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RICHARD I. EVANS
eldorado
Título do original em inglês: CONVERSATIONS WITH CARL G. JUNG AND
REACTIONS FROM ERNEST JONES
Departamento Editorial:
Maura Ribeiro Sardinha Cristina Mary P. da Cunha Carmen Lúcia R. de Oliveira
Rua Conde de Bonfim 422, loja K, Rio de Janeiro Tels.: 254-2615 e 264-0398
— GB
AGRADECIMENTOS 13
4. O Inconsciente: Arquétipos 67
BIBLIOGRAFIA 197
Prefácio
Na opinião do autor, o diálogo apresentado neste volume forneceu ao Dr.
Jung um veículo que permitiu o que talvez constitua a mais excitante e lúcida
apresentação até hoje registrada de muitos dos seus conceitos fundamentais.
Espera-se que esta apresentação não sirva apenas como introdução às idéias de
Jung para estudantes das Ciências do Comportamento, mas que também
proporcione uma visão estimulante de algumas contribuições fundamentais de
Jung a quantos têm sido sempre desencorajados de ler a obra de Jung, por causa
da sua alegada obscuridade, imprecisão, exorbitante complexidade e misticismo.
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PREFÁCIO
RICHARD I. EVANS
Houston, Texas
12
Agradecimentos
No longo processo envolvido na filmagem dos diálogos com Carl Jung e
Ernest Jones na Europa, assim como na sua transcrição para o presente volume,
o autor reconhece sua divida a numerosas personalidades. Embora o espaço
proíba mencionar todos quantos me ajudaram tão amavelmente, desejo expressar
o meu apreço, pelo menos, a algumas daquelas pessoas que colaboraram. O Dr.
John W. Meaney, hoje da Universidade do Texas, que atuou de forma soberba nas
exigentes funções de produtor-diretor-cinegrafista para os filmes originais e sem
cujo apoio todo o projeto teria sido impossível, deve ser citado com o maior
destaque.
A especial consideração e assistência da Senhora Aniela Jaffé, secretária-
assistente do Dr. Jung e hoje uma autora consagrada por méritos próprios, foi de
um valor a toda prova, ajudando-nos a organizar e completar com êxito as
entrevistas com o Dr. Jung. O incentivo e apoio do Dr. Joe Wheelwright, o
eminente psiquiatra junguiano da Langley Porter Cünic, de São Francisco da
Califórnia, proporcionou o decisivo endosso pessoal de que necessitávamos para
obter a cooperação do Dr. Jung.
A amabilidade da Srª Ernest Jones, assistindo-nos para a realização da
entrevista com o Dr. Jones, não será esquecida tão cedo.
A boa-vontade da Schlumberger Corporation, em Paris, e do Instituto
Federal de Tecnologia, em Zurique, para proporcionar as facilidades físicas que
ensejaram a realização das entrevistas, também merece o nosso grande apreço.
A proficiência e imaginação da Sr ta Joy Byrne, como assistente editorial,
ajudaram-me imensamente na preparação do manuscrito e estou sinceramente
grato pelos seus esforços. Também desejo agradecer aos estudantes pós-
graduados de Psicologia, Alberí Ramirez e Gary Blank, por sua assistência.
13
AGRADECIMENTOS
Finalmente, estamos gratos pela bolsa concedida pelo Fund for lhe
Advancement of Education. A tolerância do Fundo, ao permitir-nos que nos
desviássemos de um plano original, que teria redundado, simplesmente, no
registro de lições, forneceu a assistência financeira e a latitude sem as quais este
projeto não teria sido concretizado.
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PARTE I
PRÓLOGO A UM EMPREENDIMENTO PROVOCANTE
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ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
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ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
2 de abril de 1957
Uma destacada fundação dos Estados Únidos, The Fund for the
Atívancement of Education, concedeu-nos uma pequena bolsa que possibilitará
o início da filmagem, para uso de estudantes dos anos mais adiantados dos
cursos de Psicologia, de uma série de lições, conferências e debates.
Ao planejarmos um curso filmado de Psicologia, ocorreu-nos que a
presença em filme de alguns dos homens verdadeiramente grandes em
Psicologia seria um motivo de inspiração e estímulo para os nossos estudantes
americanos nessa área. Naturalmente, o primeiro nome que nos acudíu à idéia foi
o seu. Há muito que l nos interessamos pela sua obra, e a sua presença no
filme enriqueceria apreciavelmente, em nossa opinião, a aprendizagem dos
nossos estudantes.
Se estiver disposto a participar, poderíamos voar para a Suíça, a fim de
realizar as filmagens de acordo com as suas conveniências pessoais. Não
exigiríamos grandes preparativos, como seria o caso de lições formais, mas, pelo
contrário, solicitaríamos a sua participação numa série de quatro entrevistas
informais. Submeteríamos, é claro, os tópicos à sua aprovação prévia e, de fato,
acolheríamos com a maior satisfação os seus conselhos sobre a escolha desses
tópicos. Isso permitiria que refletisse inteiramente sobre muitas facetas
interessantes de sua obra. Para evitarmos abusar do seu tempo, essas
entrevistas poderiam ser intervaladas, de forma que as filmagens se realizassem
ao longo de uma semana ou mais. Faríamos planos para permanecer uma
semana ou mais na Suíça e, se isso convier aos seus próprios programas,
poderíamos chegar por volta de 5 de agosto.
20
PRÓLOGO
O Dr. Joe Wheelwright, com quem falamos a respeito deste assunto, deseja
expressar o seu encorajamento para que o senhor colabore conosco na
realização desses filmes. Ele compartilha da nossa convicção de que isso seria
de grande valor educativo para os nossos estudantes de Psicologia, não só nesta
universidade, mas em todos os Estados Unidos. Cópias dos filmes seriam postas
à disposição de todas as faculdades americanas que as desejassem.
O Dr. John Meaney, diretor do Radio-TV Film Center desta universidade,
como titular da dotação do Fundo, produziria os quatro filmes. Ele já produziu
numerosas e estimulantes séries educativas para grupos profissionais de nível
universitário e para a televisão educativa. Através da minha própria experiência
de trabalho com ele, considero-o um estudioso sumamente compreensivo e
entusiástico de Psicologia; por isso estou certo de que o seu trabalho obteria os
melhores resultados possíveis.
Se nos permitir fazê-lo e nos sugerir uma quantia apropriada, teremos o
maior prazer em efetuar o pagamento de honorários pela sua participação nesses
quatro filmes.
Aguardamos esperançosamente uma resposta sua sobre este assunto,
Cordialmente seu
Prof.
Richard I. Evans, Ph. D. University of Houston
Cullen Boulevard
Houston 4, Texas
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ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
Sinceramente seu
Estou certo de que os leitores poderão imaginar o prazer com que recebi esta
resposta e a pressa com que passamos a elaborar o planejamento das medidas
subseqüentes. A correspondência que se seguiu entre o Dr. Jung, eu próprio e a
secretária do Dr. Jung, a Srª Aniela Jaffé, explica-se por si mesma e descreve a
evolução dos acontecimentos que nos levaram a fixar um encontro para quatro
dias de agosto de 1957.
18 de abril de 1957
PRÓLOGO
Caro Professor Doutor Jung:
Cordialmente seu
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ENTREVISTAS com CARL G. JUNQ
abril de 1957
Sinceramente seu
16 de maio de 1957
Cordialmente seu
30 de maio de 1957
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ENTREVISTAS com CARL G. JTJNG
brilhante dos sóis. Mas se Zeus Nephelegeretés prefere envolver o nosso amado
país em dobras de neblina e chuva, pode até acontecer que tenhamos de acender
luzes na sala. Se o tempo estiver bom e quente, teremos muito barulho perto de
casa, em virtude de uma pisrina pública que existe nas suas vizinhanças. Nesse
caso, letirar-nos-íamos para um canto remoto do jardim, onde não existe
eletricidade. Para tal eventualidade, os senhores necessitariam de cerca de 100
metros de cabo. bom, tenho que deixar essas decisões técnicas ao vosso
cuidado.
Estou juntando também a declaração assinada.
Au revoir no verão!
Sinceramente seu,
Nos seus últimos anos de vida, o Dr. Jones deixara crescer a barba, modificando
a sua aparência e dando a impressão, por um momento, de que o próprio Freud
ali estava sentado.
Sabendo que o Dr. Jones estava em condições de saúde extremamente
precárias, vítima de câncer terminal e de uma recente crise das coronárias, não
teríamos ficado surpreendidos se ele não quisesse dar continuidade à entrevista.
Contudo, um contato inicial com o Dr. Jones dissipou todas as apreensões.
Embora estivesse muito ocupado, no momento, com uma hoste de amigos e
conhecidos que solicitamente se aglomeravam à sua volta, ele prontamente nos
apresentou à Senhora Jones, que nos garantiu que o marido estaria presente na
hora e local marcados para a entrevista. Os funcionários de uma firma de
Houston, a Schlumberger Corporation, tinham tido a amabilidade de
providenciar para que os escritórios da sua filial de Paris ficassem à nossa
disposição para a entrevista e foi nesse cenário que nos encontramos com Ernest
Jones.
A perspicácia e a penetração com que o Dr. Jones abordou a situação de
entrevista são facilmente discerníveis através de suas respostas francas e
reveladores às minhas várias perguntas. A doença letal que diariamente
devastava seu corpo, roubando-lhe o pouco vigor que ainda lhe restava, não
conseguira levar a melhor sobre o seu intelecto arguto e perceptivo; além disso,
como o leitor notará, a precária saúde do Dr. Jones de maneira nenhuma embotou
o ferrão de mordacidade de suas palavras, quando decidia dar essa tônica às
suas respostas,.
Sentindo-nos extremamente satisfeitos com o êxito cia primeira parte da
nossa missão, o meu colega e eu despedimo-nos do Dr. Jones e partimos
imediatamente para Zurique, o cenário para o coroamento da nossa iniciativa.
com que ansiedade antegozávamos o eminente encontro com o notável e tão
controvertido Professor Carl Jung!
Ernest Jones morreria sete meses depois dessa entrevista, em fevereiro de 1958. (N. do T.)
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ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
plicando-lhe que nos empreendimentos comerciais desse tipo, com mais tempo
disponível para entrevistas, muitas horas são freqüentemente reduzidas a um par
de horas na mesa de montagem do filme que será finalmente exibido. Nas
próximas entrevistas com eie, porém, não dispúnhamos, virtualmente, de margem
de tempo para cones. Uma vez mais, o Dr. Jung mostrou compreender a situação.
houve tantos aspectos emocionantes em nosso empreendimento que seria
impossível descrevê-los todos, contudo, um que se destaca por ter acrescentado
uma nota interessante a nossa tarefa foi a indicação de bom dizer, um membro ao
stt de Paris da revista Time, para razer a coberlura jornalística da nossa história.
Por indicação ao serviço de informações da nossa Universidade, tínhamos
imormado o taiecido W.lliam mehale, nessa época Chefe do Escritório de Paris do
Time, sobre a natureza do nosso projeto, assim como a data aa nossa chegada a
Paris. O projeto, consistindo em dois professores americanos que vinham ao
encontro do Dr. Gari Jung para um empreendimento desse gênero fora do comum,
levou McHale a destacar um membro do seu siaff para fazer a reportagem das
entrevistas.
ton Dozier iniciou os preparativos para o seu artigo do Time cobrindo,
primeiro, a entrevista com o Dr. Ernest Jones e, depois, acompanhou-nos a
Zurique, onde solicitou e obteve permissão, tanto nossa como do Dr. Jung, para
testemunhar as quatro entrevistas filmadas de uma hora cada. A sua interessante
descrição do nosso esforço foi publicada na edição da revista Time de 19 de
agosto de 1957. Reproduzimos em seguida alguns extratos da reportagem de torn
Dozier, antes de ter sido publicada pelo Time, tal como foi publicada no Houston
Post de 16 de setembro de 1957:
”O velhote, com seu fino cabelo branco e um fulgor de penetrante argúcia
nos olhos, estava recostado numa cadeira de braços e tirava deliberadamente
longas baforadas de seu inseparável cachimbo. Aparentemente indiferente ao
microfone em torno do pescoço e às lentes da câmera que o fixavam do outro
lado da sala, Carl Gustav Jung falava através do halo de fumaça que lhe
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ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
coroava a cabeça. Sua voz era forte e retumbante, o seu inglês só ligeiramente
matizado de sotaque germânico.
”— O mundo — disse Jung — está suspenso de um fio muito tênue, e esse
fio é a psique do homem... Não é a realidade da bomba de hidrogênio que
devemos temer, mas o que o homem fará dela. Suponhamos que certos
camaradas em Moscou se enervem, então o mundo será envolto em chamas e
fogo. Mais do que nunca, o mundo depende da psique do homem.
”Portanto, explicou o velho sábio, o estudo e compreensão da psique
humana é mais importante do que nunca.
”Durante uma hora, em quatro dias diferentes, Jung, o psicólogo analítico,
em seus viris 82 anos, derradeiro sobrevivente entre os Três Grandes pioneiros
da Psicologia moderna, sentou-se diante de uma câmera de televisão, numa sala
de paredes envidraçadas do Instituto Federal de Tecnologia, em Zurique, e
explicou os pontos sutis e mais intricados da abordagem junguiana do estudo da
mente humana. Delicadamente guiado pelo entrevistador, Richard Evans, do
Departamento de Psicologia da Universidade de Houston, Jung percorreu toda a
volumosa complexidade das SUES teorias e conclusões sobre a psique.
”Por vezes, fustigava moderadamente os dois outros Titãs seus colegas,
Freud e Adler, corrigia repetidamente o que considerava interpretações errôneas
de suas idéias, explicava em detalhe as suas teorias sobre introversão,
extroversão, persona, intuição, a interpretação, dos sonhos e os símbolos
inconscientes a que chamou arquétipos...
”O desempenho de Jung era tão extraordinário quanto fascinante. Ele
aparecia pela primeira vez diante de uma câmera de TV, fazia a sua primeira
reverência a uma platéia americana desde que lecionara Psicologia e Religião em
Yale, em 1938, e, excetuando-se algumas conferências em Zurique, era essa a
sua primeira aparição pública em mais de uma década. E, apesar da sua vigorosa
aparência de boa saúde, os espectadores ficavam impressionados pela
possibilidade de estarem testemunhando a última fala de um grande e
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PRÓLOGO
* De fato, embora Jung viesse a falecer somente quatro anos depois, em junho de 1961, foi
esta a sua última aparição em púbrco e também a última vez que consentiu em
serentrevistado. (N. do T.)
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ENTREVISTAS com CARL, G. JUNG
trava o fato da sua aceitação do nosso convite para ser entrevistado ter sido um
gesto sincero. Penso que o processo de educar um grande número de
estudantes dessa maneira representava para ele um verdadeiro desafio.
Posteriormente, enviei-lhe de presente uma cópia de uma das entrevistas
filmadas. Recebemos da sua secretária, a Srª Jaffé, a seguinte carta:
28 de novembro de 1958
Quero informá-lo que todos nós gostamos imensamente de ver o seu filme.
Foi um grande êxito e pretendemos repetir a exibição na primavera. O Prof. Junq
pediu-me que lhe agradecesse muito pelo envio da cópia. Ele não esteve
presente a essa exibição, mas esperamos que compareça na próxima vez.
Estamos certos de que ele gostará também.
O Prof. Jung pergunta se o filme foi um presente para ele ou se terá de
devolvê-lo. Ficaria muito grato para uma breve resposta.
Tivemos conhecimento de que o senhor possui quatro desses filmes. É
verdade?
Reiterando os nossos agradecimentos,
Sinceramente sua,
Aniela Jaffé, Secretária
* Ver o Apêndice B.
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PRÓLOGO
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PRÓLOGO
JUNG E FREUD
Nesta parte das entrevistas, o autor esforçou-se por sondar, com o Dr.
Jung, os acontecimentos que cercaram o seu envolvimento inicial com o Dr.
Freud. Também foi feita uma tentativa para traçar as Unhas mestras Já estrutura
fundamental da teoria psicanalítica, permitindo a Jung que reagisse a cada parte
da mesma.
À medida que Jung responde às perguntas relativas ao desenvolvimento
psicossexual e aos conceitos freudianos de Id, Ego e Superego, um
surpreendente grau de compreensão é transmitido ao leitor sobre a maneira como
Jung discorda de Freud, as áreas em que eles concurdavam e algumas das idéias
que Jung desenvolveu como reação ao pensamento freudiano.
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Relacionamento de Jung com Freud, Adler e Rank
Dr. Evans: Dr. Jung, muitos dentre nós que leram uma boa parte de sua obra
estão cônscios do fato de que, em seus primeiros trabalhos, o senhor estava
associado ao Dr. Sigmund Freud. E sei que seria de grande interesse para muitos
saber como foi que teve conhecimento da existência do Dr. Freud e como acabou
por compartilhar de algumas de suas obras e idéias.
”Dr. Jung: Bem, de fato, foi no ano de 1900, em dezembro, pouco depois
de ter sido publicado o livro de Freud sobre a interpretação dos sonhos, que fui
solicitado pelo meu chefe, o Professor Bleuler, a escrever um comentário crítico
sobre o livro. Estudei-o com a maior atenção e não entendi muitas coisas nele, as
quais não me eram nada claras; mas, em outras partes, tive a impressão de que
esse homem sabia realmente sobre o que estava falando. E pensei: ”Isto é
certamente uma obra-prima... cheia de futuro.”
Nessa época, eu não tinha idéias próprias; estava apenas começando. Isso
foi, justamente, quando eu iniciava a minha carreira como assistente na clínica
psiquiátrica. E dava os primeiros passos no campo da Psicologia Experimental ou
Psicopatologia. Eu aplicava os métodos de associação experimental de Wundt, os
mesmos que tinham sido aplicados na clínica psiquiátrica de Munique, e estudava
os resultados obtidos. A minha idéia era que alguma coisa poderia sair daí. Assim,
fiz uso dos testes de associação e concluí que faltava neles a coisa mais
importante, pois não é interessante ver que na uma reação — uma certa reação
— a um estímulo verbal. Isso é mais ou menos despido de interesse. Mas
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ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
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A Opinião de Jung sobre o Desenvolvimento Psicossexual Freudiano
Dr. Evans: Uma das idéias fundamentais da teoria psicanalítica original foi
a concepção freudiana da libido como uma espécie de energia psicossexual de
natureza essencialmente dinâmica. Todos nós sabemos, é claro, que o senhor
começou a sentir que o Dr. Freud talvez tivesse dado excessiva importância à
sexualidade em suas teorias. Quando foi que começou a sentir isso?
Dr. Jung: No princípio, eu tinha certas prevenções, naturalmente, contra
essa concepção, mas superei-as, passado algum tempo. Pude fazê-lo graças à
minha sólida formação biológica. Não podia negar os impulsos do instinto sexual.
Mais tarde, porém, apercebi-me de que se tratava, realmente, de uma
concepção unilateral, porque o homem, como o senhor sabe, não é
exclusivamente governado pelo instinto sexual; também existem outros instintos.
Por exemplo, em Biologia, vemos que o instinto de nutrição é tão importante
quanto o instinto sexual. Embora a sexualidade desempenhe um papel nas
sociedades primitivas, a alimentação tem um papel muito mais importante. A
busca de alimentos constitui o interesse e o desejo de importância suprema. O
sexo... isso é uma coisa fácil de obter em qualquer lugar, não exige grande
esforço para procurar. Mas o alimento é difícil de obter e por isso constitui o
principal interesse.
Depois, em outras sociedades... refiro-me a sociedades civilizadas... o
instinto de poder desempenha um papel muito maior que o sexo. Por exemplo,
existem muitos homens de negócios que são impotentes porque toda a sua
energia é investida no impulso de ganhar
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DESENVOLVIMENTO PSICOSSEXUAL FREUDIANO
Dinheiro ou de ditar os papéis de todo mundo. Isso é muito mais interessante para
eles do que estar às voltas com mulheres.
Dr. Evans: Assim, num certo sentido, quando começou a analisar a ênfase
dada pelo Dr. Freud ao impulso sexual, o senhor começou também a pensar em
função de outras culturas e pareceu-lhe que essa ênfase não possuía suticiente
universalidade para que se justificasse a atribuição de uma importância
primordial.
Dr. Jung: bom, de fato, era-me impossível deixar de fazê-lo, porque eu
tinha estudado Nietzsche. Conhecia muito bem a sua obra. Nietzsche tinha sido
professor na Universidade de Basiléia, onde era assunto obrigatório de toaas as
conversas; por isso tive, naturalmente, de estudar suas obras. E partindo daí,
vislumbrei uma Psicologia inteiramente diferente, que também era Psicologia...
uma Psicoiogia perfeitamente coerente, mas fundada sobre o instinto de poder.
Dr. Evans: Acredita ser possível que o Dr. Freud ignorasse Nietzscne ou
que talvez não quisesse ser influenciado por ele?
Dr. Jung: A sua pergunta refere-se à motivação pessoal de Freud?
Dr. Evans: Sim.
Dr. Jung: Claro que era um preconceito pessoal. Como sabe, era um de
seus temas principais que certas pessoas se interessam, principalmente, por um
aspecto das coisas e outras pessoas por outro aspecto. Assim, veja, o Dr. Adler,
mais jovem e mais fraco, tinha, naturalmente, um complexo de poder. Sendo
inferior a Freud, ele queria ser o homem bem sucedido. Freud triunfara, era um
homem bem sucedido; estava no apogeu e por isso estava unicamente
interessado no prazer e no princípio de prazer, ao passo que Adler estava
interessado no instinto de poder.
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ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
Dr. Evans: Acha que isso era, portanto, uma espécie de função da
própria personalidade do Dr. Freud?
Dr. Jung: Sim, é perfeitamente natural que assim fosse. É uma das duas
maneiras de encarar a realidade. Ou você faz da realidade um objeto de prazer,
se já for bastante poderoso; ou faz dela o objeto do seu desejo de se apoderar, de
possuir.
Dr. Evans: Alguns observadores especularam sobre a hipótese de que os
pacientes vistos pelo Dr. Freud na Viena desse período eram, na grande maioria
dos casos, indivíduos sexualmente tão reprimidos que podiam ser representantes
de um tipo cultural; ou, por outras palavras, como esses pacientes faziam parte da
sociedade vienense, que se acredita ter sido uma sociedade ”reprimida”, os
pacientes do Dr. Freud talvez manifestassem uma tendência exagerada para
reagir à frustração sexual, assim reforçando as suas idéias sobre uma libido
sexual.
Dr. Jung: Sim, não há dúvida de que no final da era vitoriana se registrou
no mundo inteiro uma reação contra os chamados tabus sexuais. As pessoas já
não entendiam mais, de forma apropriada, porque sim ou porque não; e Freud
pertence a essa época, uma espécie do libertação mental desses tabus.
Dr. Evans: Houve, portanto, uma reação contra a cultura bitolada, inibida,
em que ele vivia?
Dr. Jung: Sim. Freud, nesse sentido... por esse lado, pertenceu realmente
à categoria dos espíritos nietzschianos. Nietzsche libertara a Europa de um
grande número de tais preconceitos, mas somente no que diz respeito ao instinto
de poder e às nossas ilusões sobre as motivações da nossa moralidade. Foi uma
época crítica para a moralidade.
Dr. Evans: Assim, o Dr. Freud, num sentido, estava fazendo o mesmo
noutra direção...
50
DESENVOLVIMENTO PSICOSSEXUAL FREUDIANO
Dr. Jung: Sim. Além disso, como o sexo é o principal instinto e o instinto
domimante numa sociedade mais ou menos estável, quando as condições sócias
estão mais ou menos seguras, a sexualidade pode predominar porque as pessoas
me dão uma atenção especial. Elas tem suas posições, em suficiente
alimentação. Quando não há necessidade de caçar, de coletar alimenlos ou coisa
paiecida, então é muito provável que os pacientes que nos consultam tenham
todos, em maior ou menor grau, algum complexo sexual.
Dr. Evans: Portanto, o instinto sexual é, potencialmente, o impulso que,
nessa sociedade particular, tem mais probabilidades de ser inibido?
Dr. Jung: Exato. É uma questão de astúcia, quase, descobrir que aiguém é
movido peio instinto de poder e que o sexo apenas serve os propósitos do poder.
Por exemplo, veja o caso de um sedutor: todas as mulheres o consideram um
verdadeiro conquistador de corações; ele é, de tato, uma fábula, sob a qual se
esconde o instinto de poder, como Don Juan. A mulher não é o seu problema; o
seu problema consiste em saber como dominar., Assim, em segundo lugar após o
sexo, surge o instinto de poder e isso ainda não é o fim.
Dr. Evans: Para avançarmos no exame da concepção psicanalítica
ortodoxa, tem-se prestado muita atenção, como sabe, ao que Freud denominou o
desenvolvimento psicossexual: o indivíduo defronta-se com uma série de
problemas, em seqüência, que tem de resolver para que possa amadurecer
progressivamente. Segundo parece, um dos primeiros problemas que o indivíduo
tem de resolver gravita em torno, diríamos, das satisfações orais primitivas ou
experiências da zona oral, incluindo o desmame, que representa para a criança
algumas de suas primeiras frustrações.
Dr. Jung: Acho que, quando Freud diz que um dos primeiros e o mais
importante centro de interesse é a alimentação, ele não tinha necessidade
alguma de
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ENTREVISTAS com CARL. G. JUNG
recorrer a esse tipo peculiar de terminologia como ”zona cral”. É evidente que a
comida se mete na boca!
Dt. Evans: Então, quer dizer que o senhor encara o nível oral de
desenvolvimento, proposto por Freud, num sentido menos complicado e sem
conotação sexual?
Dr. Jung: A ciência consiste, em grande parte, em considerações a
respeito de comida.
Dr. Evans: Em resumo, então, Dr. Jung, com referência ao nível oral de
desenvolvimento, o senhor prefere considerá-lo, de um modo bastante literal, uma
espécie de instinto de fome ou instinto de nutrição.
Outro ponto fundamental no desenvolvimento do ego, segundo a
concepção psicanalítica ortodoxa, é que ao nível oral se segue outra fase crítica,
um nível anal de desenvolvimento. Nesse segundo nível crucial, também ocorrem
algumas frustrações primordiais, isto é, as frustrações que gravitam em torno do
problema de adestramento para a higiene pessoal e o asseio. No tocante ao
desenvolvimento do Ego e posterior formação do caráter, Freud considerou que a
resolução precária de tais problemas acarretava sérias conseqüências.
Dr. Jung: bom, é lícito usar semelhante terminologia porque é um fato que
as crianças estão imensamente interessadas em todos os orifícios do corpo e
gostam de fazer toda sorte de coisas nojentas; por vezes, tais peculiaridades
persistem ao longo da vida. É verdadeiramente espantoso o que se pode ouvir a
esse respeito. Ora, é igualmente verdade que as pessoas em quem prevalece tal
comportamento também desenvolvem um caráter peculiar.
No começo da infância, já existe um caráter. Entenda, uma criança não
nasce tábula rasa, como alguns supõem. A criança nasce dotada de uma alta
complexidade, com determinantes que nunca cedem nem oscilam ao longo de sua
vida e dão à criança o seu caráter. Já no início da infância a mãe reconhece a
individual-
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DESENVOLVIMENTO PSICOSSEXUAL FREUDIANO
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ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
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DESENVOLVIMENTO PSICOSSEXUAL FREUDIANO
complexo de Édipo, ele está apenas dando o contrário, isto é, a resistência contra
o incesto. Por exemplo, só o modelo edípico fosse realmente predominante,
teríamos sido sufocados em incesto há meio milhão de anos. pelo menos.
Mas existe uma compensação. Em todos os níveis primitivos de civilização
vamos encontrar leis de matrimônio, a saber, as leis exogâmicas. A primeira
forma, a mais elementar, estatui que o homem pode casar com sua prima do lado
materno. A forma seguinte estipula que o homem só pode casar com sua prima
em segundo grau, ou seja, descendente de uma avó comum. Existem cuatro
sistemas os casamentos em quarto grau, os sistemas de 8 e 12 e um sistema de
6. Na China, ainda existem vestíaios dos sistemas 6 e 12. E trata-se de
conseqüências para além do complexo de incesto e contra o comoplexo de
incesto. Ora, se a sexualidade fosse predominante, em particular a sexualidade
incestuosa, como é que isso poderia desenvolver-se?
Essas coisas desenvolveram-se numa época muito anterior a qualquer
idéia de se ter um filho... digamos, da minha irmã. Está completamente errado.
Muito pelo contrário, era uma prerrogativa real entre os reis caanitas da Pérsia e
entre os faraós egípcios, portanto, em énocas historicamente recentes, que o
faraó tivesse uma filha de sua irmã; ele esposava essa filha e tinha uma filha dela,
casando em seguida com a neta. Porque isso era uma prerrogativa do rei. A
preservação do sanaue real era semore uma espécie de atentado contra a
altamente apreciada restrição incestuosa do número de ancestrais, porque isso
significa uma perda de ancestrais. Ora, isso também deve ser explicado. E não é
o único exemplo que existe de compensação. O senhor sabe que isso
desempenha um importante papel na história da civilização humana.
_Freud estava sempre inclinado a explicar essas coisas por influências
externas. Por exemplo, a pessoa não se sentiria impedida de fazer qualquer
coisa, se não existisse uma lei contra essa coisa. Ninguém é impedido pelo seu
próprio eu. E isso foi, precisamente, o que ele jamais pôde admitir.
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ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
denunciam a si mesmas, dizendo uma coisa que não queriam dizer; contudo, o
inconsciente quis que elas dissessem precisamente essa coisa. Isso é o que
podemos observar, repetidas vezes, quando as pessoas cometem um lapso ao
falar, caem em deslizes verbais ou dizem algo que não pretendiam dizer;
cometem algumas gafes ridículas. Por exemplo, quando a pessoa quer expressar
as suas condolências num funeral e se dirige a alguém dizendo: ”Os meus
parabéns”. Isso é bastante penoso, claro, mas acontece e é verdade. Há nisso
algo paralelo à idéia geral de Freud sobre a psicopatologia da vida cotidiana.
Em Paris, Pierre Janet abordava por outro ângulo o problema da
compreensão das reações inconscientes. Ora, Freud refere-se muito pouco a
Pierre Janet, mas estudei com ele enquanto estive em Paris e seus ensinamentos
ajudaram imensamente na formação das minhas idéias. Ele era um observador de
primeira categoria, embora não tivesse uma teoria sistemática de Psicologia
Dinâmica; tinha uma espécie de teoria fisiológica dos fenômenos do inconsciente.
Existe uma certa despotencialização da tensão da consciência; essa
tensão cai abaixo do nível de consciência e, por conseguinte, torna-se
inconsciente. Esse era também o ponto de vista de Freud, mas dizia que tal
queda ocorria porque era ajudada; era reprimida desde cima. Foi este o meu
primeíro ponto de divergência com Freud. Penso que houve. casos, em minhas
observações, em que não ocorria qualquer repres’são de cima; aqueles
conteúdos que se tornaram inconscientes se tinham retirado por si próprios e não
porque tivessem sido recalcados.
Pelo contrário, têm uma certa autonomia. O conceito de autonomia foi
descoberto como simples conseqüência do fato desses conteúdos que
desaparecem terem o poder de se movimentar independentemente da minha
vontade. Ou aparecem quando quero dizer alguma coisa precisa; ou interferem e
falam eles próprios em vez de me ajudarem a dizer o que quero dizer; ou
impelem-me a fazer algo que não quero absolutamente
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CONCEITOS ESTRUTURAIS DE FREUD
Expressão latina: ”Não está senhor do seu juízo” ou ”Não está na posse de suas faculdades
mentais”. Em termos correntes, ”está fora de si”. (N. do T.)
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ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
instinto não funciona. Isso já é algo que está no nosso alcance, visto que
podemos estudar os casos em que o instinto não funciona.
Dr. Evans: Poderia o senhor nos dar alguns exemplos específicos do que
entende por casos em que o instinto não funciona?
Dr. Jung: Bem, vejamos... No lugar do instinto, que é uma forma habitual
de atividade, tomemos qualquer outra forma de atividade habitual. Consideremos
uma coisa sob absoluto controle que falha em seu funcionamento; de repente,
piora e a pessoa não é capaz de pensar em qualquer outra coisa. Por exemplo,
um homem que escreve fluentemente começa, de súbito, a cometer erros
ridículos; portanto, o seu hábito não funcionou. Outro exemplo: quando o senhor
me pergunta alguma coisa, supõe-se que sou capaz de reagir ao que me disse;
mas certamente que, se a pressão exercida sobre mim for além das marcas ou se
o senhor lograr atingir um dos meus complexos, então verá que fico inteiramente
perplexo. Faltam-me as palavras.
Dr. Evans: Ainda não o vimos perplexo, Dr. Jung.
Dr. Jung: Sou um bom exemplo para a Psicologia, sabe? Um sujeito que
sabe a fundo a sua matéria... o professor faz-lhe uma pergunta e ele não é capaz
de soltar uma palavra.
Dr, Evans: Bem, continuando com o nosso assunto, outra parte da teoria
do Dr. Freud, que, é claro, se tornou muito importante e a que já fizemos alusão,
foi a idéia do consciente; isto é, dessa ”estrutura” inconsciente, Instintiva, que é o
Id, surge um Ego. .Freud sugeriu que esse .Ego resultava do.contato do
organismo com a realidade, talvez um produto jde frustração quando o princípio
de realidade é imposto ao indivíduo. O senhor aceita essa concepção freudiana
do Ego?
Dr. Jung: O que o senhor está perguntando é se o homem possui
realmente um Ego. Ah, caímos
60
CONCEITOS ESTRUTURAIS DE FREUD
61
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
Dr. Jung: Sim. Mas Freud não distinguiu o que era inato e o que era
adquirido. Veja bem, quase tudo deve estar inteiramente dentro do eu, deve
estar interiorizado, pois caso contrário não pode existir equilíbrio algum no
indivíduo. E quem demônio inventou o Decálogo? Ele não foi inventado por
Moisés, mas é a verdade eterna no próprio homem, porque ele se controla a si
próprio.
63
PARTE III
O INCONSCIENTE
mais moços, todas as coisas que eles não devem fazer. Depois dizem:
— Pois bem, isto é exatamente o que vocês não farão. Outra forma de agir
consiste em dizer-lhes tudo o que não devem fazer, como no Decálogo: ”Tu não
farás...”, e isso é sempre apoiado por contos mitológicos.
É claro que isso me proporcionou um motivo para estudar os arquétipos,
pois comecei a vislumbrar que a estrutura daquilo a que eu então chamava o
inconsciente coletivo era, realmente, um aglomerado de tais imagens típicas,
cada uma das quais tinha uma qualidade específica e única.
Ao mesmo tempo, os arquétipos são dinâmicos. São imagens instintivas
que não foram intelectualmente inventadas. Estão sempre presentes e produzem
certos processos no inconsciente que poderíamos comparar melhor com os mitos.
Está aí a origem da mitologia. A mitologia é a expressão de uma série de imagens
por meio das quais se formula a vida dos arquétipos.
Assim, os enunciados de toda e qualquer religião, de muitos poetas etc.,
são declarações sobre o processo mitológico interno, o que é uma necessidade
porque o homem não está completo se não estiver cônscio desse aspecto das
coisas. Por exemplo, os nossos ancestrais fizeram isto e aquilo, e assim faremos.
Ou um herói tal e tal fez assim e assado, e esse é o nosso modelo. Nos
ensinamentos da Igreja Católica, por exemplo, há muitos milhares de santos. Eles
mostram-nos como fazer... Eles têm as suas lendas... e isso é a mitologia cristã.
Na Grécia, como o senhor sabe, havia Teseu e havia Hércules, modelos de
excelentes homens, de perfeitos cavalheiros; e eles nos ensinam como nos
devemos comportar. São arquétipos de comportamento. Passei a respeitar cada
vez mais os arquétipos, e isso, naturalmente, levou-me a estudá-los
profundamente. E agora, por Júpiter, aí está um fator enorme, muito importante
para o nosso desenvolvimento e bem-estar, que deve ser levado em conta.
68
O INCONSCIENTE: ARQUÉTIPOS
Foi difícil, é claro, saber por onde devia começar, porquanto se trata de um
campo imensamente vasto. E a pergunta seguinte que fiz a mim próprio foi esta:
”Ora bem, houve alguém no mundo que se tivesse ocupado desse problema?”
Descobri que ninguém se preocupara com isso, exceto um peculiar movimento
espiritual que surgiu simultaneamente com os primórdios do Cristianismo, os
gnósticos, e isso foi, realmente, a primeira coisa que descobri a tal respeito. Eles
estavam preocupados com o problema dos arquétipos e disso fizeram uma
filosofia peculiar. Cada um é tentado a formular uma filosofia particular a propósito
dos arquétipos, quando os aborda ingenuamente e ignora que eles são elementos
estruturais da psique inconsciente. Os gnósticos viveram nos séculos l, II e III da
nossa era; e eu quis apurar o que é que houve entre essa época e hoje, quando
deparamos subitamente com os problemas do inconsciente coletivo que eram os
mesmos há dois mil anos, embora não estejamos preparados para reconhecer
esse problema. Eu estava sempre em busca de algo intermediário, algo que fosse
o elo entre esse passado »emoto e o momento presente.
Para meu espanto, descobri que era a alquimia, aquilo- que é entendido
como uma história da Química. Poderíamos quase afirmar que a alquimia é tudo
menos isso. Tratava-se de um movimento espiritual ou de um movimento filosófico
de características muito peculiares. Os alquirnistas intitulavam-se a si próprios
filósofos, como narcisismo.
E passei então a ler toda a literatura acessível, latina e grega. Estudei-a
porque era imensamente interessante. É o labor mental de 1.700 anos, no qual se
armazenou tudo o que poderia ser dito sobre a natureza dos arquétipos, de um
modo peculiar que é amiúde burlesco ou absurdo. Não foi tarefa simples. A
maioria dos textos não voltou a ser publicada desde a Idade Média, as edições
mais recentes datavam de meados ou do final do século XVI, todos em latim;
alguns textos são em grego, não dos mais importantes. Isso deu-me um trabalho
interminável, mas o resultado foi sumamente satisfatório, porque me mostrou o
desenvolvimento da nossa relação inconsciente com o inconsciente coletivo e as
variações
69
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
Dr. Jung: Eles não se tornam; eles são. Para começar, eles são. Nós
todos nascemos num modelo; somos um modelo. Somos uma estrutura que foi
preestabelecida através dos genes.
Dr. Evans: Recapitulando, então, o arquétipo é apenas uma ordem
superior de um padrão instintivo, como no seu exemplo anterior de um pássaro
que constrói um ninho. Foi assim que pretendeu descrevê-lo?
Dr. Jung: É uma ordem biológica do nosso funcionamento mental,
exatamente como, por exemplo, a nossa função biológico-fisiológica obedece a
um padrão. O comportamento de qualquer pássaro ou inseto obedece a um
padrão e o mesmo acontece conosco. O homem tem um determinado padrão que
o faz especificamente humano e nenhum homem nasce sem ele. Só que estamos
profundamente inconscientes desses fatos, porque vivemos pelos nossos
sentidos e fora de nós próprios. Se um homem pudesse olhar para dentro de si,
poderia descobrir tudo isso. Nos nossos dias, quando um homem o descobre,
pensa que está doido, realmente doido.
Dr. Evans: O senhor diria que o número de tais arquétipos é limitado ou
previamente determinado, ou que o seu número pode ser aumentado?
Dr. Jung: Bem, não sei o que devo pensar sobre isso, é tão impreciso para
que possamos saber algo com exatidão. Não dispomos de meios de comparação.
Sabemos e vemos que existe um comportamento, como o incesto; ou que existe
um comportamento de violência, uma certa espécie de violência; ou que existe um
comportamento de pânico, de poder etc. São áreas em que, por assim dizer,
existem numerosas variações. Podem expressar-se desta ou daquela maneira. E
sobrepõem-se. Muitas vezes, é impossível dizer onde uma forma começa ou
acaba.
Nada existe de preciso, porque o arquétipo, em si mesmo, é
completamente inconsciente e só podemos ver os seus efeitos. Podemos ver, por
exemplo, quando sabemos que uma pessoa está possuída por um arquétipo;
73
CONCEPTUALIZAÇÕES GERAIS
O senhor já falou antes sobre esses universais. Haveria muita equivalência entre
o inconsciente de um indivíduo que foi criado numa cultura e de outro indivíduo
criado numa cultura inteiramente distinta?
Dr. Jung: Bem, a pergunta também é complicada porque, quando falamos
do inconsciente, Jung diria: ”Qual inconsciente?” Trata-se daquele inconsciente
pessoal que é característico de uma certa pessoa, de um certo indivíduo?
Dr. Evans: Em suas obras o senhor falou sobre um inconsciente pessoal
como um tipo de inconsciente, não é verdade?
Dr. Jung: Sim. No tratamento, por exemplo, no tratamento de neuroses,
temos de lidar com esse inconsciente pessoal durante um certo tempo e somente
depois que os sonhos começam a revelar o inconsciente coletivo é que este pode
ser abordado. Enquanto houver material de natureza pessoal, temos de lidar com
o inconsciente pessoal; mas quando tocamos uma questão, um problema que já
não é meramente pessoal, mas também coletivo, então temos de lidar com
sonhos coletivos.
Dr. Evans: Portanto, a distinção entre o inconsciente pessoal e o
inconsciente coletivo consiste em que o pessoal pode estar mais envolvido na
vida imediata do indivíduo e o coletivo seria universal, isto é, um domínio
inconsciente composto de elementos que são idênticos em todos os homens?
Dr. Jung: Sim, que são coletivos. Por exemplo, a psique tem problemas
coletivos, convicções coletivas etc. Somos muito influenciados por esses
elementos e não faltam os exemplos para prová-lo. A pessoa pertence a um certo
partido político ou a uma certa confissão religiosa; isso pode ser uma
determinante muito séria do seu comportamento. Ora, se sobrevier uma questão
de conflito pessoal, o inconsciente coletivo não é atingido. Ele está fora de
questão e não aparece. Mas no mo-
77
ENTREVISTAS com CARL G. JUNQ
82
CONCEPTUALIZAÇÕES GERAIS
vuma figura de herói e a figura de herói é muito mais importante do que quaisquer
pais que tenham existido até hoje. Ele era um herói no mito alemão, note bem, um
herói religioso. Era um salvador, aquele que estava destinado a trazer a
redenção. Foi por isso que colocaram o seu retrato até em altares. E foi por isso
que alguém mandou gravar na pedra de seu túmulo que era feliz porque seus
olhos haviam contemplado Hitler e agora poderia repousar em paz. Hitler era,
simplesmente, um herói mítico.
Dr. Evans: Voltando, mais especificamente, à idéia do eu...
Dr. Jung: O eu é, meramente, um termo que designa a personalidade total.
A personalidade do homem, como um todo, é indescritível. A sua consciência
pode ser descrita; o seu inconsciente não pode ser descrito porque.... repito uma
yez mais... é sempre inconsciente. E como é realmente inconsciente, o homem
não o conhece. E, assim, desconhecemos a nossa personalidade inconsciente.
Temos certos indícios e certas idéias a seu respeito, mas, na realidade,
desconhecemo-la.
Ninguém pode dizer onde termina o homem. É aí que está toda a beleza da
coisa. Todo o seu grande interesse. O inconsciente humano oculta sabe Deus que
segredos. Temos ainda grandes descobertas a fazer.
Dr. Evans: O que parece ser uma parte muito fundamental de seus escritos
e uma de suas principais idéias está refletido no termo mandala. Como é que isso
se ajusta no contexto do seu exame do eu?
Dr. Jung: Mandala... Bem, trata-se apenas de uma for. ma característica de
arquétipo. É o que se chama ultmo exquadra circulae, a quadratura do círculo ou
a circulatura do quadrado. É um símbolo antíqüíssimo que remonta à pré-história
do homem. Encontramo-lo por toda parte da Terra e expressa ou a Deidade ou o
eu; e estes dois termos estão, psicologicamente, muito
83
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
Parte IV
A TEORIA DE INTROVERSÃO-EXTROVERSÃO E A MOTIVAÇÃO
Talvez a mais conhecida contribuição do Dr. Jung seja a sua teoria dos
tipos psicológicos, na qual estabeleceu a dicotomia entre introvertidos e
extrovertidos. Como foi sublinhado no primeiro capítulo, Jung estava muito
desgostoso a respeito da interpretação errônia de suas idéias pelos americanos
e, além disso, estava ciente de que a sua tipologia introversão-extroversão tinha
sido o alvo de muitas dessas más interpretações. Nestas entrefistas, Jung reflete
a sua impaciência com a distorção de que o significado e o uso corretos desses
termos tinham sido vítimas.
Esforça-se por explicar em grande detalhe as relações que existem entre
aquilo a que se refere como as quatro funções – pensamento, sentimento,
percepção e intuição – e o que designa como orientações de introversão e
extroversão. Particularmente difícil para uma plena compreensão é o seu tipo
introvertido intuitivo, pelo que Jung nos oferece alguns exemplos concretos e
deveras interessantes para ilustrar essa orientação num indivíduo.
Ako discutir as suas concepções motivadoras, primordialmente o seu
conceito da libido, ele explica a sua noção oriental de energia, tal como se
manifesta no indivíduo. Ele também parece aceitar a importância dos fatores
históricos na compreeensão do intivíduo, mas sem excluir o realce que deve ser
dado ao entendimento dos acontecimentos atuais que influem sobre a pessoa,
isto é, a importância de uma abordagem de campo.
85
Mas isso é um erro. Esse homem está tão bem fundado quanto o outro, porquanto
se baseia no mundo interior. E, portanto, está inteiramente certo quando diz: ”Oh,
são apenas as minhas fantasias.” É claro, este é o introvertido; e o introvertido
está sempre receoso do mundo externo. Ele próprio o dirá quando alguém lhe
perguntar. Mostrar-se-á contrito a esse respeito e dirá: ”Sim, eu sei, são as
minhas fantasias.” E está sempre ressentido com o mundo em geral.
A América é um exemplo característico de extroversão. O introvertido não
tem aí lugar, porque ignon que contempla o mundo de dentro. Isso confere-lhe dig
nidade, confere-lhe sequrança, porque é isso a psique do homem. Hoje em dia,
sobretudo, o mundo está suspenso de um tênue fio. Suponha que uns certos
camaradas em Moscou se enervam ou perdem o senso comum por alguns
instantes; então o mundo inteiro ficará envolto em violentas chamas. Atualmente,
não somos tão ameaçados por catástrofes elementares. Nada existe comparável
à bomba H... e isso é uma criação do homem. Nós é que somos o grande periqo.
A psique é o grande perigo. O que acontecerá se algo falhar na psique? E isso
nos demonstra, em nossos dias, qual é o poder da psique, como é importante
sabermos algo a seu respeito. Mas nada sabemos sobre ela. Ninguém daria
crédito à idéia de que o processo psíquico do homem comum possa ter alguma
importância. Pensa-se: ”Oh, o que ele tem na cabeça pouco interessa; ele é o que
o seu meio fez dele; foi ensinado a fazer isto e aquilo, acredita nesta e naquela
coisa e, sobretudo, se estiver bem alimentado e bem alojado, então não terá idéia
nenhuma. ” E aí reside o grande equívoco, porque ele é o mesmo homem que era
ao nascer e não nasceu como tabula rasa, mas como realidade.
Assim, comecei um exame das atitudes humanas e, notadamente, como
funciona a nossa consciência. Eu não podia deixar de observar, por exemplo, a
diferença entre Freud e Adler, uma diferença típica. Um partia do princípio de que
as coisas evoluíam sequndo as diretrizes do instinto sexual. O outro admitia que
as coisas se desenvolvem de acordo com as diretrizes do instinto de poder. E ali
estava eu... entre os dois.
89
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
Psychologrlschc Typen, 1921. Existe tradução brasileira: Tipos Psicológicos, Zahar Editores. 1967,
tradução e apresentação de Álvaro Cabral. (N. do T.)
90
AS TEORIAS DE INTROVERSÃO-EXTROVERSÃO
mo que se baseie em Deus sabe que sólidos fatos. Vejamos, por exemplo, a
interpretação de estatísticas. Podemos provar quase tudo o que quiser com
estatísticas. E o que é que existe de mais objetivo que uma estatística?
Dr. Evans: Sabemos, é claro, que o senhor vinculou a sua tipologia da
introversão-extroversão quatro funções: pensar, sentir, perceber e intuir. Seria
muito interessante ouvirmos uma explicação mais desenvolvida do significado
desses termos, em relação com as orientações introvertido-extrovertido.
Dr. Jung: Bem, há uma explicação muito simples para esses termos e ela
mostra, ao mesmo tempo, como chegamos a essa tipologia. A sensação diz-nos
que existe alguma coisa. O pensamento, de um modo geral, diz-nos o que é essa
coisa. A percepção informanos se essa coisa é agradável ou não, se deve ser ou
não aceita, admitida ou rejeitada. E a intuição... aqui deparamos com uma
dificuldade porque, normalmente, não sabemos como a intuição funciona. Quando
um homem tem um palpite, não podemos dizer exatamente como obteve esse
palpite ou donde foi que este veio. A intuição é uma coisa engraçada.
Vou contar uma pequena história. Tive dois pacientes. O homem era do
tipo sensitivo e a mulher do tipo intuitivo. É claro, eles sentiam uma certa atração
mútua, de modo que tomaram um pequeno barco e desceram rumo ao lago de
Zurique. E aí, no lago, havia aqueles pássaros que mergulham nas águas para
apanhar peixes, como o senhor sabe, que sobem passado um certo tempo, mas
que ninguém pode dizer quando. Os meus dois pacientes começaram então a
apostar quem veria primeiro o pássaro emergir. Ora, poderíamos pensar que o
vencedor seria aquele que observa a realidade muito cuidadosamente, pondo
nessa observação todos os seus sentidos, isto é, a função de sentir. Nada disso.
A mulher ganhou todas as apostas. Ela derrotava-o em todos os pontos porque,
pela intuição, sabia antes. Como é possível? Podemos realmente descobrir como
a intuição funciona se encontrarmos os elos intermediários. Trata-
93
ENTREVISTAS corn CARL G. JUNG
por palpites, por pressentimentos. Vê do outro lado das esquinas; fareja um rato a
quilômetros de distância. Pode-nos dar uma percepção e uma orientação em
situações em que os nossos sentidos, o nosso intelecto e as nossas sensações
não servem de nada. Quando estamos em grande apuro, uma intuição pode
mostrar um buraco por onde teremos possibilidade de escapar. Isso é uma função
muito importante em condições primitivas que não e possível dominar pelas
regras da lógica.
Assim, através do estudo de toda espécie de tipos humanos, cheguei à
conclusão de que devem existir muitas lormas aiterentes de encarar o mundo,
através dessas quatro orientações típicas... pelo menos 16, e poderemos
perfeitamente dizer 360. Podemos aumentar o numero ae princípios orientadores
ou subjacentes, mas conclui que a maneira mais simples, como lhe disse, é a
divisão por quatro, a simples e natural divisão do círculo. Ora, não fui eu quem
criou o simbolismo dessa classificação particular. Somente quando estudava os
arquétipos é que me apercebi de que isso constituía um modelo arquetipico muito
importante que desempenha um enorme papel.
Dr. Evans: O senhor estabelece uma distinção entre um extrovertido
intuitivo e um introvertido intuitivo?
Dr. Jung: Sim, esses tipos não podem ser todos semelhantes.
Dr. Evans: Mais especificamente, o que seria um exemplo da diferença
entre um extrovertido intuitivo e um introvertido intuitivo?
Dr. Jung: Bem, o senhor escolheu um caso bastante difícil, porque um dos
tipos que oferecem maiores dificuldades é, justamente, o introvertido intuitivo...
Encontramos o extrovertido intuitivo em todas as espécies de banqueiros,
jogadores etc., o que é, aliás, multo compreensível. O introvertido é mais difícil
porque tem intuições no tocante ao fator subjetivo, isto é, o mundo interior; e, é
claro, isso é muito difícil de enten-
97
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
der porque aquilo que ele vê são coisas extremamente mcomuns, coisas de que
ele não gosta de falar, se não for um imbecil. Se o fizer, estragara o seu próprio
jogo contando o que vê, porque as pessoas não entenderão isso.
Por exemplo, tive certa vez uma paciente, uma jovem de uns 27 ou 28
anos. Imediatamente depois de se sentar, ela disse:
— Sabe, doutor, vim consultá-lo porque tenho uma cobra no abdome.
O quê!
— Sim, uma cobra preta enroscada no baixo ventre. Devo ter feito uma
careta horrível, porque ela imediatamente acrescentou:
— O senhor sabe que não estou falando literalmente.
Eu disse:
— Se a senhora afirma que ó uma cobra, é uma cobra.
Mais tarde, numa conversa que teve lugar mais ou menos no meio do
tratamento, o qual durou apenas dez sessões, a paciente recordou-me algo que
havia pressagiado. Ela havia dito no começo:
— Virei dez vezes e depois tudo ficará bem. Ao que respondi com a
pergunta:
— Como é que a senhora sabe? Ela respondeu:
— Oh, tive um palpite.
Agora, na quinta ou sexta sessão, a paciente me informou:
— Doutor, devo contar-lhe que a cobra subiu. Está agora aqui.
Um palpite.
Depois, no décimo dia, indaguei:
— Hoje é a nossa última sessão, a senhora sentese curada?
Com uma expressão radiante, ela replicou:
— O senhor sabe, doutor, esta manhã ela subiu e saiu pela minha boca.
Tinha uma cabeça dourada.
Foram estas suas últimas palavras. Analisemos agora a realidade, em seus
fatos objetivos: essa moça consultou-me porque não podia ouvir
98
AS TEORIAS DE INTROVERSÃO-EXTROVERSÃO
mais os seus próprios passos, era como se, literalmente, caminhasse no ar. Não
os ouvia e estava assustada. Quando lhe perguntei onde morava, respondeu:
— Oh, na pensão tal e tal. Bem, não se chama exatameme uma pensão,
mas é uma espécie de pensão.
Eu jamais ouvira falar nela.
— Nunca ouvi falar nesse lugar — disse eu.
— Oh, é um lugar muito agradável — respondeu a paciente. — Só tem
moças; são todas muito simpáticas, muito bonitas, e divertem-se muito. Muitas
vezes desejei que me convidassem para suas tardes alegres.
E então perguntei:
— Elas divertem-se sozinhas?
— Não, há sempre muitos jovens entrando; passam um tempo agradável,
mas nunca me convidam.
Resultou, é claro, que se tratava de um bordel muito reservado. A paciente
era uma garota perfeitamente decente, de uma boa família, não daqui. Ela
descobrira esse lugar, não sei como, e estava na completa ignorância ae que
todas as moças a que ela se referia eram prostitutas.
E eu disse:
— Por amor de Deus, a senhora caiu num lugar perigoso; trate de livrar-se
dele o mais depressa possível.
Ela não via a realidade, mas tinha, verdadeiramente, palpites. Tal pessoa
não podia falar de suas experiências porque todo mundo pensaria que ela era
completamente louca. Eu próprio fiquei muito chocado e pensei: ”com mil
demônios, será um caso de esquizofrenia?” Normalmente, não ouvimos esse tipo
de linguagem; mas ela supunha que o velhote, é claro, sabia tudo e compreendia
esse tipo de linguagem.
Portanto, se o introvertido intuitivo dissesse o que realmente percebe,
praticamente ninguém o entenderia; seria mal interpretado. Assim, tais pessoas
aprendem a guardar essas coisas para si mesmas. Dificilmente as ouviremos falar
dessas coisas. De certo modo, isso é uma grande desvantagem, mas, por outro
lado, é muito vantajoso que essas pessoas não falem de suas experiências, tanto
as interiores como as que ocorrem em suas relações humanas. Por exemplo,
podem ficar na
99
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
Conceitos Motivacionais
Dr. Jung: Sim, mas nunca o apliquei, pois também deixei de empregar,
subseqüentemente, o meu Teste de Associação verbal. Não era necessario.
Aprendi que tinha de aprender pelos exames exatos das reaçoes psíquicas; i isso,
creio eu, é um excelente meio.
Dr. Evans: mas o senhor recomendaria o uso desses testes projetivos,
como o seu Teste de Associação Verbal ou Teste de Rorschach,por outros
psiquiatras, psicólogos clínicos e psicanalistas?
Dr. Jung: bem, talvez. Para a educação dos psicólogos que pretendem
realizar trabalho prático com pessoas, creio que é um excelente meio para
aprender como o inconsciente funciona.
Dr. Evans: então, o senhor acha que os testes projetivos têm uma função a
desempenhar no adestramento de psicólogos?
Dr. Jung: Sim, acho que sim. Eles são eminentemente didáticos. Com
esses testes, é realmente possível demonstrar a repressão ou o fenômeno
amnésico, o modo como as pessoas encobrem as suas emoções etc.
Desenrolam-se como uma conversa vulgar, mas os testes fornecem certos
princípios e critérios que servem como guias e instrumentos de medição para o
que se ouve e observa.
É tudo muito interessante. Observamos todas as coisas que podem ser
observadas numa conversa com outras pessoas. Por exemplo, durante uma
conversa, quando perguntamos a uma pessoa alguma coisa ou começamos a
discutir certas coisas, podemos observar determinados detalhes, pequenas
hesitações, deslizes de linguagem etc.: todas essas coisas vêm à tona. É, o que
que é mais, elas são mensuráveis numa situação experimental.
Não creio que esteja superestimando o valor didático dos testes projetivos.
Tenho-os em grande apreço nessa capacidade, isto é, na educação dos jovens
psicólogos. E, por vezes, é claro, são úteis a qualquer psicólogo. Se tenho um
paciente que não quer falar,
111
ENTREVISTAS com CARL, G. JUNG
posso submetê-lo a um teste e descobrir uma porção de coisas por esse meio.
Por exemplo, foi assim que, certa vez, descobri um homicídio.
Dr. Evans: Foi mesmo? Quer contar-nos como isso foi feito?
Dr. Jung: Vocês têm nos Estados Unidos o detector de mentiras e isso é
como um teste de associação em que trabalhei, em combinação com o fenômeno
psicogalvânico. Também realizei numerosas pesquisas com o pneumógrafo, que
registra o decréscimo do volume de respiração, sob a influência de um complexo.
O senhor sabe que uma das razões da tuberculose é a mamiestação de um
complexo. As pessoas têm uma respiração muito artificial, não ventilam mais os
ápices pulmonares e contraem tuberculose. Metade dos casos de tuberculose são
de origem psíquica.
Dr. Evans: Quando trabalha com um paciente, o senhor diria que é
essencial que ele recapitule a sua vida passada a fim de o ajudar a tratar a sua
neurose atual, como fez o Dr. Freud, ou acha que pode dominar situacionalmente
o problema desse paciente, sem voltar atrás e sondar as coisas que aconteceram
durante a infância dele?
Dr. Jung: Na psicoterapia não existe um único e exclusivo procedimento. O
paciente é tratado tal como ele é no presente momento, sem levar em conta as
causas e coisas do gênero. Tudo isso é mais ou menos teórico. Por vezes, posso
começar logo equacionando o problema. De qualquer modo, há pacientes que
sabem tanto sobre a sua própria neurose quanto eu próprio posso saber a esse
respeito.
Por exemplo, vejamos o caso de um professor de Filosofia, um homem
muito inteligente, que imaginava ter câncer. Mostrou-me diversas chapas de raios
X que demonstravam a inexistência de câncer. Disse ele:
— É claro que não tenho câncer, mas, apesar disso, estou com medo de
que pudesse ter. Consultei nume-
112
PRÁTICAS DE DIAGNÓSTICO E DE TERAPIA
rosos cirurgiões e todos me garantiram que não tenho; e sei que não tenho, mas
poderia ter.
Está vendo? Isso é o bastante. Um caso como esse pode ser curado de um
momento para o outro, assim que a pessoa doente deixa de pensar em tais coisas
bobas. Mas isso é justamente o que ela não pode fazer.
Num caso desses, eu digo:
— Bem, você sabe perfeitamente que acredita numa tolice. Mas por que é
que se sente forçado a acreditar em semelhante tolice? Que força o leva a
pensar em tal coisa, contra a sua própria e livre vontade? Você sabe que tudo
isso é absurdo.
É como se o paciente estivesse possuído, como se fosse habitado por um
demônio que o faz pensar assim, apesar do fato dele não querer. Então costumo
dizer:
— Você não tem uma resposta para isso; tampouco tenho uma resposta.
O que é que vamos fazer? — E acrescento: — Vejamos, como ponto de partida, o
que é que você costuma sonhar, porque um sonho é uma manifestação do lado
inconsciente.
No caso que estou citando, o nosso filósofo jamais ouvira falar do lado
inconsciente, de modo que tive de lhe explicar a existência do inconsciente; e tive
de lhe explicar também que o sonho é uma manifestação desse inconsciente.
Assim, se conseguíssemos analisar o sonho, talvez obtivéssemos uma idéia
sobre a natureza daquela força que estava destorcendo o seu pensamentoNum
caso como esse, podemos começar logo com a análise dos sonhos e o mesmo é
válido para todos os casos que são algo sérios. Note bem que esse não era um
caso simples, mas, pelo contrário, bem difícil e sério, apesar da simplicidade da
fenomenologia sintomatológica.
Em todos os casos, depois de preliminares tais como anotar a história da
família, toda a análise médica etc., chegamos sempre a esta interrogação: ”O que
e que, no seu inconsciente, provoca distúrbios no que pensa e o impede de
pensar normalmente?” Podemos então começar com a observação do
inconsciente e com o processo cotidiano de analisar os dados produzidos pelo
inconsciente. Depois de ter sido discutido o pri-
113
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
meiro sonho, todo o problema adquire uma nova perspectiva, e ele apresentará
outros sonhos, cada um dos quais terá alguma coisa a acrescentar aos dados
anteriores, até termos um quadro completo. Agora que temos um quadro
completo, se o paciente possuir a necessária energia moral, poderá ser curado.
Em última instância, é estritamente uma questão moral, quer um homem aplique o
que aprendeu, quer não.
Dr. Evans: A sua abordagem íipológica, baseada nos construtos
introversão-extroversão, ajudou-o nesse processo analítico?
Dr. Jung: Sim. Comprovei, no estudo do ”tipo”, que ele fornece uma certa
orientação quanto à natureza pessoal do inconsciente, a qualidade pessoal do
inconsciente num dado caso. Se estudamos um extrovertido, verificamos que o
seu inconsciente tem uma qualidade introvertida. Isso é porque todas as
qualidades extrovertidas são desempenhadas na consciência e as qualidades
introvertidas o são no inconsciente; portanto, o inconsciente possui qualidades
introvertidas. É claro, a composição inversa é igualmente verdadeira. Esse
conhecimento proporcionou-me uma orientação de valor diagnóstico. Ajudou-me a
compreender os meus pacientes. Quando observava o seu tipo consciente, podia
fazer uma idéia das suas atitudes inconscientes.
Ora, o neurótico é tão controlado e influenciado pelo inconsciente quanto
pelo consciente, de modo que pode parecer que é um tipo que, na realidade, não
é um diagnóstico verdadeiro. Em certos casos, é quase impossível distinguir entre
o material consciente e o material inconsciente, porque não podemos afirmar, à
primeira vista, qual é qual. Isso me ajudou a compreender mais os pacientes, em
termos da ênfase freudiana (baseada no passado), assim como nos termos
adlerianos, os quais, como o senhor diz, se interessam mais pela situação atual
do paciente.
No decorrer dos anos, obtive grande quantidade de material empírico sobre
o modo peculiar como interatuam os conteúdos consciente e inconsciente. Pude
fazer isso observando os indivíduos que estavam em tra-
114
PRÁTICAS DE DIAGNÓSTICO E DE TERAPIA
que isso pareça. Mas isso, evidentemente, nada tem a ver com a personalidade
do psicanalista. Nesse caso, a personalidade do psicanalista é simplesmente
ignorada. Funcionamos agora como se fôssemos a mãe ou o pai... a autoridade
central. É a isso que se chama transferência; é uma projeção. Mas Freud não lhe
cháma exatamente projeção. Chama-lhe transferência, o que é uma alusão a uma
velha e supersticiosa idéia, segundo a qual, se temos uma doença, podemos
transferir essa doença para um animal; ou podemos transferir um pecado para um
bode expiatório, que o leva para o deserto e o faz desaparecer. Assim, os
pacientes transferem-se, na esperança de que eu possa engolir todo aquele
material e digeri-lo por eles. Estou in loco parentis e tenho uma grande
autoridade. Naturalmente, também sou perseguido pelas correspondentes
resistências, por todas as múltiplas reações emocionais que eles têm contra os
pais.
Assim, é essa a estrutura em que temos de trabaihar na primeira fase da
situação analítica, porque o páciente em tais condições não é livre; é um escravo.
Depende realmente do médico como um paciente com a barriga aberta na mesa
de operações. Está nas mãos do cirurgião, para melhor ou para pior, até que a
coisa toda acabe. Isso significa que temos de resolver completamente essa
situação, na esperança de que o páciente chegue a uma condição diferente, na
qual possa ver que não sou seu pai, nem sua mãe, que sou um ser humano
comum. Ora, todos suporiam que tal coisa é possível, que o paciente poderá
chegar mais cedo ou mais tarde a essa introvisão, desde que não seja um idiota
completo, que poderá enxergar que sou apenas um médico e não a figura
emocional de suas fantasias. Contudo, é muito freqüente que isso não ocorra.
Tive certa vez um caso que envolvia uma mulher jovem e inteligente, uma
estudante de Filosofia que tinha um espírito muito lúcido. Eu acreditaria
facilmente que ela era capaz de se aperceber de que eu não era a sua autoridade
parental; mas, para minha decepção, ela foi profundamente incapaz de sair dessa
falsa crença. Em semelhantes casos, podemos sempre recorrer aos sonhos.
Através do consciente, ela diz: ”É claro, sei
117
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
que o senhor não é meu pai, mas sinto desse jeito. É como se fosse o meu pai;
dependo inteiramente do senhor.” Então eu digo: ”Bem, veremos agora o que o
inconsciente diz.” A partir desse ponto, trabalhamos arduamente na análise dos
seus sonhos e começo a ver que o inconsciente está produzindo um sonho em
que assumo um papel muito curioso.
Nos seus sonhos, ela é como uma criança pequena, sentada nos meus
joelhos e eu a seguro nos braços. Converti-me num pai muito terno para a menina
pequena. Cada vez mais os seus sonhos se tornam empáticos a esse respeito; a
saber, tornei-me uma espécie de gigante e ela é uma criaturinha humana muito
pequena e frágil, que se entrega confiante nas mãos de um ser descomunal.
Ocorre então o sonho final da série. Nesse sonho, eu estava em pleno seio da
natureza, no meio de uma seara de trigo, uma enorme seara pronta para a
colheita. Eu era um gigante e segurava-a em meus braços como um bebê,
enquanto o vento, soprando forte, varria todo o trigal. Ora, como o senhor sabe,
quando o vento está soprando numa seara, o trigo ondula; e, ao sabor dessa
ondulação, eu balançava, balançava, até que ela adormeceu. Ela sentia estar nos
braços de um deus, da ”Deidade”. Pensei: ”Agora que a seara está madura, devo
dizer-lhe”, de modo que lhe disse: ”Precisa compreender o que é que quer e está
projetando em mim, inconscientemente: você está sentindo, sem ter consciência
disso, a influência de uma deidade que não ”possui” o seu consciente; por isso
está vendo-a em mim.” Isso foi como que um estalo, porque ela tinha uma
educação religiosa bastante intensa, o que a habilitou a compreender. Claro, tudo
isso se desvaneceu mais tarde e algo desapareceu do seu mundo. O mundo
tornou-se meramente pessoal para ela e uma questão de consciência imediata.
Aquela concepção religiosa do mundo deixou de existir para ela, evidentemente.
Isso faz sentido, é claro, porque a idéia de uma deidade não é uma idéia
intelectual. É um arquétipo, uma idéia arquetípíca, que se apossa do nosso
inconsciente; e logo que ela pôde compreender isso conscientemente, o arquétipo
deixou de poder controlá-la.
118
PRÁTICAS DE DIAGNÓSTICO E DE TERAPIA
Com esse ou outro nome, encontramos praticamente em toda parte esse
gênero de imagem arquetípica. Mesmo quando se manifesta na forma de ”maná”,
possui um extraordinário efeito ou qualidade onipotente; não interessa se é
pessoal ou não. No caso dessa moça, ela tornou-se subitamente cônscia de uma
imagem inteiramente paga, uma imagem que promanava diretamente do
arquétipo. Ela não tinha idéia de um Deus cristão, ou de um Jeová do Antigo
Testamento, mas de um Deus pagão — um Deus da Natureza, um Deus da
Vegetação. Ele era o próprio trigo. Era o espírito do trigo, o espírito do vento; e
ela estava nos braços desse Pneuma. Eis a experiência viva, existencial, de um
arquétipo.
Quando a moça acabou por Compreender o que lhe estava acontecendo,
isso causou uma tremenda impressão nela. Viu o que realmente lhe estava
fazendo falta, aquele valor ausente que estava projetando em mim, fazendo com
que eu lhe fosse indispensável. Depois, apercebeu-se de que eu não era
indispensável, porque, como diz o sonho, ela está nos braços da idéia
arquetípica. Isso é uma experiência de ordem pnêumica e o que as pessoas
procuram, uma experiência arquetípica que é, em si mesma, um valor
incorruptível.
Enquanto não tiverem essa experiência e a entenderem, dependem de
outras condições; dependem de seus desejos, de suas ambições. Dependem de
outras pesoas, porque não possuem valores em si mesmas. São apenas racionais
e não estão na posse de um tesouro que as tornaria independentes. Ora, quando
essa moça pôde ter essa experiência, deixou de ter que depender. O valor passou
a ser parte integrante dela própria. Tinha sido libertada e estava agora completa.
Na medida em que pôde realizar essa experiência pnêumica, ficou apta e
continuará estando apta a desempenhar o seu papel, a seguir o seu caminho — o
da sua própria individuação. A glande só pode vir a ser um carvalho, e nunca um
burro. A natureza seguirá o seu curso. Um homem ou mulher torna-se aquilo que
ele ou ela é desde o princípio. Vi uma quantidade inumerável de tais casos, como
aquele que acabei de citar.
119
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
* Jung refere-se a Uber die Psicologie dês Unbewussten. cuja primeira edição data de 1917, com
outro título O título acima só foi adotado a partir da 5* edição (1942). Existe uma tradução
portuguesa: Acerca da Psicologia do Inconsciente, EdHora Delfos, Lisboa, 1967, trad. de Ingrid
Bauner Trindade. (N. do T.)
120
PRÁTICAS DE DIAGNÓSTICO E DE TERAPIA
desejam, não pela vontade do sujeito, mas delas próprias; e também podemos
reprimi-las. O mesmo ocorre com as projeções. Por exemplo, as pessoas dizem:
”Fulano faz projeções”. Isso é absurdo. Ninguém faz projeções; encontra-as. Elas
já estão aí, já existem no inconsciente. Tudo o que se pode fazer é descobri las. E
assim, esses desaparecimentos, ou as chamadas repressões, são como as
projeções. Sem que tenhamos interferência alciuma nisso, elas já estão no
inconsciente e dele fazem parte. Há casos, certamente, em que o consciente
intervém, mas posso afirmar que a grande maioria dos casos é inconsciente. Esse
foi, aliás o meu primeiro ponto de divergência com Freud. Eu tinha visto nos
experimentos de associação que certos complexos não são reprimidos, em
absoluto. Simplesmente, não aparecem. Isso é porque o inconsciente é real; é
uma entidade; funciona por si mesmo; é autônomo.
Dr. Evans: Assim, num certo sentido, considerando os chamados
mecanismos de defesa, projeção, racionalização etc., o senhor diverge do ponto
de vista psicanalítico ortodoxo, na medida em que não aceita que eles se
desenvolvam como um meio de proteger o Ego. Pelo contrário, o senhor diria que
eles já estão af como manifestações de padrões que já se encontram presentes
no inconsciente.
Dr. Jung: Exato. Veja, por exemplo, o caso da serpente. Isso nunca tinha
sido reprimido, pois que, caso contrário, teria sido consciente para a moça. Mas,
pelo contrário, era inconsciente nela e somente apareceu em suas fantasias.
Surgiu espontaneamente. Ela ignorava como isso tinha aparecido. Ela dizia:
”Bem, eu a vi.”
Dr. Evans: Alguns psicanalistas ortodoxos teriam dito: ”Isso é um
símbolo fálico.”
Dr. Jung: Cada um pode dizer o que muito bem quiser. Um poderá dizer
que o campanário de uma igreja é um símbolo fálico, mas, nesse caso, quando
alguém sonha com um pênis, isso é símbolo de quê? O
124
PRÁTICAS DE DIAGNÓSTICO E DE TERAPIA
125
9
Jung sobre os Problemas Psicológicos Contemporâneos
cepção ideal consiste em ter uma percepção aguda das coisas, tal como são, sem
adições ou correções. Por outro lado, a intuição não vê as coisas como são. Isso
é vedado à intuição. Esta vê rápida e superficialmente as coisas, tal como são, e
trata logo, por um processo inconsciente, de enxergar coisas que ninguém mais
verá.
Dr. Evans: Assim, em termos da pessoa que é clarividente...
Dr. Jung: Aquelas pessoas que obtêm os melhores resultados são sempre
as introvertidas, em que a intuição introvertida intervém. Mas isso é um aspecto
subsidiário que não se reveste de grande interesse.
A outra questão é muito mais interessante, no que diz respeito aos termos
que eles usam. O próprio Rhine os emprega: reconhecimento, telepatia etc. Eles
nada significam. São palavras, mas ele julga que disse alguma coisa quando diz
”telepatia”.
Dr. Evans: A palavra, em si, não é uma descrição do processo.
Dr. Jung: Nada significa, absolutamente nada.
Dr. Evans: Naturalmente, muitas coisas que o senhor esteve descrevendo
são, na opinião de alguns cientistas, devidas ao acaso, a ocorrências fortuitas e
fatores ocasionais. Eles insistem nisso e, em sua própria obra, Rhine usou os
métodos da análise estatística de probabilidades. Relata ele, em seus estudos,
que essas ocorrências se registram mais freqüentemente do que se poderia
esperar como efeito do acaso.
Dr. Jung: Bem, ele prova que é mais do que o acaso; prova que é
estatisticamente plausível. Esse é o ponto importante que não pôde ser
contraditado.
Alguns trabalhos experimentais realizados na Inglaterra resultaram na
acusação: ”Oh, Rhine, isso não passa de conjetura.” E é exatamente verdadeiro;
é apenas conjetura. Entretanto, uma intuição é uma conjetura, mas uma conjetura
definida. Tudo isso, realmente, nada quer dizer.
127
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
O ponto é que há mais do que uma mera probabilidade; está para além do
acaso. Esse é que é o ponto essencial. Mas, como o senhor sabe, as pessoas
detestam os problemas que não podem tratar concretamente. De fato, o próprio
Rhme não entende com que freqüência os fenômenos extra-sensoriais realmente
ocorrem, porque isso é uma revelação proibida nesses recintos sagrados, uma
revelação de tempo e espaço através da psique. Esse é o fato; foi o que Rhme
tornou evidente, mas fazer com que os cientistas digam: ”Essa eu engulo”, aí é
que está a dificuldade.
Dr. Evans: Poderíamos avançar um pouco mais, a propósito de algumas de
suas obras recentes nessa área, que muitos consideram extremamente
profundas, mas não são muito conhecidas entre a maioria dos nossos estudantes.
Dr. Jung: Claro que não. No grande público, ninguém lê realmente essas
coisas. Mas pelo menos meus livros são vendidos.
Dr. Evans: Para ser mais específico, estou-me referindo a um conceito, a
smcronicidade, que o senhor já discutiu e que me parece ser pertinente neste
ponto da nossa conversa. Importar-se-ia de discorrer sobre a sincronicidade?
Dr. Jung: Isso é terrivelmente complicado. Nem sei por onde começar. É
claro, essa maneira de pensar principiou há muito tempo e, quando Rhine
divulgou os seus resultados, eu pensei: ”Agora temos, pelo menos, uma base
razoavelmente fidedigna para discussão.” Mas a discussão não foi compreendida
porque é, realmente, muito difícil.
Quando observamos o inconsciente, encontramos numerosos casos que
apresentam um tipo muito especial de eventos paralelos. Por exemplo, tenho um
certo pensamento sobre um determinado assunto definido que ocupa a minha
atenção e o meu interesse; e, ao mesmo tempo, outra coisa acontece, de modo
inteiramente independente, que retrata com exatidão esse pensamento.
128
PROBLEMAS PSICOLÓGICOS CONTEMPORÂNEOS
pode ajudar imensamente, mesmo que não possamos provar que a doença é,
em si mesma, psicogênica.
Num dado momento, a pessoa pode ter uma doença infecciosa, isto é, um
achaque ou crise de natureza física, por ser particularmente vulnerável a
infecções... ou talvez, por vezes, por causa de uma atitude psicológica. A angina é
uma doença psicológica típica; entretanto, não é psicológica em suas
conseqüências físicas. É apenas uma intecção. Então, o senhor perguntará: ”E o
que é que, nesse caso, a Psicologia tem a ver com isso?” Porque talvez tenha
sido um determinado momento psicológico que permitiu à infecção que se
desenvolvesse. Quando a doença se instalou, vieram as febres e se formou um
abscesso, não se pode curá-la pela Psicologia. Mas é muito possível que se
possa evitá-la mediante uma ^atitude psicológica apropriada,
Dr. Evans: Quer dizer, portanto, que todo esse interesse atual pela
Medicina Psicossomática é história antiga para o senhor, Dr. Jung?
Dr. Jung: Tudo isso já é conhecido aqui há muito tempo.
Dr. Evans: E não esta surpreendido, em absoluto, pelos novos avanços...
Dr. Jung: Não. Por exemplo, temos o aspecto tóxico da esquizofrenia.
Publiquei um trabalho a esse respeito há cinqüenta anos... justamente há
cinqüenta anos... e agora todo mundo o descobre. Vocês estão muito adiantados,
na América, em assuntos tecnológicos, mas em questões psicológicas estão
cinqüenta anos atrasados. Simplesmente, não entendem; é um fato. Não pretendo
figurar numa declaração geral de reabilitação, mas, simplesmente, vocês ainda
não estão cônscios da realidade. Existem muitas mais coisas, sobre as quais as
pessoas não fazem sequer uma idéia. Conteilhe o caso daquele teólogo que nem
sabia o que era o inconsciente; ele supunha que era uma aparição. Todos os que
dizem que sou um místico não passam de idiotas. Eles não compreendem,
simplesmente, a primeira palavra da Psicologia.
132
PROBLEMAS PSICOLÓGICOS
mado uma certa idéia quanto à natureza do inconsciente. Para mim, era então o
remanescente vivo da história original do homem, do homem vivendo em seu
meio. É um quadro deveras complicado.
Assim, como vê, o homem não está completo quando vive num mundo de
verdade estatística. Ele deve viver num mundo em que a ”totalidade” do homem, a
sua história inteira, é o que constitui o interesse fundamental; e essa totalidade
não nos é dada por meras estatísticas. É a expressão do que o homem realmente
é e do que sente ser.
O cientista está sempre procurando uma média. A nossa ciência natural
converte tudo em média, reduz tudo a média; contudo, a verdade é que os
portadores da vida são indivíduos, não números ou quantidades médias. Quando
tudo é estatístico, todas as qualidades humanas são varridas e isso,
evidentemente, é muito inconveniente. De fato, é anti-higiênico, porque, se
varrermos a mitologia de um homem, toda a sua seqüência histórica, eie
converte-se numa média estatística, num número; isto é, reduz-se a nada. Fica
privado do seu valor específico, da experiência do seu próprio e singular valor. O
problema é que, segundo parece, ninguém entende essas coisas. Acho muito
estranho que ninguém veja o que uma educação sem Humanidades está fazendo
ao homem. Ele perde suas ligações com a família, as suas ligações com todo o
passado — todo o tronco, a tribo — aquele passado em que o homem sempre
viveu. Hoje, acredita-se que nascemos tabula rasa, sem uma história, mas o
homem sempre viveu no mito. Pensar que o homem nasceu sem uma história
dentro de si próprio é uma doença. É absolutamente anormal, porque o homem
não nasce cada dia. Nasceu num contexto histórico específico, com qualidades
históricas específicas e, portanto, só é completo quando tem relações com essas
coisas. Se um indivíduo cresce sem ligação alguma com o passado, é o mesmo
que se tivesse nascido sem olhos nem ouvidos e tentasse perceber o mundo
exterior com exatidão. A Ciência Natural poderá dizer: ”Você não precisa de
relações com o passado; pode varrê-las”. Mas isso é uma mutilação do ser
humano. Ora, observei através da experiência prática que esse tipo de proce-
137
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
Dr. Evans: Quando lemos suas obras, depreende-se que o senhor tem
vastos conhecimentos de Ar queologia, Antropologia ..
Dr. Jung: Bem, isso é verdade, tanto mais que uma boa parte da minha
obra envolve essas disciplinas, mas, em contrapartida, não tenho dons
matemáticos o que me prejudica um pouco. Não é possível adquirir um verdadeiro
conhecimento ou compreensão da Física Nuclear sem um bom domínio da
Matemática, da Matemática Superior. Só possuo uma certa relação com ela no
tocante às questões epistemológicas. A Física moderna está, por assim dizer,
entrando na esfera do invisível e do intanaível. Na realidade, é um campo de
probabilidades o que é exatamente o mesmo que o inconsciente. Discuti
freqüentemente isso com o Professor Scherrer. Ele é atualmente um físico nuclear
e, para meu espanto descobri que eles têm termos que usamos também na
Psicologia. Isso é, simplesmente, uma conseqüência do fato de estarmos ambos
entrando numa esfera que é desconhecida. O físico penetra nela de fora e o
psicólogo de dentro. Essa é a razão das negociações entabuladas entre a
Psicologia e a Matemática Superior. Por exemplo, nós, psicólogos, usamos a
expressão ”função transcendente”. Ora, a função transcendente é um conceito
matemático, a função de números racionais e imaginários. Mas isso é Matemática
Superior, com a qual nada tenho a ver. Mas chegamos à mesma terminologia.
139
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
Dr. Evans: Quando o senhor falou com o Dr. Einstein, no seu primeiro
encontro, ele quis mais ou menos submeter à prova algumas das suas idéias,
cotejando-as com as do senhor. É verdade que o senhor, Dr. Jung, lhe fez ver a
posbibilidade de que a teoria da relatividade se aplicasse às funções psíquicas?
Isso foi discutido pelos dois?
Dr. Jung: Bem, o senhor sabe como é quando um homem está tão
concentrado em suas próprias idéias quanto o Dr. Einstein; e quando, ainda por
cima, ele é um matemático de tamanho gabarito, o senhor pode estar certo de que
não será bem recebido.
Dr. Evans: Em que ano o senhor fez amizade com Ein stein?
Dr. Jung: Eu não diria que éramos propriamente amigos. Fui
simplesmente seu anfitrião. Tentei ouvir e compreender, de modo que houve
pouca possibilidade de eu inserir algumas de minhas próprias idéias.
Dr. Evans: Isso foi depois dele já ter formulado as suas teorias da
relatividade ou antes?
Dr. Jung: Ele estava justamente trabalhando nelas, em seus primórdios.
Era um trabalho deveras interessante.
Dr. Evans: Durante os seus encontros com o Professor Toynbee, o senhor
interessou-se pelas idéias sobre a História que ele vinha formulando?
Dr. Jung: Ah, sim, em particular as suas idéias sobre os ciclos vitais das
civilizações e a forma como são governados por formas arquetípicas. Toynbee
compreendeu o que entendo por funções históricas dos desenvolvimentos
arquetípicos. É uma determinante poderosamente importante de todo o
comportamento humano e pode abranger séculos ou milhares de anos. Expressa-
se em símbolos, por vezes, símbolos em que jamais pensaríamos. Por exemplo,
como o senhor sabe, a Rús-
140
EXPERIÊNCIAS com GRANDES FIGURAS
sia, a União Soviética, tem aquele símbolo da estrela vermelha. É uma estrela
vermelha de cinco pontas. A América tem uma estrela branca de cinco pontas.
São inimigas; não podem combinar-se. Na Idade Média e durante dois mil anos,
pelo menos, o vermelho e o branco formavam o par; estavam destinados, em
última instância, a casar. Ora, a América é uma espécie de matriarcado, tanto
mais que a maior parte do dinheiro está nas mãos de mulheres, e a Rússia é o
país do ”paisinho”; é um patriarcado. De modo que são a mãe e o pai. Para usar a
terminologia da Idade Média, são a mulher branca, a femina alba, e o escravo
vermelho, o servus rubens. Os dois amantes estão brigados.
Dr. Evans: Bem, Dr. Jung, o senhor respondeu pacientemente e de uma
forma extremamente interessante e espontânea a todas as nossas perguntas,
desde os sentimentos a respeito das idéias de Freud às reações à obra de
Toynbee. Creio que não devemos abusar mais, desta vez, de sua extrema
amabilidade. Espero, contudo, que os nossos estudantes sejam estimulados pelo
que o senhor disse para se debruçarem de novo sobre a sua vasta obra. Afinal de
contas, é essa a verdadeira finalidade destas entrevistas, postas à disposição dos
estudantes: motivá-los para que leiam as obras originais das grandes figuras
mundiais que mais contribuíram para a nossa compreensão da personalidade
humana.
Dr. Jung: Sim as pessoas têm que ler os livros, santo Deus, apesar de
serem grossos. Lamento muito.
141
PARTE VI
Dr. Evans: Dr. Jones, uma das questões que creio ser de enorme interesse
para muitos dos nossos estudantes de Psicologia na América gravita em torno das
suas próprias relações com o movimento psicanalítico. É claro, o senhor já
debateu essa questão em outros lugares, mas ouvir pessoalmente, de viva voz,
algo sobre o modo cono o senhor se alistou no movimento psicanalítico será
sumamente interessante.
Dr. Jones: Bem, também considero isso uma questão interessante, porque
fui a primeira pessoa, fora dos círculos de Viena e Zurique, a fazê-lo. Por que eu?
Bem, suponho que poderia remontar a impressões e estimulações infantis, o que
nos levaria muito, muito longe; mas, historicamente falando, o que se passou foi o
seguinte: Na minha adolescência, eu estava profundamente interessado, de um
modo geral, nos problemas espirituais da religião, da sociologia, do socialismo, da
filosofia; e ocorreu-me que a maneira mais fundamental de chegar às bases de
todos esses problemas seria o estudo do sistema nervoso, o cérebro.
Obviamente, eu estava elaborando num deplorável equívoco, mas, nessa época,
ainda o ignorava. De modo que me tornei neurologista e realizei um considerável
trabalho em Neuro logia, tendo publicado algumas pesquisas que ainda hoje
estão de pé; e, naturalmente, deparei com numerosos pacientes que eram
portadores do que hoje em dia se chama sintomas neuróticos. Isso é o que acaba
acontecendo a todo e qualquer neurologista. Ele pensa que está estudando algo
orgânico e defronta-se com esses casos.
Foi assim que o meu interesse se deslocou do lado orgânico para o outro;
e comecei a ler e a aprender tudo o que podia. Li toda a literatura francesa a res-
145
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
Dr. Freud e as suas relações com ele. Quando observamos o que é hoje a
Psicologia, a psicanálise e a Psiquiatria, fere-nos a atenção o fato da contribuição
do Dr. Freud parecer postular um forte padrão biológico, que ele sugere exercer
um tremendo efeito sobre o desenvolvimento inicia! do indivíduo. Esses padrões
biológicos, embora sejam modificáveis pelo meio ou a cultura em que o indivíduo
vive, continuam, entretanto, orientando em grande parte o comportamento
individual. Muito recentemente, como o senhor sabe, numerosas pessoas
opinaram que talvez o Dr. Freud e a Psicanálise desse período tivessem
enfatizado os fatores biológicos um pouco além da conta; que talvez a cultura em
que vivemos, a nossa sociedade e os fatores ambientais, tenham tanta ou mais
influência na formação do indivíduo que os fatores biológicos. O senhor importar-
se-ia de comentar a esse respeito, em termos, primeiramente, de estarmos sendo
injustos ou não ao sugerir que Freud exagerou a importância dos fatores
biológicos? E, em segundo lugar, em função daqueles pontos de vista que
realçam os fatores culturais, provenientes do chamado movimento
”neofreudiano”? Como teria Freud reagido a tudo isso?
Dr. Jones: Não, não creio que seria justo dizer que ele exagerou a
importância dos fatores biológicos. Não vejo como é que alguém poderia
superestimálos. Freud e eu próprio partimos do princípio de que o homem é um
animal. Por outras palavras, o homem está, biologicamente, numa linha de
continuidade com o resto das criaturas vivas e é ativado por instintos e reações
de uma espécie semelhante, embora mais elaborados, sem dúvida. Isso está na
própria natureza das coisas, é a base do ser humano. O senhor pode, é claro,
adotar um diferente ponto de vista e dizer que existe também uma parte espiritual
que vem do céu e foi colocada por cima de tudo o mais; mas acontece que não
compartilhamos dessa concepção. Parece não existir qualquer prova direta que a
sustente. Não vejo como se possa superestimar a natureza do homem.
Quanto às influências culturais, elas também são o produto de motivos
biológicos; assim, aquelas nunca es-
148
REAÇÕES DE ERNEST JONES
tão a mais de um passo destes. Veja, por exemplo, o complexo de Édipo, que
consideramos muito fundamental e até, possivelmente, inato... ignoramos
exatamente como, mas, seja como for, é uma tendência fundamental. Muito bem,
vejamos agora o que se passa numa determinada sociedade, digamos, na
sociedade alemã, onde o pai é muito importante, promulga as leis etc. É claro que
o senhor esperaria encontrar aí o complexo de Édipo. Mas, e as outras
sociedades onde o pai não tem tanta importância? Que dizer da América, onde a
mãe é mais importante que o pai, onde a ”mamãe” é realmente a pessoa? Ou,
mais ainda, que dizer das sociedades matrilineares, onde as mulheres ocupam
uma posição tão elevada? Ou as sociedades primitivas, em que o pai não vive
com a mãe e só a visita ocasionalmente, em que ela vive com o irmão, e o rapaz é
criado por esse irmão, seu tio. O que acontece nesses casos ao cornplexo de
Édipo?
Bem, chamarão a isso uma influência ambiental, ou cultural. Está certo,
podem chamar; mas isso causa, naturalmente, uma mudança na forma adotada
pelas reações biológicas, é como uma pressão. No caso da última sociedade
citada, por exemplo, o rapaz reagirá a seu tio comciúme, rivalidade, oposição,
aversão e também com amor, como normalmente aconteceria no caso do pai. E o
pai verdadeiro, que só aparece ocasionalmente, brinca com ele e é o seu
camarada em jogos e divertimentos, mas não exerce qualquer autoridade sobre o
menino; corresponderá aos nossos tios e avós, que estragam a criança com
mimos. Por outras palavras, isso causa a tal mudança. Não altera, de forma
alguma, o padrão biológico; apenas altera a forma que esse padrão assume.
Dr. Evans: No que se refere ao padrão biológico no conceito de libido do
Dr. Freud, em que ele parece aludir a uma energia psicossexual de natureza
genérica, levanta-se uma questão sobre como devemos interpretar o termo
”sexo”. Estamos falando de sexualidade, numa acepção estrita, ou esse impulso
sexual genérico de que Freud falou consiste, meramente, no envolvimento total
de todos os impulsos biológicos? Por outras
149
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
palavras, aqueles que sugeriram que Freud tentou explicar tudo em termos de
sexualidade reprimida foram injustos com ele?
Dr. Jones: Tentar explicar tudo em termos de sexualidade reprimida? Acho
que isso é ir longe demais, não lhe parece? Freud pensou que os impulsos
libidinais faziam parte da herança biológica do homem, como outros instintos: a
curiosidade, talvez a agressão etc. E comprovou, pela experiência, que isso entra
freqüentemente em conflito com outros aspectos da personalidade, o que
sabemos muito bem ser verdade e criar, por conseguinte, muitas dificuldades para
as pessoas. Mas não vejo ... seria ridículo dizer que alguém explicou tudo em
termos de sexo, pois se fosse assim tão simples, então o que aconteceria a toda a
sua teoria de conflito? São necessários dois lados antagônicos para que haja
conflito.
Dr. Evans: Vejamos se isso é um enunciado justo da situação. corn os seus
pacientes na cultura reprimida de Viena, o Dr. Freud viu, muito freqüentemente,
que havia conflitos em torno da sexualidade. Portanto, nesses pacientes, ele
considerou que os conflitos sexuais eram fundamentais em suas neuroses, o que
pôde explicar, pelo menos em parte, a grande ênfase sobre a sexualidade como
fator causativo, que se reflete em seus escritos. Na realidade, Freud não hesitaria
em apontar outras causas subjacentes, se estas tivessem sido visíveis.
Dr. Jones: Sim, creio que ele estaria disposto a ver qualquer coisa que
realmente existisse.
Dr. Evans: Isso, é claro, tem sido uma das bases para grande parte das
críticas ao Dr. Freud.
Dr. Jones: Sim, isso era de esperar, visto que, pela sua teoria, há uma
grande dose de repressão da sexualidade e, naturalmente, se a pessoa denuncia
isso, está fadada a incorrer na repressão, não é? Isso ilus-
150
REAÇÕES DE ERNEST JONES
traria aquilo a que chamamos resistência, ou oposição, ou crítica, ou qualquer
coisa desse gênero.
Dr. Evans: Indo mais além, o interessante estudo de Freud sobre a
psicopatologia da vida cotidiana * revelou como o Dr. Freud pôde, de um modo
bastante engenhoso e brilhante, analisar numerosas situações específicas na
existência cotidiana, ao perscrutar o funcionamento do inconsciente. Queria
Freud dizer com isso que tudo o que fazemos é determinado dessa maneira?
Poderemos alguma vez nos descontrair e supor que algumas coisas são feitas por
mero acidente, ou teremos de admitir...
Dr. Jones: O que é que o senhor quer dizer com ”por acidente”? Se
alguma coisa cair do teto a seus pés, é um acidente.
Dr. Evans: O Dr. Freud diria que as coisas que parece terem sido
acidentais realmente não eram? Devemos admitir que existe sempre alguma
determinante inconsciente?
Dr. Jones: Ah. é muito simples. Freud disse que toda a nossa atividade
espontânea é motivada, falando em termos gerais. Foi isso o que o senhor quis
dizer? Não, nada é acidental. Pensar o contrário seria uma atitude nada científica.
Dr. Evans: Passando agora a uma área multo diferente, Dr. Jones, um dos
problemas que muito nos interessa atualmente nos Estados Unidos e o do
excessivo conformismo do homem. Formulamos hoje perguntas como estas:
Estaremos perdendo a nossa identidade individual? Será que o indivíduo está-se
tornando, como disse um autor americano, ”alterdirigido”? Estaremos tão
preocupados com o que a outra pessoa pensa que
* Cf. Psicopatologia da Vida Cotidiana, Zahar Editores, 3* e<Tção, 1969, tradução de Álvaro
Cabral. (N. do T.)
151
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
gine agora quando o homem usou ferramentas pela primeira vez, digamos,
utensílios de pedra. Batia uma pedra na outra para que ficassem lascadas, de
modo que a coisa fosse cortante de um lado, e passou a usá-la. Foi preciso quase
meio milhão de anos para que ele pensasse em polir esse pedaço de pedra,
tornando-o mais afiado. Ora, desconfio que muita gente deve ter tentado o
polimento como técnica de afiar durante esse meio milhão de anos, e foi morta
por não se conformar ao padrão mais antigo. Assim, passaram milhares e
milhares de anos até que, finalmente, a sociedade se tornou suficientemente livre
para permitir aos seus membros oue afiassem um pedaço de pedra... bom, acho
que, desse ponto de vista, estamos ficando cada vez mais livres. Temos
certamente a liberdade de fazer muitas coisas que não eram permitidas na Idade
Média ou, por exemplo, há apenas 120 anos.
É claro, o grau em que o livre desenvolvimento da individualidade pode ter
luqar deve variar em diferentes culturas e diferentes períodos e isso suscita o
problema deveras interessante sobre o ”porquê”. Veja como, nos Estados Unidos,
se queixam atualmente de que estão atravessando uma grave crise; quer dizer,
não é permitido às pessoas que se desenvolvam livremente. Isso talvez seja
verdade, até onde me é dado saber, mas o outro lado também tem seus
problemas.
Pensa-se, geralmente, que na França existe mais desenvolvimento
Individual e menos conformismo; aí, creio que nem pagam com muita freqüência
os seus impostos. Não conseguem ter um governo estável. Todo mundo quer agir
por conta própria. Isso tem suas vantagens. sem dúvida, já que permite
desenvolvimento mais livre do indivíduo, mas redunda em problemas e
dificuldades concretas, de um ponto de vista social.
Na América, não sei, realmente. Suponho que em cidades pequenas,
lugares como os que Sinclair Lewis descreveu em Mafn Street e Babbitt, deve
existir uma boa dose de conformismo. Eu diria que o fator óbvio para determinar
em que lado se coloca o acento, digamos. no modo de vida francês versus o
modo de vida americano, é uma questão, provavelmente, de restrições e
penalidades sociais. Ora, se um homem na França
153
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
zer, fazer dela o seu ”eu total”, não só a parte visível, mas também a parte
reprimida, a parte oculta, a parte em conflito. Todas essas partes da
personalidade devem entrar em jogo e colocar-se sob um controle unificado, para
que o indivíduo seja uma personalidade maior, mais rica e mais completa.
Dr. Evans: Esse controle unificado de que o senhor falou não implicará,
necessariamente, um controle de origem social?
Dr. Jones: Não. Estou falando sobre a consciência da pessoa e esta é algo
que só parcialmente se desenvolve a partir de fontes sociais, do controle social
etc. Como o senhor sabe, isso começa muito cedo, e a consciência remonta, pelo
menos, ao primeiro ano de vida. É possível descrever o seu início.
Dr. Evans: O primeiro impacto da estrutura da microfamília sobre o neófito.
Dr. Jones: Exato. E, possivelmente, até algumas tendências inatas.
Dr. Evans: Qual é, exatamente, a natureza dessas tendências inatas que
influem sobre a moralidade social, aquilo a que Freud chamou o ”Superego”?
Devemos acreditar que o homem já nasceu com proibições inatas, em relação à
sua existência social?
Dr. Jones: É difícil provar ou demonstrar coisas desse gênero. Eu diria que
é multo provável, pois não acredito que o superego resulte, em sua totalidade, da
pressão anterior. Penso que uma parte provém de dentro.
A criança nasce com impulsos muito mais indisciplinados do que temos
depois de crescermos. Ela não só aprendeu a controlá-los e orientá-los em certas
direções, por razões sociais, mas também por razões pessoais, porque alguns
deles são muito nocivos e m0uito destrutivos para a própria criança ou
prejudiciais a alguém que ela ama. Por outras palavras, há perigos que
155
ENTREVISTAS com CARL. G. JUNG
Dr. Evans: Assim, até o gênio criador individual deve surgir numa estrutura
social favorável ao seu aparecimento. Por exemplo, no caso do Dr. Freud, o
período era favorável aos trabalhos de alguns psiquiatras franceses. No caso de
Freud, o senhor concordaria em que ele produziu a sua obra num período
caracterizado por uma atmosfera científica que se prestava, facilmente, a essa
expressão criadora?
Dr. Jones: Não, não concordo. Acho que não foi esse o caso. A minha
opinião é que Freud foi um daqueles casos raríssimos que surgem da maneira
mais inesperada. Nada havia em Viena que pudesse favorecê-lo, absolutamente
nada. Houve, dez anos antes, um pequeno episódio, quando Freud travou
conhecimento com Herr Breuer e sua obra, mas creio que Freud já o esquecera,
em grande parte, e que não tirara disso grande proveito. Mais tarde, ele lembrou-
se e integrou-o na obra que estava realizando.
Dr. Evans: Assim, ele não sentiu continuamente, ao que parece, o impacto
de Breuer...
Dr. Jones: Não, nenhum. Ele tomou conhecimento do caso de Breuer em
1882, mas Freud continuou neurologista até à década de 1890, antes de passar a
dedicar-se aos aspectos psicológicos. Não, eu diria que Viena era um ambiente
muito desfavorável, uma atmosfera extremamente conformista.
Dr. Evans: Assim, de um certo modo, o senhor está sugerindo que a
generalização, ”um grande gênio não pode emergir de um meio conformista”, é
uma simplificação extrema e que não podemos falar significativamente em tais
termos.
Dr. Jones: Sim, de fato. Suponho que se trata de uma questão relativa.
Podemos equacioná-la em termos de pressão. Se o impulso do gênio criador é
suficientemente forte, impõe-se através e acima do conformismo; e se o
conformismo não ó muito poderoso,
157
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
*Cf. Ernest Jones, Hamlet and Oedipus, Victor Gollancz Ltd., Londres, 1949. Existe
edição brasileira: Hamlet e o Complexo de Édipo, Zahar Editores, 1970, tradução de
Álvaro Cabral. (N. do T.)
158
REAÇÕES DE ERNEST JONES
Dr. Jones: Muito diferente. Mas deixe-me ser perfeitamente claro a respeito
do que penso sobre o autor, antes de discutir o crítico. Eu não quis dizer que ser
psicanalisado fosse prejudicial ao escritor, mas, antes, que 03 conhecimentos
obtidos através da leitura de textos psicanalíticos seriam prejudiciais. Quero dizer
que, se um autor for psicanalisado, será um autor mais livre, mais completo; será
mais explícito e mais espontâneo.
Com o crítico, porém, é diferente, repito, pois acredito que, ao invés do
autor, tudo o que disser respeito a conhecimentos psicanalíticos pode ser útil à
função do crítico. A missão do crítico consiste em avaliar tanto o aspecto estético
da obra, que está comentando ou criticando, como o seu conteúdo intelectual. A
avaliação estética depende, é claro, da sensibilidade do crítico, o que implica a
necessidade de liberdade para os seus sentimentos; e, no que concerne à análise
intelectual do conteúdo, creio que um conhecimento de Psicanálise é muito útil,
habilitando a pessoa a avaliar mais rigorosamente até que ponto a produção é
coerente. Veja, por exemplo, o caso do Hamlet; é uma obra suscetível de
interpretação em muitos níveis. Provavelmente, contém referências à política do
seu tempo, que hoje talvez já estejam esquecidas. Não escasseiam as alusões
sociais ao período específico da peça, que as pessoas de então certamente
puderam compreender; é possível que contenha também gracejos oportunos
sobre certas personalidades contemporâneas da peça. Diferentes camadas,
através das quais vamos penetrando cada vez mais fundo, até se chegar a uma
concepção unificada da obra, à sua visão total. Ora, se qualquer produção for,
lealmente, uma grande obra de arte, será coerente de uma ponta à outra; e
quando digo coerente, quero dizer que será verdadeira em todos os seus níveis.
É isso, creio eu, que um crítico deve estar apto a avaliar.
Dr. Evans: Uma certa unidade intrínseca na análise global.
Dr. Jones: Sim.
159
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
Dr. Jones: Bem, teremos de voltar a fazer aqui uma distinção. Penso que a
principal direção em que ele foi influenciado deve ser encarada do ponto de vista
do interesse; determinadas coisas levaram Freud a interessar-se por isto, aquilo
ou aqueloutro. Isso é um primeiro aspecto da questão. Outra consideração
implícita na sua pergunta diz respeito à formulação concreta das suas várias
teorias científicas. E temos ainda um terceiro aspecto, isto é, em que medida as
suas inclinações pessoais, a sua própria concepção geral da vida, exerceram uma
influência mais ou menos marcada sobre ele. Temos, assim, três coisas distintas.
Qual deveremos abordar primeiro?
Eu diria que, em última instância, deve certamente existir alguma forma de
curiosidade. Por que motivo a curiosidade adotaria essa direção determinada,
depende, provavelmente, de influências infantis mais delicadas do que
poderíamos hoje apontar com segurança. Mas, no que respeita a quaisquer
influências pessoais que atuassem sobre as suas teorias, não tenho
conhecimento algum disso. Eu diria que as suas teorias eram objetivas e
originadas em conseqüência de suas experiências. Deparou com certos fatos e
tentou agrupá-los, como qualquer cientista faz; tentou fornecer-lhes uma hipótese
que os unificasse. Naturalmente, é óbvio que as suas experiências pessoais
devem tê-lo influenciado muito, em sua concepção geral da vida. Por exemplo,
Freud era ateu. Isso deve ter sido causado por algum fato ocorrido nos primeiros
anos de vida. Não foi criado com uma forte influência religiosa, de modo que deve
ter sido fácil para ele dispensar a religião. Que mais poderemos dizer?
Dr. Evans: Bem, por exemplo, vejamos o fato de seu pai ser muito mais
velho que a mãe. O senhor acha possível que essa diferença de idade seja
discernível em algumas das formulações de Freud?
Dr. Jones: Acho que isso lhe.tornou mais difícil reconhecer a situação
edípica. Ele amava muito o pai e davam-se bem, pois eram de tipos mentais
seme-
161
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
cimento e a sua tendência era para esperar delas mais do que recebia; acreditava
que cada nova pessoa que conhecia era uma excelente criatura, maravilhosa em
todos os aspectos. Depois, é claro, quando as suas expectativas não eram
correspondidas, ficava decepcionado e passava a ignorar o sujeito, podendo até
mostrar-se desagradável com ele, em conseqüência da sua mágoa intima.
Dr. Evans: Em resumo, uma espécie de desilusão.
Dr. Jones: Sim, desilusão. Ele próprio preparava essa desilusão.
Evidentemente, as suas relações com Jung são um exemplo óbvio. Ele tinha Jung
no mais alto apreço, colocou-o nas alturas e só via no amigo qualidades e
virtudes excelsas. Depois, veio a cesuusão. E Freud desmteressou-se
completamente dele. Era uma peculiaridade de Freud, mas não creio que tenha
influenciado as suas investigações ou teorias.
Dr. Evans: O senhor acredita que ele era capaz de separar, realmente, o
que era pessoal daquilo que era a sua obra?
Dr. Jones: Sim, perfeitamente.
Dr. Evans: Na opinião de alguns, Freud tornou-se, na fase final de sua
obra, mais especulativo do que científico no exame de problemas tais como a
religião e a guerra. O senhor acha que a obra de Freud poderia ser melhor
compreendida se pudéssemos separar esse tipo de especulação das suas
observações mais fundamentais?
Dr. Jones: Sim, definitivamente.
Dr. Evans: Quando podemos afirmar que a obra de Freud se tornou mais
um reflexo de uma ideologia pessoal, em contraste com o período anterior,
quando seus trabalhos podem ser descritos como mais científicos e objetivos?
163
caso de Freud, existia uma tendência para acreditar e, ao mesmo tempo, uma
tendência para duvidar. É muito interessante que, em seus diferentes enunciados,
podemos observar claramente certas alternações. Havia em Freud uma atitude
crédula que alternava com uma atitude cética. Ele alimentava ambas, sem dúvida.
Dr. Evans: Ainda a propósito da influência da filosofia pessoal ou ideologia
sobre a criatividade de uma pessoa, sabemos, é claro, que havia considerável
anti-semitismo na área onde Freud vivia; e, em decorrência disso, há muita gente
que tende a associar as teorias sexuais com o judaísmo.
Dr. Jones: Como Hitler? Sim, creio que ele fez essa associação.
Dr. Evans: Estava Freud cônscio do anti-semitismo, de um modo tão
profundo que pudesse perturbá-lo?
Dr. Jones: Sim, devo dizer que provavelmente estava. Eu não me atreveria
a dizer que não. Encontrou-o de uma forma bastante violenta, em épocas
diferentes. Durante anos e anos, não lhe foi conferido título algum na
Universidade; todas as vezes que concorria era rejeitado.
Em algumas das experiências mais antigas de sua vida, na infância e
adolescência, de que tenho conhecimento, sei que se riam à custa dele, E Freud
era, sim, creio que era um jovem muito sensível, dado a refletir muito e que,
provavelmente, se perguntava: ”Por que tudo isto? O que é que há de tão peculiar
a nosso respeito? As pessoas não costumam desfeitear as outras dessa maneira.”
Esses sentimentos, naturalmente, levaram-no depois a escrever o seu último livro,
Moisés e Monoteísmo (9). Versa sobre a natureza do judaísmo. Sim, creio que o
senhor tem razão. Freud foi sensível ao anti-semitismo durante a vida toda.
Dr. Evans: Para ir um pouco mais longe nesse problema geral, o senhor
abordou um ponto que acho muito interessante. Pareceu-me ter sugerido que
165
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
Freud provinha de um meio bastante puritano e que ele próprio era, numa
acepção moral, acentuadamente puritano. Correto?
Dr. Jones: Não, não é isso. Eu não me referia ao seu meio familiar ou à
formação por ele recebida. O que eu disse foi que Freud era mais moralista e
puritano do que o seu meio. Sua mãe era uma pessoa muito condescendente,
muito acessível e despreocupada. Era uma criatura muito moral em sua conduta,
sem dúvida, até onde me foi dado saber, mas eu não a qualificaria como uma
pessoa puritana.
Dr. Evans: É bastante estranho, a distorção que ocorre no ponto de vista
de um homem e em suas teorias, quando são sujeitos a várias interpretações.
Por exemplo, houve muita gente que ficou horrorizada com as teorias de Freud,
porque acreditava que elas pregavam, mais ou menos, o amor livre e que a
monogamia era incompatível com a doutrina psicanalítica, que não devíamos
reprimir os impulsos sexuais para não ficarmos neuróticos e assim por diante.
Freud estava a par dessas interpretações errôneas de sua obra?
Dr. Jones: Claro que estava. E também sabia que muito do conteúdo de
sua obra estava sendo atribuído à atmosfera local de Viena, o que ele
considerava absolutamente idiota. Se era realmente verdade que, no seu tempo,
o modo de vida vienense era mais livre... e isso ignoro... do que em outras
grandes cidades, como Berlim ou Londres, então Viena seria o último lugar do
mundo para se descobrir a repressão. Freud disse-me certa vez:
— Sempre pensei que essa acusação deve encobrir outra; o que eles
realmente querem dizer é o ambiente judaico, não o ambiente de Viena.
Dr. Evans: Vamos pôr agora de lado esse problema geral da influência da
filosofia pessoal sobre a sua obra para abordar uma questão que tem sido um
centro de controvérsia, sobretudo nos Estados Unidos e, em certa medida, na
Inglaterra; refiro-me ao grau de
166
REAÇÕES DE ERNEST JONES
liberdade que deve ser concedido às crianças, à medida que crescem. Existem
algumas posições extremas sobre essa questão.
Temos a posição extrema que segue o critério disciplinar, aquele que,
historicamente, foi parte integrante da maioria das nossas culturas. Utilizando
essa abordagem, controlamos quase completamente a criança e damos-lhe muito
pouca liberdade.
Depois, é claro, o outro extremo foi um critério muito tolerante, em que se
permite à criança que desenvolva a sua individualidade, não tentando impor-lhe
quaisquer restrições nem a frustrando em suas exigências, sejam estas quais
forem. Em conseqüência deste segundo critério, temos visto, em muitas famílias,
as crianças comportarem-se de um modo destrutivo e anti-social, com os pais
tolerando esse comportamento por temerem causar frustrações aos filhos.
Infelizmente, sobretudo nos Estados Unidos, muitos indivíduos responsabilizaram
por isso a Psicanálise...
Dr. Jones: Por ambos os critérios?
Dr. Evans: Não por ter sugerido o critério tolerante, a ausência de
restrições. De fato, muitos leigos referem-se ao ”método psicológico” como um
produto da obra de Freud. Gostaria que o senhor comentasse sobre o modo como
Freud encarava, realmente, esse problema.
Dr. Jones: Ele reconhecia que as frustrações são uma , parte inevitável da
vida numa comunidade Tem de haver frustrações. Ninguém pode fazer tudo o que
quer ou gosta. Não pode defecar na rua, e limitações como essa começam a ser
impostas logo na infância. A criança tem frustrações externas, como só ter acesso
no seio materno em determinadas ocasiões ou em certas horas. Tais frustrações
são inevitáveis. A mãe não está sempre no mesmo quarto; por vezes, quando a
criança chora, pedindo a presença da mãe, esta encontra-se ocupada em outro
quarto, outra frustração inevitável.
167
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
relações com indivíduos judeus ao longo de sua vida e assinalou que os próprios
judeus que o haviam conhecido mais intimamente, alguns dos quais estiveram
entre os defensores e intérpretes mais significativos de suas idéias, tomaram a
peito contraditar e destruir o mito do seu anti-semitismo. Jung concluiu
perguntando como é que alguém poderia verdadeiramente compreender a
profundidade de suas teorias sobre a compreensão do indivíduo e acusá-lo de
preconceitos contra os crentes de uma religião que reflete a sabedoria de longas
eras.
Outra área que parecia perturbá-lo, conforme se refletiu em suas
respostas, dizia respeito à acusação de que era um místico. Não obstante o fato
de que muitos de seus escritos, à parte as suas formulações respeitávies à
personalidade que estão refletidas no presente volume, se ocupa de problemas
metafísicos, transcendentes e francamente espirituais, Jung parecia contrariado
pelo rótulo de ”místico”. Era como se Jung, o médico, psicólogo e cientista,
estivesse desde há muito empenhado numa batalha com Jung, o filósofo e
especulador. Nesse ponto, a interpretação do autor é que, quando Jung objeta a
ser designado por místico, ele está sugerindo que formas superiores e mais
complexas de inquérito científico acabarão, algum dia, por validar as suas
conceptualizações menos concretas. Ele parecia acreditar que uma renovação
criadora poderia alterar radicalmente o curso do que acreditamos ser o verdadeiro
domínio da ciência.
Seja como for, somos gratos ao Dr. Jung pela sua entusiástica disposição
para desempenhar o papel de educador, na mais alta acepção da palavra,
enquanto pacientemente respondia às nossas perguntas, hora após hora.
Esperamos que as idéias aqui apresentadas proporcionem um vasto campo de
comunicação de algumas conceptualizações fundamentais de Jung.
Também esperamos que as reações de Ernest Jones o tenham
apresentado não só a uma nova e interessante luz, quando comparado com Jung,
mas o revelem também como um intelectual e erudito de primeira ordem.
182
APÊNDICE A
I. Modificado pelo autor para o presente volume do relatório original preparado pelo Dr.
John W. Meaney e o autor, corn a finalidade de enfatizar, particularmente, a versão
filmada das entrevistas com Jung (5).
183
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
essas entrevistas ocupariam seu lugar num grupo maior de trinta filmes, cuja
finalidade era servir como alternativas audiovisuais a uma parte das aulas de um
curso que já faz parte do currículo do departamento de Psicologia e se intitula ”A
Psicologia da Personalidade”. A idéia de usar a técnica de entrevista era garantir
a espontaneidade nas declarações feitas pelos grandes pensadores, de modo
que os depoimentos fossem endereçados diretamente a uma pessoa e não a uma
câmera; e assegurar também que as perguntas respondidas pelos entrevistados
seriam as mais apropriadas para inclusão no contexto de um determinado curso.
O projeto foi aprovado porque parecia oferecer um modo particularmente notável
de aplicar as vantagens das técnicas de cinema e televisão a um currículo
estabelecido, tornando a instrução acessível não só a um maior número de
estudantes, mas, o que é mais importante, introduzindo progressos qualitativos
concorrentes na própria instrução.
As entrevistas propostas foram filmadas em Paris e Zurique durante o final
de julho e princípios de agosto de 1957. O entrevistador foi o Dr. Evans, e o
trabalho de produção foi organizado e dirigido pelo Dr. John W. Meaney, Diretor
do Centro de Rádio, TV e Cinema da Universidade de Houston.
Um intensivo programa de experimentação, para testar um dos filmes no
grupo, foi mais tarde instituído pelo Dr. Evans. Um completo script impresso do
conteúdo do filme foi submetido a um grupo de estudantes, simultaneamente com
meticulosos exames pré-realização e pós-realização, baseados no material. A um
grupo acompanhante foi mostrado o próprio filme e administrado um exame
semelhante. Os resultados revelaram que tanto o grupo do script como o do filme
melhoraram significativamente os escores de aprendizagem, mas que a diferença
no grau de aprendizagem entre os dois grupos não era significativa. Por outras
palavras, o conteúdo do material comunicado pelos dois veículos, o filme e a
imprensa, foi aproximadamente igual. Além disso, um experimento menos
cuidadosamente controlado que tentou comparar a eficácia da aula normal com
184
APÊNDICE A
agosto de 1958 e para ele foram exibidos alguns trechos dos filmes. Os membros
desse grupo ficaram muito impressionados e seus comentários foram altamente
elogiosos.
Algumas exibições dos filmes na estação de TV educativa da Universidade
provocaram numerosos telefonemas e cartas entusiásticos. A tônica da reação
pública local pode ser indicada por alguns comentários extraídos da coluna de
David Westheimer, o crítico de televisão do Houston Post, publicada em 21 de
maio de 1958:
”Na noite de segunda-feira, no Canal 8, uma das figuras lendárias do
nosso tempo falou durante uma hora sobre um assunto de grande interesse geral
e sobre o qual ele é considerado por muitos a maior autoridade viva do mundo.
”Conquanto houvesse uma certa soma de material, na entrevista de
segunda-feira, de interesse primordial para o estudante ou professor de
Psicologia, a maior parte do que o Dr. Jung teve a dizer foi inteiramente
compreensível para o leigo e, surpreendentemente, tão recreativa quanto
informativa.
”O próximo filme de uma hora de duração dessa série será exibido por
volta de 9,30 horas da noite de sexta-feira, imediatamente após o programa do
quinto aniversário da KUHT. Recomendo a todos que não percam a oportunidade
de ver e ouvir uma das mais gigantescas figuras do nosso tempo.”
Houve também uma favorável reação nacional de muitas fontes, depois do
artigo que apareceu na revista Time de 19 de agosto de 1957. Esse artigo
provocou inúmeras consultas sobre a disponibilidade de cópias dos filmes,
algumas de tão longe quanto a Austrália.
O interesse geral despertado pelo projeto em outras universidades e as
discussões com muita autoridades sobre a hipótese básica e os métodos
empregados indicam que existe uma vasta aplicabilidade para esse recurso
didático em outros campos, além da Psicologia.
187
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
APÊNDICE B
Uma Investigação Exploratória do Impacto Psicológico e Educacional de um
Diálogo Filmado corn Carl Jung1
introdução
Plano Experimental
Resultados
QUADRO I
Resultados
APÊNDICE B
QUADRO 2
QUADRO 3
QUADRO 4
Discussão
Resumo
1. ADLER, A., The Practice and Theory of Individual Psychology. Nova York:
Harcourt, 1927.
11. FROMM Escane from Freedom. Nova York: Rinehart, 1947. (Tem tradução
brasileira: O Medo à Liberdade, Zaberr Editores, 3ª edição, 1964, trad. de
Octavio Alves Velho.)
197
ENTREVISTAS com CARL G. JUNG
18. KARDINER, A. The Individual and His Society. Nova York: Columbia
University Press, 1939.
21. LeBON, G. The Crowd. Londres: T. Fisher Unwin, 1896. (Existem várias
traduções em língua portuguesa, com o título de A Psicologia das Multidões.)
BIBLIOGRAFIA
24. MALINOWSKI, B. A Scientific Theory of Culture and Other Essays.
Chapel Hill: Umversity of North Carolina Press, 1944, (Ha tradução brasileira.
Uma Teoria Científica da Cultura, Zahar Editores, 1962, trad. de José
Auto.)
26. MAY, R. Tiie Meaning of Anxiety. Nova York: Ronald Press, 1950.
30 RANK, O. Will Therapy. Tradução do alemão de Julia Taft. Nova York: Knopf,
1945.