Você está na página 1de 12

1

CIÊNCIAS DA RELIGIÃO: OS DILEMAS EM BUSCA DA


CIENTIFICIDADE
Daniel Silva Pinto1

RESUMO. O objetivo deste artigo é constituir uma análise da situação do estudo da religião
enquanto campo sistematizado de conhecimentos – as ciências da religião – abordando as
diversas discussões de ordem epistemológica que envolvem a natureza de seu objeto. Procura-
se demonstrar, com base em analise feita a partir de uma divisão das problemáticas
envolvendo a construção do objeto, das criticas sobre a cientificidade do mesmo ou à
produção científica da área, que as ciências da religião enquanto campo em construção deve
buscar sua legitimidade em seu próprio objeto de estudo, constituindo em torno dele uma
metodologia e referencial teórico exclusivos, bem como envolvê-lo em um diálogo
interdisciplinar voltado ao estudo do religioso.
Palavras-chave: Ciências da Religião. Cientificidade. Metodologia. Epistemologia

ABSTRACT. The purpose of this article is to provide an analysis of religion study the
situation as systematized field of knowledge - the sciences of religion - addressing the various
discussions of epistemological involving the nature of its object. It seeks to demonstrate ,
based on analysis made from a division of the problems involving the construction of the
object of criticism of the scientific of the same or scientific production in the area , that the
sciences of religion as field construction should seek their legitimacy in its own object of
study , being around it a methodology and unique theoretical and wrap it in an
interdisciplinary dialogue focused on the study of religion .
Keywords: Religion Sciences . Scientism . Methodology. epistemology

Introdução
O estudo da religião, realizado segundo o rigor do método científico tem suscitado
inúmeras discussões de ordem epistemológica voltados a construção do objeto estudado por
muitas das ciências humanas e especialmente pela ciência - ou ciências? - da religião, que tem
procurado a sua afirmação e consolidação justamente em meio a controvérsia sobre a
possibilidade de se estabelecer o estudo do fenômeno religioso em bases estritamente
científicas, ou seja, dentro de métodos de observação e construção do conhecimento aceitos e
validados universalmente pela comunidade científica.
A busca pelo estabelecimento de sua cientificidade é atravessada por criticas à produção
dos estudos em religião, carentes de credibilidade por supostamente estarem, em grande parte,
contaminados por ideologias religiosas, bem como a seu controverso objeto de estudo, ainda
cercado por categorizações metafísicas. A contra-argumentação a estas criticas se dá pela
similaridade ou identificação com os mesmos problemas epistemológicos enfrentados por
todos os campos científicos, das ciências naturais às do espírito.
1
Graduado em Ciências Sociais – UFPA. Mestrando em Ciências da Religião - UEPA
2

Por fim, pode-se dizer que a busca pela cientificidade das ciências da religião é um
processo em aberto, e que essa abertura deve ser mantida e mesmo ampliada pela
intercomunicação entre os diferentes campos de construção do conhecimento.

A construção da cientificidade nas Ciências da Religião


A história do conhecimento sobre a religião se confunde com a própria historia dos
sistemas de explicação do mundo. Antonio Gouvêa de Mendonça observa o legado de
misticismo deixado pela religião à filosofia ocidental e que influenciará todos os sistemas
filosóficos – dos pré-socráticos a modernidade – voltados à busca da explicação da origem do
mundo e da natureza essencial das coisas. (MENDONÇA, 2001, p. 143)
Para Luís Felipe Pondé, a discussão sobre os critérios válidos para a produção do
conhecimento humano tem início entre os filósofos gregos, por meio da controvérsia entre as
verdades absolutas e universais de Platão, que só podem ser alcançadas pela alma imaterial e,
portanto, inalcançáveis pelos sentidos humanos e o realismo aristotélico, em que o processo
de produção do conhecimento está assentada na abordagem empírica por meio dos órgãos dos
sentidos humanos, apesar das premissas metafísicas de seu pensamento. Estes sistemas
filosóficos que, desde a antiguidade vem influenciando o pensamento ocidental, constituem-se
enquanto a raiz da discussão da possibilidade da constituição do fenômeno religioso enquanto
objeto científico.O sistema aristotélico servirá de apoio essencial a constituição de sistemas e
métodos de apreensão do real baseados unicamente nos órgãos dos sentidos humanos como
instrumentos de construção de conhecimentos sobre o mundo externo, como o empirismo
inglês2. É a experiência humana, formada pelos sentidos que desenvolverá critérios e modelos
de pensamento fundamentais para a constituição das bases epistemológicas da ciência
moderna. Por sua vez, o pensamento platônico, que rejeita a experiência sensorial como fonte
segura e confiável da realidade, uma vez que a essência desta não se encontra no mundo
sensível, é um dos fundamentos do pensamento metafísico, que diz respeito a própria essência
do fenômeno religioso, tornando-o em parte inalcançável pelos métodos de abordagem
científica tradicionais (PONDÉ, 2001, p. 21-25).
Esta condição do fenômeno religioso é comentado por Mendonça (MENDONÇA, 2001,
p. 143), “A sociologia da religião [...] procura dar conta do fenômeno – ou dos fenômenos –
religioso e submetê-lo a uma certa racionalidade. Mas o “em si” religioso permanece distante
por causa do seu condicionante metafísico, o noumeno inacessível”.

2
Corrente filosófica que se constitui como uma das bases formadoras da filosofia e da ciência moderna.
3

A (im)possibilidade de apreensão do fato religioso como objeto passível de analise


pelos órgãos dos sentidos humanos, e por consequência, pelos métodos experimentais da
ciência, gera discussões sobre a possibilidade da existência de bases estritamente científicas
para o estudo do fenômeno religioso. A complexidade desta discussão é derivada da própria
natureza do fenômeno, que apresenta enormes dificuldades cognitivas para os sentidos
humanos que, limitados, não podem apreendê-lo em sua totalidade fenomenológica.
Pondé, ao considerar a teoria sobre os critérios de cientificidade estabelecidos por Karl
Popper, trata da necessidade da visibilidade ou da possibilidade da abordagem empírica do
fenômeno como critério essencial para a constituição de conhecimentos validados pela ciência
(PONDÉ, 2001, p. 35-37).
Segundo G. Mensching, ( apud JOSGRILBERG, 2001, p.11),
A ciência da religião não tem nada a ver com especulações metafísicas arbitrárias
sobre a realidade do além, nem com os dogmas teológicos de religiões específicas.
O fundamento fático empírico, sobre o qual se assenta a ciência da religião, é dado
pela história das religiões no mundo, nas ações cúlticas e suas representações de
Deus, suas intuições éticas e suas atitudes de fé (...) manifestações da vida religiosa
no tempo e no espaço histórico, isto é, pertencem à classe dos fatos históricos.
Luís Felipe Pondé, no entanto, apesar de apontar a experiência humana como
essencialmente histórica cita, por meio das criticas feitas a cientificidade dessa disciplina por
autores como Isaiah Berlim, as dificuldades epistemológicas que a historia, enquanto
disciplina, apresenta por conta da infinitude dos dados que a historia humana produzem e que
se constitui como um sério obstáculo à compreensão dos fatos sociais, devido a limitada
capacidade cognitiva humana de apreendê-los em sua totalidade (PONDÉ, 2001, p. 38).
Rui de Souza Josgrilberg, ao criticar a posição de Mensching, afirma a dinâmica da
manifestação do objeto religioso, percebido não como um fato dado e fechado em si mesmo,
exclusivamente visto como fenômeno histórico, psicológico, antropológico ou social, mas
manifestado dentro de um constante processo de construção de significados e sentidos em
contextos espaços-temporais, linguísticos e simbólicos, constituindo-se enquanto fenômeno
complexo, que deve ser interpretado em suas múltiplas faces. Sendo um objeto que se
estrutura a partir da própria necessidade humana de viver e perceber a realidade atribuindo
sentidos a ela, a apreensão de seus elementos essenciais só deverá ser buscada na vivacidade
dinâmica de sua manifestação, no ato vivo de sua expressão (JOSGRILBERG, 2001, p.14).
Esta interpretação dos variados sentidos e características do objeto religioso deve ser
realizado com o concurso e diálogo de múltiplos olhares e perspectivas produzidas pelos
diversos campos científicos e seus métodos variados. Diante desse quadro atual, o objeto da
religião, em si, nos conduz a impossibilidade de uma ciência da religião com método e objeto
4

exclusivo, sendo que “A primeira constatação é que não temos “uma” ciência da religião”,
mas estudos da religião no contexto de múltiplas ciências e tradições teológicas que fazem, a
partir de suas tradições, estudos do fenômeno religioso em pleno direito” (JOSGRILBERG,
2001, p. 15).
Afirma-se, assim, a necessidade da constituição de um método e referencial teórico
único e exclusivo sobre o objeto religião, para que possamos ter uma autêntica ciência da
religião. Mendonça comenta da necessidade de um marco teórico e metodológico que sirva
para este campo como um centro de organização das contribuições de todos os conhecimentos
produzidos em seu interior, bem como por outras ciências que se preocupam parcialmente
com o fenômeno religioso (MENDONÇA, 2001, p. 109).
A questão da construção do objeto religioso é também abordada por Luís Felipe Pondé
em seus comentários sobre Mircea Eliade e a problemática envolvendo o fenômeno da
religião como objeto exclusivo das ciências da religião. Comenta Pondé que, Para Eliade, o
estudo do fenômeno religioso pela ótica das diversas ciências (humanas) que se ocupam dele,
levaria a negação da possibilidade da constituição de um objeto próprio, que realmente
enfocasse a verdadeira natureza do objeto religioso. Para Eliade, na análise de Pondé, o que
constitui esse objeto em sua essência é o conceito de espírito que, negligenciado pelas
ciências humanas tradicionais, apresenta-se, na concepção elidiana, como o elemento central e
essencial da natureza do objeto religioso. Seria o núcleo de uma ciência do espírito, que
estudaria a experiência espiritual, interna do ser humano religioso, por meio da interpretação
dos dados fornecidos pela manifestação dessas experiências em múltiplos contextos de
significados. O acesso a esta experiência se dará por um órgão de cognição, chamado por
Eliade de tato religioso. Este tato, segundo Eliade está presente em todo ser humano e
constitui-se como um órgão de percepção daquilo que é transcendente ao homem, que lhe é
essencial e não alcançável pelos sentidos humanos ordinários, portanto invisível, mas
apreensível por meio de sensações e sentimentos provocada pela experiência religiosa interna
(PONDÉ, 2001, p. 40-43).
A problemática da construção de um objeto e método exclusivo das ciências da religião,
a partir dos autores abordados aqui, é resultante da rica complexidade apresentada pelo
fenômeno religioso. É justamente esta complexidade e variedade fenomenológica do religioso
que necessariamente produz muitos olhares sobre ele e, portanto, muitas controvérsias sobre
os métodos, conceitos e abordagens mais adequados para se estudá-lo. Autores como
Mendonça e Josgrilberg, apontam a permanência de um quadro de fragmentação dos estudos
da religião como um dos obstáculos à formação de um sistema unificador de conhecimentos
5

próprios do campo religioso, isto é, um método e objeto únicos e exclusivos de um campo


que, assim, possa ser chamado de ciência (MENDONÇA; JOSGRILBERG, 2001). Se estas
condições não puderem ser estabelecidas, o titulo de estudos da religião, talvez possa ser mais
adequado para apontar uma área preocupada com tão controvertido tema.

Critica a cientificidade das ciências da religião


Derivada das questões de método e da própria natureza do objeto estudado, a produção
científica das ciências da religião possui seus dilemas que se desdobram na forma de criticas
relacionadas a questão da neutralidade axiológica, tema tão caro ao campo da ciência,
especialmente às ciências do espírito que, supostamente ausente em muitos trabalhos, poderia
estar comprometendo a legitimidade científica da área. Criticas relacionadas também a
questões de ordem epistemológica sobre o uso de diversas categorias, métodos e conceitos
desenvolvidos por autores da área e a validade científica destes dentro dos parâmetros
científicos estabelecidos pelos paradigmas da ciência moderna. No entanto, as criticas podem
ser fundamentais para o aprimoramento de conceitos, categorias e métodos de abordagem que
contribuam para o estabelecimento da área no campo científico.
Para Antônio Gouveia de Mendonça uma cultura de autocrítica a produção na área
ainda é incipiente, devido ao seu pouco tempo de existência enquanto campo de
conhecimento sistematicamente organizado, mas fundamental para o desenvolvimento do
reconhecimento de seu valor científico (MENDONÇA, 2001, p. 110).
Luis Felipe Pondé, por sua vez, trabalha o conceito de controvérsia – o choque entre
argumentos e ideias – para acentuar e proporcionar melhor visibilidade às diferenças
existentes entre argumentos e teorias contrárias, o que produziria efeitos positivos para o
desenvolvimento da crítica no interior da comunidade científica estudiosa do fenômeno
religioso, “A controvérsia tornará mais visível (...) o valor e os problemas de cada posição e o
quanto a comunidade que “sofre” a controvérsia pode ganhar com o choque entre as
diferentes vertentes” (PONDÉ, 2001, p.21).
Além das recomendações e propostas para o desenvolvimento crítico da disciplina, as
criticas propriamente ditas a produção científica na área voltam-se para o dilema da
neutralidade. Marcelo Camurça, em seus comentários feitos sobre as criticas de Antônio
Flávio Pierucci à produção da sociologia da religião no Brasil, escreve que Pierucci vê a área
como de pouca credibilidade científica, pois sua produção está contaminada por valores
religiosos de sociólogos praticantes de religiões, que estariam confundindo ciência com fé,
teologia com ciência social. Camurça comenta que, “Para o autor, o envolvimento “afetivo-
6

existencial” destes ‘sociólogos-da-religião-religiosamente-comprometidos’ (p.250) para com


o seu objeto pode ‘afetar seriamente [...] os resultados da pesquisa científica’ (p.264)”
(CAMURÇA, 2008, p. 116).
Seria a presença massiva de sociólogos religiosos na área das Ciências Sociais da
Religião no Brasil que, praticando uma pseudo-empíria com ares de cientificidade, seriam os
principais responsáveis pelo descrédito acadêmico da área, comprometendo seu avanço dentro
dos rigores acadêmicos exigidos pela comunidade científica.
A natureza polêmica do fenômeno religioso suscita também criticas relacionadas às
categorias e conceitos desenvolvidos e instrumentalizados para interpretar o sagrado e definir
seu objeto de estudo. Luis Felipe Pondé, ao comentar o conceito de espírito de Mircea Eliade,
pergunta se há suficiente visibilidade neste conceito, ou seja, se há um aporte empírico capaz
de validá-lo. Nesse sentido, Pondé pergunta, “Há suficiente visibilidade nestes “conceitos
espirituais”? É possível ainda lidar com conceitos que parecem resistir epistemologicamente a
aportes empíricos sensualistas?” (PONDÉ, 2001, p.43).
Este conceito, segundo Pondé, opera em um registro de percepção que transcende os
sentidos humanos, e que, portanto está fora do homem. (Ibidem, p.45-46). A limitação
cognitiva dos órgãos sensoriais – a miséria cognitiva dos sentidos humanos observada por
Pondé – constituir-se-ia enquanto sério obstáculo à penetração no que o fenômeno apresenta
de essencial em sua manifestação, a experiência religiosa interna, a experiência mística,
invisível, que Mircea Eliade coloca como núcleo fundamental da compreensão do fenômeno
religioso.
A analise que Pondé faz, a partir dos conceitos elidianos, está em que, se o sentido de
espírito e da experiência religiosa que é seu efeito não pode ser encontrada e significada pelo
ser humano, este necessariamente perde sua autonomia enquanto produtor de sentidos e,
assim, não poderá operar dentro de um conceito de racionalidade validado pelos paradigmas
científicos tradicionais. A invisibilidade do conceito de espírito e do órgão – o tato religioso –
que produz a experiência religiosa – a sensação do absoluto e do transcendente, negaria os
princípios de racionalidade moderna, onde a natureza, a realidade só poderá ser apreendida
pelos órgãos sensoriais. Negar a autonomia da razão na busca do entendimento do sagrado
pode levar, segundo os questionamentos levantados pelo autor, a classificar o religioso como
manifestação humana patológica, ou seja, a transcendência da experiência religiosa que
desloca para além do humano o sentido essencial do sagrado poderia levar o pesquisador, que
tem como referencial de sua autonomia intelectual, a experimentação com objetos e categorias
7

visíveis e mensuráveis –o registro profano de Pondé – a perceber o religioso como prejudicial


ao organismo humano? (Ibidem, p. 47-48)
As questões levantadas por Luís Felipe Pondé inserem-se no contexto de um domínio de
visão de ciência assentada em paradigmas empiristas, em que o processo de conhecimento só
pode se dar pela percepção humana do mundo externo via órgãos dos sentidos e que tudo que
não possa ser fruto da experiência sensorial (visível e demonstrável) deve ser descartado
como pura especulação metafísica.
Faustino Teixeira, ao analisar o papel da teologia no âmbito das ciências da religião,
cita o teólogo Etienne A. Highet que critica o predomínio do paradigma atual de se fazer
ciência. Comentando o autor, Teixeira coloca que para Higuet, a noção de ciência deve ser
ampliada e abranger também as ciências hermenêuticas (TEIXEIRA, 2001, p.307).
As criticas feitas ao campo do estudo da religião, seja pela indefinição metodológica ou
mesmo pelo delineamento claro de seu objeto, assim como aquelas que são dirigidas aos
próprios produtores de conhecimento da área e suas possíveis ligações afetivas com seus
objetos, são efeitos ou consequências do esforço de consolidação de uma área do
conhecimento que, por sua juventude, ainda não tenha tido tempo de afirmar sua legitimidade
científica e seu lugar diante da comunidade científica tradicional, “Afinal, estamos pela
primeira vez tentando justificar uma ciência ainda relativamente nova em nosso meio.
Reivindicamos para ela, desde logo, a autonomia de que necessita para vingar”
(MENDONÇA, 2001, p. 121). Ou, como coloca Josgrilberg, “No fundo, trata-se, no
momento, de uma ciência de superação de limites e de velhos modelos, reconhecimento que
“ciência” não é um mundo fechado e autossuficiente” (JOSGRILBERG, 2001, p.19).

Argumentos a favor da cientificidade das ciências da religião


Sendo seu objeto – religião - extremamente controverso com relação a sua definição e
conceituação, as criticas às ciências da religião já tem como alvo seus próprios alicerces
epistemológicos. Mas, pode-se contra-argumentar que o próprio processo de construção do
conhecimento científico é inesgotável, e está em constante mutação, reconstruindo e mesmo
destruindo conceitos, estabelecendo novos paradigmas e abandonado outros, e assim, por sua
natureza processual, seus objetos científicos, de todas as áreas do conhecimento, estão
submetidos a um permanente processo de descobertas e desvendamentos.
Mendonça, ao rebater as ideias que desqualificam a cientificidade da teologia, observa
que os mesmos argumentos que apontam a obscuridade do objeto dessa ciência e a
impossibilidade de se estudá-lo sob a luz de qualquer método científico reconhecido, podem
8

ser aplicados a todos os objetos científicos, de todas as ciências, naturais e humanas, pois não
existiriam objetos completamente estudados e conhecidos, que não mais necessitassem serem
investigados (MENDONÇA, 2001, p.114).
O objeto religião, ao oferecer os mesmos problemas e zonas obscuras que necessitam de
investigação apresenta os mesmos problemas dos objetos das ciências estabelecidas ou
legitimadas. Portanto, “[...] não há razão para não chamar de ciência o conhecimento
organizado em torno dele há séculos e que ajudou a construir o mundo ocidental” (Ibidem, p.
115).
A limitação científica, enquanto um problema inerente ao próprio processo de se fazer
ciência, é tratada por Luís Felipe Pondé, como um drama epistemológico que se revela na
inconsistência e imprecisão dos modelos de investigação da realidade. Estes dramas, estas
falhas presentes no processo de construção do conhecimento humano, tem sua origem nas
próprias limitações do organismo humano, de seus órgãos sensoriais, que por suas
imperfeições, refletem as falhas cognitivas presentes nas relações de produção de
conhecimento entre o sistema biológico humano e o sistema natural (PONDÉ, 2001, p. 34).
Assim, comenta Pondé que, os modelos de apreensão e investigação científica da
realidade apresentam tantas falhas e limitações quanto às apresentadas pelos órgãos sensoriais
humanos, a partir dos quais estes modelos são construídos e que por isso mesmo as
inconsistências desses modelos devem ser vistas como naturais, pois estão diretamente
associadas as limitações sensoriais e cognitivas do organismo humano (Ibidem, p.34).
Portanto, a finitude ou a limitação epistemológica dos modelos científicos, baseados em
paradigmas empiricistas e suas ferramentas metodológicas – induções, experimentações,
generalizações – base instrumental do modelo paradigmático tradicional de se produzir
ciência é, como diz Pondé, de fato natural, e as ciências da religião, como todas as demais
ciências, se inserem nestes “dramas epistemológicos”, garantindo a sua cientificidade pela
identificação com as próprias falhas ou inconsistências dos modelos científicos adotados pelas
ciências estabelecidas ou pelos cientistas que lhe negam o status legitimador de ciência.
Mendonça observa que este problema científico primordial é compartilhado pela
teologia, “Como todas as ciências são finitas enquanto oferecem hipóteses e soluções parciais
ou mesmo provisórias para temas ou objetos que são, ao mesmo tempo, problemas, a teologia
é também uma ciência finita porque seu objeto é visto como “problema” e não como “dado
certo” (MENDONÇA, 2001, p.117).
Talvez, a procura da cientificidade das ciências da religião, mas do quê no paradigma
empiricista-factual, deva ser buscada na capacidade humana de dar sentido às coisas e na
9

possibilidade de interpretar esses sentidos, isto é, na hermenêutica, “O discurso religioso deve


passar pelo crivo dos procedimentos científicos e pela sua legitimação no diálogo
hermenêutico que é quem lhe dá hoje o estatuto no mundo das ciências” (JOSGRILBERG,
2001, p.20).
Assim, para Josgrilberg, o objeto religioso é intrinsecamente dinâmico, processual
porque ligado à incessante capacidade humana de “dar sentido às coisas e aos eventos”. O
objeto religioso está carregado de sentidos diversos, que precisam ser explicitados para
tornarem-se categorias passíveis de interpretação. A diversidade de sentidos e significados
contidos no objeto religioso e a gama também diversificada de categorias elaboradas por
todas as ciências preocupadas com o fenômeno religioso revela o amplo leque voltado a
construção do objeto, que envolve o concurso das variadas formas de conhecimento – da
filosofia, arte, ciência e religião (Ibidem, p.13).
Não podendo ser delimitado em um único universo de representações e investigação, o
objeto religião e a formação do campo de estudos das ciências da religião devem ser
estruturados com base em um dinâmico diálogo entre os métodos científicos tradicionais –
empírico-factuais - e os métodos hermenêuticos de apropriação do fenômeno, baseado na
busca da interpretação dos sentidos simbolicamente construídos pelos sujeitos e em estado de
latência nos textos, nas artes, etc. Nesse sentido, “As ciências da religião convergem entre si
não só por presumirem os procedimentos científicos, mas também por presumirem
interpretação” (Ibidem, p.16).
Portanto a construção, ou mesmo a legitimação da cientificidade das ciências da religião
se dará na pluralidade dos métodos e procedimentos que envolvem desde a pesquisa empírica
dos fatos à interpretação dos muitos sentidos produzidos dinamicamente pelo movimento vivo
do fazer religioso, pelos procedimentos e métodos hermenêuticos.
No âmbito da pesquisa e produção na área, a busca da legitimidade científica estaria
orientada para o combate às criticas feitas por autores – defensores de uma visão
unidimensional e reducionista de ciência, calcada em paradigmas positivistas – voltados a
questionar a ausência da neutralidade e objetividade nas pesquisas realizadas por cientistas
religiosos, isto é, adeptos de alguma religião, que estariam praticando uma pseudo ciência
social e assim, acobertando seu envolvimento afetivo-existencial com o seu objeto de estudo.
Autores como Faustino Teixeira, em sua defesa do estatuto científico da teologia e de
seu lugar no campo das ciências da religião, consideram que o envolvimento existencial do
pesquisador, manifestado na forma da crença ou fé deste, não é um critério seguro para
10

determinar a falta de objetividade e isenção valorativa destes pesquisadores. Assim coloca


que,
Tal visão revela-se pálida e encontra resistência em exemplos significativos de
pesquisadores que mesmo animados pela fé conseguiram realizar pesquisas
objetivas extremamente importantes, como é o caso do antropólogo francês Maurice
Leenhardt (1878-1954) (...) Como sublinhou Maria Isaura Pereira de Queiroz, ‘sua
profunda crença protestante constituiu portanto uma das garantias mais sólidas de
objetividade e fator primordial de seu sucesso como pesquisador’ (TEIXEIRA,
2001, p.298-299)
Teixeira ainda questiona a possibilidade da existência de uma pesquisa científica
completamente destituída da presença ou influência dos valores do pesquisador, mas pondera
sobre os possíveis exageros que podem ser ocasionados por desvios ideológicos (Ibidem,
p.300).
Antonio Gouveia de Mendonça, por sua vez, admite a necessidade do isolamento da fé
do pesquisador para que este possa alcançar um grau de objetividade e isenção científica em
sua pesquisa, assim, “A ausência da mediação da fé coloca em pé de igualdade tanto crentes
que colocam sua fé entre parênteses em favor da objetividade científica como não crentes
hipoteticamente mais livres” (MENDONÇA, 2001, p.120).
Como frisam alguns autores, existe uma inconsistência ou fragilidade nas criticas que
tomam pura e simplesmente a pertença religiosa como sintoma da falta de compromisso com
os rigores da objetividade científica e da presença de conteúdos subjetivos, em suas pseudo
análises empíricas, elaborados de acordo com os valores religiosos de cientistas
comprometidos com uma apologia de suas crenças (CAMURÇA; TEIXEIRA;
JOSGRILBERG, 2001).
Os critérios de julgamento sobre a presença ou não da cientificidade presente nos
trabalhos desses cientistas não pode se resumir a sua ligação afetiva ou institucional com sua
religião, e nem mesmo que essa ligação seja comandada por desafetos com antigas pertenças
abandonadas, como quer Marcelo Camurça (CAMURÇA, 2008, p. 132).
Mais do que levar em conta a subjetividade dos autores como critério de julgamento
sobre a cientificidade de seus trabalhos, pode-se dizer que, assim como em muitos casos não
se deve confundir o artista com o conjunto de sua obra, seriam as ideias, cristalizadas nas
obras nas formas de teorias, o referencial mais justo e objetivo para avaliar se o autor
contribui cientificamente para o avanço das pesquisas na área ou se o produto de seu trabalho
é apenas reflexo de seus preconceitos e concepções religiosas de mundo, travestidas de
ciência. Assim, Antonio Gouveia de Mendonça pondera que, a filiação e o passado religioso
do pesquisador não devem servir como critério ou pistas para se identificar uma possível
11

contaminação de sua pesquisa por valores religiosos ou por sentimentos de desafeto com seu
objeto. O critério mais justo e imparcial para se avaliar o trabalho do pesquisador da religião,
segundo Mendonça, seria a própria obra do autor e a relevância teórica que esta teria para o
desenvolvimento do conhecimento científico (MENDONÇA, 2001, p.120-121).
Na visão de Rui de Souza Josgrilberg, as ciências da religião, sendo essencialmente
ciências hermenêuticas, necessitam de pontos de vista, olhares diversos para se alcançar a
pluralidade de sentidos contidos no objeto. E esses pontos de vista podem partir tanto de
olhares religiosamente orientados, como de outros orientados por princípios seculares. Daí a
necessidade da integração desses olhares (e não a separação) e a importância ressaltada pelo
autor, da contribuição do cientista com pertença religiosa que, mergulhando em sua
experiência cotidiana, estabelece um contato mais profundo com seu objeto e, assim, pode-se
tornar tão ou mais relevante para o esclarecimento ou a analise científica do fenômeno
religioso (JOSGRILBERG, 2001, p. 15-16).
O mesmo autor observa que a compreensão do objeto pelas lentes da hermenêutica
constitui um processo dialético de aproximação, pela pertença, e distanciamento, pela busca
da objetividade científica, sendo que as pesquisas em ciências da religião permitem que o
pesquisador opte tanto pela proximidade do objeto por meio da pertença, ao eleger a teologia
como instrumento privilegiado de sua analise, quanto o distanciamento, ao se utilizar do
instrumental teórico de ciências como a antropologia ou sociologia. Assim, em ciências da
religião haveria, pela abertura hermenêutica, a permissão ou mesmo a necessidade da
confluência dos diversos olhares, de pertença e não pertença, o que tornaria estéril e
contraproducente todas as tentativas de identificação da disciplina com um único e
determinado conjunto instrumental de conhecimentos (Ibidem, p. 23-24).

Considerações finais
Talvez os dilemas que perpassam a área das ciências da religião permaneçam insolúveis
por muito tempo ou mesmo sequer sejam possíveis de serem solucionados. O seu pouco
tempo de existência enquanto campo de conhecimentos sistematicamente organizados é um
fator que colabora significativamente com possíveis fragilidades epistemológicas.
A discussão sobre a natureza do objeto e da possibilidade ou não de submetê-lo aos
critérios de cientificidade dominantes são infindáveis. É possível questionar que o núcleo da
essência do objeto religioso, permanecendo metafísico, isto é, somente acessado pela
experiência interna do sagrado, do absoluto, sentido e experenciado individualmente, portanto
insondável pelos métodos de investigação baseados na empiria dos sentidos, seria um
12

obstáculo intransponível para as ciências da religião em sua busca de legitimidade científica?


Ou será que categorias como as de tato religioso de Mircea Eliade seriam a saída para este
impasse, na medida em que garantiria, por meio de processos hermenêuticos, o acesso à
experiência transcendente a todo e qualquer pesquisador que se dispusesse a investigar tal
tato? (PONDÉ, 2001, p. 47).
Os paradigmas científicos que fundamentam a ciência moderna ainda necessitarão ou
mesmo nunca deixem de necessitar de conceitos e categorias analíticas que estejam abertos à
verificação pelos órgãos dos sentidos e pelos princípios estabelecidos de racionalidade
científica. Talvez, mesmo que não exista solução para esse impasse, caminhos podem ser
abertos pela possibilidade da comunicação entre uma posição profana e uma posição sagrada
voltadas ao estudo da religião e que, por meio desse diálogo possam ser construídos novos
paradigmas que diminuam a distância entre estas posições, diminuindo com isso, também, as
fontes que alimentam um ateísmo militante e o engajamento motivado por interesses
ideológico-religiosos de pesquisadores da área, posturas desviantes e extremadas, pouco
afeitas a neutralidade.
Os dilemas permanecem, mas todas as ciências, e não só as da religião, precisam dos
choques paradigmáticos proporcionados por eles para se desenvolverem.

Referências Bibliográficas
CAMURÇA, Marcelo. Ciências Sociais e Ciências da Religião. São Paulo: Paulinas, 2008,
p. 113-136.
JOSGRILBERG, Rui. Ciências da religião e/ou teologia: uma questão epistemológica. In.
Caminhando, São Bernardo, 8 (2001), p. 11-25.
MENDONÇA, Antonio Gouvêa, A cientificidade das ciências da religião. In. TEIXEIRA,
Faustino (org.). A(s) Ciência(s) da Religião no Brasil: afirmação de uma área acadêmica.
São Paulo: Paulinas. 2001, p. 103-150
PONDÉ, Luis Felipe. Em busca de uma cultura epistemológica. In. TEIXEIRA, Faustino
(org.). A(s) Ciência(s) da Religião no Brasil: afirmação de uma área acadêmica. São Paulo:
Paulinas. 2001, p. 11-66.
TEIXEIRA, Faustino (org.). A(s) Ciência(s) da Religião no Brasil: afirmação de uma área
acadêmica. São Paulo: Paulinas. 2001, p. 297-322.

Você também pode gostar