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17/06/2019 Afonso Arinos protagonizou momentos de ruptura da política brasileira

FOLHA DE S.PAULO › Annotations

Afonso Arinos protagonizou


momentos de ruptura da política
brasileira
FEBRUARY ,

[RESUMO] Sociólogo explora a trajetória e as contradições de Afonso


Arinos, expoente do pensamento liberal brasileiro do século  cujas
memórias são agora lançadas em livro

“As datas da República se multiplicaram depois de . Os números se


sucedem, ora cômicos, ora sinistros, quase sempre decepcionantes, na nossa
loteria política.” Logo no início das memórias de Afonso Arinos, lê-se essa
apreciação que sobrevive aos tempos.

Arinos é um arguto observador e protagonista da cena brasileira. Foram


muitos os momentos políticos que ele viveu. Adaptando uma noção do
filósofo francês Jacques Rancière, considero momentos políticos aqueles de
rupturas relevantes.

Foram várias as rupturas políticas das quais Arinos participou. Político


longevo, protagonizou períodos significativos, da ditadura Vargas à
Constituinte da Terceira República. Teve papel de destaque na liderança da
UDN nas crises da Segunda República e muita influência na fase inicial e
mais criativa da Constituinte de . Foi chanceler de Jânio Quadros, o
breve.

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Então senador, Afonso Arinos de Melo Franco discursa na convenção da UDN, em . - Folhapress

Republicano, democrata, liberal, suas memórias estão agora reunidas em “A


Alma do Tempo”, volume editado pela Topbooks. José Guilherme
Merquior, outro autêntico liberal, escreveu que ele era, antes de tudo, um
humanista na política. Homem de letras, Arinos dizia preferir ser escritor a
político. Foi os dois, com maior peso para o político, embora tenha sido
exímio ensaísta e memorialista.

A leitura da sua memorialística é valiosa não apenas como registro histórico


da política brasileira —da ditadura Vargas ao regime militar—, mas como
expressão do pensamento de um dos mais completos liberais brasileiros e de
suas contradições.

Estas últimas, muitas vezes ele mesmo identificava. “Daí a contradição


permanente que os homens do meu tipo, que não admitem a existência sem
direito e sem liberdade, experimentam... Vivemos (pelo menos é o que sinto
comigo) em permanente contradição íntima: de um lado, a necessidade
imperiosa de uma profunda transformação social; do outro, a dificuldade,

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para não dizer impossibilidade, de levá-la a termo com o resguardo de certos


princípios sem os quais não nos é possível viver”.

Arinos foi um liberal todo o tempo, conservador a seu modo, aberto a


mudanças, mas adepto das “fórmulas consagradas” e progressista em algumas
circunstâncias cruciais. Revela, desde a juventude, adesão a um liberalismo
com consciência social. É bom lembrar que, em , Getúlio Vargas
promulgou a Lei Afonso Arinos, de sua autoria, contra a discriminação
racial.

Em , ao relembrar viagem a Paris ainda na infância, no início do século


, observou que, naquele então, “a burguesia olhava com desconfiança os
partidos socialistas, que começavam a exigir para os operários a proteção
dispensada aos animais”. Foi, ainda segundo Merquior, “o líder ciceroniano
da oposição udenista” ao varguismo e ao trabalhismo do PTB e de João
Goulart.

João Goulart, o presidente deposto pelos militares

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Nem por isso deixava de fazer a crítica afiada, com uma certa maldade
mineira, dos vícios da UDN, “um partido de indecisões unânimes”. Ele a via
vitimada por uma “cristalização conservadora”, opondo-se até às reformas
necessárias. Anotou com ênfase suas divergências com o PTB, “pela minha
formação democrática e antiditatorial”, e com a UDN, “porque minhas
naturais inclinações pela justiça e o progresso social”, expressos na política
externa independente, “se chocavam com o seu irredutível reacionarismo”.

A formação democrática e antiditatorial não o impediu de se tornar um dos


conspiradores civis do golpe de . Sua memória, no calor dos fatos,
mostra como as elites civil e militar contrárias ao governo de João Goulart
tinham a percepção de que o presidente tramava uma revolução socialista, e
o país rumava para a guerra civil.

É mais ilustrativa do momento político de então, que seria


irremediavelmente de ruptura, que sua narrativa posterior, mais elaborada,
ambas contidas em “A Alma do Tempo”. “Eu seria nomeado secretário de
Governo [do estado de Minas, cujo governador era Magalhães Pinto] com o
fim especial de obter, no exterior, o reconhecimento do estado de
beligerância, caso a revolução se transformasse em guerra civil demorada,
como justificadamente receávamos.”

Apartou-se definitivamente do regime militar quando este impôs ao


Congresso a Constituição de . “Eu esperava qualquer coisa de mau no
sentido político, isto é, algo de rigidamente autoritário e de hostil aos
princípios tradicionais e insubstituíveis do sistema democrático.”

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AI- - anos

Para Arinos, havia uma contradição insanável entre o “autoritarismo


político” e o “liberalismo econômico” da Constituição que a marcava como
reacionária. O “estatismo sufocava as liberdades políticas ao mesmo tempo
que protegia a livre empresa econômica. Transferia-se a legislação para as
mãos do Executivo”, “raptava-se ao povo o direito de escolher o presidente,
mas não se intervinha no terreno social, nem no econômico. Era o
procedimento reacionário típico”.

Arinos fez da sua desavença com o regime militar, a partir dessa


Constituição, que pretendia legalizá-lo e legitimá-lo, sua despedida do
Senado. Só retornou ao Legislativo como constituinte, em cuja primeira fase
teve papel relevante.

Não tinha medo de rever posições ou retificar conceitos. Foi o que fez, por
exemplo, em relação a Vargas, contra quem liderou a campanha parlamentar
que terminou tragicamente. “Getúlio, velho, desiludido, incapaz de
sobreviver ao próprio fracasso, desertou da vida; Jânio, vibrátil, jovem, crente
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talvez, ainda, no futuro, desertou do poder. Hoje, vista à distância, a


trajetória que leva de um drama ao outro se ilumina com a identificação das
causas. Essas causas decorrem, sem dúvida, das resistências oferecidas pela
força dos interesses à transformação nacional exigida pelas condições
históricas.”

Constituinte de

A resistência à mudança histórica persiste hoje, eu diria, a empatar a


sincronia do país com a transição disruptiva do século  em curso
acelerado. Para Arinos, a diferença entre o conservadorismo e o
tradicionalismo estava na capacidade de adaptar-se à mudança, de uns, e na
adesão intransigente ao passado, de outros. “Os bons conservadores são
aqueles que cedem às necessidades do progresso.”

Ele explica que “a marcha da história é inexorável” e “manter a identidade


política não é conservar-se alguém imobilizado em posições que
correspondiam a um tempo passado, mas, ao contrário, ser este alguém
capaz de aplicar os mesmos princípios doutrinários à nova realidade”.
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Faz a síntese de seu pensamento: “Relatividade das doutrinas, aceitação do


progresso social, crença nos valores permanentes e imprescritíveis do ser
humano”. Essa visão muito pessoal o fazia estranhar a posição de seu pai e de
companheiros que estimava, como Raul Fernandes, João Neves da Fontoura,
Pedro Aleixo e Prado Kelly, “espíritos liberais, mas cujo liberalismo político
se tinge, no tocante aos problemas sociais, de bacharelismo conservador”.

Ler ou, no meu caso, reler essas memórias de Afonso Arinos é como fazer
muitas viagens. Uma longa jornada pela história, que vai da Revolução de
 (“algo imposto pela força e pela força mantido, durante oito anos, até
que por ela mesma fosse derrubada”) à imposição da Constituição autoritária
de . Outra, por personagens e ideias, marcando sua permanente
separação entre liberais, conservadores e reacionários.

Afonso Arinos de Melo Franco durante entrevista em outubro de . - Paulo Whitaker/Folhapress

Arinos cria uma tipologia própria das posições políticas, culta, mas nem por
isso menos pessoal. Talvez por ver nos partidos legendas vazias de conteúdo
doutrinário, “grandes bandeiras de lutas pequenas”. Faz-se, também, uma
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volta ao mundo, com referências eruditas, históricas, políticas, artísticas e


literárias.

É uma leitura agradável, mesmo tropeçando em divergências com seu


pensamento. O livro é bem escrito, sincero na medida do possível, sempre
inteligente —diria necessário, neste momento de liberais contra as liberdades
e de elites políticas deseducadas.

Afonso Arinos nasceu na alvorada do século  e morreu em , antes do


ciclo político-eleitoral que se encerrou em . Ele tinha ideias mais atuais
e maior capacidade de adaptar o liberal-conservadorismo ao progresso dos
tempos do que aqueles hoje no poder. Se o lessem, aprenderiam a diferença
que há entre um liberal-conservador e um reacionário.

Sérgio Abranches, sociólogo e cientista político, é autor de “Presidencialismo


de Coalizão” (Companhia das Letras).

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