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FICÇÃO BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: Uma contextualização em dois


movimentos

Article · January 2017

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Cristhiano Aguiar
Universidade Presbiteriana Mackenzie
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FICÇÃO BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA:1

Uma contextualização em dois movimentos

Cristhiano Aguiar

Há uma imagem possível da Ficção brasileira contemporânea?

A primeira questão a resolver ao pensarmos a respeito da ficção contemporânea


brasileira diz respeito ao recorte utilizado. Afinal de contas, onde começa o contemporâneo?
Devemos, por exemplo, tratar como contemporâneos apenas autores jovens, ou autores cujas
estreias aconteceram nos últimos dez, vinte anos? Romances como Lavoura Arcaica, de Raduan
Nassar, ou O romance da Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, ambos publicados em meados da
década de 70, seriam tão “literatura contemporânea” quanto Barba ensopada de sangue (2012),
de Daniel Galera, ou O destino das metáforas (2011), de Sidney Rocha? A verdade é que não há
um critério preciso, definitivo, a partir do qual se possa definir o âmbito da literatura
contemporânea. De modo geral, contudo, a crítica tende a estabelecer o contemporâneo a partir
da produção literária do final dos anos 50 e começo dos 60. Não por acaso, é nesse período no
qual a palavra “pós” marca bastante presença. Diferentes vertentes artísticas, entre elas a
literatura, passam a ser classificadas por muita gente como “pós-modernas”.

De igual maneira, no contexto histórico indicado não se fala mais em uma cultura, mas
sim em “contraculturas”. Com o passar do tempo, a própria ênfase em uma identidade una,
plenamente identificada com um Estado-nação, é problematizada em função de uma crescente
atenção a diversas fragmentações identitárias, cujas pautas são levadas adiante por uma série de
movimentos sociais ligados à raça, imigração, sexualidade e gênero. Surgem, assim, uma série de
valores literários articulados com as transformações sociais apontadas. Se tais transformações
consistem em uma nova etapa social, justificando o “pós”, ou apenas um desdobramento da
modernidade em si, é um debate que deixarei para outro momento. Importante frisar, porém, o

1
Este texto teve uma primeira versão publicada no segundo número da revista pernambucana Café Colombo,
lançada em 2015. A pauta se integrava a um dossiê sobre diferentes aspectos da literatura contemporânea. A mim
coube, na edição, pensar a ficção, o que explica o caráter panorâmico do presente texto. Retomo-o com algumas
reformulações (2017) e o republico no Academia e demais perfis das redes sociais.
quanto essas manifestações literárias não podem mais ser lidas exclusivamente pelos valores
definidos a partir das literaturas do século XIX, ou da primeira metade do XX, por exemplo.

Aos poucos, a prosa contemporânea brasileira consolida nomes cujas obras passam a ter
importante reverberação de crítica e público. A partir dos anos 60 e 70, temos Rubem Fonseca,
João Antonio, Carolina Maria de Jesus, Raduan Nassar, Ariano Suassuna, Hilda Hilst, João Ubaldo
Ribeiro, Lygia Fagundes Teles, Dalton Trevisan, Ignácio de Loyola Brandão, Nélida Pinon, Marina
Colasanti, Luis Fernando Veríssimo, entre outros, podem ser considerados como pontos de
referência da nossa prosa contemporânea. A eles se juntam nomes atuantes a partir da década
de 80 e que também equilibram prestígio de crítica e a formação de um mínimo público leitor de
seus trabalhos, dentre os quais podem ser citados Sérgio Sant’anna, Silviano Santiago, João
Gilberto Noll, Milton Hatoum, Zulmira Ribeiro Tavares, Marcia Denser, Raimundo Carrero, Luiz
Ruffato, Elvira Vigna, ou Bernardo Carvalho. A lista que brevemente compilei não é exaustiva e
não inclui nomes de destaque, por exemplo, a partir dos anos 90, 2000 e 2010 (uma observação:
nos últimos 30 anos, encontramos um protagonismo crescente de escritoras, embora a igualdade
de gênero, em pleno 2017, esteja longe de ser realidade no cômputo geral de publicações
literárias do mercado nacional).

Para além da injustiça de autores que não foram citados, a lista de escritores do parágrafo
anterior apresenta outro problema metodológico: as suas propostas narrativas são muito plurais
e divergentes entre si. O tempo de projetos mais fechados, com uma série de pressupostos ou
regras a serem compartilhados pelos seus integrantes, parece ter perdido a sua função social?
Hoje, como apontam diferentes críticos nos últimos anos, temos menos manifestos e “escolas”
literárias, e mais a individualização dos projetos literários. Para a literatura contemporânea, a
ideia de vanguarda não faz mais tanto sentido; a militância, em todas as acepções do termo, é
difusa, em especial desde os anos 80. Há, contudo, ao menos uma exceção digna de nota e que
contradiz aquilo que acabei de afirmar: marcos culturais como a Semana de Arte Moderna da
Periferia, ocorrida em 2007 em São Paulo, que teve como precursora as antologias “Literatura
Marginal” organizadas a partir dos anos 2000 pela revista Caros Amigos e pelo escritor Ferréz.
Também vale a pena citar a antologia Olhos de azeviche, publicada em 2017 pela editora Malê,
reunindo textos de dez escritoras brasileiras negras contemporâneas. Talvez, e isto ficará para
uma reflexão futura, os projetos estéticos militantes (uso “militância” num sentido amplo)
retornem à medida em que novos lugares de fala se posicionem no campo literário, reivindicando
seu merecido espaço e legitimação simbólica.

No começo de 2014, o jornal Folha de São Paulo fez uma enquete com uma série de
críticos literários (http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2014/02/1416062-leia-enquete-
sobre-a-literatura-brasileira-contemporanea.shtml), boa parte deles professores universitários,
com algumas perguntas a respeito da literatura brasileira contemporânea, em especial a ficção.
Os temas abordados nas perguntas podem nos apontar mais características do contemporâneo.
Não cabe analisar todas as perguntas – selecionemos só algumas. Uma delas se relaciona à linha
de raciocínio que acabamos de desenvolver: “É possível apontar tendências da produção literária
contemporânea?”. O grifo é meu; a palavra grifada é fundamental, porque nela está contida uma
percepção da dificuldade em elaborar classificações para a pluralidade da produção. Há um
conjunto de perguntas sobre traduções, feiras de livros, oficinas literárias, antologias e
globalização, indicando o quanto, em especial nas últimas duas décadas, pensar a ficção
contemporânea significa pensar mudanças estruturais na profissionalização do escritor,
profissionalização essa que, acredito, tenha atingido com mais intensidade o prosador do que o
poeta brasileiro. Há cada vez mais livros escritos por encomenda, programas de residências,
concessão de bolsas, proliferação de festivais, traduções de ficção brasileira contemporânea para
outras línguas, participação de escritores em projetos audiovisuais, de teatro, artes visuais, etc.
Os exemplos recentes mais discutidos e polêmicos do processo de
internacionalização/profissionalização da literatura brasileira foram a homenagem ao Brasil em
Frankfurt, ocorrida em 2013, a seleção de jovens escritores brasileiros da revista britânica Granta,
em 2012, e a coleção Amores Expressos, na qual diversos ficcionistas foram enviados a diferentes
lugares do mundo a fim de escrever um romance que contivesse uma história de amor.
Importante também destacar a importância crescente dos concursos literários, revelando
talentos que, por diferentes variáveis, talvez não tivessem entrado no mercado literário tão cedo.
Os exemplos são muitos, mas podemos destacar desde Santiago Nazarian, passando por Luisa
Gesler, Débora Ferraz, Bruno Liberal, entre outros.

Outra pergunta, da mesma enquete, diz respeito à relação da literatura com a internet:
“Como as formas de interação via redes sociais se manifestam na literatura que se produz hoje?”.
No caso específico da ficção contemporânea, chama atenção o fato de que muitos autores hoje
em destaque utilizaram a internet, a partir dos anos 90, como plataforma de criação literária. É
o caso de escritoras como Clarah Averbuck e Ana Paula Maia, por exemplo, que iniciaram sua
carreira publicando em sites e blogs. No entanto, não acredito que o digital seja uma nova
condição estruturante da nossa ficção. Pelo contrário, ela é por enquanto um lugar de passagem.
Ao contrário da poesia, com a qual qual o digital pode funcionar como um possível novo
paradigma de criação, a ficção brasileira tem utilizado as ferramentas digitais mais como uma
plataforma de divulgação, do que como um espaço de experimentação. Mesmo se concebidos e
publicados de início em plataformas digitais, essas obras mantêm uma lógica textual inerente à
literatura “analógica”, alcançando a sua consagração final – aqui, é claro, pode haver também
um conservadorismo da crítica, em especial a universitária, ao lidar com a ficção criada na
internet – quando acontece a publicação em livro. Por fim, é importante anotar o quanto obras
dos diferentes gêneros do fantástico, como o horror, a ficção científica e a fantasia, têm
encontrado na internet novos espaços de circulação, dinamizando um mercado que cresceu
muito nos últimos anos aqui no Brasil, a ponto de ficcionistas como André Vianco ou Raphael
Draccon serem importantes exemplos das chances de profissionalização do autor brasileiro.

Tratando menos das circunstâncias sócio-culturais pertinentes à prosa contemporânea, é


importante agora darmos conta de duas questões abordadas com frequência pelos críticos
literários e pesquisadores. Ambas dizem respeito a temáticas presentes nos textos literários, bem
como à sua articulação com a tradição. A pergunta feita pela crítica, a qual tentaremos dar uma
resposta a partir de agora, será essa: na ficção brasileira contemporânea, como são abordados
dois tópicos muito frequentes na nossa literatura: 1) a indagação sobre a identidade nacional; 2)
A relação de tensão entre o espaço rural e urbano?

Em especial a partir do século XIX, a literatura brasileira desempenha um papel de


fundamental importância na constituição da nossa nacionalidade. Tanto a poesia, quanto a
prosa, assumem para si esse papel. Era preciso descobrir o Brasil em termos de uma realidade
ainda “profunda”, apagada dos olhos dos grandes centros urbanos; era preciso também
descobrir o caráter brasileiro, o conjunto de elementos que definem a nossa suposta
“brasilidade” em uma relação de diferença com o “estrangeiro”. Pensar o Brasil, dessa forma,
significava levar em conta os espaços sociais e geográficos. Onde estaria, pensaram muitos dos
nossos intelectuais, nossa cor local? Qual seria explicação para o nosso subsenvolvimento, se
perguntaram outros? Por causa disso, campo e cidade se tornaram elementos centrais ao
desenvolvimento da nossa ficção, muitas vezes colocados, segundo alguns críticos, em polos
dicotômicos por nosso escritores.

No caso de 1), a crítica literária tende a ver um abandono, ou esmorecimento, do


interesse da literatura contemporânea por questões relacionadas à exploração da identidade
brasileira, ou a uma visão de conjunto do que seria o nacional. Para Renato Rezende, em Poesia
brasileira contemporânea: crítica e política, “os maiores monumentos literários modernistas,
tanto na poesia, quanto na prosa – os que alcançaram a maior repercussão de público e crítica –
lidam exatamente com a questão da nacionalidade”. Karl Erik Schollhammer, no seu ótimo Ficção
brasileira contemporânea, lamenta: “ninguém surgiu ocupando o lugar de popularidade de Jorge
Amado, que, nesta perspectiva, faz falta, pois nenhum autor depois dele se lançou numa
literatura com a ambição de oferecer uma visão global, nem mesmo idealizada e folclórica, da
realidade brasileira”. No caso de 2), a crítica converge para a hipótese de que nossa ficção é
atualmente marcada, desde os anos 60, pela ostensiva representação do espaço urbano, em
especial pelos conflitos entre uma Cidade Oficial, Legitimada, e a parcela periférica da geografia
urbana. As cidades incharam em nosso espaço geográfico; ao que parece, o mesmo ocorreu em
nosso imaginário literário: “a ficção brasileira contemporânea está concentrada no solo urbano
(…) permanece como experiência de fundo o desenraizamento proporcionado pela cidade”,
explica Manuel da Costa Pinto no seu Literatura brasileira hoje. No caso de 1), nos perguntamos:
pensar o nacional, indagar de explicações sobre os processos sociais de formação do Brasil, foi
totalmente abandonado em nossa ficção? Acredito que não e voltarei a isto na segunda parte
deste texto.

Logo, além das vanguardas, a ficção contemporânea parece ter encerrado a pertinência
social do regionalismo enquanto projeto literário. Mesmo em escritores nos quais o rural aparece
como espaço predominante, como é o caso de Essa terra, de Antonio Torres, Coivara da
memória, de Francisco J.C. Dantas, Galileia, de Ronaldo Correia de Brito, ou A cabeça do santo,
de Socorro Acioli, dificilmente vemos uma retomada do espaço rural nos termos do que havia de
regionalismo no romance de 30. A própria dicotomia rural x urbano, ficção urbana x ficção
regionalista pode ser um tanto redutora. Tanto na produção atual, quanto no romantismo e em
30, nossa ficção não colocava esses dois espaços em relação estritamente antagônica. Por isso,
concordamos com Tânia Pellegrini quando afirma, no artigo “Os caminhos da cidade”, que o rural
e o urbano na nossa ficção sempre constituíram um “sólido amálgama de temas e situações”.

Se, no entanto, a afirmação e a investigação sobre as identidades regionais e nacional não


dá mais a tônica predominante da nossa ficção, devemos nos perguntar se, para muitos dos
nossos leitores e autores, funções semelhantes precisariam ainda ser desempenhadas. Tentarei
me fazer mais claro: me refiro à atuação de escritores como o já citado Ferréz, por exemplo. A
necessidade da pergunta ainda se manteria, não mais em termos do nacional, mas sim em termos
da construção de identidades consideradas marginalizadas pelos discursos de representação e
legitimação do literário. A partir da leitura e das intervenções públicas de escritores oriundos da
periferia, por exemplo, é possível identificar a reformulação da pergunta identitária. Para muitos
destes escritores e leitores, cabe à literatura contribuir na permanente construção e visibilidade
de identidades vinculadas às periferias urbanas brasileiras. Assim, não é por acaso que o principal
evento literário organizado por escritores da periferia tenha se chamado justamente “Semana
de Arte Moderna da Periferia”. E se pudermos, trabalho ainda a ser feito de modo mais
exaustivo?, reconstruir os minguados, embora existentes, debates públicos sobre literatura nos
últimos vinte anos, veremos ciclos de retorno da pergunta identitária, reformulada em diferentes
variantes, para além da referência urbana em sentido estrito. Como exemplos de alguns destes
ciclos de discussão, temos, vivíssimos em 2017, o debate a respeito da contribuição de autores
negros à literatura brasileira, em especial a contribuição das escritoras (e o debate gira em torno,
princialmente, da consolidação e resgate da literatura escrita por Carolina Maria de Jesus, por
um lado, e da merecida consagração da prosa de Conceição Evaristo, por outro); e também a
visibilidade da escrita gay feminina e sua contribuição à literatura brasileira.

As cidades: Passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo


Para escapar um pouco das minhas próprias considerações genéricas e terrivelmente bem
intencionadas sobre a ficção brasileira contemporânea, passo à segunda parte desta reflexão.
Dentre as diferentes possibilidades de temáticas a serem abordadas, escolho a da marcante
presença da questão urbana em nossa ficção. Vou pensá-la tomando como exemplo o romance
Passageiro do fim do dia, do carioca Rubens Figueiredo. O livro, publicado pela Cia das Letras em
2010, venceu o importante prêmio São Paulo de Literatura no ano seguinte; Figueiredo é um dos
nomes de destaque da nossa ficção contemporânea, tendo vencido também o prêmio Jabuti.
Além de ser professor de português, é atualmente um dos mais importantes tradutores
brasileiros, em especial do inglês e do russo. De certa maneira, Passageiro do fim do dia é um
típico romance brasileiro e nessa afirmação há tanto um elogio, quanto uma ressalva. Seu
compromisso ético com os personagens e com o espaço no qual vivem nos remete a uma série
de bons romances do nosso realismo; no entanto, é esse mesmo compromisso que tolhe o
quanto poderia haver de exploração da linguagem, da especulação filosófica e da imaginação.
Não é por acaso que os melhores momentos do romance se revelam quando ele se apresenta
mais analítico e menos engajado, como o leitor pode conferir nas excepcionais páginas de
abertura do romance. Minhas hipóteses de trabalho para esse livro, portanto, são as seguintes:
1) A preocupação com o nacional não foi totalmente abandonada pela nossa ficção; Figueiredo,
assim como Milton Hatoum, Chico Buarque (em Leite derramado), ou Luiz Ruffato, continuam a
se preocupar em pensar/explicar o Brasil, ou melhor, em desvelá-lo, em criar para o nacional,
tomando de empréstimo as palavras de Schollhammer, uma “visão global”; 2) Como apontam
vários críticos, a suposta tensão rural x urbano, em nossa ficção, foi substituída pela tensão
Cidade Privilegiada x Cidade Periférica – poucos romances contemporâneos assumem
totalmente essa perspectiva quanto Passageiro do fim do dia.

Pedro, o protagonista, é um jovem que todos os fins de semana vai visitar a sua namorada
em um afastado bairro da cidade na qual vive. O romance de Figueiredo é basicamente uma
exploração das memórias do seu protagonista enquanto ele faz o longo trajeto do centro da
cidade, onde possui um pequeno sebo, até o bairro periférico no qual mora sua namorada. Há,
contudo, uma complicação, pois algum tipo de revolta está acontecendo na periferia, com
confrontos da população com a polícia, assim como rumores de ônibus incendiados. Isso faz com
que a viagem de Pedro, já longa, demore ainda mais, suscitando tanto no narrador em terceira
pessoa, quanto no protagonista, uma série de reflexões. Chama atenção o quanto a cidade nunca
é nomeada, assim como a origem das várias personagens que conhecemos no livro nunca é
indicada com precisão. Há, portanto, um interessante contraste em jogo. Tudo em Passageiro do
fim do dia é minuciosamente explicado em termos de motivações das personagens, ou de causas
e consequências. A construção social dos espaços, por exemplo, é explicada, articulando-a com
as vidas dos personagens que neles vivem e trabalham; as relações de trabalho; a constante
precarização das condições financeiras dos personagens; a corrupção dos empresários; as
gambiarras e trambiques dos mais humildes; a violência e a degradação – todos esses elementos
são retirados da sombra e apresentados ao leitor com precisão de informações, dando um sabor
jornalístico-sociológico ao livro.

Por outro lado, a cidade em si na qual Pedro e os demais vivem é homogênea,


inespecífica, criando um efeito de contraste instigante. Por quê? Acredito que Passageiro do fim
do dia buscou construir uma cidade-matriz que possa servir de modelo para denunciar e explicar
os graves problemas sociais e urbanísticos de todas as grandes cidades brasileiras. Aqui está o
que considero o interesse pelo nacional. Passageiro do fim do dia, assim como outros livros
contemporâneos, em especial os romances, talvez não tenha o compromisso de buscar na terra
as explicações e possíveis saídas dos males do país; e certamente hoje não é mais o momento da
literatura brasileira (ela nem teria mais essa pertinência cultural) construir uma nova ideia global
de nacionalidade. No entanto, o que percebemos na obra de escritores como Figueiredo, Ruffato
ou Hatoum é que um aspecto importante dos seus projetos literários diz respeito ao
desvelamento para o leitor de aspectos do Brasil que esses escritores consideram ainda invisíveis.
Isto os conecta aliás, com escritores como Ferréz, Conceição Evaristo, João Antonio e Carolina
Maria de Jesus. É como se os espaços sociais sobre os quais escrevem não tivessem a justa
participação na partilha da construção cultural do que, sempre em termos provisórios,
continuamos chamando “nosso país, nossa literatura”. Há um compromisso social em livros como
Eles eram muitos cavalos, Leite derramado, Passageiro do fim do dia, Dois irmãos, Capão Pecado,
Olhos d´água, embora, é importante frisar, a obra de nenhum desses escritores não se reduza a
uma sociologia literária.

Em Passageiro do fim do dia, o que se procura desvelar? A periferia das nossas grandes
cidades. Desta maneira, as suas quase 200 páginas são um compêndio de vidas sofridas e
enclausuradas em uma condição social cheia de precariedades. Os diferentes tempos da
memória, bem como os relatos da vida de incontáveis personagens, são articulados com bastante
engenho pelo autor; em termos de estrutura, o romance segue linear, mas seu fluxo é lento e
digressivo, porque tudo se passa na memória de Pedro, que lembra de acontecimentos de sua
vida e das vidas das pessoas que conheceu ao longo dos anos. O romance, contudo, não precisa
ser lido como necessariamente naturalista, porque não existe a necessidade de irmanar qualquer
forma de determinismo ou escatologia de choque aos temas da precarização do trabalho, ou da
favelização dos espaços. Isto significa que os personagens possuem de maneira geral no romance
uma vida própria, não sendo escravos determinados do seu meio social. Um dos indícios é o fato
de que eles reagem de diferentes maneiras às circunstâncias que os cercam, fazendo com que
Passageiro do fim do dia revele ao leitor uma pluralidade de destinos possíveis.
No centro do seu projeto de desvelamento é que podemos encontrar a nossa segunda
hipótese de trabalho. Passageiro do fim do dia possui um importante objetivo, o de revelar a
invisibilidade dos espaços da cidade através da ideia de que cada vez mais vivemos em espaços
ubanos partidos ao meio. Isso é frisado do início ao fim do livro, mas um dos grandes achados de
Rubens Figueiredo é transferir para o corpo dos seus personagens a cissão da cidade na qual
vivem. Um exemplo é a relação do protagonista Pedro com sua namorada, Rosane. Em
determinado momento do livro, após transarem pela primeira vez, ela se dá conta de que nunca
tinha se deitado com um homem como ele. E que tipo de homem Pedro é? Alguém pertencente
a outro espaço; alguém do outro lado. As marcas da divisão da cidade se encontram na visão de
mundo, na variante linguística falada por cada um, no tipo de doenças que acometem os
personagens, no modo de se vestir, na linguagem corporal. Passageiro do fim do dia consegue
outro acerto: a divisão cidade x cidade acontece não apenas entre ricos e pobres, mas também
dentro da própria periferia, como é o caso da tensão existente entre o bairro no qual Rosane
mora e o bairro vizinho ao seu, também pobre e mais carente de uma melhor infra-estrutura.

Compromisso com a realidade nacional e atualização da tensão campo x cidade na nova


tensão cidade periférica x cidade privilegiada se realizam em Passageiro do fim do dia com muita
agudeza, criando uma forte vivacidade. No entanto, talvez após o primeiro terço da narrativa, o
livro demonstra sinais de cansaço, porque as histórias dramáticas vividas pelos seus personagens
começam a se acumular em excesso. Mesmo outro recurso inteligente, o de contrapor as
observações da cidade e a memória de Pedro com uma leitura, feita pelo protagonista, de um
livro sobre a vida de Charles Darwin, não consegue afastar a crescente sensação de cansaço que
tive ao concluir seu livro. Há uma excessiva, por exemplo, repetição de uma mesma estrutura na
composição da vida das personagens: o da reiterada interferência, sempre exterior (o Estado e
os empresários geralmente são os “vilões” apontados), em seus destinos, que os leva a diferentes
modos de precarização de vida, ou mesmo ao abandono. A denúncia contida em Passageiro do
fim do dia é verdadeira, claro, e duvido que não haja no leitor um mínimo de sensibilização ou
revolta diante das injustiças apontadas em suas páginas; no entanto, é preciso exigir da ficção
brasileira outras inquietações, para além dessas. Além disso, apesar das importantes diferenças
sociais entre o casal de protagonistas, nenhum conflito entre ambos surge dessa relação. Apenas
uma recatada divergência. Desta maneira, o romance de Rubens Figueiredo retira força e
pertinência daquilo que, ao mesmo tempo, o enfraquece: uma excessiva obediência aos pontos
de partida do nacional e da cidade cindida. Acompanhar a jornada de Passageiro do fim do dia,
mesmo assim, vale a pena; apenas gostaria, com o perdão do trocadilho fácil, que seu trajeto
tivesse sido muito mais desviante, sem que pudéssemos saber onde tudo aquilo irá parar.

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