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A NOÇÃO DE FATO PSÍQUICO

ROBERT BLANCHÉ

Capítulo III - O Pensamento

1. O pensamento reflexivo

As operações intelectuais podem ser tratadas como eventos ligados entre si e aos outros
eventos do universo por leis naturais? A sorte da Psicologia, concebida como uma Física do
espírito, depende da resposta a esta questão. Aceitar a negativa, não é apenas dar à Psicologia
limites estreitos, excluindo de seu domínio uma parte importantíssima do psiquismo. Se é
verdadeiro, como logo esperamos mostrar, que a vontade e o sentimento não podem ser
entendidos sem referência à atividade intelectual, todo o objeto da Psicologia escapará à
“Física” do espírito se apenas lhe escapam as operações da inteligência. É por isso que uma
das teses principais do realismo psicológico é a assimilação do juízo, operação intelectual
fundamental, a um fenômeno natural. Um juízo não é, com efeito, suscetível de ser explicado,
como qualquer fenômeno, por fenômenos antecedentes ou concomitantes? Ele não é algo de
arbitrário, surgindo de um golpe, subitamente, sem que haja para isso uma razão. Ele é
acarretado por percepções, por juízos anteriores, por desejos, paixões, de modo que, estes
sendo o que são, o juízo atual não pode não ser, e não ser exatamente como é. Deve, então,
haver leis naturais segundo as quais todo juízo é necessariamente ligado a seus antecedentes
psíquicos, e, por conseguinte, a ciência que busca estabelecê-las, é perfeitamente legítima. Tal
é a tese da Psicologia clássica.
Ora, é verdade que um juízo é explicável, que ele nada tem de arbitrário. Mas, passar daí
à afirmação de que ele é inevitavelmente decorrente de certos antecedentes psíquicos, segundo
uma necessidade natural, é ser vítima de uma confusão de linguagem, porque é identificar
duas formas radicalmente diferentes de necessidade. É preciso lembrar aqui a distinção entre a
necessidade natural e a necessidade lógica, uma vez que o psicólogo faz como se a ignorasse,
ou pelo menos como se a estimasse sem fundamento. Dizemos que uma demonstração
acarreta necessariamente certa conclusão; e dizemos, do mesmo modo, que o movimento de
uma bola de bilhar acarreta necessariamente o movimento de uma outra com a qual ela se
choca. Mas a conclusão não é, de maneira nenhuma, acarretada do mesmo modo que o
movimento da bola que recebeu o choque; e a necessidade da qual falamos no primeiro caso
não pode ser reduzida à de que falamos no segundo. No caso de um juízo, necessariamente
quer dizer normalmente; no caso de um fenômeno físico, quer dizer inevitavelmente. Dizer
que certa conclusão é acarretada necessariamente por outros juízos, significa que esse juízo é
uma sequência legítima dos primeiros, e não que ele lhes sucederá de fato, no sentido de uma
consecução temporal de eventos. Não se trata, então, aí, de uma necessidade natural, como
aquela em virtude da qual o movimento da bola que recebeu o choque é acarretado
inelutavelmente pelo choque. Enquanto que um evento é dito necessário quando ele não pode
não ocorrer se tais outros eventos ocorrem, um juízo é dito necessário quando ele não pode
não ser verdadeiro se tais outros juízos são verdadeiros. Enfim, a relação que liga entre si
vários juízos é uma relação de princípio a consequência, não é de modo nenhum uma relação
de causa a efeito. Que um juízo não seja arbitrário, não significa, então, que ele seja
determinado segundo uma necessidade natural, mas, ao contrário, que ele é acarretado pela
necessidade lógica. E a possibilidade, para o pensamento, de seguir a necessidade lógica, é
justamente o que constitui a liberdade do espírito. Os partidários, declarados ou dissimulados,
do determinismo psicológico, imaginam sempre que seus adversários defendem não sei que
liberdade de indiferença, segundo a qual o espírito poderia arbitrariamente, num momento
dado, julgar isso ou bem o contrário disso. Mas a liberdade do juízo não consiste na
indiferença e no capricho. Consiste no poder de não ceder senão à ligação lógica, e de resistir
vitoriosamente a não importa que força natural, tanto ao que se chama as forças morais, como
o constrangimento da opinião pública ou o interesse que apresenta para nós tal verdade,
quanto às forças propriamente físicas; ela se manifesta nisto que não há procedimento
mecânico capaz de levar o espírito a julgar uma coisa antes que outra, e nisto que o meio mais
seguro para modificar uma opinião é o uso do raciocínio. As operações do pensamento são
livres, pois nenhuma necessidade natural as comanda, mas nada tem de arbitrário, a
necessidade lógica as guia. Nenhum juízo pode, então, ser integrado ao determinismo dos
eventos, uma vez que todo juízo, mesmo se logicamente necessário, escapa à necessidade
natural.
Mas, isto não é tudo. Não encaramos ainda senão o caso mais simples, aquele em que
um juízo é extraído, como consequência, de certos princípios já postos. Quando as duas
premissas de um silogismo são dadas previamente, quando a demonstração de um teorema
está feita, a liberdade de julgar reduz-se, então, ao mínimo. Certamente, é preciso já um
esforço de pensamento para apreender a relação entre as duas premissas ou para compreender
a demonstração. Mas, se a relação é apreendida, se a demonstração é compreendida, não há
lugar, doravante, senão para uma única conclusão. Se tal conclusão é totalmente independente
da necessidade natural, pelo menos é necessária logicamente, duma necessidade que exclui
qualquer escolha. Mas, em muitos casos, a coisa é bem diferente. Certos juízos sendo postos,
o espírito pode afirmar, a partir deles, vários outros novos juízos, diferentes uns dos outros,
todos, entretanto, legítimos. É o que acontece sempre que o espírito procede por análise.
Quando, partindo de certos juízos, se trata, não mais de achar que juízos eles condicionam,
mas, ao contrário, de buscar que juízo ou sistema de juízos pode ser considerado como a
condição, há lugar, logicamente, para um número indefinido de soluções. Se se põe que
nenhum inquieto é feliz e que todo avarento é inquieto, não se pode legitimamente extrair
outra conclusão que não a afirmação: nenhum avarento é feliz. Mas, se se põe primeiro que
nenhum avarento é feliz e se pede a justificativa deste juízo, não basta mais, para resolver o
problema, deixar-se guiar pela necessidade lógica, esperando que ela leve a uma solução
determinada, pois há uma multidão de justificações válidas, seu número não tendo outros
limites que não os da engenhosidade do pesquisador. Manifesta-se, aqui, o poder de invenção
do espírito: ele é livre, não somente nisto que ele não sofre constrangimento físico, mas
também nisto que, no interior dos limites que lhe traça a lógica, ele é capaz de criações
imprevisíveis. Estas criações não serão equivalentes para a razão, uma vez que umas darão ao
problema uma solução mais simples ou mais direta que as outras; mas serão equivalentes do
ponto de vista da pura lógica, uma vez que um raciocínio longo e complicado, desde que seja
rigoroso, possui o mesmo valor demonstrativo que um raciocínio curto e simples. Ora, uma
atividade desse gênero está longe de ser excepcional. Todos os problemas técnicos, todos os
que põem cada homem no exercício de seu ofício, comportam estas operações analíticas, já
que consistem em buscar os meios capazes de levar a certos fins, isto é, em remontar do
resultado almejado às condições suscetíveis de levar a ele: como obter uma clientela
numerosa, como construir tal casa, como curar este doente, como conseguir uma abundante
colheita. Nenhum desses problemas comporta uma solução única, de maneira que se possa,
conhecendo exatamente as circunstâncias, prevê-la com certeza. Peça a vinte engenheiros o
projeto de uma máquina para um uso determinado e tudo de que você poderá estar seguro é
que vinte projetos diferentes lhe serão apresentados. E se você consegue prever com bastante
exatidão, não, certamente, o detalhe dos projetos, mas, pelo menos, suas grandes linhas
comuns, não foi seguindo no espírito de seus engenheiros não sei que mecanismo psicológico
pelo qual se fabricaria neles a invenção da máquina; é que você mesmo, engenheiro ocasional,
buscou resolver por seus próprios meios o problema que você lhes tinha posto. Mas esta
contingência dos juízos não é limitada à solução dos problemas técnicos; ela se estende por
toda parte onde o espírito procede por análise; ela se encontra então no enunciado das leis
naturais, planando, assim, sobre o conjunto das ciências da natureza. Os que pretendem
descobrir as leis do funcionamento do espírito imaginam que há leis da natureza,
perfeitamente definidas e em número bem determinado, e que para descobri-las, basta ao
cientista saber lê-las uma a uma na experiência graças a engenhosos métodos. Ora, as leis não
são de modo algum estabelecidas previamente, de modo que reste apenas descobri-las; é
preciso fazê-las, inventá-las, e nesta invenção da ciência se manifesta o poder criador do
espírito. O cientista, em presença dos fatos que ele deve explicar, acha-se numa situação
comparável à do homem a quem se pede que formule premissas capazes de justificar um
juízo. Todo vigor de uma inteligência preocupada com evitar a menor falta de ordem lógica é
aqui impotente para achar uma resposta que se imponha, pois há uma infinidade de respostas
possíveis. Em particular, quando o sistema das leis físicas está já parcialmente constituído, a
liberdade criadora do espírito se acha reduzida na mesma proporção, uma vez que é preciso
velar para que o novo princípio não esteja em desacordo com os já estabelecidos. Ocorre ainda
que esta restrição pode sempre ser levantada, desde que se tome cuidado de modificar os
antigos princípios para pô-los de acordo com o que se quer introduzir. Arriscar-se-ia muito,
seguramente, de chegar assim a uma física extremamente complicada, mas ela permaneceria
tão verdadeira quanto a outra, permitindo a previsão dos fenômenos e as aplicações técnicas
tão seguramente quanto ela, senão tão facilmente. É mesmo pela invenção de paradoxos desse
gênero que por vezes a face da ciência é mudada, e que, em lugar de uma complicação nova,
uma simplificação admirável se acha introduzida no sistema das leis naturais: simplificação
imprevisível, jamais se teria produzido se tal gênio não a tivesse inventado, ou que seria feita
de um modo muito diferente e que não se pode imaginar a menos que se seja o gênio criador e
que se invente efetivamente. Todo nosso sistema físico é, então, radicalmente contingente.
Uma infinidade de outros teria sido possível, muitos dos quais, sem dúvida, seriam menos
satisfatórios que o nosso, mas dos quais não é permitido afirmar que nenhum satisfaria mais.
A ciência não está inscrita na natureza como um livro, e o cientista não é como o escolar de
quem se exige que saiba lê-lo. A construção da ciência é um jorrar de imprevisíveis criações.
Essas criações são livres, não somente porque nenhuma necessidade natural as determina, mas
porque a própria necessidade lógica não permite, partindo de um estado dado da ciência,
deduzir seu desenvolvimento futuro. Enfim, enquanto que, na síntese dedutiva, a liberdade do
espírito se manifesta apenas pela obediência à necessidade lógica, em toda operação analítica,
esta liberdade comporta, mesmo quanto à lógica, a mais larga indeterminação.
Mas, isto não é tudo. Mesmo na dedução se encontra a espontaneidade criadora do
espírito. Poder-se-ia desde logo notar que um bom número dos princípios dos quais dependem
as deduções resultam de análises prévias, são fruto de um trabalho de criação original do
pensamento. Donde resulta que a necessidade lógica jamais constrange absolutamente o
espírito, mesmo quando ele segue a ordem sintética. Com efeito, ela não obriga a aceitar uma
conclusão senão com a condição de que ele aceite os princípios: ora, há certos princípios que é
sempre permitido contestar, porque é sempre teoricamente possível achar outros que
preencham também rigorosamente, ainda que talvez com menos simplicidade, o mesmo papel.
Mas, sem insistir mais sobre esta nota, e não considerando senão o próprio trabalho da
dedução, sem se preocupar com a maneira pela qual são achados os princípios, nem com as
razões que se têm para admiti-los, pode-se mostrar que esse trabalho não exclui toda
contingência. Certamente, uma vez postos e compreendidos os princípios, não resta mais
nenhum esforço de invenção a fazer para tirar a conclusão. Não é aí então que se deve buscar
a atividade do pensamento que deduz. Justamente porque a conclusão é comandada pelos
princípios, o espírito nada mais tem a fazer senão que se deixar levar, de algum modo, pela
necessidade lógica. Ainda será preciso que os princípios tenham sido postos, e postos juntos.
Se se deixa de lado o caso em que o espírito se limita a seguir um raciocínio dedutivo já feito,
o trabalho da dedução consiste precisamente em aproximar os princípios suscetíveis de levar a
uma conclusão. Ora, essa aproximação é ainda uma livre criação do espírito, contingente tanto
em relação à necessidade lógica quanto em relação à necessidade natural. Quem não poderia
citar verdades que conheceu isoladamente durante muito tempo antes que sonhasse em
relacioná-las e extrair daí uma conclusão inesperada. A história da ciência, e principalmente a
da matemática, forneceria, à vontade, exemplos análogos; se tal matemático não tivesse
existido, tal teorema jamais teria sido enunciado, e, entretanto, ele resulta necessariamente de
teoremas já conhecidos, mas era preciso que alguém se desse conta disso. A direção segundo a
qual progredirá a cadeia das consequências a partir de um sistema complexo de princípios é
contingente, e tanto mais quanto mais complexo é o sistema. A impossibilidade de prever
como se desenvolverá uma sequência de raciocínios é então encontrada mesmo no caso em
que esses raciocínios são dedutivos. Sendo dado um sistema complexo de princípios, pode-se,
quando muito, obter uma previsão grosseira do desenrolar das consequências; e o meio de
obtê-lo não é pedir a uma física mental que nos dê as leis segundo as quais calcularemos esse
desenrolar; é de desenrolarmos nós mesmos as consequências, raciocinando como o faria,
segundo a natureza dos princípios postos, um matemático, um físico, um engenheiro, um
advogado.
É, então, vão buscar as leis naturais que regeriam o curso do pensamento. O curso do
pensamento é livre, e duas vezes livre. Primeiro, nisto que ele é liberado da necessidade
natural, e não sofre outro constrangimento que o da necessidade lógica, de sorte que ele não
obedece a leis mas a regras. Em seguida, nisto que essas regras deixam lugar à contingência, à
possibilidade de sequências diferentes de juízos. É por isso que o conhecimento o mais
detalhado das circunstâncias nas quais eclodiu uma obra de arte, uma invenção técnica, uma
idéia moral ou um conceito científico, se é útil para compreender sua gênese, jamais poderá
dar delas senão uma explicação insuficiente, e mesmo duplamente insuficiente. Primeiro,
porque os fatos invocados como causa não exercem sobre o espírito verdadeira causalidade, o
espírito sendo subtraído à causalidade natural. Em seguida porque, no próprio interior do
espírito, a submissão à necessidade lógica deixa ainda campo livre a uma multidão indefinida
de possíveis. Sem dúvida, as operações do espírito não comportam o arbitrário: os
pensamentos novos dependem sempre dos antigos, de maneira que se pode sempre, mas só
depois, a eles vinculá-los. Mas, dependem como uma solução depende um problema, não
como o estado de um sistema mecânico depende do anterior. Ora, frequentemente, um
problema complexo comporta várias soluções, ou pelo menos, várias maneiras de chegar a
uma mesma solução, igualmente válidas do ponto de vista lógico. Nesse caso, encontrar o
enunciado do problema permitirá explicar uma das soluções; mas o mesmo enunciado
explicaria igualmente bem, quer dizer, igualmente mal, uma das outras soluções. Eis porque a
previsão do porvir é, nas obras do espírito, impossível. Não se pode prever senão depois de
realizadas, e, de algum modo, a contrapelo, remontando do que é a prever, ou mais
exatamente, a explicar, a certas idéias ou circunstâncias antecedentes, de maneira que, entre
sua infinidade, a escolha das idéias ou das circunstâncias interessantes seja precisamente
ditada pelo conhecimento do que se quer explicar. Ou então, se a previsão pretende se exercer
verdadeiramente sobre o porvir, ela só tem chances de sucesso se quem quer prever realiza ele
próprio o trabalho intelectual cujo resultado quer antecipar: o que é justamente transformar o
porvir em presente, e substituir a previsão pela realização. Mas seria vão buscar prever o curso
futuro de um pensamento, e, por exemplo, as obras que farão um matemático ou um filósofo,
pela constituição de uma física do espírito. A atividade intelectual resta irredutível ao
determinismo da natureza.
Esforçando-se por reduzir a dependência lógica à dependência natural, as operações do
espírito aos fenômenos do universo, o realismo não empreende apenas uma tentativa
quimérica, empreende uma tentativa absurda. Querendo fazer penetrar a necessidade das
coisas no espírito, reverte-se a ordem verdadeira. Bem longe de estender-se até o pensamento,
a necessidade natural supõe como condições a liberdade criadora do espírito e a necessidade
lógica.
A atitude do realismo psicológico, consistindo em considerar as operações intelectuais
como fatos determinados por outros fatos segundo uma necessidade natural, implica a idéia de
que essa necessidade existe por si na natureza, impondo aos fenômenos, como uma legislação
inviolável, o rigor de uma ordem preestabelecida. Ora, a natureza não é submetida a uma
necessidade desse gênero. Não há nenhuma necessidade nas próprias coisas. A experiência
não ofereceria, a um espírito que se supusesse contemplá-la passivamente, mais que um
turbilhão de imagens incoerentes sem qualquer laço entre si. Cada imagem dada é dada:
impõem-se por si mesma, mas nada impõe além de si mesma. “Qualquer uma pode seguir
qualquer outra”. Enfim, a categoria que se aplica à coisa é a da realidade, não a da
necessidade. Mas o espírito, em presença do caos das imagens, tenta ordená-lo segundo suas
exigências próprias, tenta transformar esta poeira de experiências em uma experiência
organizada: é isto a obra da ciência, esboçada no trabalho da percepção. Em que consiste esta
obra? O espírito nada pode compreender se não o deduz, segundo a necessidade lógica, de
princípios admitidos como verdadeiros. Será preciso então, para explicar a presença de uma
imagem, considerar a imagem dada, ou, mais exatamente, a afirmação de que esta imagem é
dada, como uma consequência da qual trata-se de achar as premissas. Estas premissas se
repartirão em dois grupos, segundo esse esquema de raciocínio que é o silogismo. As
primeiras, desempenhando o papel da maior, afirmarão as leis universais segundo as quais
certas imagens são ligadas a outras. As segundas, desempenhando o papel da menor,
enunciarão o estado das imagens antecedentes ou concomitantes. Compreender um fato é
então compreender um juízo que põe a realidade do fato; e esse juízo só é compreendido, se se
vê que ele resulta, a título de consequência, de certos outros juízos. A necessidade natural,
segundo a qual um fato nos parece inevitavelmente acarretado por outros, resulta assim duma
aplicação ao dado da necessidade lógica. A afirmação do determinismo dos fenômenos reduz-
se à afirmação de que toda asserção verdadeira incidindo sobre um fato decorre, a título de
consequência, em virtude da necessidade lógica, de asserções verdadeiras incidindo sobre
outros fatos, e da enunciação de leis; ou, mais brevemente, ela se reduz à afirmação da
dedutibilidade perfeita do real 1.
É verdadeiro que as leis que tornam possível essa dedução consistem, por sua vez, na
enunciação de relações necessárias entre as imagens; de sorte que pode parecer que, ao lado da
relação lógica de princípio a consequência que liga os juízos, haja lugar para outras relações
necessárias que liguem as imagens umas às outras, e que assim se encontra na própria
natureza uma necessidade distinta da necessidade lógica. Somente, essas relações não são
incluídas na experiência. Entre os fatos tais como eles se apresentam não há relações, pois
uma relação não pode ser dada, mas apenas concebida. A observação dos fatos não dá nada
mais que o conhecimento dos fatos observados e não permite afirmar a menor relação entre os
fatos. O cientista não tem que descobrir na experiência leis naturais que aí estariam já inscritas
e que seria necessário apenas distinguir e desembaraçar. Sua obra consiste em fabricar um
sistema de proposições universais tais que permitam deduzir, do conhecimento de certos fatos
o conhecimento de alguns outros, e por isso mesmo, compreender estes últimos. Ora, há
sempre vários sistemas, e mesmo, teoricamente, uma infinidade, respondendo a esta condição.
O estabelecimento das relações pelas quais as imagens se prestam a ser reunidas umas às
outras é, então, o resultado de livres criações do espírito. Estas relações são tão pouco
inscritas na natureza, que a afirmação de uma delas não é, por si só, nem verdadeira nem falsa:
tudo depende do sistema de definições, de princípios e de outras leis no qual elas sejam
incluídas. Sem dúvida, o espírito não é livre para afirmar indiferentemente qualquer relação.
Destinada a um uso determinado, a criação das leis da natureza é, por isso mesmo, sujeita a
certas condições. Estas leis devem ser tais que permitam tirar do conhecimento de certos fatos
o conhecimento de outros, e que formem também entre si um sistema tão coerente e tão
simples quanto possível. Mas, é este um problema de tão grande complexidade que ele
comporta muitas soluções, cada uma das quais não pode ser encontrada a não ser se é

1
Será necessário sublinhar que se trata aqui de uma dedutibilidade de direito, e não de fato? A afirmação do
determinismo, no sentido em que a entendemos, é da ordem da razão “constituinte”, e esta exigência do
pensamento deve ser distinguida da concepção positiva que permite se fazer do determinismo o estado da ciência
do momento dado de seu desenvolvimento. É por isso que nós não tínhamos que levar em conta o
“indeterminismo” da nova física. Nós não temos, com efeito, que nos ocupar das dificuldades com as quais o
espírito se choca em seu esforço para entender o universo. O essencial é que ele não se deixa intimidar por elas, e
que ele põe em princípio que jamais qualquer uma delas deve ser declarada inultrapassável. Se o estado atual da
microfísica obriga modificar alguma coisa em nossa idéia habitual do determinismo da natureza, poderemos falar
nesse sentido numa crise do determinismo, que será ao mesmo tempo uma crise do pensamento “constituído”.
Mas é claro que nada pode nos obrigar a renunciar a uma exigência tão geral e tão formal quanto a da
inteligibilidade do real.
verdadeiramente inventada pela atividade criadora do pensamento. As relações entre as
imagens, enunciadas pelas leis da natureza, não se acham então de modo nenhum na natureza,
mas são estabelecidas penosamente pelo espírito, que só pode compreender alguma coisa
ligando-a, a título de consequência, a princípios admitidos, e que se esforça, a fim de tornar o
dado inteligível, por conceber proposições universais que lhe possam servir de princípios para
deduzi-los.
A afirmação da necessidade natural em virtude da qual os fenômenos se determinam uns
aos outros, decompõem-se, então, na afirmação de duas espécies de relações, nenhuma das
quais existe na natureza, todas as duas supondo um espírito livre da necessidade natural. De
uma parte, é afirmar que a relação lógica de princípio a consequência é universalmente
aplicável, que nada é em princípio ininteligível, que a totalidade do dado se presta a entrar
num vasto sistema dedutivo; é, em outros termos, afirmar o valor ilimitado e incondicional da
necessidade lógica. Assim, bem longe de acarretar, como queria o realismo psicológico, a
exclusão ou pelo menos a redução da necessidade lógica, a afirmação da necessidade natural
consiste em estender a necessidade lógica ao conjunto do universo. Não há razão, então, para
invocar o determinismo da natureza como prova de que o curso do pensamento é regido por
leis naturais; pois, afirmar o determinismo, é precisamente afirmar que o pensamento não
pode aplicar-se à natureza a não ser submetendo-a à necessidade lógica. Mas, a afirmação da
dedutibilidade perfeita do real implica, por sua vez, a afirmação de que é possível formular
proposições universais suscetíveis de servir de princípios a esta dedução, isto é, leis que
enunciem relações entre os diferentes aspectos do dado. Ora, esta segunda espécie de relações,
tal como a primeira, não pode ser constatada na experiência. Constata-se que uma imagem é
dada, depois outra; mas, o laço que acarretaria a segunda após a primeira escapa a toda
observação. Desde há muito mostrou-se quão ilusória é a imaginação vulgar da causalidade,
segundo a qual os eventos se produziriam uns aos outros à maneira da geração dos seres
vivos, e, entretanto, quando pretende introduzir no espírito o determinismo da natureza, o
realismo continua a raciocinar como se os fenômenos possuíssem, independentemente de toda
afirmação do espírito, uma virtude criadora pela qual eles engendrariam os seguintes. Em
realidade, se é permitido conservar, em razão de sua comodidade, o uso da palavra causa,
deve-se reduzi-la a significar o conjunto das condições de que fazemos depender a aparição de
um fenômeno: a lei sendo escolhida precisamente de maneira a tornar possível o
estabelecimento desta dependência. As relações que enunciam as leis da natureza, relações
cuja possibilidade é implicitamente afirmada na exigência do pensamento de que a natureza
seja inteligível, são obra do pensamento aplicando-se a constituir esta inteligibilidade. Em
outros termos, quando se pergunta se há, entre os elementos da realidade, relações necessárias,
a resposta não pode parecer duvidosa senão devido ao equívoco ao qual se presta a noção de
realidade. Se se fala da experiência bruta, do real tal qual é dado ao pensamento, é claro que
ele não pode conter relações necessárias, nem mesmo, mais geralmente, nenhuma espécie de
relação, uma vez que uma relação é inseparável de um espírito que a afirme. Se é questão, ao
contrário, da experiência objetiva, do real tal qual é construído pelo pensamento, então, sem
dúvida, é verdadeiro que ele comporta, entre seus elementos, relações necessárias, uma vez
que é precisamente o estabelecimento dessas relações que transforma a experiência bruta
numa experiência objetiva; mas, essas leis naturais, longe de sujeitar o pensamento, trazem ao
contrário, o mais fulgurante testemunho de seu poder, uma vez que são obra sua.
Pouco importa então que se possa conceber, como o implica o projeto de uma “Física”
da inteligência, que uma necessidade natural, constituída independentemente do pensamento,
penetre até mesmo no espírito para reger suas operações, ou que, pelo contrário, a necessidade
natural suponha, ela própria, como condições, a relação lógica de princípio a consequência e a
liberdade espiritual criadora das leis físicas. A possibilidade de uma ciência do real, da qual a
Psicologia clássica tirava argumento para provar a possibilidade de uma ciência natural do
espírito, implica, pelo contrário, a impossibilidade de uma tal ciência, uma vez que uma
ciência, qualquer que ela seja, é obra de um espírito livre da necessidade natural e criador
desta mesma necessidade.
Assim, não devemos nos espantar se a extensão das concepções realistas às operações
intelectuais, reduzindo-as a fenômenos naturais, acarreta uma absurdidade manifesta.
Tentemos, com efeito, tratar os atos intelectuais como simples fatos, análogos aos fatos
físicos, e obedecendo, como eles, a leis naturais. É já bem surpreendente que a necessidade
cega que determina a sequência desses eventos tenha justamente levado, por um acaso que se
diria prodigioso, a produzir alguns que sejam precisamente tais que contenham a explicação
de todos, a sua própria explicação inclusive. Que concurso admirável de circunstâncias não foi
necessário para que, em um momento dado da história do universo, ocorresse essa série de
eventos que é a concepção do realismo psicológico, com a afirmação que ela comporta do
determinismo mental? E que probabilidade havia para que entre a infinidade de juízos
possíveis, o simples jogo das leis naturais indiferentes à verdade, tenha feito surgir juízos
sistematicamente ordenados, e, entre a infinidade dos sistemas possíveis de juízo,
precisamente o único verdadeiro sistema? Se fosse verdadeiro que os atos intelectuais não são
eventos entre outros, seria extremamente pequena a probabilidade para que tenha podido
produzir-se um dia este evento que seria a própria afirmação de que os atos intelectuais são
eventos. Mas não insistamos neste argumento. Sempre se poderia responder que uma
probabilidade mínima não equivale a uma probabilidade nula. É preferível ir direto à
dificuldade essencial. Um evento não é verdadeiro nem falso. Tudo o que se pode dizer dele é
que é real ou não. Se, então, nossos juízos são apenas eventos, não há mais verdade nem erro.
Juízos incompatíveis são igualmente reais, uns e outros existindo tal como existem rosas
brancas e rosas vermelhas, sem que se possa atribuir um valor superior a uns ou aos outros.
Uma vez que são reputados depender de juízos anteriores e concomitantes, segundo a
estrutura psicofisiológica de cada indivíduo, e mesmo segundo a da humanidade em geral,
todos os juízos, cujo conjunto constitui nossa ciência, nada têm que os ponha acima dos que
teria formulado uma espécie de seres pensantes cuja constituição nervosa e mental fosse
inteiramente diferente da nossa. A menos que se creia que uma Providência expressamente
organizou o universo para permitir a aparição final de um animal pensante dotado de uma
organização exatamente apropriada à descoberta da verdade, e não de uma outra, dever-se-á,
na hipótese realista, negar todo valor de verdade a esta sequência acidental de eventos que é a
formulação das regras de nossa Lógica, ou ao encadeamento dos teoremas de nossa
Geometria. Enfim, admitindo que os atos intelectuais sejam fatos, chega-se naturalmente a
esta conclusão: não há verdadeiro nem falso; e esta conclusão não pode ser afirmada sem
absurdidade, uma vez que afirmá-la seria tê-la por verdadeira. Poderia ser dito ainda, para
melhor fazer aparecer esta absurdidade: se a tese do determinismo psicológico é verdadeira,
ela não é verdadeira, uma vez que resulta da própria tese que não há verdadeiro nem falso.
Aqui, um psicólogo não deixaria de invocar a distinção tradicional entre o ponto de vista
lógico e o ponto de vista psicológico. Deixando ao lógico o cuidado de estudar em que
condições as operações intelectuais são válidas, ele se limitaria, por sua parte, a considerar
essas relações como fatos que se trata de explicar ligando-os por leis a outros fatos, sem se
cuidar de estabelecer entre eles uma diferença de valor, mas sem negar que haja uma, nem
contestar à Lógica a legitimidade das regras que ela formula. Assim como o químico não
pretende que não haja diferença de nocividade entre o açúcar e o vitríolo, sob pretexto que
eles são igualmente naturais, o psicólogo não pensaria, apesar de encarar os juízos como
fenômenos dados, em abolir a distinção entre os juízos verdadeiros e os juízos falsos. Enfim,
haveria duas maneiras, igualmente legítimas, de tratar de operações da inteligência; o modo
explicativo e o modo normativo, longe de se excluírem, se completariam. Consideremos uma
obra espiritual como a Crítica da Razão Pura. O lógico pode tomá-la como objeto de estudo.
Ele pesquisará como os pensamentos aí se encadeiam uns aos outros, se aplicará a descobrir
os paralogismos, a distinguir o que está provado e o que é apenas avançado, a remontar aos
princípios implícita ou explicitamente admitidos. Este exame comportará, a cada instante,
juízos sobre o valor de tal ou qual parte da obra.
Mas, é possível adotar também, em relação à obra, uma outra atitude, a do psicólogo.
Considerando-a, agora, como um dado, todas as partes do qual, porque igualmente dadas,
apresentando um interesse igual, o psicólogo se proporá a explicá-la, investigará como os
pensamentos que a compõem, verdadeiros ou falsos, claros ou confusos, provados ou não, se
formaram; recolherá, com este alvo, tudo o que puder saber da vida mental de Kant; sua
educação, sua experiência da vida, suas leituras, suas obras anteriores, suas notas, sua
correspondência, fornecer-lhe-ão documentos que permitem explicar como as idéias de Kant
se elaboraram progressivamente em seu espírito. Uma explicação desse gênero esclarecerá
consideravelmente o sentido da Crítica, e constitui mesmo o mais seguro meio de chegar a
uma interpretação exata da obra. Uma mesma obra comporta, então, ao lado de um estudo
lógico, um estudo psicológico, sem que um prejudique em nada o outro.
Esta distinção dos pontos de vista lógico e psicológico é clássica. Mas terá algum
fundamento? Não pomos em questão a atitude do lógico. Deve-se, entretanto, fazer, a esse
respeito, uma nota indispensável: é que adotar, em relação ao texto da Crítica, o que se chama
a atitude do lógico, é exatamente adotar a atitude daquele que se esforça por compreender o
texto. Um conjunto de pensamentos não é um objeto que se possa apreender primeiramente,
para tentar em seguida explicá-lo e compreendê-lo. Apreender pensamentos é, justamente,
compreendê-los, é refazer, por sua própria conta, a mesma série de atos intelectuais que
aquele que os formou pela primeira vez. A menos que se faça da Lógica uma concepção
caduca, deve-se reconhecer que a explicação lógica de um texto não vem acrescentar-se à
inteligência do texto, mas consiste exatamente nessa inteligência, comportando apenas uma
formulação refletida das relações lógicas que é preciso espontaneamente apreender para
compreender o texto. Nessas condições, a explicação dita psicológica do texto reduz-se,
finalmente, a uma explicação lógica, uma vez que tem também por objeto a compreensão dos
pensamentos. A única diferença é que, em lugar de tomar em consideração apenas os
pensamentos expressos na Crítica, tentará ligá-los a outros pensamentos de Kant, mas, bem
entendido, segundo os laços que podem unir pensamentos, isto é, laços lógicos, e, de modo
nenhum, segundo os laços que unem fenômenos, isto é, leis naturais. A explicação “genética”
de um pensamento nada tem de comum com a explicação que se pode dar, por exemplo, da
formação de um organismo animal. Não se aprecia de fora o desenvolvimento de um
pensamento como se pode apreciar o de um embrião: é preciso refazer em si próprio, e por si
próprio, este desenvolvimento, porque um pensamento só pode ser apreendido de dentro, ou,
mais precisamente, não pode ser apreendido, mas apenas pensado. A explicação dita
psicológica não difere em natureza da explicação lógica, difere apenas nisso de que ela incide
sobre um conjunto mais vasto.
Quer dizer que não há outra explicação possível, que não se pode dar conta da existência
da Crítica ligando-a, segundo leis naturais, a outros eventos do universo? Sem dúvida, uma
vez que a obra existe é preciso que ela esteja ligada ao resto da existência. Somente, uma
explicação desse gênero incidirá, evidentemente, apenas sobre o que, na Crítica, pode
propriamente ser dito existir, isto é, sobre o manuscrito, e ela será, evidentemente, tal como a
explicação de qualquer coisa que exista, uma explicação física. Na medida em que existente, a
Crítica nada mais é do que um objeto material entre aqueles que compõem o universo,
definido por seu peso, formato, cor, desenho das letras, enfim, por um conjunto de imagens.
Para explicar a formação deste objeto seria necessário ligá-lo, com a ajuda das leis da
natureza, ao conjunto dos eventos do universo. Somente, tal explicação ultrapassa de muito
nossa ciência. Somos inteiramente incapazes de saber, por exemplo, que impressão os
caracteres do Ensaio sobre o entendimento humano de Hume puderam fazer no cérebro de
Kant, que modificações deste cérebro determinaram os movimentos da mão que redigiu a
Crítica. Intervém, então, o psicólogo, que, para explicar a influência do Ensaio sobre a
composição da Crítica, substitui os objetos materiais que são essas obras por sua significação,
mas que, continuando a tratar essas significações como objetos, objetos psíquicos e não mais
objetos físicos, imagina que se possa ligar, por leis naturais, a existência do segundo objeto à
existência do primeiro. Ele justapõe à causalidade física, uma causalidade psicológica em
virtude da qual o pensamento de Hume, encarado como um dado, teria contribuído para
produzir o de Kant, encarado como outro dado. É claro, entretanto, que se deixa, assim, de
considerar o Ensaio e a Crítica como objetos de pensamento. Ora, o Ensaio e a Crítica não
são objetos de nosso pensamento, eles são nosso próprio pensamento. E quando perguntamos
como um pôde contribuir para produzir o outro, o que é buscado são as relações lógicas que
ligam estes dois conjuntos de idéias. Refazemos, então, o trabalho de pensamento de Hume,
depois o de Kant refazendo o de Hume. Longe de seguir, no espírito de Kant, não sei que
determinismo psicológico em virtude do qual se fabricaria seu pensamento, nós nos
esforçamos por pensar tal como Kant pensou. A explicação tentada pelo psicólogo não passa,
então, de uma confusão das duas espécies possíveis de explicação, tratando como fatos, não
mais os signos verbais, mas, seu sentido, e tentando servir-se do método do físico, destinado à
explicação de eventos, para explicar pensamentos. É permitido explicar a verdade de um
pensamento ou a realidade das imagens que o exprimem, mas pretender explicar, assim como
o quer o psicólogo, a realidade de um pensamento, é o que nos parece não oferecer qualquer
sentido. Podemos chamar reais as imagens brutas, reais também os objetos constituídos pelas
imagens, mas, em hipótese alguma, o pensamento pode ser tomado por uma realidade. Em
resumo, é verdadeiro que uma obra espiritual pode sempre ser considerada de dois pontos de
vista diferentes, mas esta dualidade não coincide com a que se estabelece habitualmente entre
o ponto de vista da Psicologia e o das ciências normativas. Que se trate de uma escultura, de
um ato amoroso, ou de uma descoberta matemática, o trabalho do espírito se manifesta por
fenômenos físicos, que podem ser ligados ao resto do universo; é, então, legítimo afirmar que
esta obra pode ser encarada do ponto de vista da existência: somente, a realidade que se
estuda, então, é física e não mental. Se, agora, negligenciando as manifestações físicas do
trabalho intelectual, é este trabalho, ele próprio, que nos propomos apreender, o único meio de
chegar a isso é refazer por nossa conta o trabalho em questão. Nesse caso, tampouco é sobre
uma realidade mental que incidirá nosso pensamento: seu objeto não será o pensamento de
outrem, mas o mesmo objeto que o do pensamento de outrem; não pensaremos o pensamento
de outro homem, mas o mesmo problema que outro homem pensou. Considerando uma obra
do espírito como uma manifestação de atividade do pensamento cessamos de considerá-la
como uma realidade: ela tornou-se a atividade de nosso próprio pensamento e não o objeto
dessa atividade. O desdobramento que comporta uma obra do espírito é então a separação
entre o pensamento e suas manifestações físicas. Mas, o pensamento não comporta o
desdobramento, que nele gostaria de operar o realismo psicológico, entre a existência e a
verdade; pensamento e verdade são uma única coisa.
Mas eis que, de novo, contra-ataca o psicólogo. Você afirma, diz ele, que todo
pensamento é verdadeiro, esquecendo o erro, e esquecendo que os juízos falsos levam a
melhor em número sobre os juízos verdadeiros. Você supõe que o espírito humano é pura
inteligência, raciocinando sempre segundo as regras da Lógica. Se assim fosse, você teria
razão de pretender que a Psicologia se confunde com a Lógica. Ora, como explicar o erro?
Quando o espírito se engana, você não pode sustentar que é a necessidade lógica e as
conveniências racionais que o guiam, e, se não há, então, razões que tornem legítima sua
afirmação, é preciso que haja causas que a tornem explicável. Com efeito, só
excepcionalmente os juízos dos homens são justificados de maneira racional, a maior parte
deles é acarretada por sentimentos, desejo, paixões. Longe então de absorvê-la, a Lógica não
passa de um capítulo da Psicologia, e mesmo de um capítulo da Psicologia da inteligência, a
saber, a Psicologia da inteligência pura. Enquanto o lógico se pergunta como são
determinados os juízos verdadeiros, o psicólogo estuda a maneira pela qual são determinados
juízos quaisquer, verdadeiros ou falsos.
Será possível justificar dessa maneira a distinção entre Psicologia e Lógica? O interior
do espírito representado como comportando a oposição de duas potências hostis comandando
as opiniões, uma boa, a outra má, a primeira produzindo a verdade, a segunda o erro? Ora,
para que duas potências entrem em concorrência, é necessário pelo menos que tenham, sob
sua diversidade, alguma coisa em comum. Compreende-se que dois exércitos se defrontem,
compreende-se que uma controvérsia se instaure entre duas teorias científicas; mas como
conceber a rivalidade de um exército e de uma teoria? Pois dizem-nos que os juízos são
produzidos ora por razões, ora por causas; ora pela necessidade lógica, ora pela necessidade
natural. Dualidade incompreensível, porque não há duas espécies de necessidade colocadas
lado a lado no mesmo plano, porque nenhuma comum medida pode ser estabelecida entre uma
razão e uma causa. Razão pela qual se é levado, a fim de dar à tese a aparência de
inteligibilidade, a reduzir razões a causas, a não ver nas regras lógicas senão uma espécie
particular de leis naturais, aquelas segundo as quais funcionaria uma inteligência pura. A
necessidade lógica nada mais seria, assim, do que um caso particular da necessidade natural2,
e a dualidade da Lógica e da Psicologia se reduziria a uma simples diferença de extensão: a
Lógica diferiria da Psicologia como a Mecânica, por exemplo, difere da Física. Estranha
maneira, é preciso confessá-lo, de distinguir a Lógica da Psicologia: se se quisesse confundi-
las, não se procederia de outra maneira. Mas não é isto o essencial. O essencial é que esta
concepção reduz a necessidade lógica à necessidade natural, a verdade à realidade, redução
cuja absurdidade esperamos ter mostrado. Em duas palavras, se alguns juízos forem

2
Goblot, Traité de Logique, Paris, Colin, 1918, § 7, p. 22 e 23: “Se eliminamos todas as causas não intelectuais
do juízo, as que restam não diferem mais do que se chama uma razão. Isolando a inteligência, obrigando-a a
trabalhar sozinha, determinamos o domínio da Lógica, talhado, assim, no da Psicologia. Podemos distinguir das
outras causas do juízo as razões, isto é, de suas causas extra-intelectuais suas causas puramente intelectuais.
Como elementos puramente intelectuais, isto é, juízos, determinam outros juízos? Este segundo problema é
propriamente lógico, e ele é psicológico: quais seriam as formas e os processos de uma atividade intelectual
subtraída às influências do sentimento e ao arbítrio da vontade? As leis lógicas não são senão as leis naturais de
uma inteligência pura. É porque uma inteligência pura é uma abstração que suas leis parecem outra coisa que não
leis naturais, e que a Lógica parece opor-se à Psicologia como uma ciência do ideal a uma ciência do real.”
determinados por causas naturais, todos o serão, uma vez que não se pode fazer concorrer com
a necessidade natural uma necessidade lógica que dela fosse radicalmente distinta; e se todos
os juízos são determinados pela necessidade natural, não há mais verdade.
Será preciso, então, negar a influência dos sentimentos sobre as opiniões? Seria negar a
evidência. Mas esta influência não se exerce segundo a causalidade natural; ela reduz-se à
influência lógica segundo a qual os juízos condicionam-se uns os outros. O sentimento não é
uma realidade psíquica existente por si própria, independente de todo pensamento, e dotada de
uma força própria capaz de resistir à força lógica. Se ele goza de um poder sobre o
pensamento, este poder é precisamente aquele de que goza o juízo. A raiz de todo sentimento
é um juízo de valor admitido como incontestável. Que é o amor, senão a afirmação de que
certa mulher é a mais perfeita das mulheres? Que é a cupidez, senão a afirmação de que a
riqueza é o maior dos bens? O orgulho, senão o juízo favorável a respeito do próprio mérito?
Ora, como é, logicamente, inadmissível que haja contradição entre nossos juízos, se alguém
tem por indubitável um juízo como esses, para satisfazer à necessidade lógica, deverá pôr seus
outros juízos de acordo com ele. A sequência de seus pensamentos será impecável e, se se
concede o princípio, não é possível subtrair-se às consequências. Dizer que o juízo deste
homem sobre os atributos que definem a beleza é causado por sua paixão, não significa então
que seu juízo seja o efeito de um outro fenômeno psíquico ao qual o liga uma necessidade
natural; isto significa dizer que ele é uma consequência lógica de outros juízos. Naturalmente,
se o juízo que serve de base é falso, tudo que se seguir será duvidoso: não se dirá, entretanto,
que ele raciocinou mal, ou que ele simplesmente não raciocinou. Os erros do apaixonado não
provam que suas opiniões sejam desconexas, pelo contrário, são sistemáticas, somente, o
sistema depende de um erro inicial, eis tudo. Mas, enfim, insistirão, por que admitiria ele esta
primeira idéia falsa, senão precisamente porque está apaixonado? Não será o sentimento a
causa deste juízo? “Não sei por que, diz o velhinho, os arquitetos fazem agora as escadas mais
íngremes”. Eis um juízo harmonizado com outros juízos do ancião: a consciência de uma
dificuldade crescente em subir os degraus, e a crença de que suas forças não declinaram. Mas,
este último juízo não seria um efeito já do amor próprio? O sentimento não seria, aqui, a causa
do juízo? Não, responderemos, o amor-próprio não é, de modo nenhum, a causa deste juízo,
mas consiste justamente na produção de juízos deste gênero. Assim, invocar o amor-próprio
para explicar tal juízo é dar uma explicação verbal e vazia, pois poder-se-ia igualmente dizer
que é, ao contrário, porque se recusa a ver sua decrepitude que ele tem amor-próprio. As duas
explicações se equivalem, reduzindo-se, ambas, a simples tautologias. Do mesmo modo, se
um homem pensa que a finalidade da vida é a acumulação de riquezas, em nada se explicará
esta opinião dando-lhe como causa a paixão da avareza, pois ser avarento e julgar que a
finalidade da vida é a acumulação de riquezas é uma única e mesma coisa. Numa palavra, se é
verdadeiro que toda paixão tem por raiz um juízo de valor, não é lícito ver na paixão a causa
deste juízo, nem, mais geralmente, ver na paixão uma força psíquica comparável a forças
naturais e estranhas ao poder do pensamento.
Caímos sempre na mesma conclusão. O pensamento não pode ser tratado ao mesmo
tempo como verdadeiro e como real, como obediente à necessidade lógica e à necessidade
natural, como prestando-se a ser estudado pelo lógico e pelo psicólogo. Das duas uma: ou bem
o determinismo psicológico, e, então, a supressão de todo valor, e, por conseguinte, a
impossibilidade, entre outras da Lógica; ou bem a legitimidade da Lógica e, então, a liberdade
do espírito, e, por conseguinte, a impossibilidade de uma “Física” da inteligência. Ou a Lógica
é legítima, ou é legítima a Psicologia, mas entre as duas é preciso escolher. Mas, escolher a
Psicologia é absurdo, uma vez que essa escolha, implicando a supressão da verdade, exclui
logo a verdade da própria Psicologia. A Psicologia da inteligência, concebida como uma
ciência natural do espírito, não pode pretender constituir-se sem que esta pretensão envolva
sua condenação.
Em definitivo, o erro da Psicologia clássica, desta ciência positiva dos fatos mentais, é o
de passar do pensamento à existência, deslizando de pensamos a logo, existem pensamentos.
Não vê que só se pode falar de uma existência objetiva se o objeto é ligado por leis ao resto do
universo; que essas leis são relações afirmadas pelo pensamento, e que essas relações,
condições da existência, não são, de maneira nenhuma, suscetíveis de existência, mas apenas
de verdade; e que, assim, toda existência objetiva supõe como condição a verdade e o
pensamento.

2. O automatismo mental

Mas, talvez, dificuldades sejam evitadas, e grandes, quando, para mostrar que o
funcionamento do pensamento não se reduz a um mecanismo natural, escolhe-se, para sobre
ele fazer incidir a discussão, o pensamento reflexivo, isto é, a forma de pensamento a mais
afastada do automatismo. Muitos psicólogos renunciaram à tentativa de reduzir toda atividade
intelectual a um puro mecanismo mental. Certamente, esta renúncia vem limitar grandemente
o domínio da Psicologia: o estudo dos fatos mentais e das leis naturais que os regem deixa
agora escapar as operações intelectuais propriamente ditas. Pelo menos, resta ainda lugar (ao
lado ou abaixo da atividade pela qual o espírito se esforça por organizar seus juízos num
sistema inteligível) para o jogo anárquico das representações abandonadas a si mesmas. Se a
atenção se relaxa, nem por isso as ideias cessam de se suceder na mente; e, uma vez que esse
curso de pensamentos não obedece mais às conveniências lógicas, é preciso que ele seja
regido por um mecanismo mental, cujas leis restaria descobrir. Haveria, assim, como que dois
graus de pensamento, um pensamento disciplinado e um pensamento anárquico, o segundo
dos quais, pelo menos, reduzir-se-ia a um automatismo, objeto de estudo para uma Psicologia
positiva. Mas, como conceber esta dualidade no funcionamento do pensamento? A hipótese
que se apresentaria em primeiro lugar seria de fazer simplesmente com que se alternassem no
espírito esses dois modos de pensamento. Nos momentos de distensão, como por exemplo no
devaneio, as idéias se sucederiam segundo as leis estritas do automatismo, e nos momentos de
atenção essas sequências incoerentes de idéias seriam substituídas por uma sucessão
inteligível. Ora, como admitir que as mesmas idéias possam ser submetidas alternadamente a
duas legislações absolutamente heterogêneas, e que, de fenômenos naturais, levados à
existência por uma necessidade cega, elas venham subitamente a mudar-se em verdades cujo
encadeamento seria regido pelas exigências lógicas? Um determinismo natural cujo curso
pudesse a todo instante ser suspenso por um simples decreto da vontade cessaria, por isso
mesmo, de ser um determinismo: a idéia de uma necessidade facultativa é uma absurdidade.
Se certos objetos são uma vez submetidos ao determinismo da natureza, sempre o serão. De
resto, sem ter necessidade de invocar este argumento teórico, é fácil constatar não só que há
intermediários entre o mais relaxado devaneio e o pensamento o mais refletido, mas que,
mesmo nos momentos de forte tensão intelectual as idéias não surgem imediatamente na
ordem a mais satisfatória para o espírito, e que, inversamente, as imaginações as mais
descabeladas jamais são tão descosidas que não ser possa nelas achar alguma lógica. É, então,
impossível admitir a alternância no espírito de dois modos absolutamente diferentes de
sucessão de idéias. Se se quer manter a distinção entre pensamento reflexivo e pensamento
anárquico, é de outro modo que será preciso concebê-la.
Há, com efeito, uma outra maneira de dar lugar, no funcionamento do pensamento, ao
automatismo e à reflexão: a aparição das idéias na mente, tanto na investigação mais atenta
quanto nos mais desatados dos sonhos, é sempre determinada pelo jogo de certas leis naturais,
o papel da atenção consistindo apenas em reter, no caos das idéias automáticas, as que
apresentam alguma relação lógica com a questão que se examina, deixando escapar todas as
demais3. O argumento essencial invocado em favor desta tese é que atividade judicativa só
pode exercer-se se dispõe, previamente, de algo sobre o que se exercer: as ligações lógicas
entre idéias, longe de serem causas de sua aparição, supõem que as idéias se ofereçam
previamente ao espírito. O pensamento reflexivo seria, então, diverso do automatismo, mas
deveria ao automatismo todos os materiais sobre os quais trabalha, sem que ele próprio nada
possa mudar na ordem de sua apresentação: esta ordem, independente da reflexão, seria
inteiramente submetida à legislação da natureza.
Tal hipótese é tão pouco satisfatória quanto a precedente. A separação entre a atividade
judicativa e os materiais sobre os quais ela se exerce seria legítima se coincidisse com a
distinção pensamento/imagem. Ora, é claro que aqui, uma vez que é a existência de um
pensamento automático que se quer provar, ela é entendida de um outro modo. Os materiais
sobre os quais se exerce a reflexão não são somente imagens, mas, sobretudo, juízos. Quando
minha atenção se concentra para resolver um problema prático ou teórico não é de imagens
que tenho necessidade, tampouco de conceitos isolados; o que me vem ao espírito são
conhecimentos, suscetíveis de verdade ou de erro. E, sem dúvida, eu não caio imediatamente
sobre aqueles de meus conhecimentos que seriam os mais apropriados à resolução do
problema; sem dúvida, eles surgem com certa desordem, de sorte que eu deveria em seguida
fazer escolhas entre os que se tiverem apresentado e organizar de uma maneira nova os
escolhidos. Mas, enfim, é já sobre pensamentos que se exerce minha reflexão, e não sobre
dados puros e simples; e esses pensamentos, submetidos à norma do verdadeiro e do falso,
não é possível tratá-los como objetos da natureza situados no plano da existência. Se, então, a
ordem da aparição das idéias difere da ordem que a reflexão estabelecerá depois entre elas,
pelo menos esta diferença não pode ser radical. As idéias, sendo afirmações e não realidades,
não se evocam segundo uma necessidade natural que faria existir esta após aquela; sua
evocação só pode ser regida pela necessidade lógica, que faz com que a afirmação de uma
implique a afirmação de outra. Assim, só uma diferença de grau deverá ser achada entre o
pensamento espontâneo e o pensamento reflexivo; e a única maneira de explicar uma sucessão
incoerente de idéias será tentar encontrar, dentro dela, relações de implicação lógica. Não que
tais relações posam ser consideradas como causas da aparição das idéias. Tem-se
perfeitamente razão de dizer, por exemplo, que “a semelhança concebida como “causa

3
James, Précis de psychologie (1892), chap. XVI (trad. fr., Paris, Rivière).
produtora” não tem nenhum sentido, nem na ordem psicológica, nem na ordem fisiológica”4.
Mas, toda a questão é justamente saber se o encadeamento das idéias deve se explicar por
causas, segundo a ordem da necessidade lógica; ou, em outros termos, se as idéias devem ser
consideradas como fenômenos que só se explicam pelas relações naturais que fazem com que
sua existência dependa da de outros fenômenos, ou como afirmações que só se explicam pelas
relações lógicas que fazem com que sua verdade dependa da verdade de outras afirmações.
Neste último caso, a noção de um automatismo das idéias nada mais poderia significar senão a
dialética em virtude do qual as idéias se condicionam umas as outras; de sorte que, o
pensamento automático, em lugar de opor-se radicalmente ao pensamento lógico, deveria
poder, de algum modo, reduzir-se a ele.
Mas, se se duvidasse ainda da impossibilidade de tratar as idéias como fenômenos
mentais, achar-se ia, entretanto, uma razão para rejeitar a teoria que superpõe a atividade do
juízo ao desenrolar automático das idéias logo que se notasse que esta hipótese nos leva, no
fim das contas, de volta à primeira, já examinada, e segundo a qual a intervenção da atenção
suspenderia o automatismo mental e substituiria, no curso de nossas idéias, a legislação da
natureza pela legislação da razão. A ordem de sucessão de nossas idéias, diz-se, sendo
independente das relações que a reflexão pode, depois, estabelecer entre elas, é inteiramente
determinada por um mecanismo, mental ou cerebral; mesmo nos momentos de alta tensão
intelectual, a reflexão em nada muda o desenrolar das idéias: ela se limita a escolher, entre as
que lhe oferece o mecanismo, as que julga pertinentes. Mas isso não é dizer, precisamente,
que a reflexão muda alguma coisa no desenrolar das idéias? Se ela escolhe, se ela retém certas
ideias, ela transtorna a ordem de aparição das idéias seguintes. Assim, escolhendo como
exemplo, para fazer sobre ela incidir minha crítica, esta concepção das relações entre o
automatismo e a reflexão, eu altero, seguramente, o curso ulterior de meus pensamentos:
objeções me ocorreram, que jamais me ocorreriam, não tivesse eu retido esta hipótese para
examiná-la. Em verdade, caso a reflexão em nada modificasse o desenrolar dos pensamentos,
seria inútil dar-se o trabalho de refletir. E se ela de fato o modifica, deveremos, então, ou
admitir que o mecanismo natural que rege a aparição das idéias pode ser suspenso, e
recairemos, assim, nas dificuldades da primeira hipótese, ou convir que não há pensamento
automático, e que o curso do pensamento anárquico requer o mesmo gênero de explicação que
o do pensamento reflexivo.

4
James, ibid; p. 302.
A distinção entre pensamento automático e pensamento reflexivo, designando uma
diferença de natureza, por corrente que seja, carece, então, de todo fundamento. Sem dúvida,
as idéias não se desenrolam do mesmo modo no distraído que deixa vagabundear seu
pensamento e no matemático, absorto numa determinada pesquisa, e será preciso dar conta da
diferença. Mas, ela não pode ser tão profunda quanto a que separa sucessões empíricas de
fenômenos de sucessões inteligíveis de conceitos, pois a coexistência no espírito de duas
ordens tão heterogêneas seria inconcebível. A consequência logo aparece. Se não é possível
admitir uma dualidade fundamental no pensamento, e se, por outro lado, as mais altas
operações intelectuais restam estranhas ao plano da existência objetiva constituída pela
armadura das leis naturais, escapando, por isso mesmo, a uma “Física” do espírito, a mesma
coisa deverá, então, ser dita das operações inferiores da inteligência: nenhuma sucessão de
idéias pode ser tratada como um simples desenrolar de “fenômenos mentais”, comandado por
um automatismo mental.
Resta mostrar, com mais precisão, que, inserindo-as num determinismo mental, a
Psicologia clássica fracassa, necessariamente, em seus esforços para explicar as mais
humildes operações intelectuais, e que só se pode, ao contrário, esperar dar conta delas
renunciando a decalcar sua explicação das explicações científicas dos fenômenos físicos e
buscando o princípio de sua inteligibilidade na própria natureza do pensamento. Como o tipo
dessas manifestações inferiores da inteligência nos é fornecido pela chamada associação de
idéias, é a associação de idéias que será preciso agora examinar. Mas, a questão da associação
está em conexão estreita com a da memória, o laço associativo sendo em geral invocado para
explicar o retorno das lembranças à mente. Por outro lado, o problema da memória nos traz
uma excelente ilustração das dificuldades nas quais nos embaraçamos quando seguimos o
caminho do realismo psicológico. Assim, retomaremos esse problema em seu conjunto, para
aí reencontrar, em seu devido lugar, a questão do retorno automático das ideias.

3. A memória

O realismo psicológico considera a lembrança como uma existência psíquica,


submetida, como fenômeno mental, a um determinismo natural. A própria definição que
habitualmente se dá da memória manifesta já esta concepção: o poder de fazer reviver um
estado mental passado, reconhecendo-o como passado.
A lembrança é, então, essencialmente a reprodução, apercebida como tal, de um evento
psíquico. É ainda a mesma concepção que implica a distinção tradicional das quatro operações
da memória. A lembrança é certa coisa que, vista uma primeira vez pela mente, reapareceria
após uma ausência mais ou menos longa, sendo então reconhecida e relacionada a certo
momento do passado. Não se exageraria muito se se dissesse que, após ter reduzido a
lembrança a uma imagem revivescente, a Psicologia clássica se representa essa imagem
mental à imitação de uma fotografia que primeiro contemplamos, depois conservamos na
gaveta, para ir reencontrá-la mais tarde, reconhecendo-a e sabendo desde quando a
possuímos5. Quando se tenta constituir uma “Física” do espírito e se toma a lembrança como
um dos objetos desta ciência, é preciso tomá-la como nada mais do que uma coisa mental que
deverá poder ser explicada pelo jogo de certas leis naturais. Tal concepção solicita, desde logo
uma primeira reserva. As quatro funções atribuídas à memória ― conservar, lembrar,
reconhecer e localizar a lembrança ― não apresentam qualquer homogeneidade. Deveremos
reparti-las em dois grupos, um dos quais vai já escapar à ciência dos fatos mentais. Pois, se a
conservação e a lembrança podem ser concebidas como fenômenos naturais, não ocorre,
seguramente, o mesmo com o reconhecimento e a localização, que são, evidentemente,
operações intelectuais. Reconhecer e localizar (situar num momento do tempo) é afirmar, é
julgar. Assim, não espanta que o realismo psicológico fracasse diante desses dois últimos
problemas. Se restamos, com a ciência positiva, no plano da existência, com as lembranças
como eventos psíquicos, jamais poderemos explicar que elas sejam reconhecidas nem, com
mais forte razão, localizadas. Um evento passado, uma vez que passou, desapareceu; só os
eventos do presente estão presentes. Sem dúvida, pode ocorrer que certos eventos se repitam,
que o evento presente reproduza o evento passado. Mas, uma vez que o evento passado
passou, como compará-lo com o evento presente para afirmar que eles se assemelham? Pouco
importa que duas coisas se assemelhem, jamais nos daremos conta da semelhança se uma
delas permanece absolutamente invisível. Compreender-se-ia, ainda, que eu possa reconhecer
m objeto já visto comparando-o com a lembrança que guardei dele, mas não se compreende de
modo nenhum como a lembrança seria, por sua vez, reconhecida. Com que, com efeito, a
compararia eu? Não com a percepção passada, uma vez que ela não é mais presente, passou;
nem com o traço que ela deixou em meu espírito, uma vez que este traço nada mais é do que a
própria lembrança. Enfim, se a lembrança não passa de um fenômeno de revivescência, se se

5
Cf. James, ibid., p. 379: “Um homem que busca uma lembrança em sua memória assemelha-se a um homem
que busca um objeto perdido em sua casa”.
reduz à reprodução atual de um fato mental passado, ela nada mais será do que um fato mental
presente, sem nada que lhe confira sobre os outros fatos mentais presentes o privilégio de ser
uma lembrança. A lembrança, se dela se quer fazer uma realidade mental, aparece, então,
como um verdadeiro monstro, devendo ser ao mesmo tempo presente (uma vez que se trata de
um dado atual) e passada (uma vez que é de ser reconhecida como passada que ela tira sua
natureza de lembrança). Eis porque o problema do reconhecimento, pelo qual o estado mental
presente seria relacionado ao passado, é uma das pedras no caminho da Psicologia clássica. A
verdade é que a impossibilidade de tratar os atos intelectuais como “dados mentais” leva a um
primeiro deslocamento na teoria psicológica da memória: é preciso convir que, na operação
total da memória, se sucedem duas fases bem distintas, a primeira delas apenas, comportando
conservação e lembrança, se passaria sob a legislação da natureza e diria respeito às aventuras
de certa realidade.
Mas, esta primeira limitação é ainda insuficiente. Não somente a metade das operações
mnemônicas escapa à competência de uma Física do espírito, mas também a redução da
lembrança a um dado mental puro e simples dificilmente permite compreender como ela se
conserva e dificilmente permite achar as leis naturais de sua evocação.
Consideremos primeiramente a conservação. O realismo tem apenas duas maneiras de
concebê-la. (1) Ele poderá atribuir à lembrança, realidade psíquica, uma conservação de
natureza igualmente psíquica. Dirá então que ela subsiste em estado inconsciente. Solução
cômoda, mas cômoda demais, pois é claro que ela é puramente verbal; e mesmo a dificuldade
de conceber um modo de conservação para uma coisa mental convidaria, por si só, a pôr em
dúvida o postulado fundamental do realismo psicológico. (2) Ele dirá que o que se conserva
não é a realidade mental, a lembrança, são as condições fisiológicas de sua reaparição. Mas,
esta nova hipótese comporta duas interpretações. Se se pretende com ela explicar o que se
passa na mente, recai-se nas dificuldades das teorias da interação psicofísica, seja que se
queira abrir a rede do determinismo biológico para introduzir, como efeitos de fenômenos
cerebrais, certos fenômenos psíquicos, seja que se reduza os fenômenos mentais a simples
epifenômenos. Uma teoria fisiológica da memória só será então legítima ser ela sustentar que
não se pode estudar cientificamente a memória senão negligenciando o aspecto mental da
lembrança para voltar-se na direção dos únicos fatos suscetíveis de cair sob a experiência
objetiva; mas nesse caso, rejeita-se como estranha à ciência a concepção psicológica da
lembrança. Assim, o realismo psicológico, se ele obriga a conceber a lembrança como uma
realidade mental que se conservou, torna ininteligível o modo desta conservação.
O psicólogo dirá talvez que, no fim das contas, ele pode desinteressar-se deste
problema, que ele entende por conservação da lembrança simplesmente a possibilidade de
recordá-la, e que assim basta-lhe pesquisar as condições de sua evocação. Seja. Quais são,
então, para ele, essas condições? O dualismo psicofísico permite invocar duas espécies de
condições: fisiológicas ou psicológicas. Se se apela para condições fisiológicas, cai-se no
mesmo dilema de há pouco. São então leis propriamente psicológicas que seria preciso poder
enunciar, e se pensará naturalmente na associação mecânica das representações. Ora, não é
mais necessário criticar teorias que pretendam dar conta do retorno à mente de um estado
passado mediante a invocação do laço associativo que o une ao estado atual, a força desse laço
sendo função da vivacidade, frequência, recenticidade etc., das associações. Entretanto, os
psicólogos não se decidem a abandonar uma concepção deste gênero. É que ela é a única
compatível com uma Psicologia concebida como ciência natural dos fatos mentais e de suas
“leis”. Assim, conservam geralmente as “leis” da associação, corrigindo apenas sua
reconhecida insuficiência pelo acréscimo de uma nova “lei”, a do interesse: as preocupações
atuais do espírito tornam-se um dos fatores da evocação das idéias, e mesmo o fator
preponderante, uma vez que é ele que opera a escolha entre todas as associações. Mas, como
não ver que se superpõe à antiga explicação uma nova explicação totalmente heterogênea,
com a qual abandona-se a atitude do cientista? Pois a pretensa lei do interesse é
completamente estranha à legislação da natureza. Em lugar de explicar a aparição de uma
idéia, considerada como fenômeno mental, pela necessidade natural que a une a outros
fenômenos, explicam-na pelas relações lógicas e pelas conveniências racionais que ela
apresenta com o sistema atual de idéias. Substitui-se a explicação de um fato segundo a ordem
da existência pela explicação de um pensamento segundo a ordem da verdade. Assim, as
respostas que os psicólogos são obrigados a dar ao problema da evocação envolvem uma
confissão de impotência de resolvê-lo e mesmo de pô-lo nos termos do realismo psicológico,
uma vez que não podem pô-lo a não ser cessando, seja de falar duma evocação de idéias, seja
de considerar esta evocação como regida por leis naturais. Ou, com efeito, pô-lo-ão como um
problema científico: as condições materiais da reprodução de certos atos, entre os quais
poderão naturalmente figurar atos verbais, é, então, o que será estudado; a memória passando
a meros hábitos corporais, as leis psicológicas, a casos particulares de leis fisiológicas
extremamente gerais, e não estarão mais em questão estados mentais. Ou, é à lembrança, na
medida em que manifestação da atividade mental, que o psicólogo se aplicará, e nesse caso
será substituída a consideração da existência pela consideração do pensamento, a consideração
de fenômenos naturais com suas relações de causa e efeito, pela consideração das idéias com
suas relações de princípio e consequência.
Esta nota nos leva a reconhecer, na teoria psicológica da memória, uma terceira lacuna,
que nos ajudará a compreender as precedentes. A Psicologia clássica fala sempre como se a
lembrança nada mais fosse do que uma imagem revivescente, o que testemunham os
exemplos geralmente citados, o nome de lembrança-imagem frequentemente dado à
lembrança e, enfim, a curiosa controvérsia sobre a memória afetiva, que não se conseguia
conceber, para negar ou para afirmar sua existência, senão como um poder de fazer reviver
“imagens afetivas”. Ora, esta assimilação da lembrança à revivescência de uma imagem é uma
visão a priori comandada pelo postulado realista. E se é fácil confirmá-la invocando
numerosos exemplos, esses mesmos exemplos poderiam voltar-se contra a teoria que
deveriam de ilustrar. Suponhamos, com efeito, que a evocação de lembranças seja uma
operação intelectual e não um fenômeno mecânico: deverá ocorrer, então, que, quando se
tentar evocar artificialmente lembranças, a busca será guiada pela idéia que se terá feito
previamente da lembrança-tipo, de sorte que as observações assim provocadas confirmariam
sempre a teoria preconcebida da memória. Para evitar toda parcialidade, seria preciso, então,
estudar a memória nos momentos em que, nos afazeres da vida, faz-se realmente apelo a ela,
ou mesmo, o que será mais fácil de notar, nos momentos em que se constata uma de suas
falhas. Facilmente, então, nos daremos conta de que a lembrança que escapa nunca é uma
imagem concreta que em vão se tenta fazer reviver: o esquecimento é muito menos uma
ausência do que uma ignorância. Esqueci, por exemplo, a data de um encontro, a missão da
qual me encarregaram, uma teoria científica, filosófica ou política, as regras do jogo de
xadrez, o enredo de um romance lido no ano passado, se respondi a uma carta, em que época
fiz certa viagem, qual o editor do livro de que tenho necessidade. Em todos esses casos,
lembrar quer dizer saber. O que se chama a evocação de uma lembrança não consiste de modo
nenhum na reprodução de um estado mental passado, mas numa afirmação atual em
conformidade com uma afirmação feita outrora. A lembrança-tipo nos aparece sob traços bem
diferentes dos que lhe empresta a Psicologia clássica: ela não é a revivescência de uma
imagem, mas o conhecimento de uma verdade.
Este defeito nos dá a chave das dificuldades com as quais se choca a teoria psicológica
da memória. O realismo psicológico é inevitavelmente levado a pôr a imagem no primeiro
plano da vida mental. Pois a atividade mental reduzindo-se, para ele, a um desenrolar de
fenômenos, a um desfilar de dados, como só há dados sensíveis, e o pensamento, entretanto,
ultrapassa a sensação presente, será preciso inventar um sensível de segunda zona, um dado
que não seja físico, mas exclusivamente mental. Assim, a realidade mental por excelência será
a imagem, concebida como algo análogo a um desenho cujos traços e cores tivessem sido
empalidecidos e atenuados pelo tempo. A memória será, precisamente, esta conservação
psicológica do sensível, a palavra conservação sendo tomada aqui no sentido realista.

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