Você está na página 1de 7

1

Contrafogos: “produtores” Vs. “ambientalistas” na BR-163 paraense

23 Aug 2019 | por Renata Lacerda

Link da entrada do texto: https://www.horizontesaosul.com/

“Aqui se fica calado pra não morrer”, me disse em voz baixa um amigo de Novo
Progresso (PA), município cortado pela rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém) no sudoeste
paraense, uma semana antes do primeiro turno das eleições de 2018. Estava em minha
quarta viagem à região, que tenho frequentado desde 2013 para realizar minha pesquisa
de mestrado e, atualmente, de doutorado sobre conflitos territoriais. Não imaginava que
se tornaria manchete pela realização de um “Dia do Fogo”, nome dado às queimadas
planejadas que ocorreram esse mês e incendiaram o entorno dessa rodovia1.

Como tem viralizado em mídias sociais e veículos de comunicação nacionais e


internacionais, nos últimos meses o Brasil apresentou um aumento exponencial de focos
de queimadas em comparação com 2018, mesmo considerando-se que é época de seca
(conhecida como verão amazônico, aproximadamente de julho a novembro). O aumento
no registro das queimadas começou a ser verificado desde o mês passado em Mato Grosso
e Rondônia e nos oito primeiros dias de agosto no Acre, Amazonas e Mato Grosso do
Sul. Em alguns casos, demorou mais de duas semanas para controlar os incêndios
decorrentes desses focos. Em outros, não há perspectiva de fim.
2

Em meio a notícias como essas, o “Dia do Fogo” foi anunciado dia 5 de agosto
por um jornal local de Novo Progresso como ação coordenada de “produtores e entidades”
para mostrarem, por meio de derrubadas e “limpeza de pastagens”, que querem
“trabalhar”. Entre os dias 10 e 11 do mesmo mês, picos de incêndio foram observados
nesse município e em seus vizinhos, Altamira, Itaituba e Jacareacanga. Em reportagem
da Folha de São Paulo2, muito citada por outras fontes, destaque foi dado tanto para o
impacto na destruição de Unidades de Conservação (UCs) quanto para o caráter
intencional e de apoio ao crescente desmantelamento da fiscalização ambiental pelo
governo de Jair Bolsonaro (PSL), que inviabilizou a atuação do IBAMA (Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis) na região.

Apesar da concentração das queimadas em um fim de semana, o fogo e a fumaça


continuaram na BR-163 paraense. Percorrem não só o entorno de Progresso como de
outras cidades cortadas pela rodovia: Castelo dos Sonhos, Cachoeira da Serra (distritos
de Altamira) e o distrito mato-grossense de Guarantã do Norte. Em conversas de
WhatsApp e postagens no Facebook e Twitter, leio que crianças e adultos estão tendo
dificuldades de respirar. Algumas famílias tiveram perdas de até milhares de reais de uma
semana para a outra. Poucos parecem querer falar publicamente sobre o que aconteceu.

Fogo contra fogo

Após comentar a importância de ficar calado, aquele meu amigo apreensivo


complementou, desviando o olhar: “muito ongueiro ambientalista já morreu aqui”.
Desconfiada dos seus exageros polêmicos e tendo ouvido contos épicos, por vezes
hilários, sobre como os progressenses botaram jornalistas e ativistas de ONGs para correr,
retorqui: "ah, foi expulso né, morrer não". Ao que ele respondeu seco me olhando, "não,
morreu mesmo". Sua preocupação se dava, em suas palavras, porque eu fazia perguntas
demais. Aliado a isso, provavelmente não ajudava a minha aparência e modo de agir
serem semelhantes aos dos “ecoabestados”, que do conforto das grandes cidades, no
sudeste brasileiro ou no estrangeiro, atuariam para reprimir os “produtores” e
“trabalhadores” da Amazônia. Por mais que eu mesma nunca tivesse me visto como
ambientalista, nada do que eu fazia contradizia a suspeita de que eu fosse do “lado de lá”.

De um lado, se tem aqueles inequivocamente posicionados como


“ambientalistas”, em especial o IBAMA e ONGs como o Greenpeace, que incriminam o
3

desmatamento, a venda de madeira e a extração de minérios quando irregulares; de outro


lado, há os autodenominados pequenos a grandes produtores rurais, garimpeiros e
madeireiros que associam essas atividades a trabalho, produção e meio de conseguir se
tornar proprietário – daí a máxima “dono é quem desmata”, que intitula o livro de Torres,
Doblas e Alarcon (2017). Junto com essa justificação da exploração de recursos naturais,
caminha a defesa da regularização fundiária sobretudo no sentido de titulação privada,
embora modalidades coletivas de posse, como assentamentos rurais sustentáveis, tenham
sido alternativas de acesso à terra (CAMPBELL, 2015) e recursos naturais de forma legal
ou menos facilmente criminalizáveis (TORRES, 2012). A isso se soma a crença de que
“pequenos e grandes” devem andar juntos, pois todos seriam igualmente prejudicados
pelo “ecoterrorismo” que teria passado a mandar no governo desde Lula.

Já na primeira viagem para a região em 2013, eu não conseguia compreender o


que hoje se tornou o Twitter oficial de autoridades governamentais. Naquele ano, tentei
controlar a perplexidade quando ouvi de um servidor da prefeitura que “quem grila terras
é o MST”. E de um pequeno agricultor que o “governo atual do PT é comunista disfarçado
(...) não quer que o pobre morra (...), mas ele não quer que o cara desenvolva, o cara só
tem que viver, trabalhando na miséria”3. Fora as recorrentes acusações de que as ONGs
internacionais não querem preservar a Amazônia, mas sim explorar seu subsolo. Ou ainda
imagens viralizadas nas mídias sociais semelhantes a essa abaixo, com a legenda irônica
“IBAMA destrói o meio ambiente”:
4

Servidor do IBAMA ateando fogo em equipamento usado para atividades ilegais, prática
comum da autarquia até ser coibida por Bolsonaro. A imagem se segue a outras semelhantes
em vídeo sobre o “terrorismo” do IBAMA com os “pequenos” de Progresso, embora os
equipamentos mostrados muitas vezes custem dezenas ou centenas de milhões de reais4.

Mas o que mais me intrigava era a recorrência de ações coletivas anunciadas


publicamente pelas entidades de produtores, madeireiros e garimpeiros contra a
fiscalização ambiental e pela redução de áreas protegidas. Em 2003, trancaram a BR-163
para reduzir a Terra Indígena Baú. Dois anos depois, a rodovia foi fechada contra a
suspensão de planos de manejo. Em 2006, ameaçaram derrubar a mata contra a recém-
instituição de UCs5. Em 2011, acorrentaram o helicóptero do Ibama e, de acordo com
uma liderança, ele teria controlado os manifestantes para que não tacassem fogo na sede
da autarquia. Em 2013 e 2017 voltaram a trancar por vários dias a Cuiabá-Santarém em
defesa da revisão dos limites e da categorização de UCs do entorno, em especial a Floresta
Nacional do Jamanxim.
5

Ainda em 2017, a população de Cachoeira da Serra incendiou o caminhão-cegonha que


trazia novos veículos para postos de fiscalização, como a sede do IBAMA em Novo
Progresso. Imagem: Folha do Progresso.

Fogo contra fogo. Parar a produção do Mato Grosso através do bloqueio da via de
escoamento porque o governo paralisa a produção de Novo Progresso.

Dia a dia de fogo em florestas, barracas, agricultores

Em conversas que tive com mulheres assentadas de um projeto de assentamento


do município, me contaram suas vivências com o fogo na busca por terra em um projeto
anterior, para onde haviam sido levadas pelo INCRA:

[...] aí deu confronto com fazendeiro. [...]. A gente era um grupo


pequeno, umas 250 famílias. Aí a gente veio embora, veio passar o final
de ano aqui na cidade, que era natal. Aí os guachebas [pistoleiros] das
fazenda foram lá e largaram fogo nos barraco e não sobrou nem cinza
[...] (entrevista dia 02/06/2017).

Transferidas para outro assentamento, o confronto não cessou, ainda que fossem
outros os agressores que passavam em seus improvisados barracos de madeira para brigar.
Em uma dessas vezes, um “fazendeirão” cuja família concentra milhares de hectares na
área do projeto de assentamento e em Mato Grosso, empurrou uma assentada em direção
ao seu fogão a lenha ainda um pouco quente. Deixou assim uma cicatriz em seu braço,
que fitei quando arregaçou as mangas ao lembrar até mesmo do tecido da camisa que o
6

agressor usava ao sacar sua arma, sendo por sorte “acalmado” por outro fazendeiro. Em
todos os anos desde a criação do assentamento em 2006, fazendeiros “mansos” ou
“brabos” não só desmataram diariamente a reserva legal, queimando as espécies não
vendáveis, como atearam fogo nos barracos, nas roças e pertences de assentados,
ameaçando-os constantemente de morte. Só em 2018, três assassinatos foram registrados
pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) em decorrência dos conflitos nesse assentamento,
o Terra Nossa. Entre o primeiro e o segundo turno que elegeu Jair Bolsonaro presidente,
foi executado em sua própria casa Aluisio Sampaio, mais conhecido como Alenquer,
reconhecida liderança de pequenos agricultores bastante próximo de muitas famílias que
continuam lutando por terra na região da BR-1636.

Contrafogos

Contrafogo: s.m. Fogo ateado ao encontro de um


incêndio florestal para impedir-lhe a propagação;
fogo de encontro (BOURDIEU, 1998).

Se realmente o Dia do Fogo foi uma das muitas demonstrações que apoiam a
flexibilização da fiscalização ambiental, finalmente levada a cabo por Bolsonaro – eleito
pela grande maioria dos progressenses para que cumprisse promessas de campanha como
essa7 –, não é uma novidade na região em termos de ações coordenadas que impactam
florestas. Estas, por sua vez, não existem num vazio social, sendo a desigualdade, a
apropriação e a concentração privada de terras públicas, aliadas à violência contra quem
se apresenta como obstáculo ou “do outro lado”, fatores que se retroalimentam na
destruição da mata e da biodiversidade8.

Respondendo à minha curiosidade sobre como está Progresso agora com tanto
fogo, outro amigo que trabalha com produtores rurais me contou esses dias que muitos
estão correndo atrás do prejuízo, abrindo as porteiras para animais se salvarem e fazendo
aceiros – queimadas controladas que visam conter incêndios – para proteger seus sítios e
fazendas. “Produtores”, ainda que opostos aos “ambientalistas”, correram para a
delegacia para registrar boletins de ocorrência contra vizinhos que queimaram
intencionalmente o mato9.

Hoje, dia 23 de agosto, tem manifestações em todo o Brasil em defesa da


Amazônia, integrando a Greve Global pelo Clima. Que a indignação contra as queimadas
7

e a mudança climática nos torne, além de resistentes aceiros, brasa que permita nascer
vida através de alternativas de trabalho e de acesso justo a recursos naturais.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro:
Zahar, 1998.
CAMPBELL, Jeremy M. Conjuring property: speculation and environmental futures in the
Brazilian Amazon. Seattle: Univ. of Washington Press, 2015.
TARCA, Karina. “Entre tempos bons e ruins”. Processos de expansão e fechamento na
fronteira amazônica: o caso de Cachoeira da Serra no sul do Pará. Dissertação (mestrado em
Antropologia). PPGAS/UFF, Niterói, 2014.
TORRES, Maurício. Terra Privada Vida Devoluta: Ordenamento Fundiário e Destinação de
Terras Públicas no oeste do Pará. Tese de Doutorado (Doutorado em Geografia). São Paulo:
PPGGH/USP, 2012.
______.; DOBLAS, Juan; ALARCON, Daniela Fernandes. Dono é quem desmata. Conexões
entre grilagem e desmatamento no sudoeste paraense. São Paulo, Urutu-branco; Altamira,
Instituto Agronômico da Amazônia, 2017.

1
Para a reportagem que antecipou a ação de queimadas como “Dia do Fogo”, ver: https://bit.ly/33Ofc9E.
Acesso em 21 ago. 2019.
2
Link da reportagem da Folha de São Paulo: https://bit.ly/2KKUcZM. Acesso em: 21 ago. 2019.
3
Para uma etnografia que analisa narrativas semelhantes em Cachoeira da Serra, também na BR-163, ver
TARCA (2014).
4
Link do vídeo intitulado “IBAMA destrói o meio ambiente ibama faz terrorismo contra os pequenos”,
de novembro de 2017: https://bit.ly/2ZgSjNC. Acesso em: 21 ago. 2019.
5
A série de reportagens “Tapajós sob Ataque” de Maurício Torres e Sue Branford lembra o episódio. Ver
no link: https://bit.ly/2n6xstg. Acesso em: 21 ago. 2019.
6
Sobre os assassinatos relacionados aos conflitos fundiários no PDS Terra Nossa, ver notícia da CPT:
https://bit.ly/2TTP4FK. Acesso em: 20 ago. 2019.
7
72,75% dos eleitores progressenses votaram em Bolsonaro no primeiro turno (9.122 votos). E 78,18%
no segundo turno (9.454 votos).
8
Não é coincidência que um dos incêndios em Rondônia no fim de julho consumiu a área de reserva legal
do assentamento Margarida Alves, palco de acirrados conflitos entre assentados e fazendeiros. Maiores
informações no link: https://bit.ly/2L4A97s. Acesso em: 20 ago 2019.
9
Sobre a continuidade da fumaça, o posicionamento de lideranças locais e a grande quantidade de
boletins de ocorrência nas últimas semanas em Novo Progresso, ver reportagem do Folha do Progresso do
dia 22 de agosto: https://bit.ly/2NqjMVO. Acesso em: 23 ago. 2019.

Você também pode gostar