta ou sexta sessão, a paciente me informou:
— Doutor, devo contar-lhe que a cobra subiu. Está agora aqui.
Um palpite.
Depois, no décimo dia, indaguei:
— Hoje é a nossa última sessão, a senhora sentese curada?
Com uma expressão radiante, ela replicou:
— O senhor sabe, doutor, esta manhã ela subiu e saiu pela minha boca.
Tinha uma cabeça dourada.
Foram estas suas últimas palavras. Analisemos agora a realidade, em seus
fatos objetivos: essa moça consultou-me porque não podia ouvir

98
AS TEORIAS DE INTROVERSÃO-EXTROVERSÃO

mais os seus próprios passos, era como se, literalmente, caminhasse no ar. Não
os ouvia e estava assustada. Quando lhe perguntei onde morava, respondeu:
— Oh, na pensão tal e tal. Bem, não se chama exatameme uma pensão,
mas é uma espécie de pensão.
Eu jamais ouvira falar nela.
— Nunca ouvi falar nesse lugar — disse eu.
— Oh, é um lugar muito agradável — respondeu a paciente. — Só tem
moças; são todas muito simpáticas, muito bonitas, e divertem-se muito. Muitas
vezes desejei que me convidassem para suas tardes alegres.
E então perguntei:
— Elas divertem-se sozinhas?
— Não, há sempre muitos jovens entrando; passam um tempo agradável,
mas nunca me convidam.
Resultou, é claro, que se tratava de um bordel muito reservado. A paciente
era uma garota perfeitamente decente, de uma boa família, não daqui. Ela
descobrira esse lugar, não sei como, e estava na completa ignorância ae que
todas as moças a que ela se referia eram prostitutas.
E eu disse:
— Por amor de Deus, a senhora caiu num lugar perigoso; trate de livrar-se
dele o mais depressa possível.
Ela não via a realidade, mas tinha, verdadeiramente, palpites. Tal pessoa
não podia falar de suas experiências porque todo mundo pensaria que ela era
completamente louca. Eu próprio fiquei muito chocado e pensei: ”com mil
demônios, será um caso de esquizofrenia?” Normalmente, não ouvimos esse tipo
de linguagem; mas ela supunha que o velhote, é claro, sabia tudo e compreendia
esse tipo de linguagem.
Portanto, se o introvertido intuitivo dissesse o que realmente percebe,
praticamente ninguém o entenderia; seria mal interpretado. Assim, tais pessoas
aprendem a guardar essas coisas para si mesmas. Dificilmente as ouviremos falar
dessas coisas. De certo modo, isso é uma grande desvantagem, mas, por outro
lado, é muito vantajoso que essas pessoas não falem de suas experiências, tanto
as interiores como as que ocorrem em suas relações humanas. Por exemplo,
podem ficar na
99
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

presença de alguém que não conhecem desde o tempo de Adão e, de súbito,


podem ter imagens interiores. Ora, essas imagens interiores poderão fornecer-
lhes muitas informações sobre a psicologia daquela pessoa que aca baram de
conhecer. Isso é um exemplo típico de casos que acontecem freqüentemente.
Subitamente, elas conhecem um fragmento importante da biografia dessa pessoa
e, se não guardarem as coisas para si mesmas, contarão a história. Isso é o
mesmo que atirar gordura no fogo! Assim, o introvertido intuitivo tem, de certo
modo, uma vida muito difícil, embora seja interessantíssima. É muito difícil ganhar
a sua confiança.
Dr. Evans: Sim, porque têm receio de que as pessoas pensem que...
Dr. Jung: São doentes. As coisas que sugerem são interessantes para elas
próprias, são-lhes vitais e profundamente insólitas para o indivíduo comum. Um
psicólogo, entretanto, deve compreender tais coisas.
Quando alguém pratica a Psicologia, como suponho que um psicólogo
deve praticar, a primeira interrogação é: O meu paciente é introvertido ou
extrovertido? O psicólogo tem de apurar coisas inteiramente diferentes. Ele vê o
tipo sensitivo; vê o tipo intuitivo; vê o tipo pensante e o tipo emotivo.
Essas coisas são complicadas. São ainda mais complicadas porque o
pensamento introvertido, por exemplo, é compensado pelo sentimento
extrovertido, o sentimento inferior, arcaico, do extrovertido. Assim, um pensador
introvertido pode ser tosco em seus sentimentos, como é o caso, por exemplo, do
filósofo introvertido que sempre evitou, cuidadosamente, as mulheres e talvez
acabe casando com a cozinheira.
Dr. Evans: De modo que podemos adotar as suas orientações introvertido-
extrovertido para descrever numerosos tipos: os tipos introvertido e extrovertido
orientados pela sensação, os tipos introvertido e extrovertido orientados pela
emoção, os tipos introvertido e extrovertido orientados pelo pensamento e, enfim,
os tipos introvertido e extrovertido orientados pela intuição.
100
AS TEORIAS DE INTROVERSÃO-EXTROVERSÃO

Em cada um desses casos, essas combinações não representam uma categoria


concreta, mas, simplesmente, como o senhor mesmo indicou há pouco, um
modelo que pode ser útil na compreensão do indivíduo.
Dr. Jung: Trata-se apenas de uma espécie de esqueleto a que temos de
adicionar a carne. Poderíamos dizer que é algo como uma região mapeada por
pontos de triangulação, o que não significa que essa região consista em pontos
de triangulação; isso é apenas feito para que tenhamos uma idéia das distâncias.
Portanto, é um meio para um fim.
Somente faz sentido como esquema quando lidamos com casos práticos.
Por exemplo, se tivermos de explicar um marido introvertido-intuitivo a uma
esposa extrovertida, é um caso deveras espinhoso porque, como o senhor sabe,
um tipo extrovertido-sensitivo é o que está mais distante das funções da
experiência e do raciocínio. Adapta-se e comporta-se de acordo com os fatos, tal
como estes são, e está sempre tolhido pelos fatos. Na realidade, ele próprio está
nesses fatos.
Mas, se o introvertido é intuitivo, isso é um inferno, porque, assim que se
acha numa situação definida, tenta encontrar uma escapatória, um buraco por
onde sair dessa situação. Para ele, toda e qualquer situação dada é sempre o
pior que lhe podia acontecer. Sente-se espicaçado, tolhido, sufocado e
acorrentado. Tem de quebrar esses grilhões, porque é o homem que descobrirá
um novo campo. Plantará nesse campo e, assim que as novas plantas começam a
crescer, está tudo terminado; ele sente que a sua missão acabou e não lhe
interessa mais. Outros colherão o que ele semeou. Quando o extrovertido
sensitivo e o introvertido intuitivo casam, isso significa complicações, posso
assegurar.
101
7

Conceitos Motivacionais

Dr. Evans: Uma questão que é muito importante quando tentamos


compreender os centros individuais em torno do problema da motivação consiste
em saber por que a pessoa faz o que faz. Em certo grau, o senhor já falou sobre
isso, quando discutiu os arquétipos. Contudo, para aprofundar o problema ainda
mais, quando abordamos antes o problema da libido, aquilo que Freud considerou
uma energia psíquica, sexual, talvez o senhor se lembre de ter sugerido que a
libido era mais do que mera energia sexual. Sugeriu que poderia ser algo mais
amplo. O senhor defende certos princípios a respeito da energia psíquica que são
muito estimulantes e um desses princípios é. segundo creio, o que designou como
princípio de entropia.
Dr. Jung: Sim, aludi a ele. O principal é adotar o ponto de vista energético,
na medida em que se aplica aos fenômenos psíquicos. Ora, acontece que, no
caso dos fenômenos psíquicos, não temos possibilidades de medi-los com
exatidão, de modo que se trata sempre de uma espécie de analogia.
Freud emprega o termo ”libido” no sentido de energia sexual e Isso não é
inteiramente correto. Se fosse sexual, então seria uma força como a eletricidade
ou qualquer outra forma ou manifestação de energia. Ora, a energia é um
conceito pelo qual tentamos expressar as analogias de todas as manifestações de
força, notadamente, possuem uma certa qualidade, uma certa intensidade e há
um fluxo numa determinada direção, isto é, para a suspensão final do fluxo
oposto. O alto, o baixo, a altura entre os dois pólos... um lago no cimo da
montanha flui pela sua vertente até toda a água estar
102
CONCEITOS MOTIVACIONAIS

embaixo e, depois, acabou. E poderemos ver algo semelhante no caso da


Psicologia.
Ficamos fatigados do trabalho intelectual ou da existência consciente e,
portanto, devemos dormir para restaurar as forças. Assim, quando dormimos,
durante a noite, é como se a água fosse bombeada de um nível inferior para um
superior e podemos trabalhar de novo no dia seguinte. É claro, esta analogia
também é defeituosa, do mesmo modo que só usamos comparativamente o termo
”energia”.
Usei esse termo porque quis expressar o fato de que a manifestação de
energia da sexualidade não é a única manifestação de energia. Temos numerosos
impulsos, como o impulso de conquista ou o impulso de aaressividade e muitos
outros. Há numerosas formas. Por exemplo, consideremos o modo como os
animais constróem ninhos ou o impulso que leva as aves migratórias a viajar.
Todos são motivados por uma espécie ou outra de manifestação de energia e o
significado específico da palavra ”sexualidade” dissiar-se-ia completamente se
todos esses diferentes impulsos e comportamentos fossem incluídos na sua
definição. O próprio Freud afirmou que isso não era aplicável a tudo e, mais tarde,
corrigiu-se ao admitir que havia também impulsos do ego. Isso é uma coisa
distinta, outra manifestação.
Ora, para não supor ou prejulgar coisas, prefiro falar simplesmente de
energia, e energia é uma quantidade ou carga que pode manifestar-se através da
sexualidade ou de qualquer outro instinto. Essa é a principal característica, não a
existência de uma força única.
Dr. Evans: Em nossa Psicologia acadêmica atual, muitas abordagens da
motivação enfatizam o que, por vezes, é citado como uma teoria biocêntrica. Ela
sugere que o indivíduo nasce com certos tipos fisiológicos e autopreservadores
de impulsos inatos, como o impulso da fome, da sede etc. O sexo é um deles.
Contudo, no caso de todos esses impulsos, a sua satisfação é necessária à
manutenção do organismo.
Depois, à medida que o indivíduo é influenciado pela realidade e a cultura
em que vive, esses impulsos
103
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

primários são modificados, em termos da sociedade na cual ele funciona. Por


exemplo, em resultado de influências culturais específicas, o impulso geral de
fome é suplementado por um impulso específico para certos tipos de alimento.
Mais tarde, se isso for importante na cultura em que ele vive, o indivíduo pode
desenvolver a necessidade de aprovação social, influenciando ainda mais as
suas preferências alimentares etc. Essa abordagem geral da compreensão do
desenvolvimento das motivações será compatível com as suas idéias. Dr. Jung?
Está de acordo em que padrões instintivos básicos, inatos, são modificados pelo
meio ambiente ou a cultura a que estamos submetidos?
Dr. Jung: Sim, certamente.
Dr. Evans: Também no concernente à motivação, ou à condição que
estimula, orienta e sustém o indivíduo, parece haver dois pontos de vista que se
destacam em grande parte da Psicologia atual, na América. A um deles
poderíamos chamar o ponto de vista hístórrco, tal como é ilustrado pela teoria
biocêntrica a que me referi há pouco, quando se procura observar a história e o
desenvolvimento do indivíduo para encontrar as respostas sobre o porquê dele
estar fazendo uma certa coisa, num dado momento.
O outro ponto de vista, postulado e defendido pelo Dr. Kurt Lewin, é o da
teoria do campo. Ele não acredita que a história — o passado — seja o elemento
mais Importante na motivação. Em vez disso, sugeriu que todas as condições que
afetam o indivíduo, num dado momento, nos ajudam a compreender melhor o
indivíduo e a predizer o seu comportamento. O senhor pensa que a ldéia do
”campo presente” do Dr. Lewin possui alguma virtude?
Dr. Jung: Bem, obviamente, sempre insrsti em que até uma neurose crônica
tem a sua verdadeira causa no momento presente. A neurose é elaborada
diariamente pela atitude errada do indivíduo. Por outra parte, entretanto, essa
atitude errada é uma espécie de fato que precisa ser historicamente explicado
pelas coi-
104
CONCEITOS MOTIVACIONAIS

sas que aconteceram no passado. Mas isso também é um ponto de vista


unilateral, porque todos os fatos psicológicos estão orientados não somente para
um determinado curso, mas também para um certo fim. Eles são, de certa
maneira, fisiológicos, isto é, servem a um propósito, de modo que a atitude errada
pode ter sido originada num passado longínquo. É igualmente verdade, porém,
que tampouco existiria hoje se não existissem causas imediatas e propósitos
imediatos para conservála viva aqora. Por isso é que uma neurose pode terminar
de súbito, num certo dia, apesar de todas as causas. No início da guerra, foram
observados casos de neurose de compulsão que duraram muitos anos e, de
repente, ficaram curados, porque os pacientes se encontraram numa condição
inteiramente nova. É como um choque, entende? Até o esquizofrênico pode
melhorar imensamente através de um choque que produza uma nova condição.
Deve ser uma coisa... muito chocante, que arranque o paciente da sua atitude
habitual. Uma vez livre desta, tudo desmorona, todo o sistema que fora construído
durante anos.
Dr. Evans: O senhor ventilou muitas idéias interessantes e provocativas.
Outro conceito relacionado com o desenvolvimento motivacional é o processo de
individuação, um processo que freqüentemente se referiu em seus escritos.
Gostaria de comentar sobre esse processo de individuação, como é que todos
esses fatores convergem para um todo... uma totalidade?
Dr. Jung: Isso é muito simples, como o senhor sabe. Pegue uma glande,
coloque-a na terra e veja como ela cresce e se converte num carvalho. Isso é o
homem. O homem desenvolve-se a partir de um ovo, até se converter num ser
completo, o homem total; é uma lei interna.
Dr. Evans: Quer dizer que, na sua opinião, o desenvolvimento psíquico é,
em muitos aspectos, como o desenvolvimento biológico.
105
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

Dr. Jung: O desenvolvimento psíquico realiza-se independentemente do


mundo; é alguma outra coisa ou talvez uma opinião. É um fato que as pessoas
desenvolvem-se psiquicamente segundo os mesmos princípios do
desenvolvimento do corpo. Por que havíamos de supor que é um princípio
diferente? É realmente a mesma espécie de comportamento evolucionário que se
observa no corpo. Consideremos, por um instante, aqueles animais que têm
características anatômicas especialmente diferenciadas, como as dos dentes ou
coisa semelhante. Pois bem, eles possuem um comportamento mental que está
de acordo com esses órgãos.
Dr. Evans: Assim, em sua opinião, não há necessidade alguma de recorrer
a outros tipos de idéias, outros tipos de teorias, para explicar o desenvolvimento.
A lei biológica fundamental ainda é...
Dr. Jung: A psique não é algo diferente do resto do ser vivo. É o aspecto
psicológico do ser vivo. É até o aspecto psíquico da matéria. É uma qualidade.
106
PARTE V

ALGUMAS REAÇÕES CONCERNENTES A TESTES PSICOLÓGICOS,


PSICOTERAPIA, TELEPATIA MENTAL E OUTRAS INTROVISÕES PESSOAIS

Nestas entrevistas, Jung descreve os seus esforços pioneiros na área dos


testes projetivos de personalidade, especialmente o seu teste de associação
verbal. Reage positivamente ao valor geral dos testes projetivos, embora indique
algumas reservas a respeito da originalidade de Hermann Rorschach.
Ao abordar o seu trabalho com pacientes, discute com certo detalhe o valor
do sonho e do material de fantasia para o processo terapêutico.
O leitor estará interessado no vigoroso ponto de vista de Jung a respeito
da telepatia mental e na sua reação bastante favorável à obra de J. B. Rhine, a
esse respeito. Ele tenta analisar a sua própria e complexa contribuição para a
compreensão desse campo, apresentando o seu conceito de ”sincronicidade”.
A reação de Jung às teorias da Medicina Psicossomática e uso de
tranqüilizantes reflete as suas reservas sobre o progresso realmente feito pela
Medicina e Psicologia americanas. Cita o seu trabalho com pacientes
tuberculosos, realizado há cinqüenta anos, como prova da sua compreensão de
Medicina Psicossomática, assinalando, por exemplo, como os psicólogos
americanos têm sido lentos na aceitação de tal ponto de vista. Também de
invulgar interesse para o leitor, nesta seção, são os comentários de Jung sobre o
seu contato com Einstein e Toynbee, asszm como os seus pontos de vista a
respeito da importância relativa da Estatística e do conhecimento dos estudos
literários para o estudante que se inicia no estudo de Psicologia.
8
Jung sobre as Práticas de Diagnóstico e de Terapia

Dr. Evans: Nós, psicólogos americanos, recorremos freqüentemente a


testes, utilizando os ”testes projetivos”. Como discutimos antes, o senhor
certamente desempenhou um destacado papel no desenvolvimento dos testes
projetivos, graças ao seu método de associação verbal. Que foi que o levou a
desenvolver o Teste de Associação Verbal?
Dr. Jung: O senhor se refere ao seu uso prático?
Dr. Evans: Sim.
Dr. Jung: Bem, é fácil entender que, quando eu era jovem, estava
completamente desorientado com os pacientes. Não sabia por onde começar ou o
que dizer; e o experimento de associação deu-me acesso ao inconsciente dos
pacientes. Aprendi sobre as coisas que não me contavam e adquiri uma profunda
introvisão sobre coisas de que não estavam cônscios. Descobri muitas coisas.
Dr. Evans: Por outras palavras, a partir dessas respostas associativas, o
senhor descobriu complexos ou áreas de bloqueio emocionai no paciente? É
claro, a palavra ”complexo”, de que o senhor foi o criador, é agora amplamente
utilizada.
Dr. Jung: Sim, complexo... foi um dos termos que in troduzi.
Dr. Evans: O senhor esperava que, partindo desses complexos ou
bloqueios emocionais que estava
109
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

desvendando através do uso do teste de associação verbal, poderia chegar aos


materiais no inconsciente pessoal ou no inconsciente coletivo?
Dr. Jung: No começo, não estava em questão o inconsciente coletivo ou
coisa parecida. Tratava-se, principalmente, de complexos pessoais comuns.
Dr. Evans: Entendo. O senhor não esperava alcançar tamanha
profundidade.
Dr. Jung: Entre centenas de associações complexas, podia aparecer um
elemento arquetípico, mas não se destacava de forma particular. A questão não é
essa. Sabe, é como o Rorschach, uma orientação superficial.
Dr. Evans: Creio que o senhor conheceu Hermann Rorschach, não é
verdade?
Dr. Jung: Não. Ele evitou-me o máximo possível.
Dr. Evans: Mas não o conheceu pessoalmente?
Dr. Jung: Não. Nunca o vi.
Dr. Evans: Nos termos usados por Rorschach, ”introtensivo” e
”extrotensivo”, ele estava refletindo, isso é a minha opinião pessoal, claro, as
suas concepções de introversão e extroversão.
Dr. Jung: Sim, mas eu era execrado, por ter sido quem primeiro definiu e
descreveu esses conceitos; e isso, como o senhor sabe, é algo imperdoável.
Eu nunca deveria ter feito semelhante coisa.
Dr. Evans: Quer dizer, então, que o senhor nunca teve contatos pessoais
com Rorschach?
Dr. Jung:.Não, nenhuma relação pessoal.
Dr. Evans: O senhor está familiarizado com o teste de Rorschach, que
utiliza borrões de tinta?
110
Práticas de diagnóstico e de terapia

Dr. Jung: Sim, mas nunca o apliquei, pois também deixei de empregar,
subseqüentemente, o meu Teste de Associação verbal. Não era necessario.
Aprendi que tinha de aprender pelos exames exatos das reaçoes psíquicas; i isso,
creio eu, é um excelente meio.
Dr. Evans: mas o senhor recomendaria o uso desses testes projetivos,
como o seu Teste de Associação Verbal ou Teste de Rorschach,por outros
psiquiatras, psicólogos clínicos e psicanalistas?
Dr. Jung: bem, talvez. Para a educação dos psicólogos que pretendem
realizar trabalho prático com pessoas, creio que é um excelente meio para
aprender como o inconsciente funciona.
Dr. Evans: então, o senhor acha que os testes projetivos têm uma função a
desempenhar no adestramento de psicólogos?
Dr. Jung: Sim, acho que sim. Eles são eminentemente didáticos. Com
esses testes, é realmente possível demonstrar a repressão ou o fenômeno
amnésico, o modo como as pessoas encobrem as suas emoções etc.
Desenrolam-se como uma conversa vulgar, mas os testes fornecem certos
princípios e critérios que servem como guias e instrumentos de medição para o
que se ouve e observa.
É tudo muito interessante. Observamos todas as coisas que podem ser
observadas numa conversa com outras pessoas. Por exemplo, durante uma
conversa, quando perguntamos a uma pessoa alguma coisa ou começamos a
discutir certas coisas, podemos observar determinados detalhes, pequenas
hesitações, deslizes de linguagem etc.: todas essas coisas vêm à tona. É, o que
que é mais, elas são mensuráveis numa situação experimental.
Não creio que esteja superestimando o valor didático dos testes projetivos.
Tenho-os em grande apreço nessa capacidade, isto é, na educação dos jovens
psicólogos. E, por vezes, é claro, são úteis a qualquer psicólogo. Se tenho um
paciente que não quer falar,
111
ENTREVISTAS com CARL, G. JUNG

posso submetê-lo a um teste e descobrir uma porção de coisas por esse meio.
Por exemplo, foi assim que, certa vez, descobri um homicídio.
Dr. Evans: Foi mesmo? Quer contar-nos como isso foi feito?
Dr. Jung: Vocês têm nos Estados Unidos o detector de mentiras e isso é
como um teste de associação em que trabalhei, em combinação com o fenômeno
psicogalvânico. Também realizei numerosas pesquisas com o pneumógrafo, que
registra o decréscimo do volume de respiração, sob a influência de um complexo.
O senhor sabe que uma das razões da tuberculose é a mamiestação de um
complexo. As pessoas têm uma respiração muito artificial, não ventilam mais os
ápices pulmonares e contraem tuberculose. Metade dos casos de tuberculose são
de origem psíquica.
Dr. Evans: Quando trabalha com um paciente, o senhor diria que é
essencial que ele recapitule a sua vida passada a fim de o ajudar a tratar a sua
neurose atual, como fez o Dr. Freud, ou acha que pode dominar situacionalmente
o problema desse paciente, sem voltar atrás e sondar as coisas que aconteceram
durante a infância dele?
Dr. Jung: Na psicoterapia não existe um único e exclusivo procedimento. O
paciente é tratado tal como ele é no presente momento, sem levar em conta as
causas e coisas do gênero. Tudo isso é mais ou menos teórico. Por vezes, posso
começar logo equacionando o problema. De qualquer modo, há pacientes que
sabem tanto sobre a sua própria neurose quanto eu próprio posso saber a esse
respeito.
Por exemplo, vejamos o caso de um professor de Filosofia, um homem
muito inteligente, que imaginava ter câncer. Mostrou-me diversas chapas de raios
X que demonstravam a inexistência de câncer. Disse ele:
— É claro que não tenho câncer, mas, apesar disso, estou com medo de
que pudesse ter. Consultei nume-
112
PRÁTICAS DE DIAGNÓSTICO E DE TERAPIA

rosos cirurgiões e todos me garantiram que não tenho; e sei que não tenho, mas
poderia ter.
Está vendo? Isso é o bastante. Um caso como esse pode ser curado de um
momento para o outro, assim que a pessoa doente deixa de pensar em tais coisas
bobas. Mas isso é justamente o que ela não pode fazer.
Num caso desses, eu digo:
— Bem, você sabe perfeitamente que acredita numa tolice. Mas por que é
que se sente forçado a acreditar em semelhante tolice? Que força o leva a
pensar em tal coisa, contra a sua própria e livre vontade? Você sabe que tudo
isso é absurdo.
É como se o paciente estivesse possuído, como se fosse habitado por um
demônio que o faz pensar assim, apesar do fato dele não querer. Então costumo
dizer:
— Você não tem uma resposta para isso; tampouco tenho uma resposta.
O que é que vamos fazer? — E acrescento: — Vejamos, como ponto de partida, o
que é que você costuma sonhar, porque um sonho é uma manifestação do lado
inconsciente.
No caso que estou citando, o nosso filósofo jamais ouvira falar do lado
inconsciente, de modo que tive de lhe explicar a existência do inconsciente; e tive
de lhe explicar também que o sonho é uma manifestação desse inconsciente.
Assim, se conseguíssemos analisar o sonho, talvez obtivéssemos uma idéia
sobre a natureza daquela força que estava destorcendo o seu pensamentoNum
caso como esse, podemos começar logo com a análise dos sonhos e o mesmo é
válido para todos os casos que são algo sérios. Note bem que esse não era um
caso simples, mas, pelo contrário, bem difícil e sério, apesar da simplicidade da
fenomenologia sintomatológica.
Em todos os casos, depois de preliminares tais como anotar a história da
família, toda a análise médica etc., chegamos sempre a esta interrogação: ”O que
e que, no seu inconsciente, provoca distúrbios no que pensa e o impede de
pensar normalmente?” Podemos então começar com a observação do
inconsciente e com o processo cotidiano de analisar os dados produzidos pelo
inconsciente. Depois de ter sido discutido o pri-
113
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

meiro sonho, todo o problema adquire uma nova perspectiva, e ele apresentará
outros sonhos, cada um dos quais terá alguma coisa a acrescentar aos dados
anteriores, até termos um quadro completo. Agora que temos um quadro
completo, se o paciente possuir a necessária energia moral, poderá ser curado.
Em última instância, é estritamente uma questão moral, quer um homem aplique o
que aprendeu, quer não.
Dr. Evans: A sua abordagem íipológica, baseada nos construtos
introversão-extroversão, ajudou-o nesse processo analítico?
Dr. Jung: Sim. Comprovei, no estudo do ”tipo”, que ele fornece uma certa
orientação quanto à natureza pessoal do inconsciente, a qualidade pessoal do
inconsciente num dado caso. Se estudamos um extrovertido, verificamos que o
seu inconsciente tem uma qualidade introvertida. Isso é porque todas as
qualidades extrovertidas são desempenhadas na consciência e as qualidades
introvertidas o são no inconsciente; portanto, o inconsciente possui qualidades
introvertidas. É claro, a composição inversa é igualmente verdadeira. Esse
conhecimento proporcionou-me uma orientação de valor diagnóstico. Ajudou-me a
compreender os meus pacientes. Quando observava o seu tipo consciente, podia
fazer uma idéia das suas atitudes inconscientes.
Ora, o neurótico é tão controlado e influenciado pelo inconsciente quanto
pelo consciente, de modo que pode parecer que é um tipo que, na realidade, não
é um diagnóstico verdadeiro. Em certos casos, é quase impossível distinguir entre
o material consciente e o material inconsciente, porque não podemos afirmar, à
primeira vista, qual é qual. Isso me ajudou a compreender mais os pacientes, em
termos da ênfase freudiana (baseada no passado), assim como nos termos
adlerianos, os quais, como o senhor diz, se interessam mais pela situação atual
do paciente.
No decorrer dos anos, obtive grande quantidade de material empírico sobre
o modo peculiar como interatuam os conteúdos consciente e inconsciente. Pude
fazer isso observando os indivíduos que estavam em tra-
114
PRÁTICAS DE DIAGNÓSTICO E DE TERAPIA

tamento analítico. Há um momento em que se procura integrar os conteúdos


inconscientes na consciência; ou colocamos o paciente que está mantendo uma
definida atitude consciente em confronto com a atitude inconsciente que se está
opondo àquela. Esse processo, evidentemente, perpetua a sua neurose e é como
se outra personalidade, do tipo oposto, estivesse influenciando ou perturbando o
paciente.
Dr. Evans: Portanto, Dr. Jung, o senhor desenvolveu gradualmente, através
das suas tipologias, uma espécie de teoria, uma psicologia de opostos, em que o
consciente revela as qualidades de um tipo e o inconsciente revela as qualidades
do outro tipo num determinado indivíduo. Isso constituiria, pois, um modo muito
importante de o ajudar a analisar e compreender o indivíduo.
Dr. Jung: Sim, de um ponto de vista prático, isso é muito importante para o
diagnóstico. O ponto que eu queria elucidar é que, ao analisar um paciente, cria-
se a expressão de experiências típicas durante o processo terapêutico. Existe
uma espécie de modo típico em que tem lugar a integração da consciência. O
modo corrente é que, através da análise de sonhos, por exemplo, acabamos por
nos familiarizar com o conteúdo do inconsciente.
Para começar, queremos conhecer todo o material pessoal, subjetivo, a
respeito do indivíduo, que espécie de dificuldades o indivíduo encontrou ao
adaptar-se às condições do seu ambiente etc. Ora, pode ser regularmente
observado que, quando se fala com um indivíduo o teste nos proporciona uma
introvisão dos seus interesses, preocupações e emoções íntimos ou, por outras
palavras, nos comunica os seus complexos pessoais, colocamo-nos
gradualmente, quer queiramos, quer não, numa situação de autoridade. Estamos
de posse de todos os itens importantes no desenvolvimento de uma pessoa e
convertemo-nos num ponto de referência, visto que estamos lidando com coisas
que são muito importantes para a pessoa. Lembro-me, por exemplo, de ter
analisado um político americano muito conhecido, o qual me
115
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

contou uma porção de segredos do seu ofício. De súbito, deu um salto e


exclamou:
— Meu Deus, o que foi que fiz! O senhor podia ganhar um milhão de
dólares com o que lhe contei hoje!
Eu respondi:
— Não estou interessado. Pode dormir em paz que não o trairei.
Esquecerei tudo isso em menos de quinze dias.
Como vê, este episódio demonstra que as coisas que as pessoas
comunicam não são, meramente, fatos indiferentes ou detalhes insignificantes.
Quando se toca em algo que é emocionalmente importante, os pacientes
expressam-no de moto próprio. Estão investindo no psicanalista grande valor
emocional, exatamente como se lhe confiassem uma grande soma de dinheiro ou
a administração de seus bens e propriedades; estão inteiramente em nossas
mãos. Com freqüência, escuto coisas que poderiam arruinar essas pessoas,
arruiná-las profunda e permanentemente, coisas que me dariam, se eu tivesse
alguma propensão para a chantagem, um poder ilimitado sobre elas.
O senhor pode perceber, é claro, que esse gênero de situação cria
relações emocionais com o psicanalista e foi a isso que Freud deu o nome de
”transferência”, um problema central na Psicologia Analítica. É como se essas
pessoas nos confiassem toda a sua existência e isso pode exercer efeitos muito
peculiares sobre o indivíduo. Ou este nos odeia por isso ou nos ama; mas nunca
será indiferente. Assim, é promovida uma espécie de relação emocional entre o
paciente e o médico.
Quando um paciente discute semelhante material, o seu conteúdo está
associado a todas as pessoas importantes na vida desse paciente. Ora, as
pessoas mais importantes são, usualmente, o pai e a mãe, quando se remonta à
infância de um paciente. De modo geral, os primeiros conflitos e dificuldades são
com os pais. Assim, quando um paciente nos confia as suas recordações infantis
sobre o pai ou a mãe, ele também vê em nós, no psicanalista, a imagem desse
pai ou dessa mãe. Tenho tido numerosos pacientes masculinos que me chamaram
”Mamãe Jung”, porque transferiram para mim a imagem de suas respectivas
mães, por muito curioso
116
PRÁTICAS DE DIAGNÓSTICO E DE TERAPIA

que isso pareça. Mas isso, evidentemente, nada tem a ver com a personalidade
do psicanalista. Nesse caso, a personalidade do psicanalista é simplesmente
ignorada. Funcionamos agora como se fôssemos a mãe ou o pai... a autoridade
central. É a isso que se chama transferência; é uma projeção. Mas Freud não lhe
cháma exatamente projeção. Chama-lhe transferência, o que é uma alusão a uma
velha e supersticiosa idéia, segundo a qual, se temos uma doença, podemos
transferir essa doença para um animal; ou podemos transferir um pecado para um
bode expiatório, que o leva para o deserto e o faz desaparecer. Assim, os
pacientes transferem-se, na esperança de que eu possa engolir todo aquele
material e digeri-lo por eles. Estou in loco parentis e tenho uma grande
autoridade. Naturalmente, também sou perseguido pelas correspondentes
resistências, por todas as múltiplas reações emocionais que eles têm contra os
pais.
Assim, é essa a estrutura em que temos de trabaihar na primeira fase da
situação analítica, porque o páciente em tais condições não é livre; é um escravo.
Depende realmente do médico como um paciente com a barriga aberta na mesa
de operações. Está nas mãos do cirurgião, para melhor ou para pior, até que a
coisa toda acabe. Isso significa que temos de resolver completamente essa
situação, na esperança de que o páciente chegue a uma condição diferente, na
qual possa ver que não sou seu pai, nem sua mãe, que sou um ser humano
comum. Ora, todos suporiam que tal coisa é possível, que o paciente poderá
chegar mais cedo ou mais tarde a essa introvisão, desde que não seja um idiota
completo, que poderá enxergar que sou apenas um médico e não a figura
emocional de suas fantasias. Contudo, é muito freqüente que isso não ocorra.
Tive certa vez um caso que envolvia uma mulher jovem e inteligente, uma
estudante de Filosofia que tinha um espírito muito lúcido. Eu acreditaria
facilmente que ela era capaz de se aperceber de que eu não era a sua autoridade
parental; mas, para minha decepção, ela foi profundamente incapaz de sair dessa
falsa crença. Em semelhantes casos, podemos sempre recorrer aos sonhos.
Através do consciente, ela diz: ”É claro, sei
117
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

que o senhor não é meu pai, mas sinto desse jeito. É como se fosse o meu pai;
dependo inteiramente do senhor.” Então eu digo: ”Bem, veremos agora o que o
inconsciente diz.” A partir desse ponto, trabalhamos arduamente na análise dos
seus sonhos e começo a ver que o inconsciente está produzindo um sonho em
que assumo um papel muito curioso.
Nos seus sonhos, ela é como uma criança pequena, sentada nos meus
joelhos e eu a seguro nos braços. Converti-me num pai muito terno para a menina
pequena. Cada vez mais os seus sonhos se tornam empáticos a esse respeito; a
saber, tornei-me uma espécie de gigante e ela é uma criaturinha humana muito
pequena e frágil, que se entrega confiante nas mãos de um ser descomunal.
Ocorre então o sonho final da série. Nesse sonho, eu estava em pleno seio da
natureza, no meio de uma seara de trigo, uma enorme seara pronta para a
colheita. Eu era um gigante e segurava-a em meus braços como um bebê,
enquanto o vento, soprando forte, varria todo o trigal. Ora, como o senhor sabe,
quando o vento está soprando numa seara, o trigo ondula; e, ao sabor dessa
ondulação, eu balançava, balançava, até que ela adormeceu. Ela sentia estar nos
braços de um deus, da ”Deidade”. Pensei: ”Agora que a seara está madura, devo
dizer-lhe”, de modo que lhe disse: ”Precisa compreender o que é que quer e está
projetando em mim, inconscientemente: você está sentindo, sem ter consciência
disso, a influência de uma deidade que não ”possui” o seu consciente; por isso
está vendo-a em mim.” Isso foi como que um estalo, porque ela tinha uma
educação religiosa bastante intensa, o que a habilitou a compreender. Claro, tudo
isso se desvaneceu mais tarde e algo desapareceu do seu mundo. O mundo
tornou-se meramente pessoal para ela e uma questão de consciência imediata.
Aquela concepção religiosa do mundo deixou de existir para ela, evidentemente.
Isso faz sentido, é claro, porque a idéia de uma deidade não é uma idéia
intelectual. É um arquétipo, uma idéia arquetípíca, que se apossa do nosso
inconsciente; e logo que ela pôde compreender isso conscientemente, o arquétipo
deixou de poder controlá-la.
118
PRÁTICAS DE DIAGNÓSTICO E DE TERAPIA
Com esse ou outro nome, encontramos praticamente em toda parte esse
gênero de imagem arquetípica. Mesmo quando se manifesta na forma de ”maná”,
possui um extraordinário efeito ou qualidade onipotente; não interessa se é
pessoal ou não. No caso dessa moça, ela tornou-se subitamente cônscia de uma
imagem inteiramente paga, uma imagem que promanava diretamente do
arquétipo. Ela não tinha idéia de um Deus cristão, ou de um Jeová do Antigo
Testamento, mas de um Deus pagão — um Deus da Natureza, um Deus da
Vegetação. Ele era o próprio trigo. Era o espírito do trigo, o espírito do vento; e
ela estava nos braços desse Pneuma. Eis a experiência viva, existencial, de um
arquétipo.
Quando a moça acabou por Compreender o que lhe estava acontecendo,
isso causou uma tremenda impressão nela. Viu o que realmente lhe estava
fazendo falta, aquele valor ausente que estava projetando em mim, fazendo com
que eu lhe fosse indispensável. Depois, apercebeu-se de que eu não era
indispensável, porque, como diz o sonho, ela está nos braços da idéia
arquetípica. Isso é uma experiência de ordem pnêumica e o que as pessoas
procuram, uma experiência arquetípica que é, em si mesma, um valor
incorruptível.
Enquanto não tiverem essa experiência e a entenderem, dependem de
outras condições; dependem de seus desejos, de suas ambições. Dependem de
outras pesoas, porque não possuem valores em si mesmas. São apenas racionais
e não estão na posse de um tesouro que as tornaria independentes. Ora, quando
essa moça pôde ter essa experiência, deixou de ter que depender. O valor passou
a ser parte integrante dela própria. Tinha sido libertada e estava agora completa.
Na medida em que pôde realizar essa experiência pnêumica, ficou apta e
continuará estando apta a desempenhar o seu papel, a seguir o seu caminho — o
da sua própria individuação. A glande só pode vir a ser um carvalho, e nunca um
burro. A natureza seguirá o seu curso. Um homem ou mulher torna-se aquilo que
ele ou ela é desde o princípio. Vi uma quantidade inumerável de tais casos, como
aquele que acabei de citar.
119
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

Dr. Evans: Como é que os sonhos e fantasias do paciente intervém no


processo?
Dr. Jung: Escrevi um livro sobre esses sonhos, como o senhor sabe; uma
introdução à psicologia do inconsciente. * Nessa época, o meu material
empírico era principalmente formado pela observação de lunáticos, casos de
esquizofrenia, e eu tinha observado que, principalmente no começo de uma
doença, dá-se uma invasão de fantasias na vida consciente, fantasias de um
gênero inteiramente inesperado e que, para o doente, são sumamente
perturbadoras. Ele fica muito confuso com essas idéias e entra numa espécie de
pânico, visto que nunca pensara antes em tais coisas. Elas são muito estranhas
tanto para ele como para o seu médico. Entretanto, o psicanalista fica igualmente
perplexo diante do caráter peculiar dessas fantasias. Alguns dizem: ”Esse
homem é louco. É louco por pensar tais coisas; ninguém pensa semelhantes
coisas”. E o paciente concorda, o que o lança num estado de ainda mais pânico.
Assim, como psicanalista, pensei que a tarefa da Psiquiatria consistia, realmente,
em elucidar aquilo que tinha irrompido no consciente, as vozes e os delírios, as
falsas crenças. Nesses tempos... refiro-me a quarenta ou cinqüenta anos
passados, é bom que se diga... eu não tinha esperança alguma de poder tratar
desses casos ou de ser capaz de curá-los, mas tinha uma enorme curiosidade
científica, que me fazia querer conhecer a verdadeira natureza dessas coisas.
Eu pressentia que esses fenômenos tinham um sistema próprio, que não eram,
meramente, um material caótico e deteriorado, porquanto observava grande
coerência em todas essas fantasias.
Isso me levou a começar a estudar casos de doenças psicogênicas, como
a histeria, o sonambulismo e

* Jung refere-se a Uber die Psicologie dês Unbewussten. cuja primeira edição data de 1917, com
outro título O título acima só foi adotado a partir da 5* edição (1942). Existe uma tradução
portuguesa: Acerca da Psicologia do Inconsciente, EdHora Delfos, Lisboa, 1967, trad. de Ingrid
Bauner Trindade. (N. do T.)
120
PRÁTICAS DE DIAGNÓSTICO E DE TERAPIA

outras, em que o conteúdo que fluía do inconsciente se manifestava em


condições legíveis e era suscetível de ser interpretado e compreendido. Então,
apercebi-me de que, em contraste com os esquizofrênicos, os conteúdos mentais
eram elaborados, dramáticos, sugestivos e insínuantes. habilitando a pessoa a
construir uma sequnda personalidade. Ora, não é esse o caso da esquizofrenia
Nesta, pelo contrário, as fantasias são anárquicas, assistemáticas e caóticas, de
modo que é impossível formar uma segunda personalidade. Os casos são de uma
natureza extremamente complicada. Eu precisava de um tipo mais simples, ou
mais compreensível, para estudar
Um velho professor de Psicologia e Filosofia da Universidade de Genebra
publicou um caso a respeito de uma moça americana, no qual descreveu as suas
fantasias meio poéticas, meio românticas. Publicou esse material sem
comentários, dando-o como exemplo de imaginação criadora. Ora, quando li
essas fantasias, percebi ser esse, exatamente, o gênero de material de que eu
precisava. Eu estava sempre um tanto receoso de falar sobre as minhas
experiências pessoais com os pacientes, porque achava que as pessoas
poderiam pensar que havia uma excessiva dose de sugestão envolvida; mas,
como não tivera participação alguma nesse caso, não poderia ser acusado de ter
influenciado a paciente. Foi essa a razão por que analisei essas fantasias. O caso
tornou-se objeto de um livro completo, a que dei o título de A Psicologia do
Inconsciente. Procedi à sua revisão quarenta anos depois e intitula-se agora
Simbolismos de Transformação (16).
Em A Psicologia do Inconsciente (16), tentei demonstrar que existe uma
espécie de inconsciente que produz, claramente, coisas que são históricas e não
pessoais. Nessa época, chamei-lhe simplesmente ”o inconsciente”, não fazendo
qualquer distinção entre os dois tipos envolvidos. Utilizando as fantasias da moça
americana, tentei, pela primeira vez, apresentar um quadro do funcionamento do
inconsciente, um funcionamento que apontava para certas conclusões, quanto à
natureza do inconsciente.
Escrever esse livro custou-me a minha amizade com Freud, porque ele não
pôde aceitá-lo. Para Freud, o in-
121
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

consciente era um produto do consciente; o inconsciente continha, meramente, os


resíduos da consciência; quer dizer, ele via o inconsciente como uma espécie de
porão onde eram empilhadas e deixadas todas as coisas que eram rejeitadas ou
descartadas da consciência. Por outras palavras, aceitei a existência do
inconsciente como um fato real, um fator autônomo que era capaz de ação
independente.
Na minha opinião, isso era um problema psicológico de primeiríssima
ordem e dediquei-me furiosamente a pensar nele, visto que toda a Filosofia,
mesmo até hoje, ainda não reconheceu o fato de que temos um contrafator em
nosso inconsciente. Ainda não foi reconhecido que existem em nossa psique dois
fatores, dois fatores independentes, um representado pelo consciente e o outro,
igualmente importante, representado pelo inconsciente. E o inconsciente pode
interferir no consciente toda e qualquer vez que lhe apeteça. Então eu disse para
mim próprio: ”Isso é muito incômodo. Acredito que sou o único dono em minha
casa, mas, na realidade, tenho de admitir que existe outro dono, alguém que na
minha casa é capaz de me pregar peças.” Tenho de lidar diariamente com
pacientes que são as infelizes vítimas dessa interferência.
Recordo, por exemplo, um caso que envolvia um jovem, um moço muito
racional. Ele tinha uma porção de problemas pessoais, mas, finalmente,
ampliaram-se de tal forma que o jovem viu-se envolvido em relações muito
desagradáveis com todas as pessoas que o cercavam. Era um membro da
sociedade, mas estava nas piores telações com as outras pessoas da sociedade.
Realmente, era uma situação muito chocante e constrangedora. Ele começou a
ter sonhos coletivos que me relatava. De súbito, sonhou coisas em que nunca
pensara a vida inteira, motivos mitológicos, e pensou que estava ficando louco,
pois era incapaz de compreender o que lhe acontecia. Era como se o mundo se
tivesse repentinamente transformado. Observamos esse mesmo processo num
caso de esquizofrenia, mas, no tocante a esse paciente, não se tratava de
esquizofrenia. No seu caso, os sonhos coletivos estavam expressando os temas
ou padrões mitológicos que havia no seu inconsciente.
122
PRÁTICAS DE DIAGNÓSTICO E DE TERAPIA

Há numerosos exemplos disso nos sonhos coletivos que publiquei. Para


deixar este ponto bem claro, vou contar uma longa história. O senhor poderá
então ver como o sonho coletivo se ajusta a casos como o que citei acima. Já
mencionei o caso de uma jovem intuitiva que, de súbito, declarou ter uma cobra
preta na barriga. Bom, isso é um exemplo de um símbolo coletivo. Não é uma
fantasia individual; é uma fantasia coletiva. Essa fantasia é muito conhecida na
Índia. Ora, no começo, até pensei que ela pudesse estar louca, visto que, por
todas as considerações de ordem externa, ela não tinha mais ligações com a
índia do que eu. Mas, é claro, todos nós somos semelhantes em, pelo menos, um
aspecto: todos somos humanos. Essa moça era intuitiva e estava orientada para
um modo ”integral” de pensar, isto é, pensava sempre num contexto de totalidade
ou integralidade, um modo de pensar que é conhecido e característico na Índia.
Constitui a base de todo um sistema filosófico, o tantarismo, e esse sistema tem
como seu símbolo Kucariní, a serpente. Isso só é conhecido de alguns
especialistas; de um modo geral, desconhece-se que temos uma serpente no
abdome. bom, isso é um sonho coletivo ou uma fantasia coletiva.
Dr. Evans: Quando o indivíduo avança, dia a dia, ao longo da vida, é
possível que as coisas que o perturbam e lhe causam tensão o levem à
repressão?
Dr. Jung: Ele não reprime sempre de um modo consciente. Essas coisas
desaparecem, e Freud explica isso através da repressão ativa. Mas podemos
provar que essas coisas nunca foram antes conscientes. Simplesmente, elas não
aparecem, e não sabemos por que é que não aparecem. É claro, quando se
manifestam mais tarde, é possível dar a explicação de que não apareceram antes
porque estavam em discordância ou eram incompatíveis com as concepções e
atitudes conscientes do paciente. Mas é depois que podemos dizer isso; não
fomos capazes de prevê-lo.
Assim, como vê, essas coisas que têm uma certa carga emocional são
parcialmente autônomas. Podem aparecer ou não aparecer. Podem desaparecer
quando
123
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

desejam, não pela vontade do sujeito, mas delas próprias; e também podemos
reprimi-las. O mesmo ocorre com as projeções. Por exemplo, as pessoas dizem:
”Fulano faz projeções”. Isso é absurdo. Ninguém faz projeções; encontra-as. Elas
já estão aí, já existem no inconsciente. Tudo o que se pode fazer é descobri las. E
assim, esses desaparecimentos, ou as chamadas repressões, são como as
projeções. Sem que tenhamos interferência alciuma nisso, elas já estão no
inconsciente e dele fazem parte. Há casos, certamente, em que o consciente
intervém, mas posso afirmar que a grande maioria dos casos é inconsciente. Esse
foi, aliás o meu primeiro ponto de divergência com Freud. Eu tinha visto nos
experimentos de associação que certos complexos não são reprimidos, em
absoluto. Simplesmente, não aparecem. Isso é porque o inconsciente é real; é
uma entidade; funciona por si mesmo; é autônomo.
Dr. Evans: Assim, num certo sentido, considerando os chamados
mecanismos de defesa, projeção, racionalização etc., o senhor diverge do ponto
de vista psicanalítico ortodoxo, na medida em que não aceita que eles se
desenvolvam como um meio de proteger o Ego. Pelo contrário, o senhor diria que
eles já estão af como manifestações de padrões que já se encontram presentes
no inconsciente.
Dr. Jung: Exato. Veja, por exemplo, o caso da serpente. Isso nunca tinha
sido reprimido, pois que, caso contrário, teria sido consciente para a moça. Mas,
pelo contrário, era inconsciente nela e somente apareceu em suas fantasias.
Surgiu espontaneamente. Ela ignorava como isso tinha aparecido. Ela dizia:
”Bem, eu a vi.”
Dr. Evans: Alguns psicanalistas ortodoxos teriam dito: ”Isso é um
símbolo fálico.”
Dr. Jung: Cada um pode dizer o que muito bem quiser. Um poderá dizer
que o campanário de uma igreja é um símbolo fálico, mas, nesse caso, quando
alguém sonha com um pênis, isso é símbolo de quê? O
124
PRÁTICAS DE DIAGNÓSTICO E DE TERAPIA

senhor sabe o que disse um dos ortodoxos um dos psicanalistas da velha


guarda? A explicação dele para essa pergunta foi que, nesse caso, a censura não
funcionou. O senhor chama a isso uma explicação científica?

125
9
Jung sobre os Problemas Psicológicos Contemporâneos

Dr. Evans: O senhor está certamente familiarizado com a obra do Dr. J. B.


Rhine, da Universidade Duke. Uma parte do seu trabalho sobre percepção extra-
sensorial e clarividência, ou telepatia mental, parece-se muito com as pesquisas
sobre a função intuitiva, uma fase de sua própria obra que já discutimos. Por
exemplo, o senhor diria que uma pessoa dotada de clarividência é um tipo
intuitivo, dentro do seu quadro de referência?
Dr. Jung: É muito provável. Ou pode ser um tipo sensitivo, digamos, um
extrovertido sensitivo, o qual é muito influenciado pelo inconsciente. Ele é
dotado de uma intuição introvertida no inconsciente.
Dr. Evans: Dr. Jung, o senhor fala de funções racionais e irracionais, sendo
o pensamento e o sentimento racionais, a percepção e a intuição irracionais.
Importar-se-ia de explicar mais detalhadamente essa concepção? ”
Dr. Jung: Como o senhor disse, há dois grupos: o grupo racional e o grupo
irracional. O primeiro consiste em duas funções, pensar e sentir. O ideal do
pensamento é um resultado racional e o ideal do sentimento também é um
resultado racional. Defendem valores racionais. A isso chamo o pensamento
diferenciado.
O grupo irracional é composto de sensação, isto é, a percepção sensorial,
e a intuição. A sensação funciona de tal modo que não pode prejudicar os fatos;
não prejudicará os fatos. Para o tipo sensitivo, a per-
126 ’
PROBLEMAS PSICOLÓGICOS CONTEMPORÂNEOS

cepção ideal consiste em ter uma percepção aguda das coisas, tal como são, sem
adições ou correções. Por outro lado, a intuição não vê as coisas como são. Isso
é vedado à intuição. Esta vê rápida e superficialmente as coisas, tal como são, e
trata logo, por um processo inconsciente, de enxergar coisas que ninguém mais
verá.
Dr. Evans: Assim, em termos da pessoa que é clarividente...
Dr. Jung: Aquelas pessoas que obtêm os melhores resultados são sempre
as introvertidas, em que a intuição introvertida intervém. Mas isso é um aspecto
subsidiário que não se reveste de grande interesse.
A outra questão é muito mais interessante, no que diz respeito aos termos
que eles usam. O próprio Rhine os emprega: reconhecimento, telepatia etc. Eles
nada significam. São palavras, mas ele julga que disse alguma coisa quando diz
”telepatia”.
Dr. Evans: A palavra, em si, não é uma descrição do processo.
Dr. Jung: Nada significa, absolutamente nada.
Dr. Evans: Naturalmente, muitas coisas que o senhor esteve descrevendo
são, na opinião de alguns cientistas, devidas ao acaso, a ocorrências fortuitas e
fatores ocasionais. Eles insistem nisso e, em sua própria obra, Rhine usou os
métodos da análise estatística de probabilidades. Relata ele, em seus estudos,
que essas ocorrências se registram mais freqüentemente do que se poderia
esperar como efeito do acaso.
Dr. Jung: Bem, ele prova que é mais do que o acaso; prova que é
estatisticamente plausível. Esse é o ponto importante que não pôde ser
contraditado.
Alguns trabalhos experimentais realizados na Inglaterra resultaram na
acusação: ”Oh, Rhine, isso não passa de conjetura.” E é exatamente verdadeiro;
é apenas conjetura. Entretanto, uma intuição é uma conjetura, mas uma conjetura
definida. Tudo isso, realmente, nada quer dizer.
127
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

O ponto é que há mais do que uma mera probabilidade; está para além do
acaso. Esse é que é o ponto essencial. Mas, como o senhor sabe, as pessoas
detestam os problemas que não podem tratar concretamente. De fato, o próprio
Rhme não entende com que freqüência os fenômenos extra-sensoriais realmente
ocorrem, porque isso é uma revelação proibida nesses recintos sagrados, uma
revelação de tempo e espaço através da psique. Esse é o fato; foi o que Rhme
tornou evidente, mas fazer com que os cientistas digam: ”Essa eu engulo”, aí é
que está a dificuldade.
Dr. Evans: Poderíamos avançar um pouco mais, a propósito de algumas de
suas obras recentes nessa área, que muitos consideram extremamente
profundas, mas não são muito conhecidas entre a maioria dos nossos estudantes.
Dr. Jung: Claro que não. No grande público, ninguém lê realmente essas
coisas. Mas pelo menos meus livros são vendidos.
Dr. Evans: Para ser mais específico, estou-me referindo a um conceito, a
smcronicidade, que o senhor já discutiu e que me parece ser pertinente neste
ponto da nossa conversa. Importar-se-ia de discorrer sobre a sincronicidade?
Dr. Jung: Isso é terrivelmente complicado. Nem sei por onde começar. É
claro, essa maneira de pensar principiou há muito tempo e, quando Rhine
divulgou os seus resultados, eu pensei: ”Agora temos, pelo menos, uma base
razoavelmente fidedigna para discussão.” Mas a discussão não foi compreendida
porque é, realmente, muito difícil.
Quando observamos o inconsciente, encontramos numerosos casos que
apresentam um tipo muito especial de eventos paralelos. Por exemplo, tenho um
certo pensamento sobre um determinado assunto definido que ocupa a minha
atenção e o meu interesse; e, ao mesmo tempo, outra coisa acontece, de modo
inteiramente independente, que retrata com exatidão esse pensamento.
128
PROBLEMAS PSICOLÓGICOS CONTEMPORÂNEOS

Isso é um rematado absurdo, se o encararmos de um ponto de vista causal.


Entretanto, que existe algo mais que não é inteiramente absurdo foi evidenciado
pelos resultados dos experimentos de Rhine. Existe uma probabilidade; não é
apenas por acaso que tal coisa ocorre.
Nunca fiz experimentos estatísticos semelhantes aos de Rhine, exceto uma
vez. Realizei-o com outra finalidade. Mas deparei com numerosos casos em que
era verdadeiramente surpreendente descobrir que duas cadeias causais
aconteciam ao mesmo tempo, mas independentes uma da outra, de tal modo que
poderia ser afirmado que não tinham qualquer relação mútua. É realmente muito
claro. Por exemplo, falo de um carro vermelho e, no mesmo momento, um carro
vermelho aparece aqui. Ora, eu não tinha visto o carro vermelho porque era
impossível; ele estava tapado por um edifício até ao momento em que, de súbito,
apareceu. Ora, muitos diriam que isso é um exemplo de mero acaso, mas o
experimento de Rhine prova que esses casos não são fortuitos.
Ora, seria supersticioso e falso dizer: ”Este carro apareceu aqui porque
foram feitos alguns comentários a respeito de um carro vermelho; o carro
vermelho apa receu por milagre.” Ora, não se trata de milagre; é apenas acaso...
mas esses acasos acontecem mais freqüentemente do que o acaso permite. Isso
mostra que há alguma coisa por trás disso.
Rhine dispõe de todo um instituto, muitos colaboradores, e não lhe faltam
recursos. Não dispomos aqui dos meios para fazer tais experimentos; caso
contrário, é provável que os fizéssemos. Aqui é fisicamente impossível, de modo
que tenho de me contentar com a observação de fatos!
Dr. Evans: Uma área interessante que está sendo muito discutida nos
Estados Unidos, hoje em dia, e estou certo de que também será de seu interesse,
diz respeito à Medicina Psicossomática, uma área que investiga como os
componentes emocionais da personalidade podem afetar as funções do corpo.
129
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

Dr. Jung: A título de exemplo disso, vi muitas e surpreendentes curas


de tuberculose — tuberculoses crônica — efetuadas por psicanalistas; as
pessoas aprendem de novo a respirar. A compreensão da natureza dos seus
complexos foi o que ajudou essas pessoas.
Dr. Evans: Quando foi que começou a se interessar pelos fatores
psíquicos da tuberculose? Há muitos anos?
Dr. Jung:: Para começar, eu era um psicanalista; era natural que
estivesse sempre interessado. Talvez também pelo fato de compreender tão
pouco esses fatores ou, o que é mais importante, ter percebido que intendia tão
pouco.
Dr. Evans: Para ampliar a minha pergunta anterior, estamos ficando agora
cada vez mais interessados, nos Estados Unidos, em averiguar como os fatores,
emocionais, inconscientes, da personalidade podem ter realmente, um efeito
sobre o corpo. É claro, o exemplo clássico na literatura é a úlcera gástrica.
Acredita-se que é um caso em que os fatores emocionais criaram realmente, uma
patologia.
Éssas idéias estenderam-se a muitas outras áreas. Acha-se; por exemplo,
que onde já existe uma patologia esses fatores emocionais podem intensificá-la.
Ou, por vezes há sintomas ou temores a respeito de uma doença, sem que exista
uma verdadeira patologia, como nos casos de histeria ou hipocondria. Por
exemplo, muitos médicos na América dizem que 60 a 70% dos seus pacientes
não têm realmente qualquer anomalia somática, cientes (O contrário, sofrem de
perturbações de origem psicossomática.
Dr. Jung: Sim, isso é muito conhecido... há mais de cinqüenta anos. A
questão é como curá-los.
Dr. Evans: Falando de tais distúrbios psicossomáticos, como exemplo, as
suas experiências e estudo sobre a tuberculose, o senhor tem alguma idéia
130
PROBLEMAS PSICOLÓGICOS CONTEMPORÂNEOS

a respeito do que pode levar um paciente a selecionar esse tipo de sintomas?


Dr. Jung: Ele não seleciona os sintomas; estes acontecem-lhe. Seria o
mesmo que perguntar a alguém que está sendo devorado por um jacaré: ”Por que
foi que você escolheu esse jacaré?” É absurdo, foi o jacaré quem escolheu a sua
vítima.
Dr. Evans: É claro, ”escolher” refere-se, nesse sentido, a um processo
inconsciente.
Dr. Jung: Não, nem mesmo inconscientemente. É um extraordinário
exagero da importância do sujeito dizer que ele estava escolhendo tais coisas.
Elas acontecem-lhe.
Dr. Evans: Talvez uma das sugestões mais radicais, na área da Medicina
Psicossomática, tenha sido a de que algumas formas de câncer podem ter
componentes psicossomáticos como fatores causais. Isso o surpreende?
Dr. Jung: Não, em absoluto. Sei disso há muito tempo.
Há cinqüenta anos já lidávamos com casos desses: úlcera gástrica,
tuberculose, artrite crônica, doenças de pele. Sob certas condições, são todos
psicogênicos.
Dr. Evans: Mesmo o câncer?
Dr. Jung: Bem, eu não poderia jurar, mas o certo é que tenho visto casos
em que pensei ou fiquei réfletindo se não haveria uma razão psicogênica para
essa doença. Ela surgiu de um modo bastante conveniente.
Muitas coisas podem ser descobertas a respeito do câncer, tenho a
certeza. Sempre nos perguntamos como tratá-lo, pois qualquer doença possível
tem sempre um acompanhamento psicológico. Tudo depende... talvez ; a
própria vida dependa... de tratarmos um paciente, psicologicamente, da
maneira adequada ou não. Isso
131
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

pode ajudar imensamente, mesmo que não possamos provar que a doença é,
em si mesma, psicogênica.
Num dado momento, a pessoa pode ter uma doença infecciosa, isto é, um
achaque ou crise de natureza física, por ser particularmente vulnerável a
infecções... ou talvez, por vezes, por causa de uma atitude psicológica. A angina é
uma doença psicológica típica; entretanto, não é psicológica em suas
conseqüências físicas. É apenas uma intecção. Então, o senhor perguntará: ”E o
que é que, nesse caso, a Psicologia tem a ver com isso?” Porque talvez tenha
sido um determinado momento psicológico que permitiu à infecção que se
desenvolvesse. Quando a doença se instalou, vieram as febres e se formou um
abscesso, não se pode curá-la pela Psicologia. Mas é muito possível que se
possa evitá-la mediante uma ^atitude psicológica apropriada,
Dr. Evans: Quer dizer, portanto, que todo esse interesse atual pela
Medicina Psicossomática é história antiga para o senhor, Dr. Jung?
Dr. Jung: Tudo isso já é conhecido aqui há muito tempo.
Dr. Evans: E não esta surpreendido, em absoluto, pelos novos avanços...
Dr. Jung: Não. Por exemplo, temos o aspecto tóxico da esquizofrenia.
Publiquei um trabalho a esse respeito há cinqüenta anos... justamente há
cinqüenta anos... e agora todo mundo o descobre. Vocês estão muito adiantados,
na América, em assuntos tecnológicos, mas em questões psicológicas estão
cinqüenta anos atrasados. Simplesmente, não entendem; é um fato. Não pretendo
figurar numa declaração geral de reabilitação, mas, simplesmente, vocês ainda
não estão cônscios da realidade. Existem muitas mais coisas, sobre as quais as
pessoas não fazem sequer uma idéia. Conteilhe o caso daquele teólogo que nem
sabia o que era o inconsciente; ele supunha que era uma aparição. Todos os que
dizem que sou um místico não passam de idiotas. Eles não compreendem,
simplesmente, a primeira palavra da Psicologia.
132
PROBLEMAS PSICOLÓGICOS

Dr. Evans: Nada há de místico, certamente, nas declarações que o


senhor- acaba de fazer. Para dar prosseguimento à nossa conversa outro
desenvolvimento que se enquadra em toda esta discussão sobre Medicina
Psicossomática é o uso de drogas para tratar de problemas psicológicos.
Historicanente, é claro drogas têm sido usadas por muitta gente para tentar
esquecer suas dificuldades, aliviar dores etc. Contudo, um desenvolvimento
específico foi o das chamadas drogas tranqüilizantes que não viciam. Tais
drogas ganharam destaque na França com a clorpromazina. Seguiram-se
drogas tais como a reserpina-serpentina e uma grande variedade de sedativos e
tranqüilizantes mais modernos, conhecidos por nomes comerciais Como Valium,
Equinal etc. Estão sendo atualmente ministrados livremente aos pacientes
pelos clínicos gerais e nos hospitais. Por outras palavras, não só os
tranqüilizantes mais são ministrados a pacientes mentalmente enfermos, como
os esquizofrênicos, mas hoje, em grande escala, essas drogas estão sendo
fornecidas quase tão livremente .e quanto a aspirina para reduzir tensões
cotidianas.
Dr. Jung: Essa prática é muito perigosa.
Dr. Evans: Porque a considera perigosa? Supõe-se que essas drogas não
viciarn.
Dr. Jung: É idêntica à compulsão causada pela morfina e a heroína.
Converte-se num hábito. A Pessoa não sabe o que faz quando usa tais drogas.;
É como o abuso de narcóticos.
Dr. Evans: Mas o argumento é que elas não se transformam em hábito; não
criam uma dependência fisiológica.
Dr. Jung: Oh, sim, isso é o que dizem.
Dr. Evans: Mas o senhor acha que, psicologicamente elas viciam, apesar
de tudo?
Dr. Jung: Acredito que sim. Por exemplo, há muitas drogas que não
se transformam em háb’tos,
133
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

o gênero de hábitos criado pela morfina; no entanto, tornam-se uma espécie


diferente de hábito, um hábito físico, e este é tão nocivo quanto qualquer outro.
Dr. Evans: O senhor teve realmente quaisquer pacientes ou manteve
contato com indivíduos que tomassem essas drogas, os tranqüilizantes?
Dr. Jung: Não posso dizer. Entre nós, por enquanto, ainda há muito pouco
disso. Na América, abundam todos esses pós e comprimidos. Felizmente, ainda
não chegamos aqui a esse ponto. A vida americana é, de uma forma sutil, tão
desequilibrada e tão desenraizada, que vocês precisam ter alguma coisa com que
compensar as carências na verdadeira natureza do homem. Têm de apaziguar o
inconsciente o tempo todo, porque ele está no mais completo tumulto, na mais
profunda desordem. A mais ligeira provocação, vocês têm logo uma grande
rebelião moral na América. Vejam a rebelião da juventude de hoje, na América, e a
rebelião sexual, e tudo o mais a que assistimos. Essas revoltas ocorrem porque o
homem real, o homem natural, está em rebelião aberta contra a forma
profundamente desumana da vida americana. De certo modo, os americanos
estão completamente divorciados da natureza, e isso explica o abuso de drogas.
Dr. Evans: Mas o que nos diz sobre o tratamento de Indivíduos portadores
de grave doença mental? Temos o problema dos pacientes psicóticos
hospitalizados. Por exemplo, certos esquizofrênicos são de tal modo retraídos,
ensimesmados, que ó virtualmente impossível fnteratuar com eles em bases
psicoterápicas; por isso é que, em muitos hospitais dos Estados Unidos, têm sido
empregadas drogas como a clorpromazina, a fim de tornar esses pacientes mais
acessíveis à psicoterapia. Não creio que a maioria dos nossos méd’cos e
psicoterapeutas acredite que as drogas, por si mesmas, curem os pacientes, mas,
pelo menos, fazem com que os pacientes se tornem mais acessíveis a uma
psicoterapia.
134
PROBLEMAS PSICOLÓGICOS CONTEMPORÂNEOS

Dr. Jung: Sim, a única questão é se tal acessibilidade é algo real ou


apenas foi induzida pela droga. Estou certo de que qualquer espécie de
tratamento sugestivo terá efeito, porque essas pessoas tornam-se, simplesmente,
sugestionáveis. Qualquer droga ou choque causado na mente faz baixar a
capacidade de resistência, tornando essas pessoas acessíveis à sugestão.
Portanto, é claro, elas poderão ser conduzidas, poderão ser levadas a fazer o que
se quiser, mas não é um resultado muito satisfatório.
Dr. Evans: Para mudar de assunto, por um momento, Professor Jung. Sei
que os nossos estudantes estão interessados em sua opinião sobre a formação e
o adestramento que um psicólogo, uma pessoa que quer estudar o indivíduo,
deve ter. Por exemplo, há os que afirmam que ele deve ser treinado,
principalmente, como um rigoroso cientista, dominando instrumentos tais como a
estatística e a construção de modelos experimentais. Entretanto, outros acham
que o estudo das Humanidades também é importante para o estudante que quer
estudar o indivíduo.
Dr. Jung: Bem, é claro, quando se estuda Psicologia Humana, é impossível
deixar de perceber que a psicologia do tiomem não consiste apenas nas
ramificações do instinto em seu- comportamento. Há outras determinantes, muitas
outras, e o estudo do homem somente^ através do seu aspecto biológico é, de
longe, insuficiente. Para compreender a Psicologia Humana é absolutamente
necessário que se estude também o homem em seu ambiente social e geral.
Teremos de considerar, por exemplo, o fato de que existem diferentes espécies de
sociedades, diferentes espécies de nações, diferentes tradições; e, no interesse
dessa finalidade, é indispensável que se trate o problema da psique humana de
muitos ângulos. Cada um é, naturalmente, uma tarefa considerável.
Assim, depois dos meus experimentos de associação, quando me apercebi
de que existia, obviamente, um inconsciente, a interrogação seguinte foi: ”bom, e
agora o que é esse inconsciente? Consiste meramente
135
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

nos resíduos de atividades conscientes ou existem coisas que são eternamente


inconscientes? Por outras palavras, o inconsciente é um fator em si mesmo?” E
logo cheguei à conclusão de que o inconsciente deve ser um fator em si mesmo.
Observei repetidamente, quando explorava os sonhos de pessoas ou as fantasias
e delírios de pacientes esquizofrênicos, que eles continham motivos que não
podiam, de forma alguma, ter sido adquiridos em seu meio ambiente. Isso, é
claro, depende da convicção de que a criança não nasce como tabula rasa, mas,
pelo contrário, como uma combinação definida de genes; e, embora os genes
pareçam conter, principalmente, fatores dinâmicos e predisposições para certos
tipos de comportamento, eles têm também uma tremenda importância para a
organização da psique. Pelo menos, tal como essa organização se manifesta.
Antes de podermos ver a psique, é impossível estudá-la, mas, uma vez que se
manifeste, podemos ver que possui certas qualidades e um determinado caráter.
Ora, a explicação disso deve, necessariamente, depender de elementos inatos na
criança; os fatores determinantes do comportamento humano nascem com a
criança e condicionam o seu desenvolvimento subseqüente. Ora, isso é um
aspecto do quadro.
O outro aspecto do quadro é que o Indivíduo vive em relação constante
com outros indivíduos, em certos meios definidos que Influenciarão a combinação
inata de qualidades. E isso constitui também um fator muito complicado, porque
as influências do ambiente não são meramente pessoais. Existem numerosos
fatores objetivos. As condições sociais, de um modo geral, leis, crenças, maneiras
de encarar as coisas, de tratar das coisas; nada disso tem um caráter arbitrário.
São fatores históricos. Existem razões históricas para que as coisas sejam como
são. Existem razões históricas para as Qualidades da psique e a história da
evolução do homem em eras passadas mostra, como uma combinação, que a
verdadeira compreensão da psique deve consistir na elucidação da história da
raça humana — a história mental por exemplo, tanto auanto os dados puramente
biológicos. Quando escrevi o meu primeiro livro sobre a psicologia do
inconsciente, eu já tinha for-
136
PROBLEMAS PSICOLÓGICOS CONTEMPORÂNEOS

mado uma certa idéia quanto à natureza do inconsciente. Para mim, era então o
remanescente vivo da história original do homem, do homem vivendo em seu
meio. É um quadro deveras complicado.
Assim, como vê, o homem não está completo quando vive num mundo de
verdade estatística. Ele deve viver num mundo em que a ”totalidade” do homem, a
sua história inteira, é o que constitui o interesse fundamental; e essa totalidade
não nos é dada por meras estatísticas. É a expressão do que o homem realmente
é e do que sente ser.
O cientista está sempre procurando uma média. A nossa ciência natural
converte tudo em média, reduz tudo a média; contudo, a verdade é que os
portadores da vida são indivíduos, não números ou quantidades médias. Quando
tudo é estatístico, todas as qualidades humanas são varridas e isso,
evidentemente, é muito inconveniente. De fato, é anti-higiênico, porque, se
varrermos a mitologia de um homem, toda a sua seqüência histórica, eie
converte-se numa média estatística, num número; isto é, reduz-se a nada. Fica
privado do seu valor específico, da experiência do seu próprio e singular valor. O
problema é que, segundo parece, ninguém entende essas coisas. Acho muito
estranho que ninguém veja o que uma educação sem Humanidades está fazendo
ao homem. Ele perde suas ligações com a família, as suas ligações com todo o
passado — todo o tronco, a tribo — aquele passado em que o homem sempre
viveu. Hoje, acredita-se que nascemos tabula rasa, sem uma história, mas o
homem sempre viveu no mito. Pensar que o homem nasceu sem uma história
dentro de si próprio é uma doença. É absolutamente anormal, porque o homem
não nasce cada dia. Nasceu num contexto histórico específico, com qualidades
históricas específicas e, portanto, só é completo quando tem relações com essas
coisas. Se um indivíduo cresce sem ligação alguma com o passado, é o mesmo
que se tivesse nascido sem olhos nem ouvidos e tentasse perceber o mundo
exterior com exatidão. A Ciência Natural poderá dizer: ”Você não precisa de
relações com o passado; pode varrê-las”. Mas isso é uma mutilação do ser
humano. Ora, observei através da experiência prática que esse tipo de proce-
137
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

dimento tem um efeito terapêutico verdadeiramente extraordinário. Posso contar-


lhe um desses casos.
Havia uma jovem judia. Seu pai era banqueiro. Ela tinha sido educada mais
de acordo com a experiência mundana e o formalismo, carecendo,
definitivamente, de qualquer compreensão da tradição. Examinei a sua história
mais a fundo e descobri que o avô dela tinha sido um ascético na Galícia. com
esse dado, fiquei conhecendo toda a história e explicarei por quê. Essa moça
sofria uma fobia, uma terrível fobia, e já estivera sob tratamento psicanalítico, sem
qualquer efeito positivo. Ela era realmente flagelada por essa fobia, em estados
de grande excitação etc. Observei então que ela tinha bloqueado influências
significativas do seu passado. Por exemplo, o fato do avô ser um ascético, ter
vivido no mito, era uma das influências que ela bloqueara. O pai também resistira
a essa influência ascética. De modo que eu lhe disse, simplesmente: ”Você
expulsará os seus temores se compreender, intimamente, o que perdeu ou aquilo
a que está resistindo. O seu medo é o medo de influências do passado.” O efeito
foi que, numa semana, ela estava curada de tantos anos de ansiedade, porque
essa introvisão a traspassou como um raio fulminante. Eu pudera interpretar tão
rapidamente a origem do problema porque sabia que ela estava completamente
perdida. Ela pensava estar no meio das coisas funcionando bem, quando,” na
realidade, estava — em certo sentido — perdida ou transviada.
Dr. Evans: Que ensinamentos podemos colher desse notável caso, Dr.
Jung?
Dr. Jung: Esse caso ilustra que a nossa existência é absurda e incompleta
quando somos apenas ”números médios”. Quanto mais fizermos das pessoas
números médios, mais estaremos destruindo a nossa sociedade. O estado ”ideal”
e o estado ”escravo” é assim que nascem. Se você quiser ser um ”número médio”,
vá para a Rússia. Aí será maravilhoso; você pode ser um excelente número. Mas
isso paga-se caro; toda a sua vida se converterá num inferno, como no caso da
moça. Tenho numerosos casos de uma natureza análoga.
138
10

Introvisões Pessoais, Reminiscências e Experiências com Grandes Figuras

Dr. Evans: Quando lemos suas obras, depreende-se que o senhor tem
vastos conhecimentos de Ar queologia, Antropologia ..
Dr. Jung: Bem, isso é verdade, tanto mais que uma boa parte da minha
obra envolve essas disciplinas, mas, em contrapartida, não tenho dons
matemáticos o que me prejudica um pouco. Não é possível adquirir um verdadeiro
conhecimento ou compreensão da Física Nuclear sem um bom domínio da
Matemática, da Matemática Superior. Só possuo uma certa relação com ela no
tocante às questões epistemológicas. A Física moderna está, por assim dizer,
entrando na esfera do invisível e do intanaível. Na realidade, é um campo de
probabilidades o que é exatamente o mesmo que o inconsciente. Discuti
freqüentemente isso com o Professor Scherrer. Ele é atualmente um físico nuclear
e, para meu espanto descobri que eles têm termos que usamos também na
Psicologia. Isso é, simplesmente, uma conseqüência do fato de estarmos ambos
entrando numa esfera que é desconhecida. O físico penetra nela de fora e o
psicólogo de dentro. Essa é a razão das negociações entabuladas entre a
Psicologia e a Matemática Superior. Por exemplo, nós, psicólogos, usamos a
expressão ”função transcendente”. Ora, a função transcendente é um conceito
matemático, a função de números racionais e imaginários. Mas isso é Matemática
Superior, com a qual nada tenho a ver. Mas chegamos à mesma terminologia.
139
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

Dr. Evans: Quando o senhor falou com o Dr. Einstein, no seu primeiro
encontro, ele quis mais ou menos submeter à prova algumas das suas idéias,
cotejando-as com as do senhor. É verdade que o senhor, Dr. Jung, lhe fez ver a
posbibilidade de que a teoria da relatividade se aplicasse às funções psíquicas?
Isso foi discutido pelos dois?
Dr. Jung: Bem, o senhor sabe como é quando um homem está tão
concentrado em suas próprias idéias quanto o Dr. Einstein; e quando, ainda por
cima, ele é um matemático de tamanho gabarito, o senhor pode estar certo de que
não será bem recebido.
Dr. Evans: Em que ano o senhor fez amizade com Ein stein?
Dr. Jung: Eu não diria que éramos propriamente amigos. Fui
simplesmente seu anfitrião. Tentei ouvir e compreender, de modo que houve
pouca possibilidade de eu inserir algumas de minhas próprias idéias.
Dr. Evans: Isso foi depois dele já ter formulado as suas teorias da
relatividade ou antes?
Dr. Jung: Ele estava justamente trabalhando nelas, em seus primórdios.
Era um trabalho deveras interessante.
Dr. Evans: Durante os seus encontros com o Professor Toynbee, o senhor
interessou-se pelas idéias sobre a História que ele vinha formulando?
Dr. Jung: Ah, sim, em particular as suas idéias sobre os ciclos vitais das
civilizações e a forma como são governados por formas arquetípicas. Toynbee
compreendeu o que entendo por funções históricas dos desenvolvimentos
arquetípicos. É uma determinante poderosamente importante de todo o
comportamento humano e pode abranger séculos ou milhares de anos. Expressa-
se em símbolos, por vezes, símbolos em que jamais pensaríamos. Por exemplo,
como o senhor sabe, a Rús-
140
EXPERIÊNCIAS com GRANDES FIGURAS

sia, a União Soviética, tem aquele símbolo da estrela vermelha. É uma estrela
vermelha de cinco pontas. A América tem uma estrela branca de cinco pontas.
São inimigas; não podem combinar-se. Na Idade Média e durante dois mil anos,
pelo menos, o vermelho e o branco formavam o par; estavam destinados, em
última instância, a casar. Ora, a América é uma espécie de matriarcado, tanto
mais que a maior parte do dinheiro está nas mãos de mulheres, e a Rússia é o
país do ”paisinho”; é um patriarcado. De modo que são a mãe e o pai. Para usar a
terminologia da Idade Média, são a mulher branca, a femina alba, e o escravo
vermelho, o servus rubens. Os dois amantes estão brigados.
Dr. Evans: Bem, Dr. Jung, o senhor respondeu pacientemente e de uma
forma extremamente interessante e espontânea a todas as nossas perguntas,
desde os sentimentos a respeito das idéias de Freud às reações à obra de
Toynbee. Creio que não devemos abusar mais, desta vez, de sua extrema
amabilidade. Espero, contudo, que os nossos estudantes sejam estimulados pelo
que o senhor disse para se debruçarem de novo sobre a sua vasta obra. Afinal de
contas, é essa a verdadeira finalidade destas entrevistas, postas à disposição dos
estudantes: motivá-los para que leiam as obras originais das grandes figuras
mundiais que mais contribuíram para a nossa compreensão da personalidade
humana.
Dr. Jung: Sim as pessoas têm que ler os livros, santo Deus, apesar de
serem grossos. Lamento muito.
141
PARTE VI

REAÇÕES DE ERNEST JONES

A entrevista que se segue com o Dr. Jones fornece uma oportunidade de


contraste ímpar entre Jung e Jones, tanto no que diz respeito às suas próprias
idéias como em relação às suas respectivas opiniões sobre muitas das
formulações teóricas de Freud. O Dr. Jones dedicou grande parte de sua vida à
defesa dos pontos de vista de Freud, e a sua última contribuição de vulto, uma
biografia de Freud em três volumes, representa um tributo ’maciço a Freud, o
homem, assim como a Freud, o intelectual.
Como as respostas do Dr. Jones indicam, ao longo da entrevista, ele é
contundente, satírico e mostra-se decidido a defender até ao fim o seu mestre
contra os seus críticos. O leitor notará, contudo, que, mesmo quando o Dr. Jones
respondeu de maneira satírica ou muito veemente, jamais perdeu o seu
pedantesco e muito britânico sentido ãe proporção.
Reações de Ernest Jones

Dr. Evans: Dr. Jones, uma das questões que creio ser de enorme interesse
para muitos dos nossos estudantes de Psicologia na América gravita em torno das
suas próprias relações com o movimento psicanalítico. É claro, o senhor já
debateu essa questão em outros lugares, mas ouvir pessoalmente, de viva voz,
algo sobre o modo cono o senhor se alistou no movimento psicanalítico será
sumamente interessante.
Dr. Jones: Bem, também considero isso uma questão interessante, porque
fui a primeira pessoa, fora dos círculos de Viena e Zurique, a fazê-lo. Por que eu?
Bem, suponho que poderia remontar a impressões e estimulações infantis, o que
nos levaria muito, muito longe; mas, historicamente falando, o que se passou foi o
seguinte: Na minha adolescência, eu estava profundamente interessado, de um
modo geral, nos problemas espirituais da religião, da sociologia, do socialismo, da
filosofia; e ocorreu-me que a maneira mais fundamental de chegar às bases de
todos esses problemas seria o estudo do sistema nervoso, o cérebro.
Obviamente, eu estava elaborando num deplorável equívoco, mas, nessa época,
ainda o ignorava. De modo que me tornei neurologista e realizei um considerável
trabalho em Neuro logia, tendo publicado algumas pesquisas que ainda hoje
estão de pé; e, naturalmente, deparei com numerosos pacientes que eram
portadores do que hoje em dia se chama sintomas neuróticos. Isso é o que acaba
acontecendo a todo e qualquer neurologista. Ele pensa que está estudando algo
orgânico e defronta-se com esses casos.
Foi assim que o meu interesse se deslocou do lado orgânico para o outro;
e comecei a ler e a aprender tudo o que podia. Li toda a literatura francesa a res-
145
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

peito, sobre personalidade múltipla ou sobre aspectos dissociados da


personalidade. Havia Janet; havia Breuer e Binet; e não faltavam diversos autores
franceses, num período de cerca de cem anos, ocupando se especialmente do
uso da hipnose. Bem, até aí, nada de mais: eu próprio estava utilizando a
hipnose, tentando explorar e descobrir mais sobre o que se passava nos
bastidores. Tornara-se-me evidente que, quando estamos diante de um simples
sintoma histérico, existe algo muito mais complicado que não é visível. E era aí
que eu queria chegar.
Dr. Evans: Portanto, isso não foi muito depois da Interpretação de Sonhos
(10), de Freud, ter sido...
Dr. Jones: ... ter sido publicada. Mas não foi essa a primeira vez que eu
ouvira falar a respeito de Freud. Através dos meus estudos neurológicos, eu já
travara conhecimento com a sua obra de neurologia orgânica. Freud já publicara
artigos até em revistas inglesas. .. em Brain, uma revista inglesa chamada Brain.
Dr. Evans: Quer dizer que os trabalhos neurológicos do Dr. Freud já vinham
despertando muita atenção, mesmo antes dele iniciar a sua...
Dr. Jones: Oh, sem dúvida! Ele era um dos mais eminentes neurologistas
na Europa. Ainda hoje, os seus trabalhos sobre paralisia infantil são livros
clássicos na matéria, tal como os que realizou sobre a afasia e outras coisas.
Nessa época, Freud era muito conhecido na Inglaterra como um destacado
neurologista.
Depois, tomei conhecimento de que ele estava realizando outro tipo de
trabalho e publicara um caso a que chamou a ”análise de Dora”. Isso foi nos
começos de 1905, e fiquei muito impressionado com o que li. Achava uma coisa
tão surpreendente que existisse um homem disposto a escutar os seus
pacientes... a ouvir o que eles diziam! Eu nunca tinha ouvido falar de alguém que
fizesse isso e, realmente, foi essa a característica do seu trabalho que mais me
impressionou. De modo, que resolvi começar também a escutar mais
detalhadamente os meus pacientes do que antes.
146
REAÇÕES DE ERNEST JONES

Dr. Evans: Então, o senhor teve inicialmente conhecimento da existência


do Dr. Freud como um colega de Neurologia e só depoi^ se interessou pela outra
fase dos seus trabalhos. Segundo parece, o senhor notara esses fatores
psicológicos em seus próprios pacientes, mas aí estava um hornem que Os
sondara muito mais profundamente. Foi então que o senhor decidiu ir a Viena,
segundo creio.
Dr. Jones: Três anos depois. Antes disso, eu estivera estudando no
estrangeiro, em Paris e Munique, tanto Neurologia como Psiquiatria. Em
Munique trabalhei durante meses com Kraepeiin.
Dr. Evans: Quando teve o primeiro encontro com Freud, achou que a sua
esperança de que isso desvendaria novos caminhos e novas fontes de
compreensão estava sendo rapidamente concretizada? Por outras palavras, em
suas primeiras discussões com o Dr. Freud, o senhor ficou convencido de que ^
Psicanálise seria algo, talvez, de interesse permanente?
Dr. Jones: Oh, acho que isso aconteceu ainda antes de eu conhecer
pessoalmente Freud... sim, foi antes. Conheci o Dr. Jung antes disso e numa
época em que ele estava muito entusiasmado com a obra de Freud; e juntamos os
nossos entusiasmos... Foi Jung quem me apresentou a Freud, quer dizer, que me
apresentou pessoalmente. O encontro teve lugar no Primeiro Congresso Analítico,
realizado em Salzburg em abril de 1908. Encontramo-nos aí, e o Dr. Jung
apresentoume a Freud.
Dr. Evans: Nessa época, o Dr. Adler já fazia parte desse grupo?
Dr. Jones: Ah, sim, já fazia. Ele e stekel foram os dois primeiros, creio
eu, que seguiram Freud. Desde 1902.
Dr. Evans: Aprofundemos um pouco mais os seus sentimentos e opiniões
pessoais sobre a obra do
147
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

Dr. Freud e as suas relações com ele. Quando observamos o que é hoje a
Psicologia, a psicanálise e a Psiquiatria, fere-nos a atenção o fato da contribuição
do Dr. Freud parecer postular um forte padrão biológico, que ele sugere exercer
um tremendo efeito sobre o desenvolvimento inicia! do indivíduo. Esses padrões
biológicos, embora sejam modificáveis pelo meio ou a cultura em que o indivíduo
vive, continuam, entretanto, orientando em grande parte o comportamento
individual. Muito recentemente, como o senhor sabe, numerosas pessoas
opinaram que talvez o Dr. Freud e a Psicanálise desse período tivessem
enfatizado os fatores biológicos um pouco além da conta; que talvez a cultura em
que vivemos, a nossa sociedade e os fatores ambientais, tenham tanta ou mais
influência na formação do indivíduo que os fatores biológicos. O senhor importar-
se-ia de comentar a esse respeito, em termos, primeiramente, de estarmos sendo
injustos ou não ao sugerir que Freud exagerou a importância dos fatores
biológicos? E, em segundo lugar, em função daqueles pontos de vista que
realçam os fatores culturais, provenientes do chamado movimento
”neofreudiano”? Como teria Freud reagido a tudo isso?
Dr. Jones: Não, não creio que seria justo dizer que ele exagerou a
importância dos fatores biológicos. Não vejo como é que alguém poderia
superestimálos. Freud e eu próprio partimos do princípio de que o homem é um
animal. Por outras palavras, o homem está, biologicamente, numa linha de
continuidade com o resto das criaturas vivas e é ativado por instintos e reações
de uma espécie semelhante, embora mais elaborados, sem dúvida. Isso está na
própria natureza das coisas, é a base do ser humano. O senhor pode, é claro,
adotar um diferente ponto de vista e dizer que existe também uma parte espiritual
que vem do céu e foi colocada por cima de tudo o mais; mas acontece que não
compartilhamos dessa concepção. Parece não existir qualquer prova direta que a
sustente. Não vejo como se possa superestimar a natureza do homem.
Quanto às influências culturais, elas também são o produto de motivos
biológicos; assim, aquelas nunca es-
148
REAÇÕES DE ERNEST JONES
tão a mais de um passo destes. Veja, por exemplo, o complexo de Édipo, que
consideramos muito fundamental e até, possivelmente, inato... ignoramos
exatamente como, mas, seja como for, é uma tendência fundamental. Muito bem,
vejamos agora o que se passa numa determinada sociedade, digamos, na
sociedade alemã, onde o pai é muito importante, promulga as leis etc. É claro que
o senhor esperaria encontrar aí o complexo de Édipo. Mas, e as outras
sociedades onde o pai não tem tanta importância? Que dizer da América, onde a
mãe é mais importante que o pai, onde a ”mamãe” é realmente a pessoa? Ou,
mais ainda, que dizer das sociedades matrilineares, onde as mulheres ocupam
uma posição tão elevada? Ou as sociedades primitivas, em que o pai não vive
com a mãe e só a visita ocasionalmente, em que ela vive com o irmão, e o rapaz é
criado por esse irmão, seu tio. O que acontece nesses casos ao cornplexo de
Édipo?
Bem, chamarão a isso uma influência ambiental, ou cultural. Está certo,
podem chamar; mas isso causa, naturalmente, uma mudança na forma adotada
pelas reações biológicas, é como uma pressão. No caso da última sociedade
citada, por exemplo, o rapaz reagirá a seu tio comciúme, rivalidade, oposição,
aversão e também com amor, como normalmente aconteceria no caso do pai. E o
pai verdadeiro, que só aparece ocasionalmente, brinca com ele e é o seu
camarada em jogos e divertimentos, mas não exerce qualquer autoridade sobre o
menino; corresponderá aos nossos tios e avós, que estragam a criança com
mimos. Por outras palavras, isso causa a tal mudança. Não altera, de forma
alguma, o padrão biológico; apenas altera a forma que esse padrão assume.
Dr. Evans: No que se refere ao padrão biológico no conceito de libido do
Dr. Freud, em que ele parece aludir a uma energia psicossexual de natureza
genérica, levanta-se uma questão sobre como devemos interpretar o termo
”sexo”. Estamos falando de sexualidade, numa acepção estrita, ou esse impulso
sexual genérico de que Freud falou consiste, meramente, no envolvimento total
de todos os impulsos biológicos? Por outras
149
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

palavras, aqueles que sugeriram que Freud tentou explicar tudo em termos de
sexualidade reprimida foram injustos com ele?
Dr. Jones: Tentar explicar tudo em termos de sexualidade reprimida? Acho
que isso é ir longe demais, não lhe parece? Freud pensou que os impulsos
libidinais faziam parte da herança biológica do homem, como outros instintos: a
curiosidade, talvez a agressão etc. E comprovou, pela experiência, que isso entra
freqüentemente em conflito com outros aspectos da personalidade, o que
sabemos muito bem ser verdade e criar, por conseguinte, muitas dificuldades para
as pessoas. Mas não vejo ... seria ridículo dizer que alguém explicou tudo em
termos de sexo, pois se fosse assim tão simples, então o que aconteceria a toda a
sua teoria de conflito? São necessários dois lados antagônicos para que haja
conflito.
Dr. Evans: Vejamos se isso é um enunciado justo da situação. corn os seus
pacientes na cultura reprimida de Viena, o Dr. Freud viu, muito freqüentemente,
que havia conflitos em torno da sexualidade. Portanto, nesses pacientes, ele
considerou que os conflitos sexuais eram fundamentais em suas neuroses, o que
pôde explicar, pelo menos em parte, a grande ênfase sobre a sexualidade como
fator causativo, que se reflete em seus escritos. Na realidade, Freud não hesitaria
em apontar outras causas subjacentes, se estas tivessem sido visíveis.
Dr. Jones: Sim, creio que ele estaria disposto a ver qualquer coisa que
realmente existisse.
Dr. Evans: Isso, é claro, tem sido uma das bases para grande parte das
críticas ao Dr. Freud.
Dr. Jones: Sim, isso era de esperar, visto que, pela sua teoria, há uma
grande dose de repressão da sexualidade e, naturalmente, se a pessoa denuncia
isso, está fadada a incorrer na repressão, não é? Isso ilus-
150
REAÇÕES DE ERNEST JONES
traria aquilo a que chamamos resistência, ou oposição, ou crítica, ou qualquer
coisa desse gênero.
Dr. Evans: Indo mais além, o interessante estudo de Freud sobre a
psicopatologia da vida cotidiana * revelou como o Dr. Freud pôde, de um modo
bastante engenhoso e brilhante, analisar numerosas situações específicas na
existência cotidiana, ao perscrutar o funcionamento do inconsciente. Queria
Freud dizer com isso que tudo o que fazemos é determinado dessa maneira?
Poderemos alguma vez nos descontrair e supor que algumas coisas são feitas por
mero acidente, ou teremos de admitir...
Dr. Jones: O que é que o senhor quer dizer com ”por acidente”? Se
alguma coisa cair do teto a seus pés, é um acidente.
Dr. Evans: O Dr. Freud diria que as coisas que parece terem sido
acidentais realmente não eram? Devemos admitir que existe sempre alguma
determinante inconsciente?
Dr. Jones: Ah. é muito simples. Freud disse que toda a nossa atividade
espontânea é motivada, falando em termos gerais. Foi isso o que o senhor quis
dizer? Não, nada é acidental. Pensar o contrário seria uma atitude nada científica.
Dr. Evans: Passando agora a uma área multo diferente, Dr. Jones, um dos
problemas que muito nos interessa atualmente nos Estados Unidos e o do
excessivo conformismo do homem. Formulamos hoje perguntas como estas:
Estaremos perdendo a nossa identidade individual? Será que o indivíduo está-se
tornando, como disse um autor americano, ”alterdirigido”? Estaremos tão
preocupados com o que a outra pessoa pensa que

* Cf. Psicopatologia da Vida Cotidiana, Zahar Editores, 3* e<Tção, 1969, tradução de Álvaro
Cabral. (N. do T.)
151
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

não desenvolvemos personalidades verdadeiramente individuais?


Isso foi amplamente comentado por Otto Rank e Erich Fromm, os quais
procuraram sugerir que talvez a verdadeira realização do homem seja o
desenvolvimento de uma espécie de espírito criador; caso contrário, ficamos tão
emaranhados nas pressões socioculturais que nos tornamos uma espécie de
máquinas funcionando em cultura e, portanto, não indivíduos autênticos. O
senhor acha que esse ponto de vista de, talvez, um importante setor de homens
na sociedade ocidental é correto? Estará o homem se tornando...
Dr. Jones: Bem, ignoro o que é que ele está ”se tornando” ou o que o
homem virá a ser, mas parece-me que o estado de coisas que o senhor assinalou
é universal e eterno; quer dizer, deve ter sempre havido um conflito entre o desejo
do indivíduo de atuar livremente, sem levar em conta os demais, e a necessidade
que ele reconhece de tomar as outras pessoas em consideração. Obviamente,
uma comunidade seria impossível se cada um fizesse exatamente o que lhe
apetecesse.
Dr. Evans: Precisamos de alguma ordem, é claro, de alguma organização.
Dr. Jones: Sim, é assim que, evidentemente, a civilização evolui. Aceito a
idéia de que sempre existiu esse conflito entre os dois lados. Sir Herbert Spencer
foi um homem que escreveu muito a esse respeito, o indivíduo versus o Estado
etc. E o Professor Fluegel, um adepto de Spencer, escreveu alguns ensaios muito
interessantes sobre o mesmo tema. Essencialmente, a obra de Freud também
assinala esse estado de conflito entre o indivíduo e a sociedade. O seu livro
sobre psicologia de grupo sublinha isso, para mencionar apenas um exemplo (7).
Depois, o senhor pergunta: ”O homem está ficando mais conformista?”
Não, acho que está ficando cada vez menos, porque, originalmente, ele deve ter
sido muito conformista, se remontarmos ao homem primevo. Imã-
152
REAÇÕES DE ERNEST JONES

gine agora quando o homem usou ferramentas pela primeira vez, digamos,
utensílios de pedra. Batia uma pedra na outra para que ficassem lascadas, de
modo que a coisa fosse cortante de um lado, e passou a usá-la. Foi preciso quase
meio milhão de anos para que ele pensasse em polir esse pedaço de pedra,
tornando-o mais afiado. Ora, desconfio que muita gente deve ter tentado o
polimento como técnica de afiar durante esse meio milhão de anos, e foi morta
por não se conformar ao padrão mais antigo. Assim, passaram milhares e
milhares de anos até que, finalmente, a sociedade se tornou suficientemente livre
para permitir aos seus membros oue afiassem um pedaço de pedra... bom, acho
que, desse ponto de vista, estamos ficando cada vez mais livres. Temos
certamente a liberdade de fazer muitas coisas que não eram permitidas na Idade
Média ou, por exemplo, há apenas 120 anos.
É claro, o grau em que o livre desenvolvimento da individualidade pode ter
luqar deve variar em diferentes culturas e diferentes períodos e isso suscita o
problema deveras interessante sobre o ”porquê”. Veja como, nos Estados Unidos,
se queixam atualmente de que estão atravessando uma grave crise; quer dizer,
não é permitido às pessoas que se desenvolvam livremente. Isso talvez seja
verdade, até onde me é dado saber, mas o outro lado também tem seus
problemas.
Pensa-se, geralmente, que na França existe mais desenvolvimento
Individual e menos conformismo; aí, creio que nem pagam com muita freqüência
os seus impostos. Não conseguem ter um governo estável. Todo mundo quer agir
por conta própria. Isso tem suas vantagens. sem dúvida, já que permite
desenvolvimento mais livre do indivíduo, mas redunda em problemas e
dificuldades concretas, de um ponto de vista social.
Na América, não sei, realmente. Suponho que em cidades pequenas,
lugares como os que Sinclair Lewis descreveu em Mafn Street e Babbitt, deve
existir uma boa dose de conformismo. Eu diria que o fator óbvio para determinar
em que lado se coloca o acento, digamos. no modo de vida francês versus o
modo de vida americano, é uma questão, provavelmente, de restrições e
penalidades sociais. Ora, se um homem na França
153
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

não se conforma, acontece-lhe alguma coisa terrível? Realmente, não. Entretanto,


se um homem não se conforma na América, acontece-lhe uma porção de coisas
incríveis. Perde o emprego e não lhe é permitido obter outro; é expulso da
universidade. Tudo isso pode acontecer, o que aumenta a necessidade de se
conformar.
Dr. Evans: Num sentido, portanto, o senhor acha que as pressões sociais
imediatas estão forçando o indivíduo a um comportamento conformista, mas, a
longo prazo, numa perspectiva histórica, o homem está ficando cada vez mais
livre, mais indivíduo. Essas pressões a que o homem está sujeito são apenas
momentaneamente importantes.
Dr. Jones: Sim, é isso. E acontece a mesma coisa em toda a Europa.
Suponho que o lugar mais livre do mundo era a Rússia, nos tempos czaristas...
desde que não se falasse de política. A pessoa podia ter idéias ou comportamento
em qualquer direção que quisesse, do ponto de vista sexual ou qualquer outro
Havia muita liberdade, mais do que em qualquer outro país da Europa, desde que
não se tocasse em política nem se quisesse destronar o Czar. Agora, tudo isso
mudou. Dentro de mais cem anos, porém, a volta completa terá sido realizada.
Por outras palavras, todos os cinqüenta anos, mais ou menos, registra-se
regularmente nos diferentes países, uma transformação completa.
Dr. Evans: O senhor diria que o processo de Psicanálise, num sentido
muito lato, tem alguma influência sobre isso? Por outras palavras, o senhor diria
que um Indivíduo que perdeu a sua identidade pelo fato de se conformar e temer
as pressões sociais, que se sente perturbado e infeliz, pode chegar, através da
psicanálise, a perceber melhor as tendências individuais em si mesmo e a tornar-
se, talvez, um indivíduo mais produtivo e criador?
Dr. Jones: Isso tem fatalmente de acontecer. Não é essa
a finalidade da psicanálise? A finalidade da psicanálise é tornar a pessoa mais
ela própria; quer di-
154
REAÇÕES DE ERNEST JONES

zer, fazer dela o seu ”eu total”, não só a parte visível, mas também a parte
reprimida, a parte oculta, a parte em conflito. Todas essas partes da
personalidade devem entrar em jogo e colocar-se sob um controle unificado, para
que o indivíduo seja uma personalidade maior, mais rica e mais completa.
Dr. Evans: Esse controle unificado de que o senhor falou não implicará,
necessariamente, um controle de origem social?
Dr. Jones: Não. Estou falando sobre a consciência da pessoa e esta é algo
que só parcialmente se desenvolve a partir de fontes sociais, do controle social
etc. Como o senhor sabe, isso começa muito cedo, e a consciência remonta, pelo
menos, ao primeiro ano de vida. É possível descrever o seu início.
Dr. Evans: O primeiro impacto da estrutura da microfamília sobre o neófito.
Dr. Jones: Exato. E, possivelmente, até algumas tendências inatas.
Dr. Evans: Qual é, exatamente, a natureza dessas tendências inatas que
influem sobre a moralidade social, aquilo a que Freud chamou o ”Superego”?
Devemos acreditar que o homem já nasceu com proibições inatas, em relação à
sua existência social?
Dr. Jones: É difícil provar ou demonstrar coisas desse gênero. Eu diria que
é multo provável, pois não acredito que o superego resulte, em sua totalidade, da
pressão anterior. Penso que uma parte provém de dentro.
A criança nasce com impulsos muito mais indisciplinados do que temos
depois de crescermos. Ela não só aprendeu a controlá-los e orientá-los em certas
direções, por razões sociais, mas também por razões pessoais, porque alguns
deles são muito nocivos e m0uito destrutivos para a própria criança ou
prejudiciais a alguém que ela ama. Por outras palavras, há perigos que
155
ENTREVISTAS com CARL. G. JUNG

tanto promanam de dentro como de fora; portanto, há a necessidade de controlar


ou reprimir, ou de fazer alguma coisa sobre esses perigos internos. Parece-me
muito provável que esse controle seja inato, por razões biológicas de
sobrevivência.
Dr. Evans: Em termos de um clima de conformismo, em oposição a um
clima de maior liberdade, que efeito esses diferentes climas podem ter sobre a
produtividade, a criatividade e talvez até sobre o gênio, numa determinada
população? Pessoas como Beethoven, por exemplo, poderiam ter surgido num
clima de conformismo? É possível que um Van Gogh pudesse ter surgido num
clima de conformismo? Ou mesmo um Freud?
Dr. Jones: Freud foi certamente criado num clima de conformismo, não
lhe parece?
Dr. Evans: Então, quais são os ingredientes que permitem a um indivíduo,
criado num clima de grande conformismo, demonstrar uma Individualidade
surpreendentemente ímpar, em seus esforços criadores? Este é o genêro de
pergunta que envolve todo o problema de saber quais são, realmente, os
ingredientes do gênio.
Dr. Jones: Eu gostaria muito de saber isso. A questão tem dois aspectos.
Vemos uma obra criadora ser produzida em condições manifestamente
desfavoráveis, aquilo a que chamamos um ”ambiente conformista”; quer
queiramos, quer não, a obra nasce. Certo!
Entretanto, também vemos, por outra parte, que se torna muito mais
freqüente em certos períodos. Veja, por exemplo, o período da Renascença
italiana, quando houve grandes pintores e artistas, escultores, arquitetos que
floresciam a torto e direito por toda parte. É lícito pensar que o clima de opinião
deve ter sido então favorável a toda essa criatividade, muito mais que em outras
épocas. Os tempos atuais são favoráveis, sem dúvida, às invenções e
descobertas científicas.
156
REAÇÕES DE ERNEST JONES

Dr. Evans: Assim, até o gênio criador individual deve surgir numa estrutura
social favorável ao seu aparecimento. Por exemplo, no caso do Dr. Freud, o
período era favorável aos trabalhos de alguns psiquiatras franceses. No caso de
Freud, o senhor concordaria em que ele produziu a sua obra num período
caracterizado por uma atmosfera científica que se prestava, facilmente, a essa
expressão criadora?
Dr. Jones: Não, não concordo. Acho que não foi esse o caso. A minha
opinião é que Freud foi um daqueles casos raríssimos que surgem da maneira
mais inesperada. Nada havia em Viena que pudesse favorecê-lo, absolutamente
nada. Houve, dez anos antes, um pequeno episódio, quando Freud travou
conhecimento com Herr Breuer e sua obra, mas creio que Freud já o esquecera,
em grande parte, e que não tirara disso grande proveito. Mais tarde, ele lembrou-
se e integrou-o na obra que estava realizando.
Dr. Evans: Assim, ele não sentiu continuamente, ao que parece, o impacto
de Breuer...
Dr. Jones: Não, nenhum. Ele tomou conhecimento do caso de Breuer em
1882, mas Freud continuou neurologista até à década de 1890, antes de passar a
dedicar-se aos aspectos psicológicos. Não, eu diria que Viena era um ambiente
muito desfavorável, uma atmosfera extremamente conformista.
Dr. Evans: Assim, de um certo modo, o senhor está sugerindo que a
generalização, ”um grande gênio não pode emergir de um meio conformista”, é
uma simplificação extrema e que não podemos falar significativamente em tais
termos.
Dr. Jones: Sim, de fato. Suponho que se trata de uma questão relativa.
Podemos equacioná-la em termos de pressão. Se o impulso do gênio criador é
suficientemente forte, impõe-se através e acima do conformismo; e se o
conformismo não ó muito poderoso,
157
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

como na Itália renascentista, o gênio impor-se-á mais facilmente. É


meramente uma questão relativa.
Dr. Evans: Nessa área geral, lemos com grande interesse as suas análises
de figuras literárias, como Hamlet na obra de Shakespeare. * Hegistrou-se uma
tendência muito interessante, nos círculos literários, para aplicar a teoria
psicanalítica a uma interpretação ou avaliação da grande literatura. Deveremos
depreender daí que o jovem autor deve estudar teoria psicanalítica? ser-lhe-ia
isso útil? Os críticos deveriam também familiarizar-se com essas idéias?
Dr. Jones: Penso que existe uma nítida distinção entre o autor e o crítico.
Eu diria ”não” para um e ”sim” para o outro. Creio que o autor seria prejudicado se
tentasse colher benefícios através do conhecimento psicanalítico, pois nada
ganharia com uma tentativa de tirar proveito de conhecimentos alheios ao seu
mundo interior e aos seus conhecimentos pessoais sobre as coisas, quer se trate
de ldéias políticas ou não; se o fizesse, estaria sacrificando os seus próprios
impulsos espontâneos. Quanto mais espontâneo for, maior é um autor. A criação
deve brotar ao intimo. Se ele se dedicar meramente a copiar, olhando para o que
está nos livros e dizendo: ”Aqui está a coisa certa para ser dita”, então nunca
produzirá realmente coisa alguma digna de apreço, fcstou convencido disso. Por
outro lado, no que diz respeito ao crítico, esse aspecto íntimo do problema não é
verdadeiramente importante.
Dr. Evans: Quanto ao uso da teoria e interpretação psicanalítica, o senhor
disse que, no caso do autor, isso pode ser, realmente, sufocante. Não lhe
permitirá expressar a sua inidividualidade livremente, de uma forma adequada.
Por outro lado, sugeriu que, no caso do crítico, a situação é diferente.

*Cf. Ernest Jones, Hamlet and Oedipus, Victor Gollancz Ltd., Londres, 1949. Existe
edição brasileira: Hamlet e o Complexo de Édipo, Zahar Editores, 1970, tradução de
Álvaro Cabral. (N. do T.)
158
REAÇÕES DE ERNEST JONES

Dr. Jones: Muito diferente. Mas deixe-me ser perfeitamente claro a respeito
do que penso sobre o autor, antes de discutir o crítico. Eu não quis dizer que ser
psicanalisado fosse prejudicial ao escritor, mas, antes, que 03 conhecimentos
obtidos através da leitura de textos psicanalíticos seriam prejudiciais. Quero dizer
que, se um autor for psicanalisado, será um autor mais livre, mais completo; será
mais explícito e mais espontâneo.
Com o crítico, porém, é diferente, repito, pois acredito que, ao invés do
autor, tudo o que disser respeito a conhecimentos psicanalíticos pode ser útil à
função do crítico. A missão do crítico consiste em avaliar tanto o aspecto estético
da obra, que está comentando ou criticando, como o seu conteúdo intelectual. A
avaliação estética depende, é claro, da sensibilidade do crítico, o que implica a
necessidade de liberdade para os seus sentimentos; e, no que concerne à análise
intelectual do conteúdo, creio que um conhecimento de Psicanálise é muito útil,
habilitando a pessoa a avaliar mais rigorosamente até que ponto a produção é
coerente. Veja, por exemplo, o caso do Hamlet; é uma obra suscetível de
interpretação em muitos níveis. Provavelmente, contém referências à política do
seu tempo, que hoje talvez já estejam esquecidas. Não escasseiam as alusões
sociais ao período específico da peça, que as pessoas de então certamente
puderam compreender; é possível que contenha também gracejos oportunos
sobre certas personalidades contemporâneas da peça. Diferentes camadas,
através das quais vamos penetrando cada vez mais fundo, até se chegar a uma
concepção unificada da obra, à sua visão total. Ora, se qualquer produção for,
lealmente, uma grande obra de arte, será coerente de uma ponta à outra; e
quando digo coerente, quero dizer que será verdadeira em todos os seus níveis.
É isso, creio eu, que um crítico deve estar apto a avaliar.
Dr. Evans: Uma certa unidade intrínseca na análise global.
Dr. Jones: Sim.
159
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

Dr. Evans: Isso passou a ser um ”passatempo favorito” de alguns, observar


os personagens literários dessa maneira. É claro, a minha opinião é que a sua
contribuição tornou-se um foco pioneiro para esse tipo de pensamento.
Dr. Jones: Sim, creio que sim. Entretanto, eles podem também errar
quando se limitam, meramente, a traduzir. Eles transpõem o que eu disse para
este ou aquele complexo, e não suponho que isso possa levá-los muito longe.
Qualquer pessoa pode fazer isso.
Dr. Evans: Será superficial demais.
Dr. Jones: Quando a pessoa simplesmente aprende, obteve apenas um
conhecimento superficial. Creio que é muito diferente de uma compreensão da
dinâmica.
Dr. Evans: Dr. Jones, uma questão muito interessante que me ocorreu
depois de ler a sua biografia do Dr. Freud, diz respeito ao impacto da vida pessoal
de um gênio sobre o que ele produz. Por exemplo, realizaram-se muitas
pesquisas, em anos recentes, em que foram feitas certas tentativas para estudar
a personalidade básica de indivíduos, na esperança de que possa ser
determinado o que os leva a abraçar as várias profissões ou a realizar diversos
esforços produtivos. De fato, o próprio Freud, com a sua análise de Leonardo da
Vinci, * sugere que podemos, num tipo muito determinista de análise,
compreender como um indivíduo é capaz de produzir os alicerces em que a sua
produção assenta. Ora, no caso da vida pessoal de Freud, de que modo o senhor
acha que ela influenciou o rumo das suas teorias psicanalíticas e as formulações
delas decorrentes?

Cf. ”Leonardo da Vinci e uma Lembrança da Sua Infância”, em Edição Standard


Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigrmund Freod, Vol. XI, Editora Imago,
1970, trad. de Walderedo de Oliveira. (N. do T.)
160
REAÇÕES DE ERNEST JONES

Dr. Jones: Bem, teremos de voltar a fazer aqui uma distinção. Penso que a
principal direção em que ele foi influenciado deve ser encarada do ponto de vista
do interesse; determinadas coisas levaram Freud a interessar-se por isto, aquilo
ou aqueloutro. Isso é um primeiro aspecto da questão. Outra consideração
implícita na sua pergunta diz respeito à formulação concreta das suas várias
teorias científicas. E temos ainda um terceiro aspecto, isto é, em que medida as
suas inclinações pessoais, a sua própria concepção geral da vida, exerceram uma
influência mais ou menos marcada sobre ele. Temos, assim, três coisas distintas.
Qual deveremos abordar primeiro?
Eu diria que, em última instância, deve certamente existir alguma forma de
curiosidade. Por que motivo a curiosidade adotaria essa direção determinada,
depende, provavelmente, de influências infantis mais delicadas do que
poderíamos hoje apontar com segurança. Mas, no que respeita a quaisquer
influências pessoais que atuassem sobre as suas teorias, não tenho
conhecimento algum disso. Eu diria que as suas teorias eram objetivas e
originadas em conseqüência de suas experiências. Deparou com certos fatos e
tentou agrupá-los, como qualquer cientista faz; tentou fornecer-lhes uma hipótese
que os unificasse. Naturalmente, é óbvio que as suas experiências pessoais
devem tê-lo influenciado muito, em sua concepção geral da vida. Por exemplo,
Freud era ateu. Isso deve ter sido causado por algum fato ocorrido nos primeiros
anos de vida. Não foi criado com uma forte influência religiosa, de modo que deve
ter sido fácil para ele dispensar a religião. Que mais poderemos dizer?
Dr. Evans: Bem, por exemplo, vejamos o fato de seu pai ser muito mais
velho que a mãe. O senhor acha possível que essa diferença de idade seja
discernível em algumas das formulações de Freud?
Dr. Jones: Acho que isso lhe.tornou mais difícil reconhecer a situação
edípica. Ele amava muito o pai e davam-se bem, pois eram de tipos mentais
seme-
161
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

Ihantes. O pai era um homem de mentalidade liberal, bem-humorado, espirituoso


e livre-pensador, tal como o próprio Freud. Freud tinha um extraordinário senso
de humor e adorava anedotas etc. A maior parte dessas qualidades foi herdada
do’pai. Assim, descobrir que havia no seu íntimo uma aversão secreta ao pai deve
ter sido extremamente difícil para ele.
Dr. Evans: Alguns autores disseram que uma das razões pelas quais o Dr.
Freud foi capaz de sondar tão profundamente a personalidade humana e ver o
pior que havia no homem decorria do fato dele trazer no seu íntimo uma profunda
aversão ao homem.
Dr. Jones: Qualquer um pode formular um juízo e dizer: ”Bem, acho que o
homem é uma criatura bastante mesquinha; ele tem este e aquele defeito”,
fazendo, por assim dizer, um juízo intelectual. Isso é muito diferente de uma
atitude emocional de que pudesse resultar uma afirmação como ”Odeio todos os
homens” ou ”Amo todos os homens”. Acho que ambos esses extremos são
anormais. Um homem que diz ”Detesto a humanidade toda” ou um homem que diz
”Amo todos os homens” deve ter alguma coisa errada, num caso ou outro. Por
outras palavras, nada há de objetivo nessa espécie de avaliação emocional e não
acho que Freud fosse carente de objetividade.
Ele teve a mesma relutância que qualquer outro em aceitar algumas das
coisas que estava descobrindo através da sua obra: o reconhecimento da
sexualidade infantil, os complexos de Édipo etc. De fato, ele teve ainda mais
relutância em ver essas coisas do que muitos, porque Freud era, como diria eu,
uma pessoa muito respeitável, muito casto e puritano por natureza, ao longo de
toda a sua vida. Ele logrou, sem dúvida, expressar mais tarde as suas idéias mais
livremente, quando obteve um conhecimento mais completo e seguro da natureza
humana.
Sobre o amor, entretanto, havia algo de especial no que diz respeito a
Freud, embora eu não creia que isso tenha influenciado muito as suas teorias. Ele
era propenso a gostar das pessoas com quem travava conhe-
162
REAÇÕES DE ERNEST JONES

cimento e a sua tendência era para esperar delas mais do que recebia; acreditava
que cada nova pessoa que conhecia era uma excelente criatura, maravilhosa em
todos os aspectos. Depois, é claro, quando as suas expectativas não eram
correspondidas, ficava decepcionado e passava a ignorar o sujeito, podendo até
mostrar-se desagradável com ele, em conseqüência da sua mágoa intima.
Dr. Evans: Em resumo, uma espécie de desilusão.
Dr. Jones: Sim, desilusão. Ele próprio preparava essa desilusão.
Evidentemente, as suas relações com Jung são um exemplo óbvio. Ele tinha Jung
no mais alto apreço, colocou-o nas alturas e só via no amigo qualidades e
virtudes excelsas. Depois, veio a cesuusão. E Freud desmteressou-se
completamente dele. Era uma peculiaridade de Freud, mas não creio que tenha
influenciado as suas investigações ou teorias.
Dr. Evans: O senhor acredita que ele era capaz de separar, realmente, o
que era pessoal daquilo que era a sua obra?
Dr. Jones: Sim, perfeitamente.
Dr. Evans: Na opinião de alguns, Freud tornou-se, na fase final de sua
obra, mais especulativo do que científico no exame de problemas tais como a
religião e a guerra. O senhor acha que a obra de Freud poderia ser melhor
compreendida se pudéssemos separar esse tipo de especulação das suas
observações mais fundamentais?
Dr. Jones: Sim, definitivamente.
Dr. Evans: Quando podemos afirmar que a obra de Freud se tornou mais
um reflexo de uma ideologia pessoal, em contraste com o período anterior,
quando seus trabalhos podem ser descritos como mais científicos e objetivos?

163

ENTREVISTAS com CARL G. JUNG


Dr. Jones: Penso que existe um ponto muito claro onde podemos
estabelecer essa distinção: o ano seguinte ao final da Primeira Guerra Mundial, o
ano de 1919, quando ele estava escrevendo o livro Para Além do Princípio de
Prazer (8). Nesse livro, ele enveredou pela Filosofia, a respeito da sua concepção
do instinto de morte. Supunha Freud que o instinto de morte é não só um atributo
humano, mas um conceito que se aplica a toda a matéria viva. Há uma tendência
inata para a autodestruição, não só em todos os animais, mas também nos
vegetais. Ora, é preciso que se diga que isso não é uma concepção biológica e
também deve ser dito que, estritamente falando, não é uma concepção científica.
É uma idéia como qualquer outra idéia filosófica. Creio que esse período, na
carreira de Freud, marca o início da expressão ideológica a que o senhor se
referiu. É possível, depois disso, identificar vários elementos, mas estão todos
misturados, não acha? Quero dizer, ele era um racionalista, o que significa que
Freud tentava manter uma posição objetiva ao examinar isto ou aquilo, em vez de
depender da intuição ou da emoção. Assim, no que diz respeito aos seus livros
sobre psicologia de grupo, mesmo os que estão abrangidos naquele período,
creio que é necessário levar em conta o aspecto racional, que é realmente a parte
científica, assim como a sua perspectiva pessoal. Não é tudo meramente pessoal.
Dr. Evans: Em algumas de suas últimas obras sobre telepatia mental,
clarividéncia etc., poderia o conteúdo delas ser classificado no âmbito das suas
pesquisas autenticamente empíricas?
Dr. Jones: Não, em absoluto. Tudo isso foi puramente pessoal. Quer dizer,
ele considerava, ou era a sua opinião, que havia suficientes provas para sustentar
esta ou aquela convicção. Muito bem. Se consideramos ou não essas provas
suficientes, num determinado caso, para extrair conclusões não pode, em última
análise, ser inteiramente objetivo. Somos quase sempre influenciados pró ou
contra por algum preconceito ou elemento emocional oriundo da nossa própria
formação. No
164
REAÇÕES DE ERNEST JONES

caso de Freud, existia uma tendência para acreditar e, ao mesmo tempo, uma
tendência para duvidar. É muito interessante que, em seus diferentes enunciados,
podemos observar claramente certas alternações. Havia em Freud uma atitude
crédula que alternava com uma atitude cética. Ele alimentava ambas, sem dúvida.
Dr. Evans: Ainda a propósito da influência da filosofia pessoal ou ideologia
sobre a criatividade de uma pessoa, sabemos, é claro, que havia considerável
anti-semitismo na área onde Freud vivia; e, em decorrência disso, há muita gente
que tende a associar as teorias sexuais com o judaísmo.
Dr. Jones: Como Hitler? Sim, creio que ele fez essa associação.
Dr. Evans: Estava Freud cônscio do anti-semitismo, de um modo tão
profundo que pudesse perturbá-lo?
Dr. Jones: Sim, devo dizer que provavelmente estava. Eu não me atreveria
a dizer que não. Encontrou-o de uma forma bastante violenta, em épocas
diferentes. Durante anos e anos, não lhe foi conferido título algum na
Universidade; todas as vezes que concorria era rejeitado.
Em algumas das experiências mais antigas de sua vida, na infância e
adolescência, de que tenho conhecimento, sei que se riam à custa dele, E Freud
era, sim, creio que era um jovem muito sensível, dado a refletir muito e que,
provavelmente, se perguntava: ”Por que tudo isto? O que é que há de tão peculiar
a nosso respeito? As pessoas não costumam desfeitear as outras dessa maneira.”
Esses sentimentos, naturalmente, levaram-no depois a escrever o seu último livro,
Moisés e Monoteísmo (9). Versa sobre a natureza do judaísmo. Sim, creio que o
senhor tem razão. Freud foi sensível ao anti-semitismo durante a vida toda.
Dr. Evans: Para ir um pouco mais longe nesse problema geral, o senhor
abordou um ponto que acho muito interessante. Pareceu-me ter sugerido que
165
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

Freud provinha de um meio bastante puritano e que ele próprio era, numa
acepção moral, acentuadamente puritano. Correto?
Dr. Jones: Não, não é isso. Eu não me referia ao seu meio familiar ou à
formação por ele recebida. O que eu disse foi que Freud era mais moralista e
puritano do que o seu meio. Sua mãe era uma pessoa muito condescendente,
muito acessível e despreocupada. Era uma criatura muito moral em sua conduta,
sem dúvida, até onde me foi dado saber, mas eu não a qualificaria como uma
pessoa puritana.
Dr. Evans: É bastante estranho, a distorção que ocorre no ponto de vista
de um homem e em suas teorias, quando são sujeitos a várias interpretações.
Por exemplo, houve muita gente que ficou horrorizada com as teorias de Freud,
porque acreditava que elas pregavam, mais ou menos, o amor livre e que a
monogamia era incompatível com a doutrina psicanalítica, que não devíamos
reprimir os impulsos sexuais para não ficarmos neuróticos e assim por diante.
Freud estava a par dessas interpretações errôneas de sua obra?
Dr. Jones: Claro que estava. E também sabia que muito do conteúdo de
sua obra estava sendo atribuído à atmosfera local de Viena, o que ele
considerava absolutamente idiota. Se era realmente verdade que, no seu tempo,
o modo de vida vienense era mais livre... e isso ignoro... do que em outras
grandes cidades, como Berlim ou Londres, então Viena seria o último lugar do
mundo para se descobrir a repressão. Freud disse-me certa vez:
— Sempre pensei que essa acusação deve encobrir outra; o que eles
realmente querem dizer é o ambiente judaico, não o ambiente de Viena.
Dr. Evans: Vamos pôr agora de lado esse problema geral da influência da
filosofia pessoal sobre a sua obra para abordar uma questão que tem sido um
centro de controvérsia, sobretudo nos Estados Unidos e, em certa medida, na
Inglaterra; refiro-me ao grau de
166
REAÇÕES DE ERNEST JONES

liberdade que deve ser concedido às crianças, à medida que crescem. Existem
algumas posições extremas sobre essa questão.
Temos a posição extrema que segue o critério disciplinar, aquele que,
historicamente, foi parte integrante da maioria das nossas culturas. Utilizando
essa abordagem, controlamos quase completamente a criança e damos-lhe muito
pouca liberdade.
Depois, é claro, o outro extremo foi um critério muito tolerante, em que se
permite à criança que desenvolva a sua individualidade, não tentando impor-lhe
quaisquer restrições nem a frustrando em suas exigências, sejam estas quais
forem. Em conseqüência deste segundo critério, temos visto, em muitas famílias,
as crianças comportarem-se de um modo destrutivo e anti-social, com os pais
tolerando esse comportamento por temerem causar frustrações aos filhos.
Infelizmente, sobretudo nos Estados Unidos, muitos indivíduos responsabilizaram
por isso a Psicanálise...
Dr. Jones: Por ambos os critérios?
Dr. Evans: Não por ter sugerido o critério tolerante, a ausência de
restrições. De fato, muitos leigos referem-se ao ”método psicológico” como um
produto da obra de Freud. Gostaria que o senhor comentasse sobre o modo como
Freud encarava, realmente, esse problema.
Dr. Jones: Ele reconhecia que as frustrações são uma , parte inevitável da
vida numa comunidade Tem de haver frustrações. Ninguém pode fazer tudo o que
quer ou gosta. Não pode defecar na rua, e limitações como essa começam a ser
impostas logo na infância. A criança tem frustrações externas, como só ter acesso
no seio materno em determinadas ocasiões ou em certas horas. Tais frustrações
são inevitáveis. A mãe não está sempre no mesmo quarto; por vezes, quando a
criança chora, pedindo a presença da mãe, esta encontra-se ocupada em outro
quarto, outra frustração inevitável.
167
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

Há também as frustrações inevitáveis na vida sócia*, com que um indivíduo


tem de se defrontar, quer queira, quer não. Ora, o grau em que ele experimenta
dificuldades com essas frustrações sociais depende, em minha opinião, da maior
ou menor capacidade do indivíduo em tolerá-las. Abolir as frustrações não é a
resposta; a pessoa deve aprender a tolerá-las.
Dr. Evans: Assim, era o ponto de vista psicanalítico de Freud e é
certamente o seu, também, que a criança em desenvolvimento, para que possa
adquirir a tolerância à frustração, deve ser exposta a algumas frustrações.
Dr. Jones: Bem, o senhor está exposto a elas, de qualquer jeito, e é muito
fácil esquecer isso quando se discorre sobre liberdade.
Dr. Evans: Ainda na mesma linha de idéias, um autor muito interessante,
nos Estados Unidos, o Dr. David Levy, postulou a existência de uma infeliz
propensão, por parte de um número cada vez maior de mães, para
superprotegerem os filhos. Essa superproteção, que assume diversas formas,
prolonga, essencialmente, o infantilismo da criança. O senhor diria, a esse
respeito, que se trata, primordialmente, de um padrão cultural, um padrão que
poderia ter decorrido, por exemplo, das características da cultura americana, não
indicando, necessariamente, qualquer tendência inata na mãe? Ou diria, pelo
contrário, que existe uma tendência Inata para a superproteção em todas as mães
e em todas as culturas?
Dr. Jones: Eu diria que existe uma tendência superprotetora em todas as
mães. De fato, a mãe experimenta, por causa dessa tendência, uma certa soma
de conflito, visto que, quando o filho atinge a idade adulta, não precisa mais
desse gênero de proteção, forçando a mãe a renunciar a algumas manifestações
dessa tendência. E isso nem sempre é fácil para ela.
168
REAÇÕES DE ERNEST JONES

Dr. Evans: Portanto, trata-se de algo que, possivelmente, não é típico de


qualquer cultura em particular?
Dr. Jones: Certamente que não é peculiar nesta ou naquela cultura, mas é
provável que varie em intensidade ou vigor em diferentes culturas. É claro que
pode ser reforçada por certas atitudes sociais. Creio que essa tendência tem sido
mais acentuada na América, por exemplo, do que na Alemanha; mas, repito,
aquilo em que se baseia é biológico. Existe na pessoa; pode ser estimulado ou
controlado, mas não pode ser criado por qualquer fator cultural.
Dr. Evans: Muito bem, falemos agora do problema do tratamento das
perturbações mentais. Além da técnica pioneira da Psicanálise, vários outros tipos
de técnicas para tratamento dessas perturbações foram desenvolvidos. Entre
eles, citaríamos a terapia de choque, a psicocírurgía, as variações da abordagem
psicanalítica original etc.
Um dos desenvolvimentos mais recentes foi o uso de drogas
tranqüilizantes. De fato, a primeira delas, a clorpromazina, foi usada pela primeira
vez aqui na França. Depois dela, numerosos tranqüilizantes mais suaves foram
produzidos, os quais são receitados pelos médicos numa grande escala. Qual é a
sua opinião sobre essa prática?
Dr. Jones: É como Instalar uma válvula de segurança em uma caldeira a
vapor. Claro que se pode fazer cair a pressão, dando saída ao vapor em excesso.
Se o senhor quiser, pode ministrar uma droqa que ponha a pessoa inconsciente;
dê-lhe bastante ópio e verá que a sua pressão cai a zero. O mesmo princípio se
aplica na redução do grau de tensão com barbitúricos ou coisa parecida. O
senhor reduzirá o grau de tensão no indivíduo, mas não estará mudando coisa
alguma. Seja o que for que causou a tensão, ainda continua lá. Se suspender a
droqa, ela voltará. Não creio que exista qualquer prova para demonstrar que uma
droga, seja ela qual for, pode mudar a personalidade ou o conteúdo
169
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

de determinados conflitos ou idéias que perturbam o indivíduo.


Dr. Evans: Há a opinião de que certos tipos de pacientes psicóticos
seriamente doentes, como os esquizofrênicos, com quem o psicoterapeuta é,
simplesmente, incapaz de comunicar, tornam-se mais acessíveis à terapia depois
da aplicação de drogas. Em que condições acha que o uso de drogas é
aceitável?
Dr. Jones: Não, não acho que seiam muito úteis em caso algum. Há alquma
utilidade em tornar o paciente mais acessível, diqamos. à terapia psicanalítica?
Não. não o creio, poraue quando amortecemos as emoções dessa maneira,
tornamos o paciente menos acessível à mudança; e, é claro, mudar o paciente é a
nossa finalidade. Temos de dominar uma coisa antes de poder manobrá-la, antes
de poder mudá-la. Ao abolir temporariamente essa coisa, não estaremos
avançando nada
Dr. Evans’ Por outras palavras, embora pareça ser um modo de tornar o
paciente mais acessível, na realidade está fazendo com que ele seja menos, é
isso?
Dr. Jones: Correto, torna-o menos acessível.
Dr. Evans: Claro, tudo isso é um reflexo dos novos desenvolvimentos no
tratamento de pacientes muito mais gravemente perturbados, como os
psicóticos.
Dr. Jones: Tornou-se um recurso prático, equivalente às camisas-de-força
dos velhos tempos... nada mais do que um meio prático de ”amarrar” o paciente.
Dr. Evans: Outro problema importante, formulado ainda não faz muito
tempo por Julian Huxley, refere-se ao conflito entre os proqressos extremos no
desenvolvimento tecnológico do homem e o seu desenvolvimento psicossocial
muito limitado. Por exemplo, foram criados meios tecnológicos que poderiam
destruir a humanidade inteira, ao passo que o nosso desenvolvimento
170

REAÇÕES DE ERNEST JONES


psicossocial, a nossa capacidade de relacionamento humano, não foi
suficientemente longe para nos garantir contra tal evento.
Dr. Jones: Sim, já escrevi alguma coisa a esse respeito. De fato. o terceiro
volume da minha biografia de Freud termina com uma referência a isso. Permita-
me que leia os parágrafos finais. Eles tratam daqueles dois instintos fundamentais
em que Freud tanto trabalhou: o sexual e o agressivo:
”Quando consideramos as empolgantes realizações do homem na arte e na
ciência, devemos pensar que não existem limites previsíveis em seu poder para
alcançar a felicidade e a segurança. Mas essa visão é toldada por outra mais
sombria e ameaçadora. Nela se distinguem três elementos básicos. Os
progressos na Ciência Médica, que estão agora fadados a prosseguir
rapidamente, combinados com o aumento da prosperidade geral, diminuíram a
seleção natural da qualidade. Também provocaram um recrudescimento tão
grande na quantidade da população que não pode estar longe o dia em que os
recursos da Terra serão seriamente desgastados. Além disso, a ganância e a falta
de previsão não só fracassaram na preservação desses recursos, sobretudo, o
solo e os minerais da crosta terrestre, como ainda os dilapidaram e destruíram
numa cadência verdadeiramente alarmante. Ainda mais grave é a observação de
que os poderes destrutivos do homem foram de tal modo fortalecidos pelo
conhecimento recém-adquirido de novas armas que está agora ao seu alcance
efetuar uma destruição que suplantará os esforços de um Atila, de um Tamerlão
ou de um Gêngis Cã, cujas façanhas, comparadas aos recursos atuais, não
passaram de travessuras infantis. Agora, não é um massacre que nos ameaça,
mas a possível extinção de toda a vida em nosso planeta. Basta que um louco se
instale num cargo de autoridade, como presenciamos há pouco, para que se
desencadeie o holocausto que tudo reduzirá a cinzas. Tampouco poderemos estar
certos de que alguém menos louco não chegue ao mesmo resultado.
”No turbilhão de idéias conflitantes em que vivemos, nas esferas da arte,
da ciência e, sobretudo, da política,
171
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

em que estadistas de tremenda importância podem exibir sua selvajaria, medo e


irracionalidade, todas as piores características de uma creche indisciplinada,
parece existir uma proposição que exige uma concordância quase universal: o
controle que o homem obteve sobre a natureza ultrapassou de longe o seu
controle sobre si próprio. A infelicidade do homem e as ameaças de hecatombe
final que pairam sobre ele decorrem dessa inatacável verdade. O maior inimigo e
a principal ameaça para o homem é a sua própria natureza indisciplinada as
forças tenebrosas que se acumulam dentro dele.
”Se a nossa raça for suficiente afortunada para sobreviver mais mil anos, o
nome de Sigmund Freud será recordado como o do homem que, pela primeira
vez, Identificou a origem e a natureza dessas forças, e apontou o caminho para
se realizar uma certa medida de controle sobre elas (15).”
172
PARTE VII

CONCLUSÃO: ALGUMAS OBSERVAÇÕES GERAIS E TEÓRICAS SOBRE O


CONTEÚDO DO DIÁLOGO

Nesta seção, o autor tenta relacionar as contribuições de Jung e Jones


com a corrente principal da ênfase teórica na teoria da personalidade. Também
estabelece contrastes entre os pontos de vista dos dois homens e sublinha o que,
em sua opinião, constitui as introvisões mais interessantes e particularmente
originais fornecidas pelo conteúdo das entrevistas.
Conclusão

A respeito de tudo o que foi escrito por e sobre os entrevistados que


figuram no presente volume, seria comprovadamente difícil determinar se novas e
significativas contribuições, não apresentadas em outra parte, foram aqui
oferecidas ao leitor. De fato, os estudiosos de Jung ou Freud contestariam,
provavelmente, qualquer declaração no sentido de que os esclarecimentos aqui
apresentados constituem novidade... e talvez tivessem razão. com isso em mente,
o autor decidiu compartilhar com o leitor aquilo que, pessoalmente, considera
alguns dos pontos altos das respostas dadas por Jung e Jones às suas
perguntas, sem se preocupar em saber se são ou não inteiramente ”novas”.
Para ajudar a obter certa perspectiva, talvez valha a pena que o leitor
explore as tendências gerais na teoria da personalidade, desde o começo do
século, tal como são vistas pelo autor. É possível assinalar evidentes desvios das
anteriores posições filosóficas, os quais variam no grau em que a
responsabilidade é investida no indivíduo pelo seu próprio comportamento. A
influência biológico-darwiniana sobre Freud, que o leitor notará ter sido
claramente refletida na entrevista de Ernest Jones, levou ao desenvolvimento de
uma teoria que explicava a maior parte do comportamento do indivíduo em função
de determinantes históríco-biológicas. Mais especificamente, esse tipo de teoria
postulou a existência de padrões de desenvolvimento dos impulsos biológicos
que podiam ser identificados nos primeiros cinco anos de vida, para serem mais
tarde interpretados em termos de uma sexualidade inconsciente e reprimida.
Contudo, na fase final de sua carreira, até Freud (7) começou a reconhecer
que ao meio social do indivíduo tinha de ser atribuído um papel mais importante
na determinação do seu comportamento. Isso, é claro, tam-
175
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

bém foi sugerido na entrevista com Jones. As primeiras conceptualizações sociais


de autores como Durkheim (3), Lazarus e Steinthal (20), LeBon (21) e Malmowski
(24) começaram a ter um impacto crescente na teoria da personalidade, o que
pode ser visto no desenvolvimento dos pontos de vista de psicólogos como Adier
(1) e Rank (30). Eles, simultaneamente com outros, divergiram do extremo
determinismo histonco-biológico de Freud e, na década de 1920, as posições do
chamado movimento neotreudiano ganharam grande evidência. Horney (14),
Fromm C11). Kardmer (18), Sullivan (33) e outros começaram a atribuir uma
posição destacada, dentro de suas abordagens da personalidade, as influências
situacionais, sociais e cunurais. A teoria do campo, de Lewin (23), representou um
caso extremo de abordagem não-hisiónica, centrada no meio social. Assim,
tornava-se cada vez mais evidente, na teoria da personalidade, uma clara
mudança de enrase do determinismo biológico-histórico freudiano para o
determinismo sócio-situacional.
Tal como no caso do determinismo biológico de Freud, o determinismo
social pragmático que começou a ser enfatizado na teoria da personalidade
também foi rapidamente assimilado aos valores da sociedade americana.
Entretanto, como é comum ocorrer, um foco de pensamento científico viu-se
submetido a sérios exageros de interpretação.
Depois disso, entretanto, tornou-se evidente uma nova guinada na teoria
da personalidade, ainda noutra direção. Como uma formação de reação contra as
anteriores posições deterministas, registrou-se um gradual, mas constante,
desenvolvimento do interesse pelo indivíduo e seu lugar nesse ”atoleiro de forças
e correntes formativas”. O que poderia ser chamado de ênfase sobre o
autodeterminismo, ”eu individual” ou ”ego-autonomia”, tornou-se cada vez mais
evidente. Os autores mais antigos, cujas idéias tinham sido virtualmente
ignoradas, no começo, foram ”redescobertos”, como se verificou no renovado
interesse pelos trabalhos de Lecky (22) e Angyal (2), suplementados por outros
psicólogos da nomeada de Rogers (32), May (26), Frankl (6), McCurdy (27) e
Maslow (25). A obra de Rank e Sullivan também foi
176
CONCLUSÃO

reavaliada em função da ênfase no eu. Os filósofos fenomenológicos e


existenciais, como Husserl, Kierkegaard, Sartre, Tillich e Heidegger, converteram-
se num foco de interesse para os cientistas sociais.
Essas mudanças do biológico para o social e deste para o
autodeterminismo, como um meio para explicar n ”condição humana” — convém
sublinhar aqui — é, realmente, uma questão de ênfase. Apesar das reivindicações
dos paladinos radicais de cada uma dessas posições, é preciso reconhecer que,
provavelmente, nenhuma concepção simples de determinismo, seja ele biológico,
social ou partidário de uma radical responsabilidade individual, ditada pelo livre
arbítrio, poderá explicar adequada e completamente o comportamento complexo
do indivíduo ou do grupo. Contudo, a responsabilidade pessoal do indivíduo
voltou a ocupar um lugar destacado na primeira linha, talvez com boas razões. É
interessante lembrar que Jung reflete todas essas tendências em vários pontos da
sua entrevista, manifestando certa tolerância em relação a uma combinação
dessas influências.
Por exemplo, é visível em muitas observações de Jung que as suas
concepções são, em certos aspectos focais, inteiramente compatíveis com o
determinismo biológico de Freud. Em outros aspectos, porém, quando tentamos
determinar se Jung enfatizava, necessariamente, a importância da análise
histórica para a compreensão do indivíduo, ele indicou que também era capaz de
discernir as virtudes das análises teóricas não-históricas ou de campo. De fato, as
respostas de Jung sugeriram uma aceitação surpreendentemente equilibrada da
importância de ambos os tipos de análises. Isso é particularmente interessante,
dada a prioridade que Freud outorgou às determinantes primordialmente
históricas da personalidade, assim como as óbvias implicações histórico-
deterministas do inconsciente coletivo ou racial junguiano. Em várias passagens
do diálogo, a referência de Jung a determinantes culturais, e a sua compreensão
a respeito destas, foram evidenciadas através das suas descrições de várias
culturas por ele estudadas, se bem que
177
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

muitas de suas conclusões dificilmente sejam compatíveis com as idéias dos


antropólogos culturais de hoje.
É evidente que, para Jung, são compatíveis a teoria dos arquétipos
universais, o inconsciente coletivo presente em cada indivíduo e as modificações
de comportamento precipitadas pela diferenciação dos modelos ou padrões
culturais. Talvez seja esta uma das mais interessantes introvisões que nos foram
oferecidas nessas entrevistas.
Finalmente, o seu interesse pela natureza de um eu intrínseco e pelo
processo de individuação é certamente coerente com o interesse atual numa
perspectiva autodeterminista, na teoria da personalidade. Isso poderá explicar o
renovado interesse por Jung e sua obra em muitos setores intelectuais.
Uma área de interesse para o autor envolveu as respostas de Jung e
Jones às perguntas formuladas sobre as suas atitudes em relação ao uso de
tranqüilizantes, a fim de tornar os pacientes ”fora de contato” acessíveis à
comunicação terapêutica. Suas respostas foram semelhantes, na medida em que
ambos opinaram que tais drogas meramente ”amortecem” as emoções dos
pacientes e não acreditam que se possa esperar uma autêntica reorganização da
personalidade do paciente, a partir de uma psicoterapia baseada no emprego de
tais drogas. Essas respostas estavam, em sua maior parte, em concordância com
as tradicionais reservas psicanalíticas a respeito da suplementação artificial do
processo natural de psicoterapia. Por exemplo, os freudianos e junguianos têm
sido, caracteristicamente, ainda mais hostis ao uso da terapia de choque e da
psicocirurgia do que as reservas manifestadas por Jung e Jones, nessas
entrevistas, em relação ao uso de tranqüilizantes como medida terapêutica
suplementar.
Muitos indivíduos ficaram surpreendidos ao descobrirem que Freud
acreditava fortemente na presença da percepção extra-sensorial. É interessante
notar, entretanto, a firmeza com que o Dr. Jones claramente depreciou, em
resposta a uma pergunta nossa, os escritos de Freud nessa área, considerando-
os um produto da filosofia de vida de Freud, refletida nos trabalhos do seu
178
CONCLUSÃO

último período, não podendo ser confundidos com os anteriores pronunciamentos


freudianos, estes, sim, vercadeiramente científicos. Por outra parte, nessa mesma
área, Jung não só concordou em que as formas de percepção extra-sensorial são
francamente compatíveis com a sua função intuitiva, mas pareceu afirmar, quando
indicou a sua concordância com as conclusões estatísticas de J. B. Rhine, que
esse fenômeno tem uma base científico-estatística. Ele deu até a entender que a
sua teoria de sincronicidade, a qual abrange os eventos parapsicológicos, poderia
ser algum dia corroborada por novas formas abstratas da Matemática.
Quando Jung criticou os médicos americanos em seu despertar muito lento
para uma compreensão da Medicina Psicossomática, havia um lampejo irônico em
seus olhos que, é claro, não foi visível ao leitor. Contudo, a atitude algo jocosa
que ele assumiu não obscurece o ftito de acreditar ele firmemente que os seus
anteriores trabalhos com tuberculosos tinham demonstrado, há cerca de
cinqüenta anos, a importância de se compreender as determinantes psicológicas
de doenças físicas. Também foi divertido notar que tanto Jung como Jones
refletiram uma velha concepção européia a respeito dos Estados Unidos, quando
sugeriram que a juventude nesse país é extremamente rebelde e que a existência
americana se caracteriza por um ritmo tão rápido que só o recurso a
tranqüilizantes é capaz de abrandá-lo.
As reações de Jung às nossas perguntas sobre aspectos específicos da
teoria freudiana refletiram, freqüentemente, uma certa forma de condescendência,
embora estivessem longe, certamente, da aceitação inequívoca e incondicional
manifestada pelo Dr. Jones. Em vez de assumir uma atitude de clara
discordância, Jung preferiu sugerir que Freud não tinha ido suficientemente longe
ou que se ativera aos aspectos mais óbvios dos problemas. Por exemplo, para
Jung, o complexo de Édipo é apenas um dentre uma quantidade infinita de
arquétipos. Parece estar zombando de Freud por ter descoberto apenas esse
arquétipo e supor que toda a humanidade gravitava em torno dele, ignorando
completamente os outros arquétipos. Do mesmo modo, parecia
179
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

sentir que muitos detalhes do desenvolvimento psicossexuai, tal como Freud os


descrevera, eram um tanto asnáticos. O sarcasmo, como o leitor recordará,
acompanhou definitivamente as suas respostas às nossas perguntas sobre os
níveis oral e anal do desenvolvimento, propostos por Freud. Não rejeitou essas
idéias, mas sugeriu que eram por demais eficientes para que se revestissem de
qualquer importância.
Um interessante ponto de discordância entre Jung e Freud teve por fuicro a
importância do motivo de poder. Como o leitor recordara, Jung afirmou que as
concepções de poder de Nietzscne, embora conscientemente ignoradas por
Freud, estavam disfarçadas, não obstante, em termos de sexo, nas teorias de
Freud. Além disso, ele parecia considerar que a libido tinha um importante
componente de poder, assim como abrangia outras necessidades do indivíduo,
além do sexo. Insistiu em ver a concepção freudiana da libido como estando
centrada na energia sexual. Contudo, a reação de Jones à nossa pergunta sobre
a alegada preocupação de Freud com o motivo sexual dana a concepção
treudiana da libido, em muitos aspectos, tanta amplitude quanto a concepção de
Jung. De fato, em muitas ocasiões, Jung estava criando, provavelmente, uma
espécie de ”espantalho” com respeito as idéias de Freud. É improvável que Freud
tivesse alguma vez pretendido ser interpretado tão literalmente quanto Jung o
interpretou, com freqüência, no decorrer das entrevistas. Entretanto, o autor deve
confessar aqui que, provavelmente, prepaiou o palco para essas interpretações
literais, por parte de Jung, por causa da necessidade de formular as perguntas de
um modo simultaneamente claro e provocativo, se bem que Jung nunca tivesse
contestado, virtualmente, as descrições não só literais, mas, com freqüência,
necessariamente incompletas, que o autor fazia das concepções de Freud.
Em seus esforços para ”desnudar” alguns aspectos essenciais da teoria da
personalidade, de Jung, o autor apreciou o modo desconcertante com que Jung
admitiu que certas idéias suas eram complexas ou difíceis de entender. Por
exemplo, o autor achou um tanto vagas algumas conceptualizações de Jung ao
descrever a sua
180
CONCLUSÃO

função intuitiva. O leitor lembra-se-á que, em certa altura, em resposta a uma


pergunta sobre o tipo introvertidointuitivo, Jung admitiu francamente que isso era
muito difícil de explicar em poucas palavras. Passou então a fazer uma extensa
descrição, envolvendo alguns casos extraordinariamente interessantes, como o
da moça que tinha uma cobra na barriga. Sem dúvida, ele aceitou essa tarefa de
explicação e a necessidade de esclarecer honestamente e sem afetação.
Estou certo de que o leitor ficou tão encantado quanto este autor diante da
tentativa de Jung de se assegurar de que havíamos entendido bem que ele não
só ”inventara” os termos vulgarmente conhecidos ”introvertido” e ”extrovertido”,
mas que o termo ”complexo” era igualmente de sua autoria. Uma vez mais, nesse
episódio como em muitos outros, a cintilação peculiar nos olhos de Jung deixava
claro ao autor que ele não estava empenhado em jactâncias gratuitas.
Embora isso não fosse apresentado na parte filmada das nossas
entrevistas, o autor estava vitalmente interessado na freqüentemente ouvida
acusação de que Jung tinha sido simpatizante dos nazistas e talvez fosse até
anti-semita. Em resposta à pergunta sobre esse ponto, Jung perdeu a sua calma
habitual e negou veementete tais acusações. Na literatura junguiana não faltam
as elaboradas discussões sobre os prós e os contras dessa questão, mas, nessa
ocasião, Jung respondeu à nossa pergunta da seguinte maneira:
Para ele, quando Freud e os outros fugiram do Terceiro Reich, havia o
grande perigo de que a força do movimento psicanalítico diminuísse, visto que a
Alemanha tinha sido um dos seus centros vitais. O fato de ter assumido a direção
do jornal psicanalítico de Berlim foi, simplesmente, um meio que encontrou de
manter ativo, pelo menos, esse centro intelectual do movimento. Ainda estava
perplexo sobre como isso podia ser interpretado como prova de simpatia pelos
nazistas. Reconhecia que Hitler era um fenômeno digno de estudo, mas tinha o
mais completo desprezo pelo que ele representava e fazia, sob todos os
aspectos. Citou experiência após experiência para ilustrar a natureza das suas
181
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

relações com indivíduos judeus ao longo de sua vida e assinalou que os próprios
judeus que o haviam conhecido mais intimamente, alguns dos quais estiveram
entre os defensores e intérpretes mais significativos de suas idéias, tomaram a
peito contraditar e destruir o mito do seu anti-semitismo. Jung concluiu
perguntando como é que alguém poderia verdadeiramente compreender a
profundidade de suas teorias sobre a compreensão do indivíduo e acusá-lo de
preconceitos contra os crentes de uma religião que reflete a sabedoria de longas
eras.
Outra área que parecia perturbá-lo, conforme se refletiu em suas
respostas, dizia respeito à acusação de que era um místico. Não obstante o fato
de que muitos de seus escritos, à parte as suas formulações respeitávies à
personalidade que estão refletidas no presente volume, se ocupa de problemas
metafísicos, transcendentes e francamente espirituais, Jung parecia contrariado
pelo rótulo de ”místico”. Era como se Jung, o médico, psicólogo e cientista,
estivesse desde há muito empenhado numa batalha com Jung, o filósofo e
especulador. Nesse ponto, a interpretação do autor é que, quando Jung objeta a
ser designado por místico, ele está sugerindo que formas superiores e mais
complexas de inquérito científico acabarão, algum dia, por validar as suas
conceptualizações menos concretas. Ele parecia acreditar que uma renovação
criadora poderia alterar radicalmente o curso do que acreditamos ser o verdadeiro
domínio da ciência.
Seja como for, somos gratos ao Dr. Jung pela sua entusiástica disposição
para desempenhar o papel de educador, na mais alta acepção da palavra,
enquanto pacientemente respondia às nossas perguntas, hora após hora.
Esperamos que as idéias aqui apresentadas proporcionem um vasto campo de
comunicação de algumas conceptualizações fundamentais de Jung.
Também esperamos que as reações de Ernest Jones o tenham
apresentado não só a uma nova e interessante luz, quando comparado com Jung,
mas o revelem também como um intelectual e erudito de primeira ordem.
182
APÊNDICE A

Relatório sobre o Projeto de Filme Jung-Jones: Submetido pela


Universidade de Hotiston ao Fund for the Advancement of Education1

A hipótese básica do projeto foi que a filmagem, por comparativamente


baixo custo, de depoimentos por grandes pensadores sobre o significado de suas
obras poderia ser usada como fonte educativa primária, destinada à instrução em
nível universitário. Essa hipótese implicou ainda que tais filmes seriam de
extraordinário valor, tanto para fins didáticos imediatos como para acervo de
arquivo, não sendo sua intenção substituir, mas suplementar, idêntico material em
forma impressa.
Como o Departamento de Psicologia, academicamente uma das áreas
mais fortes da Universidade de Houston, estava interessado na hipótese básica
do projeto e realizara anteriormente um extenso trabalho em filme e televisão,
esse departamento foi convidado pelo Comitê Supervisor do Programa de
Instrução Acelerada e Aperfeiçoada, encarregado do projeto, de selecionar uma
área de instrução e propor séries específicas de filmes que fossem apropriados
para testar a hipótese básica.
O trabalho exploratório do Dr. Richard I. Evans, do Departamento de
Psicologia, logo revelou a possibilidade de se produzir uma série de entrevistas
filmadas, de uma hora de duração cada, com o Dr. C. G. Jung em Zurique, Suíça,
e uma entrevista com o Dr. Ernest Jones em Paris, França. Foi planejado,
finalmente, que

I. Modificado pelo autor para o presente volume do relatório original preparado pelo Dr.
John W. Meaney e o autor, corn a finalidade de enfatizar, particularmente, a versão
filmada das entrevistas com Jung (5).
183
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

essas entrevistas ocupariam seu lugar num grupo maior de trinta filmes, cuja
finalidade era servir como alternativas audiovisuais a uma parte das aulas de um
curso que já faz parte do currículo do departamento de Psicologia e se intitula ”A
Psicologia da Personalidade”. A idéia de usar a técnica de entrevista era garantir
a espontaneidade nas declarações feitas pelos grandes pensadores, de modo
que os depoimentos fossem endereçados diretamente a uma pessoa e não a uma
câmera; e assegurar também que as perguntas respondidas pelos entrevistados
seriam as mais apropriadas para inclusão no contexto de um determinado curso.
O projeto foi aprovado porque parecia oferecer um modo particularmente notável
de aplicar as vantagens das técnicas de cinema e televisão a um currículo
estabelecido, tornando a instrução acessível não só a um maior número de
estudantes, mas, o que é mais importante, introduzindo progressos qualitativos
concorrentes na própria instrução.
As entrevistas propostas foram filmadas em Paris e Zurique durante o final
de julho e princípios de agosto de 1957. O entrevistador foi o Dr. Evans, e o
trabalho de produção foi organizado e dirigido pelo Dr. John W. Meaney, Diretor
do Centro de Rádio, TV e Cinema da Universidade de Houston.
Um intensivo programa de experimentação, para testar um dos filmes no
grupo, foi mais tarde instituído pelo Dr. Evans. Um completo script impresso do
conteúdo do filme foi submetido a um grupo de estudantes, simultaneamente com
meticulosos exames pré-realização e pós-realização, baseados no material. A um
grupo acompanhante foi mostrado o próprio filme e administrado um exame
semelhante. Os resultados revelaram que tanto o grupo do script como o do filme
melhoraram significativamente os escores de aprendizagem, mas que a diferença
no grau de aprendizagem entre os dois grupos não era significativa. Por outras
palavras, o conteúdo do material comunicado pelos dois veículos, o filme e a
imprensa, foi aproximadamente igual. Além disso, um experimento menos
cuidadosamente controlado que tentou comparar a eficácia da aula normal com
184
APÊNDICE A

a eficácia da entrevista filmada, sobre a mesma matéria de estudo, pareceu dar


uma nítida vantagem ao filme.
Experimentos adicionais, destinados a medir as mudanças nas atitudes dos
estudantes em conseqüência de lerem visto o filme, as mudanças de atitudes em
relação à técnica de entrevista filmada, em relação a C. G. Jung como pessoa e
em relação a um grupo de conceitos teóricos de Jung, foram propensos a indicar
que as entrevistas filmadas com pensadores importantes são comparativamente
mais eficientes do que os métodos convencionais de ensino para ativar o
interesse do estudante e para modificar as suas atitudes. Os comentários verbais,
de natureza informal, dos estudantes, após assistirem à exibição do filme,
incluíram observações como: ”Puxa, isso foi interessante”; ”Quando podemos ver
o outro filme?”; ”Aprendi mais sobre a teoria de Jung do que com a leitura de
qualquer dos seus livros”: e ”Nunca pensei que Jung fosse um indivíduo tão
dinâmico”. Reações correspondentes não foram tão freqüentes por parte das
pessoas que leram o script da entrevista sem ver o filme.
Essas provas parecem indicar que tais filmes contêm uma promessa
definitiva como recurso didático. Podem comunicar informação de uma forma tão
eficaz, pelo menos em alguns casos, quanto os métodos convencionais de aula e
conferências; e funcionam de um modo significativamente promissor para
provocar o interesse do estudante — um fator crítico no processo educacional.
Não devemos esquecer que esses experimentos envolveram apenas um
filme, de uma série de cinco entrevistas filmadas, e que mesmo o grupo de cinco
filmes tem o propósito de constituir apenas uma pequena parte de um grupo
programado de trinta filmes, com o objetivo fundamental de constituir o
equivalente das aulas convencionais num curso intitulado ”A Psicologia da
Personalidade”. Quando projetados nesse âmbito mais vasto, os resultados
desses experimentos sugerem a possibilidade de um progresso definitivo,
qualitativo, no ensino, oferecendo aos estudantes motivação superior, estímulo e
reforços periféricos de aprendizagem ocasiona-
185
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

dos pela sensação de um contato pessoal com um grande pensador.


Em termos de espaço e tempo universitários, de recursos financeiros e
administração, há outras e notáveis implicações. Uma vez em filme, essas
entrevistas didáticas são acessíveis, mediante pedido, a grupos disseminados de
estudantes e pessoas interessadas (por exemplo, através da televisão educativa),
indivíduos residentes nas universidades ou adjacências em diversas cidades. O
ensino em questão pode ser facilmente programado segundo esquemas da
máxima eficiência ou em qualquer combinação de esquemas adequados para
determinados grupos de estudantes.
O tempo empregado na realização das entrevistas investido pelo Dr. Jones
e o Dr. Jung, não foi uma dotação temporária que precise ser renovada em
pessoa em cada semestre; ele facilitou uma realização permanente e, de fato,
tanto num caso como no outro, definitiva. O Pr. Ernest Jones faleceu alguns
meses depois da entrevista, conferindo a essa produção a estatura adicional de
um dos registros finais da personalidade e pensamento do Dr. Jones; e, no caso
do Dr. Junq, também já falecido, as entrevistas constituem o único meio viável de
complementar as suas Idéias com o tremendo impacto da sua personalidade,
certamente uma combinação desejável na apresentação das idéias de qualquer
contribuidor importante.
As reações às entrevistas filmadas foram quase universalmente favoráveis,
tanto dentro como fora do meio universitário. Os estudantes nos grupos de teste,
que não viram originalmente o filme, solicitaram depois a oportunidade de uma
exibição. Até estudantes de outros cursos quiseram ver os filmes e ouvir episódios
pessoais relacionados com as operações de produção. Os membros docentes de
toda a universidade ficaram, segundo parece, favoravelmente impressionados
tanto pelos frutos obtidos com a realização dos filmes como pela publicidade
concomitante para a própria universidade. O Comitê de Educação do Instituto
Americano de Ciências Biológicas estava, por coincidência, reunido no campus
da Universidade de Houston durante o mês de
186
APÊNDICE A

agosto de 1958 e para ele foram exibidos alguns trechos dos filmes. Os membros
desse grupo ficaram muito impressionados e seus comentários foram altamente
elogiosos.
Algumas exibições dos filmes na estação de TV educativa da Universidade
provocaram numerosos telefonemas e cartas entusiásticos. A tônica da reação
pública local pode ser indicada por alguns comentários extraídos da coluna de
David Westheimer, o crítico de televisão do Houston Post, publicada em 21 de
maio de 1958:
”Na noite de segunda-feira, no Canal 8, uma das figuras lendárias do
nosso tempo falou durante uma hora sobre um assunto de grande interesse geral
e sobre o qual ele é considerado por muitos a maior autoridade viva do mundo.
”Conquanto houvesse uma certa soma de material, na entrevista de
segunda-feira, de interesse primordial para o estudante ou professor de
Psicologia, a maior parte do que o Dr. Jung teve a dizer foi inteiramente
compreensível para o leigo e, surpreendentemente, tão recreativa quanto
informativa.
”O próximo filme de uma hora de duração dessa série será exibido por
volta de 9,30 horas da noite de sexta-feira, imediatamente após o programa do
quinto aniversário da KUHT. Recomendo a todos que não percam a oportunidade
de ver e ouvir uma das mais gigantescas figuras do nosso tempo.”
Houve também uma favorável reação nacional de muitas fontes, depois do
artigo que apareceu na revista Time de 19 de agosto de 1957. Esse artigo
provocou inúmeras consultas sobre a disponibilidade de cópias dos filmes,
algumas de tão longe quanto a Austrália.
O interesse geral despertado pelo projeto em outras universidades e as
discussões com muita autoridades sobre a hipótese básica e os métodos
empregados indicam que existe uma vasta aplicabilidade para esse recurso
didático em outros campos, além da Psicologia.
187
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

O apropriado procedimento administrativo para a ampliação do uso de filmes


como fonte primária de material educativo teria de incluir, sem dúvida, um sistema
de comitês consultivos nacionalmente representativos para selecionar áreas,
métodos e pessoas. Tal sistema estabeleceria com a maior facilidade o programa
num nível interuniversitário e nacional, dentro de cada disciplina.
188

APÊNDICE B
Uma Investigação Exploratória do Impacto Psicológico e Educacional de um
Diálogo Filmado corn Carl Jung1

introdução

A presente investigação foi uma tentativa exploratória que visou determinar


a eficácia da técnica de entrevista filmada, no que respeita ao interesse e
aprendizagem do estudante. Assim fazendo, estávamos não só interessados na
realização acadêmica, mas também nos tipos de mudanças de atitudes que
ocorrem como função das características de personalidade da amostra estudantil
utilizada. O fundamento lógico do presente estudo é sugerido por certos relatórios
prévios. Hite (13), depois de entrevistar 4.000 professores de escolas
elementares e secundárias do Estado de Washington, concluiu que a falta de
materiais apropriados era um dos importantes fatores que inibiam o uso
educacional de filmes. Miller (28) também sublinhou que escasseiam os bons
filmes que cumpram os objetivos anunciados. Também indicou a necessidade de
novas técnicas nas demonstrações em filme.
O presente estudo foi planejado para responder às seguintes questões:
1. Que efeito a entrevista filmada com um destacado contribuidor numa
determinada disciplina tem sobre a aprendizagem nessa disciplina, em contraste
com os modos de ensino mais convencionais?

I. Apresentado como parte do Simpósio sobre ”Novos Veículos de Instrução”, em 4 de


setembro de 1961, nas reuniões da American Psychological Association. Agradecimentos
são devidos ao Dr. Larry Simkins, hoje na Universidade da Flórida, que nos assistiu
nesta investigação.
189
ENTREVISTAS com CAEL Q. JUNG

2. Que efeito tem a técnica de entrevista filmada na determinação de: a)


montante de mudança e b) direção de mudança (isto é, positiva ou negativa) nas
atitudes dos estudantes em relação ao conteúdo que está sendo comunicado?
Também foi considerado que o experimento poderia revelar, além disso,
algumas das características da personalidade que estão correlacionadas com as
mudanças de atitude, como função do conteúdo particular do filme.

Plano Experimental

Um dos filmes com as entrevistas de Jung, de aproximadamemte uma hora


de duração, foi selecionado para esse estudo-piloto e, como controle, preparou-
se um completo script impresso do seu conteúdo.
1. mudança de Realização. A primeira parte do estudo foi planejada de
modo a determinar o efeito da forma filmada da entrevista sobre a aprendizagem
do estudante, em contraste com a forma impressa. Os sujeitos foram escolhidos
num grupo de estudantes semifinalistas que estavam fazendo um curso de
Psicologia da Personalidade. Em meados do semestre, o experimentador
ministrou um teste padronizado de pré-realização, baseado no conteúdo da
entrevista com Carl Jung e na escala vocabular da Escala Wechsler de
Inteligência. Os estudantes foram então divididos em dois grupos iguais, que se
equiparavam na base de escores, de pré-realizaçào e inteligência.
Aproximadamente seis semanas depois, um grupo assistiu à projeção do filme,
enquanto que ao outro grupo só se permitiu a leitura da transcrição impressa do
texto da entrevista filmada. No final da sessão experimental, o teste de realização
foi novamente ministrado a ambos os grupos.

Resultados

Os resultados demonstraram que ambos os grupos, a que chamaremos


”grupo do filme” e ”grupo do script”, melhoraram significativamente em relação a
seus escores no teste de pré-realização, mas a diferença em incrementos de
aprendizagem entre os dois grupos não foi
190
APÊNDICE B

estatisticamente significante. Isso é coerente com numerosos relatórios


previamente publicados por outros investigadores (4, 19, 31) o que sugere que as
diferenças nos veículos de comunicação per se não estão relacionadas, ao que
parece, com os índices convencionais de aprendizagem (ver Quadro 1).

QUADRO I

Escores Médios Antes e Depois da Realização para os Grupos do Filme e do


Script

Filme Script Script


Antes 9,4 9,5
Depois 17,5 20,1
Diferença 8,1** 10,6**
** Significante além do nível de confiança de 0,1.

2. Mudanças de Atitude e Atributos de Personalidade dos Sujeitos. Para a


segunda parte do experimento, destinada a determinar a natureza das mudanças
de atitude nos estudantes, como função de terem visto a entrevista filmada, e a
determinar as características da personalidade que predisporiam os sujeitos a
reagir favorável ou desfavoravelmente perante o filme, usamos a Escala
Diferencial Semântica de Osgood, como instrumento para medir a mudança de
atitude. Osgood (29) desenvolveu uma escala generalizada de atitudes, composta
de uma série de adjetivos bipolares em que um indivíduo coloca um ”x” numa
seqüência desses pares de adjetivos que corresponda aos seus sentimentos
sobre um determinado conceito. Estudos de análise fatorial revelaram três
dimensões principais: avaliação, potência e atividade. O experimentador escolheu
o uso da dimensão avaliatória no presente estudo, visto que lhe pareceu prestar-
se mais apropriadamente à medição das
191
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

atitudes em relação ao grupo de conceitos apresentados na entrevista.


Estávamos interessados em três principais dimensões de atitudes: atitudes
em relação à entrevista como recurso de ensino, em relação a Carl Jung como
pessoa e em relação a um grupo dos seus conceitos teóricos.
No início do semestre, um grupo de estudantes que freqüentavam os
primeiros anos de um curso de Psicologia Experimental (N = 22) foi submetido ao
teste da Escala de Osgood. Ao mesmo tempo, foi-lhe ministrada uma bateria de
testes de personalidade, incluindo o Teste Gráfico de Frustração de Rosenzweig,
a Escala de Ansiedade de Taylor, a Escala de Rigidez de Wesiey, a Tabela de
Preferências Pessoais de Edwards, a Escala F, o Teste de Apercepção Temática e
o Estudo de Valores Allport-Vernon. Aproximadamente dois meses depois, a
entrevista de Jung foi exibida para esse grupo e voltou a ser ministrada a Escala
de Atitudes de Osgood.

Resultados

Os resultados indicaram uma mudança altamente significante de atitude


em todas as três dimensões (ver o Quadro 3). Assim, os estudantes, em
conseqüência da entrevista, responderam mais favoravelmente em relação ao uso
das entrevistas como técnica de ensino, em relação a Jung como pessoa e
também em relação aos seus conceitos teóricos.
Os testes de personalidade, embora um tanto limitados em sua utilidade
produtiva, revelaram ainda interessantes resultados. Por exemplo, havia uma
significativa correlação inversa entre a rigidez, medida pela Escala de Rigidez de
Wesiey, e o montante de mudança de atitude. Isso tende a indicar que os
indivíduos que podem ser designados como compulsivos, meticulosos ou
relutantes em desviarem-se de certos padrões estabelecidos de comportamento
são também menos propensos a mudar suas atitudes quando apresentados a
esse novo recurso didático.
192

APÊNDICE B
QUADRO 2

Escores Médios de Realização para os Grupos do Filme e do Script

Montante Ganho em Realização

Grupo do Script 10,6


Grupo do filme 8,1
Diferença 2,5 (não-significante) P 0,20

QUADRO 3

Mudança Média em Atitude, como Função do Filme

Atitude em Relação à Entrevista como Técnica de Ensino

Escore médio antes 31,3


Escore médio depois 34,2
Diferença 2,9**

Atitude em Relação a Jung

Escore médio antes 29,2


Escore médio depois 33,0
Diferença 3,8

Atitude em Relação aos Conceitos de Jung

Escore médio antes 133,2


Escore médio depois 148,6
Diferença 15,4

 Sígnificante além do nível de confiança de 0,05.


** Significante além do nível de confiança de 0,01.
193
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

QUADRO 4

Correlações Significantes entre Variáveis de Personalidade e


Mudança de Atitude em Relação a Jung: e (ou) Seus Conceitos

A. Teste Gráfico de Frustração de Rosenzweig


1. Extrapunitividade 0,45 *
2. Impunitividade -0,55 **

B. Escala de Rigidez de Wesley -0,51 **

B. Estudo de Valores Allport-Vernon


1. Estéticos - 0,64***
2. Sociais 0,68 ***

D. Escala de Ansiedade de Taylor - 0,46 *

* SIgnificante no nível da confiança de 0,05.


** Significante no nível de confiança de 0,02.
*** Significante no nível de confiança de 0,01.

O Teste Gráfico de Frustração de Rosenzweig indicou que a


extrapunitividade estava positivamente associada e a impunitividade
negativamente associada ao montante de mudança de atitude. O indivíduo
extrapunitivo é aquele que reage à frustração de uma forma ego-defensiva,
projetando a culpa ou a hostilidade em alguma pessoa ou obstáculo do seu meio.
Está perfeitamente cônscio das pistas ambientais, a que reage prontamente. Num
sentido limitado, manifesta tendências ”extrovertidas”, em contraste coM o
indivíduo que é submisso, tímido e mais propenso à introspecção em suas
relações com o meio ambiente. Jung, ao invés da crença popular (que se baseia
no conteúdo de seus escritos), parece ser o protótipo do (segundo a sua própria
expressão) extrovertido. Uma interpretação bastante genérica dos resultados do
teste poderia ser esta: o indivíduo que manifesta reações ”extrovertidas”
identifica-se com Jung e, portanto, está mais predisposto a reagir a ele
favoravelmente. Por outro lado, o indivíduo impunitivo,
194
APÊNDICE B

amiúde um tímido introvertido que se defronta com frustração, apressa se a negá-


la, sendo a repressão o modo mais freqüente de defesa usado para enfrentar a
ansiedade decorrente de tais incidentes. Portanto, na medida em que a pessoa
impunitiva é incapaz de se identificar com o seu oposto, representado por Jung,
também está predisposta a resistir a quaisquer mudanças em suas atitudes
iniciais.
Pareceu que o sistema de valores do indivíduo, tal como foi medido pelo
Estudo de Valores Allport-Vernon, também envolvia importantes variáveis que
influenciaram o montante de mudança. Assim, um indivíduo que confere grande
ênfase às atividades sociais responde mais favoravelmente a Jung; ao passo que
o indivíduo mais esteticamente inclinado tende a mudar menos. Isso não é
incompatível com a hipótese de ”identificação extrovertido-introvertido” acima
mencionada.

Discussão

Em face desses resultados, parece que o ensino através do diálogo foi


muito eficaz em termos dos resultados obtidos nos exames de realização ou
aproveitamento. Além disso, a presença de um grande contribuidor no filme
constitui um fator de considerável importância para ativar o interesse do
estudante e mudar as atitudes dos estudantes (em relação àquela presença)
numa direção mais favorável.
Outro resultado sugere que algumas características da personalidade dos
sujeitos, conforme foram medidas por uma bateria de testes de personalidade,
estavam relacionadas com a tendência para mudar de atitude em relação a Jung.
As determinantes da personalidade para a mudança de atitude foram até agora
amplamente negligenciadas nos estudos desta natureza. Os presentes
resultados, embora um tanto limitados em seu âmbito, são elucidativos, não
obstante, e devem estimular novas pesquisas dessa natureza. Seria interessante,
por exemplo, aprofundar ainda mais a mudança diferencial em atitudes,
evidenciada na investigação presente. Al-
195
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG

guns dos estudantes, embora mudassem muito favoravelmente em relação a Jung


como pessoa, permaneceram neutros ou reagiram negativamente em relação aos
seus conceitos teóricos. Outros estudantes reagiram negativamente aos seus
conceitos teóricos. Ainda outros estudantes reagiram favoravelmente aos
conceitos de Jung, mas permaneceram neutros no tocante a Jung como pessoa.
Surge a questão de saber que espécies de distintas características da
personalidade, no caso de haver algumas, são típicas desses dois grupos de
indivíduos. Até que ponto a mudança de atitudes é atribuível a essas variáveis de
personalidade per se? A metodologia utilizada na presente investigação oferece
uma abordagem promissora, na base da qual é possível efetuar a avaliação de
cursos completos, utilizando as entrevistas com proeminentes contribuidores
como um recurso didático.

Resumo

Isso foi uma tentativa exploratória para determinar o impacto de uma


entrevista didática com grandes contribuidores de uma disciplina sobre a
realização e as atitudes dos estudantes, usando uma da série de entrevistas de
uma hora de duração com Carl Jung como modelo. Também houve uma tentativa
de apuração das determinantes da personalidade que estão associadas às
mudanças de atitude. Verificou-se que os estudantes expostos à entrevista, em
filme ou em forma impressa, aumentavam significativamente seus conhecimentos
a respeito dos conceitos de Jung, tal como foi medido por um teste de realização.
Houve mudanças significativas de atitude, numa direção mais favorável, conforme
as medições pela Escala Diferencial Semântica de Osgood, em relação à
entrevista como técnica de ensino e em relação ao próprio Jung e muitas de suas
variáveis teóricas, que foram correlacionadas com a mudança de atitude. Essas
correlações foram Interpretadas e fez-se um exame de sugestões para novas
pesquisas. Pelo menos, foi apresentado um apoio experimental às hipóteses
fundamentais implícitas na utilização de entrevistas filmadas com ”grandes
mestres” como um recurso didático.
196
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