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INSTITUTO DE ARQUITETURA E URBANISMO | UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

IDADE MÉDIA
Cidade, Igreja, Tempo, Trabalho
Jeziel Elias de Souza Matos - 9265792

05/05/2016
A Idade Média

O que pensa o cidadão comum quando se fala em Idade Média?


Talvez a atividade cristã, certa ignorância à razão (ressaltada
pelo nome ‘Idade Média’), toda a ideologia da cavalaria, reis e
donzelas, florestas e castelos, ou talvez até coisas mais
triviais como as vestimentas e modos alimentares. Entretanto,
quão preciso seria essa imagem do período?

A historiografia da própria idade média era estritamente


teológica, e pouco de fato se sabia sobre o passado. A
renascença, como se sabe, criou a própria ideia de Idade Média,
assim como sua terminologia, recusou o período e considerou a
Era Clássica o próprio alvorecer da modernidade. Para os
renascentistas a Idade Média teria sido uma interrupção no
progresso humano inaugurado pelos gregos e retomado e século
XVI, por isso a consideravam como barbárie. O próprio pintor
Rafael chamou a arte urbana medieval de gótica, cujas raízes da
palavra vêm do termo bárbaro, barbárie. A História, a partir de
então, valoriza o homem, a Universidade também não mais cultiva
somente a teologia, mas também outras disciplinas.

Temos a partir do século XIX uma intensa produção não


apenas historiográfica, mas também literária, referente à era
medieval. Uma visão um tanto romântica que seguiu,
antagonicamente, o iluminismo e o cientificismo dos séculos
anteriores e que foi fundamental para criar o imaginário atual
acerca da Idade Média: o homem olhou para trás e escolheu o seu
passado, como assim fizera diversos momentos antes, para então
construir e defender toda uma ideologia que lhe interessava,
ideologia cuja consequência é o imaginário, além de muito afetar
a cultura social. Quem não se interessaria pela Idade Média
apresentada pelos livros de Umberto Eco, com O Nome da Rosa e
Baudolino? Ou ainda Corcunda de Notre-Dame, de Victor Hugo?

E como temos compreendido a Idade Média nos nossos dias?


Seríamos observadores, não apenas da Idade Média, mas também do
nosso presente? Isso tem validade, uma vez que é comum
observarmos o passado com os olhos do presente. “Talvez
estejamos em uma época de balanço; talvez nossa visão, a dos
medievalistas, deva ser a visão das múltiplas visões para
tentarmos acercar-nos de uma Idade Média por ela mesma, e isso,
se de fato, conseguirmos” (AMARAL, 2012, p.6). A Idade Média é
um período complexo de ser entendido, por isso as diferentes
opiniões e estudos serão necessários para compreendê-la a partir
de seus próprios olhos.

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Cidade medieval

A cidade medieval tem origem nas antigas cidades romanas,


e europeias, e nascem também com diferentes funções, e com as
instalações de ordens militares e religiosas, elas sofrem uma
sobreposição ao traçado romano, formando o traçado medieval,
onde no centro se encontrava a praça. As construções nascem
seguindo sua própria ordem e – talvez com exceção das catedrais
- não valorizam o monumental: os edifícios são na medida do
homem, mais adaptada à sua escala.

Segundo Le Goff, o urbanismo medieval segue quatro


direções: limpeza, segurança, regularidade e beleza. A partir
disso, podemos estabelecer alguns elementos de destaque da
cidade medieval: as ruas, a praça pública, a muralha e as
catedrais. As muralhas formavam o perímetro da cidade e eram
compostas pelos muros, torres, fossos e portas. Com o
crescimento populacional, eventualmente a cidade extrapolava
esse limite marcado pelas muralhas e era a partir de então que
se discutia a construção de uma nova muralha. Esse controle do
perímetro e do espaço pela cidade era fundamental. Ele inclui o
interior e exterior articulados pela muralha e portas e que está
subordinado ao “serviço comum”, ao senso comunitário. Ele une os
lugares de interesse econômico, elementos militares, caminhos
fluviais e terrestres, elementos hidráulicos. É um espaço de
comunicação. Do lado de dentro dos portões, as vias tinham um
papel muito importante na circulação de pessoas e mercadorias.
Elas mantinham, juntamente com a praça, uma regularidade que era
vista como essencial pelos habitantes. A pavimentação mostrou-se
também como uma consequência à dimensão higiênica da cidade: “A
higiene inspira os costumes, como no caso de Avignon, onde eram
punidos com multas aqueles que jogavam lixo ou água nas ruas”.
As cidades tornavam-se polos de atração pelos peregrinos, onde a
beleza de alguns edifícios falava cada vez mais alta. Surge
também uma beleza mostrada pelas casas dos patrícios, que tinham
a presença de torres, dois ou três andares. Essa era a burguesia
ascendente que buscava imitar a nobreza, o que eventualmente
criava tensões políticas entre as classes.

A praça é o centro da cidade. É a mais pura materialização


do espírito urbano medieval. Ali convergem todas as camadas da
cidade, é onde a cultura camponesa submerge na cidade, é onde
circulam os comerciantes, os artesãos, é onde há a concentração
da cultura medieval, difundindo os hábitos urbanos. “A praça
pública forma também uma opinião pública embrionária, que é uma
opinião urbana.” (LE GOFF, 1992, p.207). Poderíamos, a partir
disso, afirmar que a dimensão urbana se dá a partir da praça e
vice-versa, tornando a própria cidade uma grande praça e a praça

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numa cidade? Ora, a cidade é um centro de intensa produção
cultural, e a praça é o reflexo disso no centro urbano. Em vista
à tamanha produção cultural, Le Goff (1992, p.193) afirma que a
cidade:

“[...] permitiu à cultura popular


das camadas rurais, encerrada nos campos,
e à cultura erudita dos clérigos, fechada
nas escolas eclesiásticas e nos
scriptoria, reencontrar-se, e mesclou a
realidade e o imaginário a ponto de
implantar em si o teatro e de tornar-se
ela própria o teatro.”

Diante de tal afirmação, portanto, pode-se levantar outra


questão: até que ponto os habitantes compreendiam a própria
cidade? Ou até que ponto acreditavam compreender? Os artesãos e
outros membros de corporações conheciam a vida urbana além de
seu cotidiano? De forma inversa, a nobreza e o magistrado
conhecia também a vida da plebe na cidade? Sabe-se que em
algumas cidades, como Avignon, por exemplo, confiavam-se nos
escabinos e prefeitos para na construção de praças, e que a
Igreja, juntamente com a corte e os burgueses, foram
responsáveis pela construção de diversas catedrais, mas quão
abrangente era sua visão da vida urbana?

É possível notar em documentos extraídos da Era Medieval


elementos estereótipos da cidade de cunho aristocrático e
religioso ainda na Alta Idade Média, mas quando cresce a cidade
gótica, um novo imaginário se prepara. Essa nova imagem da
cidade é forjada por uma série de trabalhos, quatro, segundo Le
Goff. Há a reflexão escolástica sobre a urbe, devido muito por
conta da Universidade. Relacionado De início há a fórmula de
Aristóteles: um homem é animal da cidade. Guillaume d’Auvergne
elabora um imaginário urbano pela qual é fundamental a distinção
entre o selvagem e o civilizado, cidade e floresta. Para ele, e
a felicidade coletiva é superior à individual, o todo é superior
às partes e cheio de diversidades. Ou seja, a cidade é unitária,
no entanto seus componentes específicos devem também ser
respeitados, já que concorrem para o bem comum da cidade.

Outro trabalho estrutural para a formação dessa nova


imagem da urbe é a historiografia legendária. As cidades da
França já procuravam controlar e monopolizar as mitologias
gregas e romanas. Toulouse, por exemplo, forja a lenda
capitolina que faz dela à semelhança das antigas Roma e
Constantinopla. “É o espírito legendário das canções de gesta
que confere por toda parte uma auréola pseudo-histórica às
cidades francesas, e antes de tudo, é claro, através de Carlos
Magno, o grande herói épico” (LE GOFF, 1992, p.220).

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Há também o patriotismo urbano – muito ajudado pela
historiografia legendária -, e que já pode ser detectado em
“Elogio da Província de Tours”, onde tudo girava em torno do
prestígio de Tours e suas pontes. Outro exemplo é o “Livro dos
milagres de Notre-Dame de Chartres”, onde o leitor experimenta o
orgulho de ser chartriano.

O folclore também contribui na criação do imaginário. Na


fábula de Cocagne, há nesse país folclórico uma fonte, que era
comum nas cidades medievais, no entanto esta, em especial, tinha
poderes de rejuvenescer quem tomasse de sua água. Era a fonte da
Juventude.

Havia, portanto, a reflexão escolástica sobre a cidade,


sua historiografia legendária, o patriotismo urbano e o folclore
urbano. Estruturado nisso, se impôs o imaginário da cidade
medieval, com a ascendência dos mercadores.

De forma a regulamentar o processo produtivo na cidade e


facilitar negociações entre partes estruturantes da vida urbana,
os artesãos e mercadores se unem em várias corporações, o que
seria, mais tarde, os alicerces para a construção das novas
cidades renascentistas. Nelas se concentravam a técnica de
produção das mercadorias, e encontravam-se mestres, oficiais e
aprendizes, ou seja, elas influenciaram muito a disciplina de
trabalho urbano e o tempo da cidade, a serem ainda discutidos.

A cidade é mercado e é escola. Por tempos o ensino era


restrito ao contexto monástico e episcopal, entretanto foi
natural o surgimento as escolas laicas através dos conselhos
municipais, voltadas para os filhos dos mercadores. “Esse ensino
é o que chamaríamos de um ensino primário, num nível muito
modesto. Mas a aquisição por uma fração não desprezível dos
laicos urbanos do saber ler, escrever e calcular é uma conquista
imensa.” (LE GOFF, 1992, p.198). O ensino deixa de ser exclusivo
aos noviços e futuros padres e agora também é acessível – e bem
apreciado - pela burguesia, uma vez que ela, diferentemente dos
nobres, necessitava da habilidade da leitura para trabalhar. A
Igreja logo reivindica sua “vigilância” sobre o ensino
municipal, o que gerou conflitos com as autoridades urbanas.
Apesar disso, a Igreja foi fundamental na criação das
Universidades, surgida através das novas escolas e de teólogos
que, em Paris, através da escolástica, busca, a princípio,
observar e entender a atividade dos mercadores. Influenciados
pelos resultados, membros do clero buscam atribuir a culpa dos
problemas enfrentados pelos mendicantes às novas praticas
trabalhistas, ao dinheiro e à usura. A igreja se beneficiaria
com isso: é questionável a liberdade que as ordens mendicantes

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tinham para trabalhar na cidade, uma vez que a Igreja procurava
sempre controlar sua influência, portanto convinha para ela
atribuir à nova classe que ascendia a responsabilidade pelas
dificuldades das ordens.

Diante de tais circunstâncias, os mestres conseguem


licença para ministrar com a ideia de se misturar às corporações
da cidade, tornando-se algo maior e mais universal, uma
Universidade. Elas crescem e conquistam cada vez mais direitos,
em parte graças ao meio urbano. Ela passa a ter o próprio selo,
estatutos e programas. A cidade vê alguns fenômenos manifestados
pela existência de uma Universidade: promoção das línguas
vulgares, onde a publicação em latim tornou-se agregada a
versões em dialetos locais; o acesso e uso da escrita a uma
larga camada de categorias da cidade – tabeliões tomam notas não
mais somente dos clérigos, mas também dos burgueses; há agora
uma difusão do clérigo, que desempenha suas funções mas passa
também a participar da cidade como um todo, obtendo a partir
dela lucro financeiro – gozam do privilégio clerical mas se
difundem na cidade e no campo.

Sabe-se mais sobre o costume dos citadinos no fim da Idade


Média, quando eles começavam a se impor. O homem da urbe, assim
como o camponês, consome, majoritariamente, pão e aves, mas,
diferentemente do camponês, que usa o forno do senhor, o
citadino assa o pão em casa ou o compra do padeiro. Ainda
colocando o camponês ao seu lado, o habitante da urbe consome
muita carne, em especial aves, e é também apreciador de queijo e
vinho.

A burguesia rica tentava imitar a nobreza no que diz


respeito às roupas, o que gera um desconforto na corte. “As leis
suntuárias de Filipe, o Ousado (1279), e de Filipe, o Belo
(1294), tem por finalidade recolocar cada qual no seu lugar e,
antes de mais nada, os burgueses ousados demais” (LE GOFF, 1992,
p.223).

Em nível mais modesto, encontramos situações relacionadas


a preocupações alimentares. Encontra-se em um documento por PH
Amargier conselhos aos citadinos a respeito de práticas por
alguns mercadores, prevenindo-os contra a carne e o peixe, que
poderiam estar misturados a produtos estragados, contra a
farinha, que podia não conter o peso anunciado pelo vendedor.

No que diz respeito às festividades, o ciclo é


majoritariamente religioso. Havia as festas reais e principescas
que, por vezes, era aberta ao público, e as festas de

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“caridade”, promovida pela burguesia, onde se distribuíam
mantimentos aos pobres.

As ordens mendicantes surgiam num contexto em que a cidade


concentrava cada vez mais pessoas, e a necessidade da
evangelização tornava-se cada vez mais evidente. Diante disso,
elas tiveram o apoio dos papas, entretanto a Igreja, assim como
fez com as escolas laicas municipais, também aplicou sobre elas
a sua “vigilância”.

Ordens Mendicantes e Igreja

As ordens mendicantes surgiram no século XIII subsistindo


através de esmolas, entretanto sua mendicância era praticada de
forma diferente da dos mendigos comuns. Várias ordens foram
propostas, outras menos aprovadas pelo papado, mas as maiores e
principais era a dos dominicanos – chamados jacobinos na França
– e dos franciscanos.

Elas surgem num contexto de crescimento populacional no


meio urbano, num novo mundo que vem se firmando com seus novos
comportamentos influenciados pelo âmbito do tempo e do trabalho,
pelo apego ao dinheiro e ao comércio, pelo novo ofício
intelectual que surge com as novas escolas e universidades. Os
homens são vistos como pecadores, a cidade é pagã, cheia de
inveja, avareza e luxúria.

Onde então construir seus conventos e igrejas e


desempenhar o papel da Igreja de amparo e proteção aos mais
pobres e fracos? Dominicanos e franciscanos conceberam seus
estabelecimentos quase que simultaneamente, mas os primeiros
preferiram conventos nas grandes cidades importantes, enquanto
os franciscanos optaram por vários conventos menores em lugares
mais modestos. Eles conquistaram rapidamente o meio urbano:

“São 52 as ‘grandes cidades’ –


cidades com três ou quatro conventos de
mendicantes -, 37 das quais no reino, tal
como era então, e 15 ainda nos limites da
França atual, mas fora do reino no século
XIV. Entre essas 28 cidades, as ‘maiores’
tem quatro conventos [...]. Vinte e
quatro cidades tem três desses conventos
[...] fora do reino.” (LE GOFF, 2010,
p.181-182).

O dominicano Humbert de Romans acredita que o um dos


motivos para as ordens encontrarem-se nas cidades era que dali
elas poderiam também afetar o campo, pois acreditaram que o

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campo imita a cidade. E, de fato, essa afirmação é de todo
válida, uma vez que a praça desempenha um papel crucial na
difusão das culturas urbanas e rurais. “Por ocasião do mercado e
da feira, o mundo camponês penetra na cidade” (LE GOFF, 1992,
p.207).

Os mendicantes apoiam a crença no Além intermediário: o


purgatório. Eles são zelosos com os mortos e, sabiamente,
acolhem os perecidos dos leigos em suas igrejas e cemitérios. “O
cisterciense Cesário de Heisterbach escreveu, por volta de 1220,
que o purgatório, para muitos pecadores destinados ao Inferno, é
a última esperança” (LE GOFF, 2010, p.185). Tornam-se também
especialistas das novas formas de confissão, a confissão
auricular. “Essa nova confissão é uma revolução espiritual e
psicológica que cria um diálogo insólito entre os padres e os
leigos, desenvolve o exame da consciência, sofistica a
casuística moral” (LE GOFF, 2010, p.185).

As ordens conquistaram a vida urbana, principalmente os


leigos e a plebe, mas também mantinham sua amizade com os nobres
e burgueses. Não era incomum acolherem em suas igrejas
monumentos funerários ostentatórios por partes de tais classes.
Os conselhos municipais e novas instituições também utilizavam
suas igrejas quando não tinham seus próprios estabelecimentos.
Torna-se notável a influência dos mendicantes no urbanismo: “Em
muitas cidades a presença das três principais ordens,
dominicanos, franciscanos, agostinianos, traduz-se por um modelo
de estrutura triangular” (LE GOFF, 2010, p.187). No século XIV,
o franciscano Frei Francesch Eximeniç elabora um plano de cidade
ideal: um quadrilátero com quatro bairros e uma grande praça no
centro de cada um desses bairros, praça de cada uma das ordens
mendicantes.

As ordens atingiram uma influência política de tal


grandeza que muitos historiadores acreditam que ela perdeu-se em
seu próprio caminho. Mas não poderíamos dizer que as ordens não
foram, em certa medida, um intento protestante e reformador?
Algo semelhante ao protestantismo do final da Idade Média, mas
com a crucial diferença da não separação da Igreja, que soube a
regular e controlar. Algo curioso a ser notado aqui é o fato de
as ordens mendicantes enriqueceram através da burguesia, que foi
também a responsável pela Reforma Protestante.

A mesma Igreja que, na Alta Idade Média, também soube


controlar e usar o conhecimento. A concentração intelectual
concentrava-se nos seus conventos, e mesmo na forma escrita, o
latim, pouco acessível até mesmo ao letrado, era a língua
utilizada, dominados predominantemente pelos padres e frades. A

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ascensão o mercantilismo trouxe o ensino laico para os burgueses
e rapidamente a Igreja procurou obter sua parcela sob o controle
com sua função divina.

Nota-se certo afastamento dos burgueses da Igreja e de


seus dogmas, mas eles não negam a legitimidade da Cristandade. A
reforma protestante foi um movimento burguês que deu certo e,
assim como outros seguidos deste, contribuiu para com o fim da
Idade Média e toda a nova ideologia do Renascimento. “Em Aix-en-
Provence, onde há uma intensa atividade de construção de igrejas
no século XIII, só o canteiro da catedral Saint-Sauveur não
avança, porque os burgueses lhe recusam o financiamento em
proveito daquele dos conventos mendicantes, que tem todos os
seus favores” (LE GOFF, 1992, p.212). E de fato, os burgueses as
acumulam de doações e tem, em troca, privilégios concedidos
pelos frades, principalmente no que diz respeito às atividades
funerais. As grandes catedrais foram então construídas com o
patrocínio, sobretudo, dos nobres, mas quão pequena seria a
participação burguesa nisso? Ela era, afinal, uma classe
ascendente e que era cada vez mais marcante na cidade. Um ponto
a ser relembrado ao falar disso é o patriotismo presente no meio
urbano, ou seja, os burgueses iam ganhando espaço na cidade em
que tinham orgulho morar, logo, através de sua influência e
poder, eram agora capazes de desempenhar um papel mais
significativo na cidade. A construção da catedral, para a
cidade, era um grande marco, um feito importantíssimo para toda
urbe medieval e crucial para ser “legitimada” como cidade
“moderna” e importante. A catedral elevava o grau de importância
da cidade como poucas outras construções poderiam fazer. Nesse
meio, o burguês, com influência e dinheiro suficientes, podia
fazer, agora, parte dessa notoriedade e deixar sua marca na
cidade que tinham prazer e orgulho de se denominarem citadinos.
Claro que a edificação da catedral também alcançava o universo
turístico da cidade. Com sua exuberância e grandiosidade, logo
se abriram rotas de peregrinação religiosas, passando por vários
centros urbanos com suas respectivas igrejas e catedrais, e não
seria isso, aos olhos do mercador, uma consequência bem-vinda?
Os burgueses tiveram parte na construção das catedrais, até
pequena, poderia se afirmar, mas com certeza significativa.

A Igreja desempenhou um papel importante no viver urbano


no que diz relação ao tempo. Os sinos das torres propiciaram um
novo tempo, sobreposto – e muito distinto - ao tempo urbano.
Eles marcavam o tempo para a Igreja e suas atividades
religiosas, como preces, e o tempo rural, dos trabalhadores
rurais. Esse mesmo tempo não se adaptou ao ritmo da cidade, que
posteriormente precisou de seu próprio sino. Ele se contrapôs ao

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sino da Igreja, travando uma luta entre tempo urbano e tempo da
Igreja. Esse tempo urbano dava-se pelo ritmo do funcionamento da
cidade num contexto de ascensão mercantilista, ou seja, era
tempo urbano, mas era, sobretudo, o tempo mercantil, das
corporações, e da nova disciplina de trabalho que ali se
instalava.

Tempo e Trabalho

O trabalho e o tempo são correlacionados, já que um se


estabelece de acordo com o outro. Já muito antes da Idade Média,
sabe-se que os povos primitivos mediam o tempo através dos
processos familiares, no ciclo do trabalho e das tarefas
domésticas. “Evans-Pritchard o senso de tempo dos nuer: ‘O
relógio diário é o do gado, e para um nuer as horas do dia e a
passagem do tempo são basicamente a sucessão dessas tarefas e a
sua relação mútua’” (THOMPSON, 1998, p.269). Ainda segundo
Thompson, essa marcação do tempo pelas tarefas é mais
humanamente compreensível, uma vez que é guiada pela
necessidade, além de proporcionar uma difusão entre a vida e o
trabalho: a diferença entre o passar do dia e o trabalho é
mínima, o dia se prolonga e se contrai segundo as tarefas. Quão
longe isso estaria dos dias atuais? Claro que nesse âmbito
existe a crucial diferença da relação entre empregado-empregador
que não existia nas comunidades agrícolas primitivas, mas em
todos os domínios sociais encontram-se indivíduos que vivem para
trabalhar e trabalham para viver. Uma menção importante nisso
são os autônomos – artistas, escritores-, mas poderíamos até
mesmo comparar as posições sociais mais distantes uma da outra,
com aquele que precisa trabalhar para sustentar a si mesmo e a
sua família, podendo obter até mais de um só emprego, e aquele
possuidor de uma grande empresa ou fazenda que não ignora a
existência de suas posses e procura estar ao máximo presente
pelos seus bens.

É evidente a transformação do tempo guiado pelas tarefas


em tempo marcado assim que se contrata mão-de-obra, mesmo sem o
relógio. Na relação empregador-empregado o tempo vira moeda: o
tempo não mais passa, mas se gasta. Vê-se uma evolução para a
marcação de intervalos: tempo de cozimento do arroz, tempo de um
dia de trabalho. Esse tempo marcado era agora, sobretudo, medido
também em dinheiro, não apenas no campo, mas também nas cidades.
Mas elas tinham seu próprio ritmo, com o tempo urbano, tempo dos
mercadores, e o tempo da Igreja, acentuado pelo surgimento dos
sinos. Le Goff mostra como esse tempo foi contraposto pelo tempo

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dos mercadores e como a cidade eventualmente precisou do seu
próprio sino:

“Durante três séculos, do XII ao


XIV, uma áspera luta se desenrolara em
torno do tempo urbano, tempo dos
mercadores em primeiro lugar, contra o
tempo da Igreja, resistência, em seguida,
dos ‘miúdos’ ao tempo dos ‘graúdos’, dos
patrícios” (LE GOFF, 1992, p.195).

Ao sino dos citadinos, destinado a marcar o tempo urbano,


foi dado um aspecto monumental, colocado em uma torre alta para
ser ouvido mas especialmente visto, a desafiar o campanário da
Igreja. Mas era crucial desenvolver um mecanismo de marcação tão
preciso quanto às outras medidas já dominadas pelos citadinos,
como o peso e a moeda. Isso só veio a acontecer no século XIV,
com o relógio de pêndulo.

É importante destacarmos a distinção do tempo urbano para


o rural. Nos campos, o tempo de trabalho servil era ainda guiado
pela sucessão das tarefas e havia também todo um contexto de
trabalho familiar, onde eram atribuídas aos filhos do servo
diversas tarefas. Todo o universo de trabalho irregular, onde o
dia de trabalho se prolongava ou se encurtava, onde o trabalho
se estabelecia de acordo com a necessidade ainda se mantém. O
tempo era o rural, marcado, por vezes, pelos sinos da Igreja, e
também determinado pelo ritmo das cidades, já que o feudo também
se relacionava com a cidade, através do comércio,
principalmente.

Foi nas corporações de ofício que o trabalho se


concentrou: açougueiros, padeiros, comerciantes, tecelãs,
artesãos, muitos provenientes dos campos mas também frutos da
própria cidade. Ali se estabelecia uma relação entre mestre,
oficiais e aprendizes que eram detentores de um modo de produção
passado por seus membros.

Era comum nas pequenas oficinas, até mesmo nas maiores, os


homens se encarregarem de tarefas distintas às suas bancadas.
“Segundo as exigências gerais das tarefas semanais ou quinzenais
– a peça de tecido, tantos pregos ou pares de sapatos -, o dia
de trabalho podia ser prolongado ou reduzido” (THOMPSON, 1998,
p.280). Ou seja, ainda via-se nas cidades o tempo do trabalho
marcado pelas tarefas e uma irregularidade nos padrões do
trabalho que perdurou nas cidades e só foi “melhor corrigida”
com a introdução das máquinas industriais séculos mais tarde. Na
Inglaterra, o trabalho pelos autônomos (artesãos, tecelãs,
mineradores, fazendeiros) era necessário somente quando havia
falta de crédito e dinheiro.

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O relógio surgiu no fim da Idade Média. O homem tinha
agora um mecanismo mais preciso – embora ainda bastante
questionável – de marcação do tempo, o que afetou diretamente a
disciplina de trabalho. Extrapolando a esfera medieval, temos o
relógio de pulso, com sua fabricação concentrada na Grã-
Bretanha. Até 1790, quando surgiram relógios de pulso
extremamente baratos, eles eram sinônimo de luxo, mas eram
também um fundo de segurança do trabalhador. Ao ter dinheiro
suficiente, ele comprava seu relógio, e o penhorava quando fosse
necessário. O trabalho mantinha-se irregular e a segunda-feira
preservada: “A Santa Segunda-feira parece ter sido observada
quase universalmente em todos os lugares em que existiam
indústrias de pequena escala, domésticas e fora da fábrica”
(THOMPSON, 1998, p.283). O trabalho feminino também era
desgastante. Quando trabalhavam no campo, as mulheres mal tinham
tempo também em desempenhar a função doméstica que era lhe
atribuída.

A era industrial foi introduzida lentamente, enquanto os


métodos de contagem do tempo de trabalho foram progredindo aos
poucos. No século XVIII houveram investidas, por parte da
Igreja, contra o uso não econômico do tempo. Para o reverendo
Clayton, as paróquias e algumas escolas contribuíam para a
formação de preguiçosos, assim como os feriados e o hábito de
ficar na cama pela manhã. Nas fábricas, Thompson discorre sobre
as gerações de trabalhadores: a primeira aprendeu a importância
do tempo, a segunda lutou por uma jornada de trabalho menor, e a
terceira fez greve pelas horas extras com percentual pago a mais
pelas horas trabalhadas fora do expediente.

Outra questão a ser colocada era como os medievais se viam


na História. O dia e a noite dividiam-se em doze horas, mas não
havia interesse em submeter o tempo a um rígido sistema, exceto
talvez pelo clero e a Igreja, pela finalidade das atividades
religiosas – um dos motivos pelo qual o sino surgiu a partir da
Igreja. As semanas se dividiam em sete dias, mas o cômputo dos
anos era o mais problemático: “Desde o Egito faraônico atribuía-
se 365 dias a cada ano, mas como isso não correspondia
exatamente ao curso solar, com o tempo surgiram diferenças
significativas. Em função disso, na Idade Média variou
consideravelmente a forma de datação.” (FRANCO JR, 2012, p.22).
O dia inicial do ano também poderia variar de região para
região, tendo lugares adotantes do primeiro dia do ano sendo a
Páscoa, o que fazia que alguns anos tivessem 11 meses e outros,
13. Diante de tal imprecisão no cômputo do tempo, os medievos
não tinham clara noção sobre o próprio tempo. O clero lhes
fornecia respostas de cunho teológico, os laicos mantinham-se

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presos a concepções pré-cristãs: “As primeiras sociedades só
registravam o tempo biologicamente, sem transformá-lo em
História, portanto sem consciência de sua irreversibilidade”
(FRANCO JR, 2012, p.21). A noção geral, entretanto, era a de
estarem vivendo nos tempos modernos e próximos do fim dos
tempos, do Juízo Final – o que não seria tão distante do que
temos hoje, exceto talvez no que diz respeito ao Juízo Final:
apesar do enorme número de devotos a religiões que preveem um
arrebatamento no fim dos tempos.

Arte

O artista medieval concebia seus trabalhos a partir de


duas dimensões: as artes liberais, relacionada ao esforço
mental, abordando temas matemáticos e a retórica, e as artes
mecânicas, exigindo esforço braçal, incluindo-se carpinteiros,
ferreiros e alfaiates. O artesão, seguidor do artesanato, seguia
uma série de técnicas já testadas e aprovadas, e poderiam ser
incluídos nesse último grupo: foi somente a partir do
Renascimento que foi feita a distinção entre Arte e Artesanato.
Todo esse universo artístico é guiado por uma entidade: a
Igreja, que dita uma arte religiosa.

É produzida na cidade uma arte que é religiosa, mas é


também urbana: a arte gótica, projetada em suas catedrais. O
caráter grandioso das catedrais deveu-se a princípio da
necessidade de abrigar mais fieis nas cidades, mas também à
beleza: a grandeza é bela. “Percebe-se já no século XIII, a
altivez dos citadinos, que se orgulham de suas igrejas numa
época em que o primeiro critério de beleza é o da grandeza” (LE
GOFF, 1992, p.211). Tal dimensão deu lugar a uma ambição que
provocou edifícios condenados estruturalmente.

As catedrais foram erguidas a partir de ações da Igreja,


com o apoio da corte e, por vezes com certa relutância, da
burguesia, apesar de ser vista no interior das igrejas depois de
construída. A arte gótica é urbana, mas é também burguesa. É
burguesa nos vitrais que eles oferecem e nas capelas que eles
mandam construir em honra a seu santo patrono. As catedrais e a
arte gótica simbolizam o poder político da Igreja e o poder
econômico burguês.

A arte gótica urbana determina também as outras artes: “A


partir do século XIII, os ateliês urbanos suplantam os ateliês
monásticos e Paris, ainda aqui, torna-se o grande centro.” (LE
GOFF, 1992, p.214).

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O fim da Idade Média trouxe o Renascimento (ou será que o
Renascimento trouxe o fim da Idade Média?), e com ele o fim do
gótico. A arte urbana, religiosa, burguesa, já não era mais
urbana, pois a cidade era outra, o urbanismo era outro, e entram
em cena as novas cidades renascentistas, modeladas e pensadas
especialmente na medida do uso público, das antigas Grécia e
Roma, uma nova res publica.

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BIBLIOGRAFIA

WAISMAN, Marina. O Interior da História. São Paulo, 2013.

LE GOFF, Jacques. O Apogeu da Cidade Medieval. A função cultural – A imagem e o vivido. São
Paulo, 1992.

LE GOFF, Jacques. Uma Longa Idade Média. As Ordens Mendicantes. Rio de Janeiro, 2010.

THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. Tempo, Disciplina de Trabalho e Capitalismo


Industrial. São Paulo, 1998.

FRANCO JR, H. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. A (pre)conceito de Idade Média. São
Paulo, 2001.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média. Idade Média: passado e presente. São Paulo,
2010.

AMARAL, Ronaldo – A Idade Média e suas controversas mensurações: tempo histórico,


tempo historiográfico, tempo arquétipo. Revista de História de Estudos Culturais, n.1, 2012.

DE BARROS ALMEIDA, Néri. O Alvo da História da Igreja e a História da Igreja como Alvo: O
Exemplo da Idade Média Central (Séculos XI-XIII). Revista de Estudos da Religião, n.2, 2004,
pg.65-78.

http://arquitecturaurbanismo-usaz.blogspot.com.br/2014/10/cidade-medieval.html

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