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“Aqui se fica calado pra não morrer”, me disse em voz baixa um amigo de Novo
Progresso (PA), município cortado pela rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém) no sudoeste
paraense, uma semana antes do primeiro turno das eleições de 2018. Estava em minha
quarta viagem à região, que tenho frequentado desde 2013 para realizar minha pesquisa
de mestrado e, atualmente, de doutorado sobre conflitos territoriais. Não imaginava que
se tornaria manchete pela realização de um “Dia do Fogo”, nome dado às queimadas
planejadas que ocorreram esse mês e incendiaram o entorno dessa rodovia1.
Em meio a notícias como essas, o “Dia do Fogo” foi anunciado dia 5 de agosto
por um jornal local de Novo Progresso como ação coordenada de “produtores e entidades”
para mostrarem, por meio de derrubadas e “limpeza de pastagens”, que querem
“trabalhar”. Entre os dias 10 e 11 do mesmo mês, picos de incêndio foram observados
nesse município e em seus vizinhos, Altamira, Itaituba e Jacareacanga. Em reportagem
da Folha de São Paulo2, muito citada por outras fontes, destaque foi dado tanto para o
impacto na destruição de Unidades de Conservação (UCs) quanto para o caráter
intencional e de apoio ao crescente desmantelamento da fiscalização ambiental pelo
governo de Jair Bolsonaro (PSL), que inviabilizou a atuação do IBAMA (Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis) na região.
Servidor do IBAMA ateando fogo em equipamento usado para atividades ilegais, prática
comum da autarquia até ser coibida por Bolsonaro. A imagem se segue a outras semelhantes
em vídeo sobre o “terrorismo” do IBAMA com os “pequenos” de Progresso, embora os
equipamentos mostrados muitas vezes custem dezenas ou centenas de milhões de reais4.
Fogo contra fogo. Parar a produção do Mato Grosso através do bloqueio da via de
escoamento porque o governo paralisa a produção de Novo Progresso.
Transferidas para outro assentamento, o confronto não cessou, ainda que fossem
outros os agressores que passavam em seus improvisados barracos de madeira para brigar.
Em uma dessas vezes, um “fazendeirão” cuja família concentra milhares de hectares na
área do projeto de assentamento e em Mato Grosso, empurrou uma assentada em direção
ao seu fogão a lenha ainda um pouco quente. Deixou assim uma cicatriz em seu braço,
que fitei quando arregaçou as mangas ao lembrar até mesmo do tecido da camisa que o
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agressor usava ao sacar sua arma, sendo por sorte “acalmado” por outro fazendeiro. Em
todos os anos desde a criação do assentamento em 2006, fazendeiros “mansos” ou
“brabos” não só desmataram diariamente a reserva legal, queimando as espécies não
vendáveis, como atearam fogo nos barracos, nas roças e pertences de assentados,
ameaçando-os constantemente de morte. Só em 2018, três assassinatos foram registrados
pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) em decorrência dos conflitos nesse assentamento,
o Terra Nossa. Entre o primeiro e o segundo turno que elegeu Jair Bolsonaro presidente,
foi executado em sua própria casa Aluisio Sampaio, mais conhecido como Alenquer,
reconhecida liderança de pequenos agricultores bastante próximo de muitas famílias que
continuam lutando por terra na região da BR-1636.
Contrafogos
Se realmente o Dia do Fogo foi uma das muitas demonstrações que apoiam a
flexibilização da fiscalização ambiental, finalmente levada a cabo por Bolsonaro – eleito
pela grande maioria dos progressenses para que cumprisse promessas de campanha como
essa7 –, não é uma novidade na região em termos de ações coordenadas que impactam
florestas. Estas, por sua vez, não existem num vazio social, sendo a desigualdade, a
apropriação e a concentração privada de terras públicas, aliadas à violência contra quem
se apresenta como obstáculo ou “do outro lado”, fatores que se retroalimentam na
destruição da mata e da biodiversidade8.
Respondendo à minha curiosidade sobre como está Progresso agora com tanto
fogo, outro amigo que trabalha com produtores rurais me contou esses dias que muitos
estão correndo atrás do prejuízo, abrindo as porteiras para animais se salvarem e fazendo
aceiros – queimadas controladas que visam conter incêndios – para proteger seus sítios e
fazendas. “Produtores”, ainda que opostos aos “ambientalistas”, correram para a
delegacia para registrar boletins de ocorrência contra vizinhos que queimaram
intencionalmente o mato9.
e a mudança climática nos torne, além de resistentes aceiros, brasa que permita nascer
vida através de alternativas de trabalho e de acesso justo a recursos naturais.
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro:
Zahar, 1998.
CAMPBELL, Jeremy M. Conjuring property: speculation and environmental futures in the
Brazilian Amazon. Seattle: Univ. of Washington Press, 2015.
TARCA, Karina. “Entre tempos bons e ruins”. Processos de expansão e fechamento na
fronteira amazônica: o caso de Cachoeira da Serra no sul do Pará. Dissertação (mestrado em
Antropologia). PPGAS/UFF, Niterói, 2014.
TORRES, Maurício. Terra Privada Vida Devoluta: Ordenamento Fundiário e Destinação de
Terras Públicas no oeste do Pará. Tese de Doutorado (Doutorado em Geografia). São Paulo:
PPGGH/USP, 2012.
______.; DOBLAS, Juan; ALARCON, Daniela Fernandes. Dono é quem desmata. Conexões
entre grilagem e desmatamento no sudoeste paraense. São Paulo, Urutu-branco; Altamira,
Instituto Agronômico da Amazônia, 2017.
1
Para a reportagem que antecipou a ação de queimadas como “Dia do Fogo”, ver: https://bit.ly/33Ofc9E.
Acesso em 21 ago. 2019.
2
Link da reportagem da Folha de São Paulo: https://bit.ly/2KKUcZM. Acesso em: 21 ago. 2019.
3
Para uma etnografia que analisa narrativas semelhantes em Cachoeira da Serra, também na BR-163, ver
TARCA (2014).
4
Link do vídeo intitulado “IBAMA destrói o meio ambiente ibama faz terrorismo contra os pequenos”,
de novembro de 2017: https://bit.ly/2ZgSjNC. Acesso em: 21 ago. 2019.
5
A série de reportagens “Tapajós sob Ataque” de Maurício Torres e Sue Branford lembra o episódio. Ver
no link: https://bit.ly/2n6xstg. Acesso em: 21 ago. 2019.
6
Sobre os assassinatos relacionados aos conflitos fundiários no PDS Terra Nossa, ver notícia da CPT:
https://bit.ly/2TTP4FK. Acesso em: 20 ago. 2019.
7
72,75% dos eleitores progressenses votaram em Bolsonaro no primeiro turno (9.122 votos). E 78,18%
no segundo turno (9.454 votos).
8
Não é coincidência que um dos incêndios em Rondônia no fim de julho consumiu a área de reserva legal
do assentamento Margarida Alves, palco de acirrados conflitos entre assentados e fazendeiros. Maiores
informações no link: https://bit.ly/2L4A97s. Acesso em: 20 ago 2019.
9
Sobre a continuidade da fumaça, o posicionamento de lideranças locais e a grande quantidade de
boletins de ocorrência nas últimas semanas em Novo Progresso, ver reportagem do Folha do Progresso do
dia 22 de agosto: https://bit.ly/2NqjMVO. Acesso em: 23 ago. 2019.