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Stuart Hall e o modelo “encoding and decoding”: por uma

compreensão plural da recepção


JEAN HENRIQUE COSTA*

Resumo
A pesquisa de recepção pode ser considerada um marco nos estudos
de comunicação, sobretudo a partir da obra de Stuart Hall. A
discussão se acentuou, sobretudo, a partir dos anos 70, com a
publicação do texto “Encoding and decoding in television discourse”,
de Hall, ao apresentar três categorias da semiologia articuladas à
noção marxista de ideologia (leituras preferenciais, negociadas e de
oposição). Diante desta problemática, este ensaio procura discutir
essas três categorias típico-ideais como um avanço nos estudos
culturais e de mídia, apontando para a análise da cultura resultando de
um processo (tentativa) de dominação e resistência, mas nunca de
total submissão.
Palavras-chave: Estudos Culturais; Teorias da Recepção; Stuart Hall;
Codificação/Decodificação.

*
JEAN HENRIQUE COSTA é Doutor em Ciências Sociais (PGCS/UFRN), Professor da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN.

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A pesquisa de recepção pode ser apresentar três categorias da semiologia
considerada um marco nos estudos de articuladas à noção marxista de
comunicação, sobretudo a partir da obra ideologia. Segundo a autora, Hall
de Stuart Hall. Segundo Mauro Porto insistiu “na pluralidade, determinada
(2003), o novo paradigma dos Estudos socialmente, das modalidades de
Culturais enfatiza disputas ideológicas recepção” (ESCOSTEGUY, 1998, p.
no processo de comunicação, tratando o 92).
receptor (audiência) como um agente
Schulman (2000, p. 182-183) aponta
que interpreta ativamente o conteúdo
que Stuart Hall identificou quatro
midiático, teorização distinta
componentes de ruptura com as
substancialmente de alguns marxistas
abordagens tradicionais do estudo da
que “costumavam tomar como um dado comunicação (recepção) – ruptura que
da realidade o poder da mídia, significou uma verdadeira “virada
ignorando assim os processos de etnográfica2”. Primeiramente, os
recepção das suas mensagens”
Estudos Culturais rompem com as
(PORTO, 2003, p. 09). abordagens behavioristas, que viam a
Escosteguy (1998) menciona que no influência dos meios de comunicação de
final dos anos 1960 os temas da massa nos termos de estímulo-resposta.
recepção e da densidade dos consumos Rompem também com as concepções
midiáticos começaram a chamar a que viam os textos da mídia como
atenção dos pesquisadores dos suportes transparentes do significado,
chamados Cultural Studies. A discussão não percebendo, portanto, as
se acentuou, sobretudo, a partir dos anos entrelinhas. Em terceiro lugar, rompem
70, com a publicação do texto com a ideia passiva e indiferenciada de
“Encoding and decoding in television público, optando por considerá-lo numa
discourse1”, de Stuart Hall, ao
década de 1980 a partir de teorias críticas”
1
“O modelo encoding-decoding, tal como (PORTO, 2003, p. 11).
2
desenvolvido por Hall [...], é um dos enfoques “A expressão designa [...] um deslocamento
mais importantes no estudo das audiências da rumo a um estudo das modalidades diferenciais
mídia. Ele tem sido uma referência importante de recepção da mídia pelos diversos públicos”
para os estudos de recepção que surgiram na (MATTELART; NEVEU, 2004, p. 95).

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análise variada dos modos pelos quais não pode ser simplesmente pensado
as mensagens são decodificadas. E, em como uma pueril manifestação cultural,
quatro lugar, rompe-se com a ideia nem tampouco como simples canal da
monolítica de cultura de massa. ideologia, mas sim, como um artefato
produtivo, prática produtora de sentido:
Em decorrência dessa virada
aceito, negociado ou simplesmente
etnográfica, Hall (2003) identificou três3
rejeitado. A crítica conservadora de um
posições hipotéticas de interpretação da
consumo alienado não se faz
mensagem midiática:
completamente enérgica, pois:
a. Uma posição dominante ou
preferencial, quando o sentido da O consumo não é apenas
mensagem é decodificado segundo reprodução de forças, mas também
as referências da sua construção; produção de sentidos: lugar de uma
b. Uma posição negociada, quando o luta que não se restringe à posse de
sentido da mensagem entra em objetos, pois passa ainda mais
negociação com as condições decisivamente pelos usos que lhes
particulares dos receptores; dão forma social e nos quais se
c. Uma posição de oposição, quando inscrevem demandas e dispositivos
o receptor entende a proposta de ação provenientes de diversas
dominante da mensagem, mas a competências culturais (MARTIN-
interpreta segundo uma estrutura de BARBERO, 2009, p. 292).
referência alternativa. Desta forma, mesmo no consumo dos
Essas três categorias possibilitam o chamados bens culturais de massa há,
entendimento da recepção cultural a para além do fetichismo da mercadoria,
partir de um cenário no qual as uma certa possibilidade ativa de re-
subjetividades passam, portanto, a significação de seu uso.
serem vistas também como
Para Dalmonte (2002) as reflexões dos
subjetividades negociadas, consentidas,
Cultural Studies baseiam-se no
e não apenas como dominação
argumento de que o elemento cultural
(OLIVEIRA, 1999).
norteia o posicionamento do indivíduo
Logo, aportado no pensamento de Stuart frente aos produtos da chamada
Hall, pode-se dizer que é na esfera indústria cultural. Desta forma, a
cultural que se dá a luta pela diversidade cultural é responsável por
significação. Nesse sentido, os textos distintas formas de apropriação e
culturais são o próprio local onde o consumo da produção massiva. Trata-
significado é negociado. Destarte, o se, portanto, da capacidade popular em
consumo de uma música ou um de filme fazer leituras múltiplas, tornando a
recepção (consumo) um local de
3
Na interpretação de Guedes (1996, p. 40, construção de significado e não de
negrito nosso): “leitura hegemônica submissão total à esfera econômica. A
dominante, que interpreta o texto em termos do obra de Hall nesse sentido é basilar para
significado preferido sugerido pela mensagem;
leitura negociada, onde o significado
o entendimento empírico dessa
produzido pela interface entre o intérprete e o pluralidade de recepção. Para Porto
codificador da mensagem é sutilmente (2003, p. 12), o modelo
contestado. Aceitando a estrutura geral sugerida encoding/decoding abriu uma nova fase
pelo código dominante a pessoa dá um na pesquisa sobre recepção, desafiando
significado contraditório a mensagem; a leitura
de oposição iria ter uma compreensão contra o
teorias sobre a ideologia dominante ao
argumento do texto e faria poucas concessões “ressaltar que significados preferenciais
para a perspectiva oferecida”. [dominantes] podem ser decodificados

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de diferentes formas pelos membros da da produção. “A produção é, pois,
audiência”. Codificação e decodificação imediatamente consumo; o consumo é,
são processos com certas imediatamente, produção. Cada qual é
determinações, mas também têm seus imediatamente seu contrário. Mas, ao
momentos relativamente autônomos. mesmo tempo, opera-se um movimento
mediador entre ambos” (MARX, 1982,
A idéia de sujeito em Hall é baseada na
p. 08). Não havendo determinismo na
fragmentação do indivíduo moderno.
relação produção/consumo, também não
Para ele, desde o final do século XX
se pode problematizar a recepção de
vem ocorrendo uma fragmentação de
forma homogênea. Um mesmo grupo,
paisagens culturais de classe, gênero,
num dado momento, pode fazer
etnia, nacionalidade, sexualidade e raça,
determinada leitura da realidade a partir
códigos esses que em tempos passados
de códigos hegemônicos e, em outro
davam sólidas localizações referenciais
dado momento, a partir de códigos
aos indivíduos. Em sua avaliação, está
contestatórios. Mais uma vez posto,
ocorrendo uma descentração do
nem há determinismo nem tampouco
indivíduo, tanto em relação ao mundo
homogeneidade na recepção. Mesmo na
social, quanto em relação a si mesmo
crescente situação de heteronomia
(HALL, 2005).
vislumbrada, por exemplo, pela Teoria
Em Hall (2005) pode-se afirmar que não Crítica frankfurtiana, ainda assim
existe mais um centro de poder, mas podem ser encontradas negociações e
sim, uma pluralidade de centros contestações, de várias ordens. É
(influência direta de Foucault). Por necessário lembrar, por exemplo, que a
conseguinte, a diferença é uma marca luta de classes é, na maior parte dos
das sociedades modernas, sobretudo nas dias, uma luta metafórica: “quando não
formas de sujeição, uma vez que há conseguimos mudar o governante, nós o
jogos de poder, divisões e contradições satirizamos” (CANCLINI, 2003, p.
internas. 349). Tomando como exemplo os
festejos de massa, uma qualidade
O texto “Encoding and decoding in potencial da festa e da diversão popular
television discourse” é que pode escarnecer dos próprios
(codificação/decodificação) trouxe para burladores (BAKHTIN, 1993)4. Há,
as teorias da recepção um olhar mais
aberto as pluralidades e menos
objetivador. Neste, Hall (2003) enfatiza 4
que a mensagem é uma estrutura “Uma qualidade importante do riso na festa
popular é que escarnece dos próprios
complexa de significados, não sendo burladores. O povo não se exclui do mundo em
algo tão simples como se poderia evolução. Também ele se sente incompleto;
pensar, resultando que a recepção não também ele renasce e se renova com a morte.
pode ser pensada como algo Essa é uma das diferenças essenciais que
perfeitamente transparente, ou ainda, separam o riso festivo popular do riso
puramente satírico da época moderna. O autor
operando de forma unilinear. O autor satírico que apenas emprega o humor negativo,
parte do próprio Marx para mostrar que coloca-se de fora do objeto aludido e opõe-se a
já na “introdução de 1857” está posto ele; isso destrói a integridade do aspecto cômico
que a produção determina o consumo, do mundo, e então o risível (negativo) torna-se
assim como o consumo também um fenômeno particular. Ao contrário, o riso
popular ambivalente expressa uma opinião
determina a produção. Por conseguinte, sobre um mundo em plena evolução no qual
já em Marx não há uma visão estão incluídos os que riem” (BAKHTIN, 1993,
determinista da recepção (consumo) e p. 10-11).

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pois, sempre espaço para contestações consigam moldar a opinião e o
da ordem. sentimento de todas as classes
populares. Gramsci sabiamente nos
A contribuição de Hoggart (1973) é
mostra que as camadas populares da
central nesse aspecto. Para ele, é preciso
filosofia espontânea do senso comum
estar atento a algumas perspectivas que
(ou do bom senso, aquele núcleo sadio
levam o pesquisador a exagerar tanto
do senso comum), embora saibam que
nas qualidades maravilhosas da cultura
sua argumentação reflexiva possa
popular, quanto na sua degradação
parecer frágil, ainda assim possui certa
atual. Existe uma lógica inerente às
sustentação. Certamente, não é possível
classes populares, em contraposição à
se moldar o gosto de todo mundo a
lógica dominante. Essa lógica não pode
partir do domínio direto da indústria
ser interpretada simplesmente como
cultural.
dominação. A mídia e a ideologia
dominante não são as únicas instituições O elemento mais importante,
capazes de criar significações. Há outras indubitavelmente, é de caráter não
instituições que concorrem com ela e racional: é um elemento de fé. Mas,
que resultam em negociações diversas de fé em quem e em quê?
(DALMONTE, 2002). Notadamente no grupo social ao
qual pertence, na medida em que
Hall se aproxima bastante de Gramsci este pensa as coisas também
quando afirma que nunca foi atraído difusamente, como ele: o homem
pela noção de “falsa consciência” em do povo pensa que, no meio de
toda a sua plenitude. “Sempre pensei tantos, ele não pode se equivocar
que existe algo profundamente radicalmente, como o adversário
inquietante e errado nela, inclusive pelo argumentador queria fazer crer; que
fato de que ninguém se confessa em ele próprio, é verdade, não é capaz
de sustentar e desenvolver as suas
falsa consciência: é sempre o outro”
razões como o adversário faz com
(HALL, 2003, p. 358). A idéia de as dele, mas que – em seu grupo –
hegemonia em Hall, portanto, está existe quem poderia fazer isto,
diretamente próxima de Gramsci, certamente ainda melhor do que o
sobretudo porque existe a noção de que referido adversário; e, de fato, ele
algumas mensagens/códigos que se recorda de ter ouvido alguém
pretendem ser hegemônicos não obtêm expor, longa e coerentemente, de
pleno sucesso, ou seja, como estão maneira que ele se convenceu de
envolvidas numa arena de luta pelo sua justeza, as razões de sua fé
consentimento, nem sempre são aceitas. (GRAMSCI, 1989, p. 26).
Em sua avaliação, “ser perfeitamente
Assim, não há como moldar a opinião
hegemônico é fazer com que cada
das pessoas a ponto de unilateralmente
significado que você quer comunicar
prescrever-lhes o que é bom e o que é
seja compreendido pela audiência
ruim no âmbito do consumo cultural.
somente daquela maneira pretendida”
Sem o consentimento ativo do indivíduo
(HALL, 2003, p. 366). Trata-se,
tal prescrição não se faz enérgica. As
utopicamente, de “um tipo de sonho de
pessoas têm um certo “bom senso” na
poder – nenhum chuvisco na tela,
recepção cultural. O problema da
apenas a audiência totalmente passiva”
recepção, do ponto de vista da
(HALL, 2003, p. 366).
unilateralidade e da homogeneidade, é
Deste modo, não é possível que os crer que as mensagens tenham somente
meios de comunicação de massa um significado, e que este, por sua vez,

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seja apreendido somente num sentido de “polemológica”, isto é, uma politização
mão única. Hall (2003, p. 366), então, das práticas cotidianas, sempre
problematiza sobre “uma noção de pensando em táticas, conflitos e tensões
poder e de estruturação no momento de vigentes no consumo. Trampolinagens e
codificação que todavia não [apaga] trapaçarias, ou seja, “astúcia e
todos os outros possíveis sentidos”. As esperteza no modo de utilizar ou de
mensagens hegemônicas pretendem que driblar os termos dos contratos sociais”
o sujeito leia o conteúdo de uma (CERTEAU, 1994, p. 79).
determinada maneira; contudo, outras
[...] a cultura articula conflitos e
leituras podem e são feitas. Igualmente,
volta e meia legitima, desloca ou
“uma leitura preferencial nunca é controla a razão do mais forte. Ela
completamente bem-sucedida: é apenas se desenvolve no elemento de
o exercício do poder na tentativa de tensões, e muitas vezes de
hegemonizar a leitura da audiência” violências, a quem fornece
(HALL, 2003, p. 366). equilíbrios simbólicos, contratos de
compatibilidade e compromissos
A cultura massiva não ocupa uma e mais ou menos temporários. As
somente uma posição no sistema de táticas do consumo, engenhosidades
classes sociais, mas [...] no próprio do fraco para tirar partido do forte,
interior dessa cultura coexistem vão desembocar então em uma
produtos heterogêneos, alguns que politização das práticas cotidianas
correspondem à lógica do (CERTEAU, 1994, p. 45).
expediente cultural dominante,
outro que corresponde a demandas ... e prossegue ilustrando essa
simbólicas do espaço cultural polemologia da cultura:
dominado (MARTIN-BARBERO,
2009, p. 312). Cada vez mais coagido e sempre
menos envolvido por esses amplos
Para Escosteguy (1998), os meios de enquadramentos, o indivíduo se
destaca deles sem poder escapar-
comunicação de massa não podem ser
lhes, e só lhe resta a astúcia no
entendidos como simples instrumentos relacionamento com eles, ‘dar
de manipulação das massas e de golpes’, encontrar na megalópole
controle da classe dirigente. Para ela, os eletrotecnicizada e informatizada a
Estudos Culturais compreendem os ‘arte’ dos caçadores ou dos
produtos culturais como agentes de rurícolas antigos (CERTEAU,
reprodução social, de natureza 1994, p. 52).
complexa, dinâmica e ativa na
construção da hegemonia. Não dá para Nestes termos, para Certeau, o enfoque
pensar num público simplesmente como da cultura se inicia quando o homem
receptáculo homogêneo de mensagens. comum, “ordinário”, torna-se o
A cultura é, então, plural. A narrador, definindo o lugar do discurso
contribuição de Michel de Certeau e o espaço de seu desenvolvimento, de
nesse aspecto é basilar, já que percebe sua atuação. Desta forma, a cultura é
uma “resistência ativa” do povo vista como uma arena de luta, como um
mediante as “artes de fazer”, não espaço de luta por significação. A
permitindo a tão sonhada disciplina dominação, portanto, não é algo
padronizadora do poder – o que está unidimensional, mas sim, segundo
muitíssimo rente a Foucault. Em suas Bourdieu, exercida numa rede cruzada:
palavras, para o entendimento da A dominação não é o efeito direto e
cultura, deve-se usar uma análise simples da ação exercida por um

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conjunto de agentes (‘a classe existe sim uma homogeneidade na
dominante’) investidos de poderes preferência, já que podemos detectar um
de coerção, mas o efeito indireto de certo padrão de preferência durante um
um conjunto complexo de ações longo período de tempo, ou seja, “no
que se engendram na rede cruzada
conjunto e após um longo período, você
de limitações que cada um dos
dominantes, dominado assim pela
tenderia a receber mais freqüentemente
estrutura do campo através do qual a mensagem hegemônica”. Contudo,
se exerce a dominação, sofre de trata-se apenas de um padrão, e todo
parte de todos os outros padrão tem suas variantes e desvios.
(BOURDIEU, 1996, p. 52). Hall reconhece que cada momento de
desconstrução é, também, um momento
Mas e os padrões homogêneos de de reconstrução.
recepção atualmente perceptíveis
perante o grande público? Como pensar Retomando as três categorias apontadas
em leituras plurais se são claramente por Hall para a análise das formas de
visíveis determinados padrões recepção, importa realçar que se tratam
dominantes de recepção? de tipos ideais, à maneira weberiana. A
O modelo encoding/decoding, apesar da maioria dos indivíduos nunca está
importância e reconhecimento completamente dentro de uma leitura
acadêmico no âmbito da pesquisa de preferencial ou totalmente a contrapelo
recepção, sofreu ao longo dos anos do texto hegemônico. Sempre nadamos
algumas críticas substanciais. Porto a favor e, também, contra a maré. No
(2003) aponta que a decodificação dizer de Certeau (1994, p. 50), “a leitura
sugere no modelo de Hall um único ato, introduz [...] uma ‘arte’ que não é
em lugar de um conjunto de processos passividade”.
separados, confundindo o eixo Deste modo, lembrando Martin-Barbero
compreensão/incompreensão com o (2009, p. 290), é mister ter um mapa
eixo acordo/desacordo. Além disso, o noturno que sirva para questionar
modelo é limitado para situações em determinadas coisas a partir de
que os próprios meios de comunicação categorias como dominação, trabalho,
de massa, a Televisão, por exemplo, produção, etc., mas também, a partir do
emitem mensagens opostas a ideologia outro lado, ou seja, as brechas, o
dominante. Deve-se perceber a mídia consumo, o prazer: “um mapa que não
também como um espaço contraditório sirva para a fuga, e sim para o
internamente, para além de vê-la apenas reconhecimento da situação a partir das
como espaço de veiculação de mediações dos sujeitos”. É preciso,
mensagens preferenciais. Seguramente, pois, deixar de focalizar simplesmente
Gramsci não nos deixa esquecer que o os meios e focar nas mediações, lembra
pensamento dominante, para melhor Martin-Barbero.
exercer sua hegemonia sobre as classes
populares, “assimila uma parte da Nas palavras de Dalmonte (2002, p. 75),
ideologia proletária” (GRAMSCI, 1978, a proposta dos estudiosos dos Estudos
p. 133). Culturais é a de se “conceber a cultura
Apesar disso, muitos dos limites do na sua contemporaneidade, ou seja,
modelo o próprio Hall os reconhece, o resultando de um processo (tentativa) de
que reforça validá-lo como enérgico dominação e resistência”; contudo,
diante das atuais relações de consumo nunca de total submissão ou total
midiático. Para Hall (2003, p. 368-370) resistência.

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Assim, para Hall (2003), as É preciso ver, portanto, a
leituras negociadas são cultura gramscianamente
provavelmente o que a como um jogo de poder, no
maioria de nós faz no qual a negociação dos
cotidiano. Seguramente, problemas da vida cotidiana
segundo Certeau (1994, p. se realiza dentro de uma
95), há um “distanciamento complexa estrutural social,
mais ou menos grande do que passa por alianças com
uso” que se faz dos produtos grupos diferentes de acordo
da produção cultural com o contexto ou com o
massificada. Cabe, portanto, momento. Não basta, pois,
ao trabalho empírico “dizer, ver as mensagens veiculadas
em relação a um texto pela indústria cultural, nem
particular e a uma parcela Stuart Hall tampouco como são
específica da audiência, quais produzidas. Tem-se que
leituras estão operando” (HALL, 2003, pensá-las em suas significações
p. 371). concretas, seus usos e desusos. Uma
relevante recomendação presente em
Nesse interim, uma análise cultural deve
Michel de Certeau (1994, p. 39) é que
diagnosticar a complexidade e as lutas
se observe, além das mensagens
cotidianas na vida concreta dos sujeitos,
emitidas, também aquilo que “o
encarando a arena cultural como um
consumidor cultural fabrica” durante o
campo de lutas pela hegemonia. Um
seu uso, sua recepção, seu consumo, ou
caminho teórico que não leve em conta
seja, entender as possibilidades de re-
as distinções entre cultura de massa
leituras.
(homogeneizante e rebaixada), cultura
popular (autêntica, resistente) e cultura Using a neo-Gramscian analysis,
erudita (ligada aos conceitos de beleza e popular culture is what men and
verdade) deve se pautar no conceito de women make from their active
cultura como uma experiência vivida no consumption of the texts and
cotidiano. Certamente, na luta cotidiana practices of the culture industries.
por hegemonia existem determinados Youth subcultures are perhaps the
most spectacular example of this
“empréstimos” entre os grupos sociais
process […] Products are
distintos, o que invalida pensar em combined or transformed in ways
culturas autênticas (OLIVEIRA, 1999). not intended by their producers;
Também não devemos nos basear em commodities are rearticulated to
falsas oposições, tais como o alto e o produce ‘oppositional’ meanings.
popular, o urbano ou o rural, o moderno In this way, and through patterns of
ou o tradicional (CANCLINI, 2003). behavior, ways of speaking, taste in
music, etc., youth subcultures
Os estudos culturais britânicos engage in symbolic forms of
apresentam uma abordagem que resistance to both dominant and
nos permite evitar dividir o campo parent cultures (STOREY, 2011, p.
da mídia/cultura/comunicações em 105).
alto e baixo, popular e elite, e nos
possibilita enxergar todas as formas A leitura de Storey resume bem essa
de cultura da mídia e de postura neogramsciana: a cultura
comunicação como dignas de popular é o que os indivíduos fazem de
exame e de crítica (KELLNER, seu consumo cotidiano. Tomando como
2001, p. 53).
exemplo certas culturas juvenis,

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produtos são consumidos de maneira também é verdade que uma sociedade
não prevista pelos produtores; inteira não se reduz a ela. Há
produzem-se significados de oposição; procedimentos populares que jogam
e, fundamentalmente, essas culturas se com os mecanismos da disciplina e não
envolvem em formas simbólicas de se conformam com ela a não ser para
resistência às culturas dominantes. Tal alterá-los, isto é, “maneiras de fazer”
leitura demonstra que determinadas que formam a contrapartida do lado dos
modalidades de consumo de produtos consumidores. Astúcias de
massificados podem ser efetivadas consumidores que formam uma espécie
devido a circunstâncias muito de rede de antidisciplina. Seguramente,
particulares da vida cotidiana, algo bem como destaca Williams, “inércia e
além da simples cooptação pela apatia foram empregadas pelos
indústria cultural. governados como armas razoavelmente
seguras contra seus governantes”
Reforçando com Dalmonte (2002), o (WILLIAMS, 1969, p. 325).
que é feito nas camadas populares
muitas vezes pode revelar traços de uma John Fiske (1989) reafirma essa
cultura entendida como forma de capacidade popular de resistência e
encarar a realidade e se portar nela. São evasão. Para ele, a cultura popular é um
culturas que, mesmo na adversidade, lugar de lutas que, embora aceitando o
revelam-se em auto-estima (referência poder das insidiosas forças dominantes,
direta a Richard Hoggart). Neste consegue resistir e evadir – com
sentido, não se pode falar na corrupção criatividade e vitalidade – das
de indivíduos fracos pela indústria ideologias dominantes e seus valores.
cultural, pois os produtos consumidos Encontrando vigor e vitalidade nas
atendem a alguma lógica por parte de pessoas, Fiske evita, portanto, ver a
quem consome. cultura popular essencialmente fora ou
essencialmente sufocada por modelos
A recepção dos produtos de poder.
seriais/estandardizados/racionalizados
se dá mediante um jogo desigual de Recently, however, a third direction
forças, pois a indústria cultural e seus has begun to emerge, one to which I
hope this book will contribute. It,
mecanismos publicitários são
too, sees popular culture as a site of
poderosos; contudo, não tem efeitos struggle, but, while accepting the
unilaterais. Segundo Schulman (2000, power of the forces of dominance, it
p. 215-216), pensando a virada focuses rather upon the popular
gramsciana que o Centro de Birmigham tactics by which these forces are
(CCCS) tomou desde os anos 80, é coped with, are evaded or are
preciso ver que os “grupos resisted. Instead of tracing
subordinados tanto se submetem quanto exclusively the processes of
resistem às visões da classe dominante”. incorporation, it investigates rather
Não há apenas a dominação estrutural. that popular vitality and creativity
Existem resistências, re-apropriações e that makes incorporation such a
constant necessity. Instead of
re-significações, ou seja, nas palavras
concentrating on the omnipresent,
de Certeau (1994 p. 41), “artes de insidious practices of the dominant
fazer” que operam nas brechas da ideology, it attempts to understand
ordem oficial. Para Certeau, mesmo the everyday resistances and
sendo verdade que por toda a parte se evasions that make that ideology
estenda uma rede de “vigilância”, work so hard and insistently to

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maintain itself and its values. This CERTEAU, Michel de. A invenção do
approach sees popular culture as cotidiano: artes de fazer. Tradução de Ephraim
potentially, and often actually, Ferreira Alves. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
progressive (though not radical), 1994.
and it is essentially optimistic, for it DALMONTE, Edson Fernando. Estudos
finds in the vigor and vitality of the culturais em comunicação: da tradição britânica
people evidence both of the à contribuição latino-americana. Idade Mídia,
possibility of social change and of São Paulo, ano 1, n. 2, p. 67-90, nov. 2002.
the motivation to drive it (FISKE, ESCOSTEGUY, Ana Carolina D. Uma
1989, p. 20-21). introdução aos estudos culturais. Revista
Famecos, Porto Alegre, n. 9, p. 87-97, dez.
Nesse sentido, a recepção não pode ser 1998.
pensada de maneira inerte. É preciso,
FISKE, John. Understanding popular culture.
pois, retomar a eficácia do conceito London; New York: Routledge, 1989.
crítico de indústria cultural, todavia,
GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da
sem anular – em substância – os história. Tradução de Carlos Nelson Coutinho.
sujeitos. Nessa possibilidade de virada, 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
a obra de Stuart Hall e seu modelo 1989.
“encoding and decoding” (codificação e ________. Literatura e vida nacional.
decodificação) é um instrumento Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 2. ed. Rio
bastante prático de como pensar de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
operacionalmente as distintas formas de GUEDES, Olga Maria Ribeiro. O conceito
recepção dos meios de comunicação de marxista de ideologia nos estudos de mídia
massa, já que reconhece uma sutileza britânicos. Revista Famecos, Porto Alegre, n. 5,
basal no estudo do consumo cultural: o p. 35-43, nov. 1996.
que é produzido não necessariamente é HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-
interpretado da forma pretendida pelos modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da
codificadores. Nas palavras de Johnson Silva e Guacira Lopes Louro. 10. Ed. Rio de
Janeiro: DP&A Editora, 2005.
(2000, p. 64): “o texto tal-como-
produzido é um objeto diferente do ________. Da diáspora: identidades e
texto tal-como-lido”. Por conseguinte, mediações culturais. Tradução de Adelaide La
Guardia Resende et al. Belo Horizonte, MG:
há muito mais sutilezas na UFMG; Brasília: Representação da UNESCO
complexidade da recepção (consumo no Brasil, 2003.
cultural) do que o imaginado por alguns HOGGART, Richard. As utilizações da
dissenters da cultura de massa. cultura: aspectos da vida da classe
trabalhadora, com especiais referenciais a
publicações e divertimentos. Tradução de Maria
Referências do Carmo Cary. Lisboa: Editorial Presença,
1973 (2 volumes).
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na
Idade Média e no Renascimento: o contexto JOHNSON, Richard. O que é, afinal, Estudos
de François Rabelais. Tradução de Yara Culturais? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.).
Frateschi. 2. ed. São Paulo: HUCITEC; Brasília: O que é, afinal, Estudos Culturais? Tradução
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