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Cristhiano Aguiar
Universidade Presbiteriana Mackenzie
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All content following this page was uploaded by Cristhiano Aguiar on 05 September 2017.
Cristhiano Aguiar
De igual maneira, no contexto histórico indicado não se fala mais em uma cultura, mas
sim em “contraculturas”. Com o passar do tempo, a própria ênfase em uma identidade una,
plenamente identificada com um Estado-nação, é problematizada em função de uma crescente
atenção a diversas fragmentações identitárias, cujas pautas são levadas adiante por uma série de
movimentos sociais ligados à raça, imigração, sexualidade e gênero. Surgem, assim, uma série de
valores literários articulados com as transformações sociais apontadas. Se tais transformações
consistem em uma nova etapa social, justificando o “pós”, ou apenas um desdobramento da
modernidade em si, é um debate que deixarei para outro momento. Importante frisar, porém, o
1
Este texto teve uma primeira versão publicada no segundo número da revista pernambucana Café Colombo,
lançada em 2015. A pauta se integrava a um dossiê sobre diferentes aspectos da literatura contemporânea. A mim
coube, na edição, pensar a ficção, o que explica o caráter panorâmico do presente texto. Retomo-o com algumas
reformulações (2017) e o republico no Academia e demais perfis das redes sociais.
quanto essas manifestações literárias não podem mais ser lidas exclusivamente pelos valores
definidos a partir das literaturas do século XIX, ou da primeira metade do XX, por exemplo.
Aos poucos, a prosa contemporânea brasileira consolida nomes cujas obras passam a ter
importante reverberação de crítica e público. A partir dos anos 60 e 70, temos Rubem Fonseca,
João Antonio, Carolina Maria de Jesus, Raduan Nassar, Ariano Suassuna, Hilda Hilst, João Ubaldo
Ribeiro, Lygia Fagundes Teles, Dalton Trevisan, Ignácio de Loyola Brandão, Nélida Pinon, Marina
Colasanti, Luis Fernando Veríssimo, entre outros, podem ser considerados como pontos de
referência da nossa prosa contemporânea. A eles se juntam nomes atuantes a partir da década
de 80 e que também equilibram prestígio de crítica e a formação de um mínimo público leitor de
seus trabalhos, dentre os quais podem ser citados Sérgio Sant’anna, Silviano Santiago, João
Gilberto Noll, Milton Hatoum, Zulmira Ribeiro Tavares, Marcia Denser, Raimundo Carrero, Luiz
Ruffato, Elvira Vigna, ou Bernardo Carvalho. A lista que brevemente compilei não é exaustiva e
não inclui nomes de destaque, por exemplo, a partir dos anos 90, 2000 e 2010 (uma observação:
nos últimos 30 anos, encontramos um protagonismo crescente de escritoras, embora a igualdade
de gênero, em pleno 2017, esteja longe de ser realidade no cômputo geral de publicações
literárias do mercado nacional).
Para além da injustiça de autores que não foram citados, a lista de escritores do parágrafo
anterior apresenta outro problema metodológico: as suas propostas narrativas são muito plurais
e divergentes entre si. O tempo de projetos mais fechados, com uma série de pressupostos ou
regras a serem compartilhados pelos seus integrantes, parece ter perdido a sua função social?
Hoje, como apontam diferentes críticos nos últimos anos, temos menos manifestos e “escolas”
literárias, e mais a individualização dos projetos literários. Para a literatura contemporânea, a
ideia de vanguarda não faz mais tanto sentido; a militância, em todas as acepções do termo, é
difusa, em especial desde os anos 80. Há, contudo, ao menos uma exceção digna de nota e que
contradiz aquilo que acabei de afirmar: marcos culturais como a Semana de Arte Moderna da
Periferia, ocorrida em 2007 em São Paulo, que teve como precursora as antologias “Literatura
Marginal” organizadas a partir dos anos 2000 pela revista Caros Amigos e pelo escritor Ferréz.
Também vale a pena citar a antologia Olhos de azeviche, publicada em 2017 pela editora Malê,
reunindo textos de dez escritoras brasileiras negras contemporâneas. Talvez, e isto ficará para
uma reflexão futura, os projetos estéticos militantes (uso “militância” num sentido amplo)
retornem à medida em que novos lugares de fala se posicionem no campo literário, reivindicando
seu merecido espaço e legitimação simbólica.
No começo de 2014, o jornal Folha de São Paulo fez uma enquete com uma série de
críticos literários (http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2014/02/1416062-leia-enquete-
sobre-a-literatura-brasileira-contemporanea.shtml), boa parte deles professores universitários,
com algumas perguntas a respeito da literatura brasileira contemporânea, em especial a ficção.
Os temas abordados nas perguntas podem nos apontar mais características do contemporâneo.
Não cabe analisar todas as perguntas – selecionemos só algumas. Uma delas se relaciona à linha
de raciocínio que acabamos de desenvolver: “É possível apontar tendências da produção literária
contemporânea?”. O grifo é meu; a palavra grifada é fundamental, porque nela está contida uma
percepção da dificuldade em elaborar classificações para a pluralidade da produção. Há um
conjunto de perguntas sobre traduções, feiras de livros, oficinas literárias, antologias e
globalização, indicando o quanto, em especial nas últimas duas décadas, pensar a ficção
contemporânea significa pensar mudanças estruturais na profissionalização do escritor,
profissionalização essa que, acredito, tenha atingido com mais intensidade o prosador do que o
poeta brasileiro. Há cada vez mais livros escritos por encomenda, programas de residências,
concessão de bolsas, proliferação de festivais, traduções de ficção brasileira contemporânea para
outras línguas, participação de escritores em projetos audiovisuais, de teatro, artes visuais, etc.
Os exemplos recentes mais discutidos e polêmicos do processo de
internacionalização/profissionalização da literatura brasileira foram a homenagem ao Brasil em
Frankfurt, ocorrida em 2013, a seleção de jovens escritores brasileiros da revista britânica Granta,
em 2012, e a coleção Amores Expressos, na qual diversos ficcionistas foram enviados a diferentes
lugares do mundo a fim de escrever um romance que contivesse uma história de amor.
Importante também destacar a importância crescente dos concursos literários, revelando
talentos que, por diferentes variáveis, talvez não tivessem entrado no mercado literário tão cedo.
Os exemplos são muitos, mas podemos destacar desde Santiago Nazarian, passando por Luisa
Gesler, Débora Ferraz, Bruno Liberal, entre outros.
Outra pergunta, da mesma enquete, diz respeito à relação da literatura com a internet:
“Como as formas de interação via redes sociais se manifestam na literatura que se produz hoje?”.
No caso específico da ficção contemporânea, chama atenção o fato de que muitos autores hoje
em destaque utilizaram a internet, a partir dos anos 90, como plataforma de criação literária. É
o caso de escritoras como Clarah Averbuck e Ana Paula Maia, por exemplo, que iniciaram sua
carreira publicando em sites e blogs. No entanto, não acredito que o digital seja uma nova
condição estruturante da nossa ficção. Pelo contrário, ela é por enquanto um lugar de passagem.
Ao contrário da poesia, com a qual qual o digital pode funcionar como um possível novo
paradigma de criação, a ficção brasileira tem utilizado as ferramentas digitais mais como uma
plataforma de divulgação, do que como um espaço de experimentação. Mesmo se concebidos e
publicados de início em plataformas digitais, essas obras mantêm uma lógica textual inerente à
literatura “analógica”, alcançando a sua consagração final – aqui, é claro, pode haver também
um conservadorismo da crítica, em especial a universitária, ao lidar com a ficção criada na
internet – quando acontece a publicação em livro. Por fim, é importante anotar o quanto obras
dos diferentes gêneros do fantástico, como o horror, a ficção científica e a fantasia, têm
encontrado na internet novos espaços de circulação, dinamizando um mercado que cresceu
muito nos últimos anos aqui no Brasil, a ponto de ficcionistas como André Vianco ou Raphael
Draccon serem importantes exemplos das chances de profissionalização do autor brasileiro.
Logo, além das vanguardas, a ficção contemporânea parece ter encerrado a pertinência
social do regionalismo enquanto projeto literário. Mesmo em escritores nos quais o rural aparece
como espaço predominante, como é o caso de Essa terra, de Antonio Torres, Coivara da
memória, de Francisco J.C. Dantas, Galileia, de Ronaldo Correia de Brito, ou A cabeça do santo,
de Socorro Acioli, dificilmente vemos uma retomada do espaço rural nos termos do que havia de
regionalismo no romance de 30. A própria dicotomia rural x urbano, ficção urbana x ficção
regionalista pode ser um tanto redutora. Tanto na produção atual, quanto no romantismo e em
30, nossa ficção não colocava esses dois espaços em relação estritamente antagônica. Por isso,
concordamos com Tânia Pellegrini quando afirma, no artigo “Os caminhos da cidade”, que o rural
e o urbano na nossa ficção sempre constituíram um “sólido amálgama de temas e situações”.
Pedro, o protagonista, é um jovem que todos os fins de semana vai visitar a sua namorada
em um afastado bairro da cidade na qual vive. O romance de Figueiredo é basicamente uma
exploração das memórias do seu protagonista enquanto ele faz o longo trajeto do centro da
cidade, onde possui um pequeno sebo, até o bairro periférico no qual mora sua namorada. Há,
contudo, uma complicação, pois algum tipo de revolta está acontecendo na periferia, com
confrontos da população com a polícia, assim como rumores de ônibus incendiados. Isso faz com
que a viagem de Pedro, já longa, demore ainda mais, suscitando tanto no narrador em terceira
pessoa, quanto no protagonista, uma série de reflexões. Chama atenção o quanto a cidade nunca
é nomeada, assim como a origem das várias personagens que conhecemos no livro nunca é
indicada com precisão. Há, portanto, um interessante contraste em jogo. Tudo em Passageiro do
fim do dia é minuciosamente explicado em termos de motivações das personagens, ou de causas
e consequências. A construção social dos espaços, por exemplo, é explicada, articulando-a com
as vidas dos personagens que neles vivem e trabalham; as relações de trabalho; a constante
precarização das condições financeiras dos personagens; a corrupção dos empresários; as
gambiarras e trambiques dos mais humildes; a violência e a degradação – todos esses elementos
são retirados da sombra e apresentados ao leitor com precisão de informações, dando um sabor
jornalístico-sociológico ao livro.
Em Passageiro do fim do dia, o que se procura desvelar? A periferia das nossas grandes
cidades. Desta maneira, as suas quase 200 páginas são um compêndio de vidas sofridas e
enclausuradas em uma condição social cheia de precariedades. Os diferentes tempos da
memória, bem como os relatos da vida de incontáveis personagens, são articulados com bastante
engenho pelo autor; em termos de estrutura, o romance segue linear, mas seu fluxo é lento e
digressivo, porque tudo se passa na memória de Pedro, que lembra de acontecimentos de sua
vida e das vidas das pessoas que conheceu ao longo dos anos. O romance, contudo, não precisa
ser lido como necessariamente naturalista, porque não existe a necessidade de irmanar qualquer
forma de determinismo ou escatologia de choque aos temas da precarização do trabalho, ou da
favelização dos espaços. Isto significa que os personagens possuem de maneira geral no romance
uma vida própria, não sendo escravos determinados do seu meio social. Um dos indícios é o fato
de que eles reagem de diferentes maneiras às circunstâncias que os cercam, fazendo com que
Passageiro do fim do dia revele ao leitor uma pluralidade de destinos possíveis.
No centro do seu projeto de desvelamento é que podemos encontrar a nossa segunda
hipótese de trabalho. Passageiro do fim do dia possui um importante objetivo, o de revelar a
invisibilidade dos espaços da cidade através da ideia de que cada vez mais vivemos em espaços
ubanos partidos ao meio. Isso é frisado do início ao fim do livro, mas um dos grandes achados de
Rubens Figueiredo é transferir para o corpo dos seus personagens a cissão da cidade na qual
vivem. Um exemplo é a relação do protagonista Pedro com sua namorada, Rosane. Em
determinado momento do livro, após transarem pela primeira vez, ela se dá conta de que nunca
tinha se deitado com um homem como ele. E que tipo de homem Pedro é? Alguém pertencente
a outro espaço; alguém do outro lado. As marcas da divisão da cidade se encontram na visão de
mundo, na variante linguística falada por cada um, no tipo de doenças que acometem os
personagens, no modo de se vestir, na linguagem corporal. Passageiro do fim do dia consegue
outro acerto: a divisão cidade x cidade acontece não apenas entre ricos e pobres, mas também
dentro da própria periferia, como é o caso da tensão existente entre o bairro no qual Rosane
mora e o bairro vizinho ao seu, também pobre e mais carente de uma melhor infra-estrutura.