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ACASO E R E PETI ÇÃO E M PSI CANALIS E

Uma Introdução à Teoria da s Pul sõe s


Luiz AHredo Garcia- Roza

ACASO E REPETICÃO ,
-

EM PSICANALISE
uma introdução
à teoria das pulsões

segunda edição

Jorge Zahar Editor


Rio de Janeiro
Copyright © 1 986, Luiz A l fr edo Garcia-Reza

Todos os direitos reservados.


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ou em parte, constitui vio lação do copyr ight. (Lei 5.988)

1 986
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Jorge Zahar Editor Ltda.
rua México 31 sobre loja
20 0 3 1 R io de Janeiro, RJ

Segunda ediçt!o: 1987

Produção editor ial Revisão: Robson Ramos (copy); Sérg io


Escovt�do, Renato Carva lho, Cláudio Estrella (t i p . ) ; Diagra­
mação: Celso B ivar; Arte-final: Antônio Sampaio (capa e
texto); Composição: Terezinha Losch .

CI P-Bras i l . Cata logação-na-fonte.


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, R J
Garcia-Reza, Luiz Al fredo, 1936-
G21 1 a Acasg__ e repetição em psicanál ise: uma intro-
dução à teoria das pu lsões I Lu iz A lfredo Garcia­
Reza. - R io de Janeiro : Jorye Zahar Ed., 1 986
B ib l iograf ia.
1 . Psicaná l ise. 2. Teoria das Pu lsões. I. T 1-
tulo.
86-0403 C D D- 6 1 6 .8917
CDU- 6 1 5.85 1 . 1

ISBN: 85-8506 1 -54-5


S U M Á RIO

Prólogo 9

cap ítulo 1 Sobre o Conceito de Pul são 11


A ficção freudiana. P u lsão e instinto. P ulsões p arc1a1s.
Pulsão sexual. A noção de Anlehnung. A pulsão como
perversão do instinto. A satisfação imposslvel. P ulsão e
acaso.

cap ítulo 2 Pulsão e Repetição 21


Rememoração e repetição. Repetição e transferência.
Repetição e resistên cia. A repetição e o Unheimlich . Re­
petição e pu lsão de morte.

capítulo 3 A Repetição em Hegel, Kierkegaard e


Nietz sche 27
No começo era o caos. Acaso e repetição entre os gregos.
Hegel e a noção de retrospecção. A repetição em K ierke­
gaard. Repetição n ão é reminiscência. Kierkegaard e Nie­
tzsche. A repetição e o trágico. O eterno retorno. O be­
haviorismo e a repetição. Borges e o Quixote.

cap ítulo 4 Sobre a Noção de Cau sa Acidental: Tyche


e Automaton 39
A noção de causa acidental em A r istóteles. Lacan: a
Tyche e o Automaton. Acaso e necessidade. A d ivina
providência. A rede de significantes. A fu nção do rea l .
Das Ding e die Sache.

capítulo 5 A Repetição e a s Má scara s 44


A repetição diferencial. A repetição e as máscaras. F reud
e a experiência primária de satisfação. O d iferencial p ra­
zer/desprazer. O prazer como processo e como principio.
A n oç ão de ligação. O sexual é o que se repete.
cap itulo 6 Pul são de Morte e Pul são Sexual 53
O dualismo f reud iano. A pul são e o sexual. A pulsão por
e xcelên cia. Investimento e pul são. O apare l h o psíqu ico.
Pulsão: corpo ou l i n guagem?

cap itulo 7 O Real e a Pul são de Morte 63


O rea l e o corpo. Energia l ivre e energia ligada. A n o ­
ção de f ig u ra/fundo. O silêncio e a p u lsão d e morte. O
reto rno ao i n o rgânico.

cap itulo 8 Morte e Pul são de Morte 72


A m orte como li m i te. A metamorfose da p u ls ão de morte.
A denegação. l n trbje ção e exp ulsão. A perda c)o objeto.
A p u lsão de morte como p ri n c ípio positivo.

capitulo 9 M ito s Co smogôn ico s e Du al ismo Pul sion al 81


Uma mito l ogia n ada agrad áve l. Empédocles: Philia e
Neikos. O mito como o i n co n sc ien te da ciência. Acaso
e determin ismo. F reud e Hegel.

capitulo 10 Além 90
Além do princípio de prazer. Apara to a n ím ico e aparato
psíqui co. O antinatu ralismo f reudi ano. F u n ção restitu­
tiva e fun ção repetitiva. A compu lsão à repeti ção. De­
leu ze: pu lsão de morte e in sti n to de mo rte . Sade e a n e­
gação. A nega ção em Spin oza. A negação em Hegel. O
princípio de p ra zer e a l igação. P u lsão e di sjun ção. Real,
S i m bólico e Imagin ário.

O bras c it adas 126


Para Pedro,
lngrid e
Carla
"O que se segue é especulação, amiúde especulação
forçada, que o leitor tomará em consideração ou
porá de lado, de acordo com sua predileção indivi­
dual. E mais uma tentativa de acompanhar uma
idéia sistematicamente, só por curiosidade de ver
até onde ela levará. "

(S. Freud, Além do princfpio de prazer)


PRO LOGO

A psicanál ise nos col oca , desde o i n ício, no lugar da l i nguagem,


e é p or referência a este lugar que ela nos fa la, mesmo quando
está se referindo aos corpos e ao mu ndo dos o bjetos. R eferida à
l i nguagem, a p u l são ocu pa u ma região de sil êncio S itu a-se num
a lém . Refere-se ao corpo, ma s não é corpo; está a l ém da l i ngua­
gem mas a p ressupõe. Conce.to-l imi te, a pu lsão nos a meaça com
o si lêncio teó rico.
F reud nos d iz que a teoria das pu lsões é a sua m itol og i a,
mas que as pu lsões, enqua nto entidades m íticas, não podem ser
desprezadas por um só momento. E ntidade mi't ica, resistente ao
olhar teórico mas ao mesmo tempo impresc i nd ível : Qua l é o
estatuto da pu lsão no i nterio r do d i scurso psicanaHt ico?
O que s ig n if ica d izer que a pu lsão é um conce ito-l im ite?
T rata r-se-á de u m l i m ite o ntológico, como se a pu lsão pertences­
se a u m a reg ião de penu m bra do ser, de ta l m odo que por ser
apenas i nsinuada é também apenas nomeada? Qu ando F reud
nos fa la da inacessibi l idade da pu I são, esta ria ele se referindo a
u m a i nacess i b i l idade metaf ísica, análoga à dos a nj os e dos demô­
n ios, d a í o recurso ao m ito ?
Seria a i nda a pu l são o índ i ce persistente de u m irraciona l i s­
mo em F reud ? A teo ria das pu lsões, e particu l a rmente o concei­
to de pu lsão de morte, nos remete a u m além que m u ito facil­
mente p ode ser identificado ao m isterioso e ao i nefável. Não.se­
r iam as pu l sões o l u ga r do acaso em psican á l i se? R ompendo com
a ordem natu ra l , as pulsões não se constitu i r ia m pel o pu ro acaso
dos encontros? N ão é i sto q u e d isti ngu e a pu lsão do i nsti nto? E
se a pu l são está no l u ga r do acaso, aqu ém da ordem e da lei, não
estará ela relegada defi n itivamente ao s i lêncio teórico?

9
10 acaso e repetição em psicanálise

M a is do que qualq uer outra coisa, a teoria das pu lsões


provoca a i ntel igência do leitor de F reud. N ão são todos os que
gostam de ser provocados nesse sentido; alguns preferem identi­
ficar a pu lsão ao i nsti nto e falar do "instintivismo freud iano " .
E ste trab a l h o não se propõe a tarefa de a barcar a teoria das
pu l sões em toda a sua extensão e em seus desdobramentos
poss íveis. Coloca algumas qu estões e propõe algumas respostas.

L.A.G-R.
1

SO B R E O CONCE I TO D E P U LSAO

A pu l são desenha o horizonte do d iscu rso psica na l ít ico. S itueda


aquém do inconsciente e do reca lque, ela escapa à trama da l in­
guagem e da representação, marcando o lim ite do d i scu rso con­
ceitu a l . Seu aparec imento nos textos freud ianos se deu nos Três
r/hsaios sobre a teoria da sexualidade ( 1 90 5 ) e, embora nessa
época seus contornos a i nda não estivessem bem del i m itados, sua
importância já se faz ia senti r de forma i n e l u d ível. N uma nota de
rodapé acrescentada em 1 924, F reud nos diz que "a teo ria das
pulsões é a p a rte mais importa nte da teo ria psica n a l ít ica e m bo­
ra, ao mesmo temp o, a menos comp leta" .1 E st ranha declaração
esta, segu ndo a q u a l a parte mais i mportante da teoria psicanalí­
tica permanecia , v inte anos d epois de formu lada, a menos com­
pleta. A que seria d evido essa incomp letude i nsuperável?
Uma primeira tentativa de resposta poderia ser feita a par­
tir mesmo do texto de 1 90 5, quando F reud afirma q u e o con­
ceito de pu lsão é um dos que se situ am na fronteira entre o
psíq u i co e o f ísico. 2 E sta afi rmação deu margem a u m a série
de interpretações, a lgumas extremamente ingênuas e outras ex­
tremamente bizarras. Seria a pu lsão u ma espécie de entidade
m ítica, habitante desse espaço i nefável que se situa entre a
res cogitans e a res ex tensa cartesianas? Ass i m o entenderam
alguns exposito res de F reud . Para estes, o estatuto metaHsico
da pu lsão seria o responsável pelo inacabamento da teoria. Tal

� Freud, S., E.S.B., Vol. Vil, p. 17 1 .


lbld

11
12 acaso e repetição em psicanálise

como os a njos ou os demônios, a pu lsão seria inabordável pela


ciência. Apesar de tocar num ponto importante da questão,
essa interpretação comete um engano f u ndamenta l : em nenhum
momento F reu d se p ropõe a esta be lecer o estatuto metaf ísico
da pu lsão; aqu i l o de que ele nos fa la é do conceito de pu lsão,
isto é, de u ma f icção teórica e não de u m a entidade que possua
rea l idade ontológica. Podemos concordar que este conceito tem
como referente o corpo, mas i sto não sign ifica que designe uma
parte do corpo ou que possa ser identificado a uma substância
determ i nada que tenha escapado ao o lhar i nvestigador da
ciência.
Outra i nterpretação é aqu ela que reduz a pu lsão ao bioló­
g ico. E sta, apesár de igu almente f rág i l , encontra apoio em do is
ponto s : o prime i ro é a tra dução feita por J . Strachey do termo
alemão Trieb pa ra o i n g l ês lnstinct; o segu ndo é um trecho do
próprio F reu d e m A pu/são e suas vicissitudes, onde encontra­
m os o seg u i nte : "Se agora nos ded icarmos a considerar a vida
mental de um ponto de vista biológico, u m 'insti nto• ( T rieb ) nos
aparecerá como sendo um conceito situado na fronte i ra entre o
menta l e o somático, como o representante psíqu ico dos esH­
mu l os q u e se orig i nam dentro do organismo e a l cançam a men­
te, como u ma medida de exigência feita à mente no sentido de
tra ba l h a r em conseqüência de sua l igação com o corpo." 3 E
significativo que os comentadores de F reud, ao se referirem
a este texto, om itam a chamada de pé de pág i na que Strachey
introduz p reci sa me nte pa ra chamar a atenção do leitor quanto à
i nadequação d a identificação do Trieb freudiano com o i nsti nto
dos biólogos. Po r outro lado, l e r ao pé da l etra a f rase "do ponto
de vista b i o l óg ico" é recusar-se a ler a seqüência do texto que des­
q u a l i fica esse "bio lógi co" i nteiramente. Parece-me c laro que ·

"ponto de vista bio lógico", aqu i , sign ifica mu ito mais "ponto de
vista do corpo" - como i nd ica o final do parágrafo - do que
"ponto de vista da b io logia". Se a pu lsão é u m conceito s ituado
n a fronte i ra entre o menta l e o somático, se e la tem sua fonte
no corpo e seu o bjeto no registro p s íquico, podemos falar dela
"do p onto de v ista do corpo" como podemos fazê-lo "do ponto

3 Freud, S., E.S.B. , Vol. X I V, p. 1 42.


sobre o conceito de pu/são 13

de v ista psíqu ico". E para os- adeptos d a s simpl if icações, é


bom advertir que o corpo não é bio l ógico, isto é, que ele não é
propriedade exclu siva da b io logia . "Corpo b io lóg ico " é u m pro­
duto da b i o l ogia e não a essência do corpo. A menos que se con­
funda bio logia com meta f ísica.
Logo na p rimeira pág i na do mesmo artigo - A pu/são e
suas vicissitudes - F reud nos adverte que o conceito de pu lsã o
é u m Grundbegriff, isto é , u m conceito fu nda m enta l . C laro que
o "fu ndamenta l " aqu i refere-se à teoria psican a l ít ica e não à
b i o l og i a . Seria u m a ingenu idade pensarm os que u m conceito
teórico pudesse pertencer a duas ciências d isti ntas e a i nda por
cima manter-se como fundamenta l. Um termo, ou mesmo uma
noção, p ode pertencer a dois espaços do saber d i stintos, mas u m
conceito teórico só s e d efine por referência a u m campo teórico
espec ífico. Assim , o termo T rieb tem u m a l onga h i stória, m as o
conceito psicanal ít ico d e Trieb é exc l u sivo d e F reud. A verdade,
porém , é que é mais fác i l b i o l ogizar um conce ito psicana l rtico
do que procu rar entender sua especificidade i rredu t ível .
Outro texto que s e tornou a lvo d esse b io logismo foi Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade. N .o entanto, o que ele nos
revela é o propósito sistemático de F reud em desqual i ficar a
identificação da p u l são com o inst i nto ou, em termos mais am­
p los, em desqua l ificar sua assim i l ação ao b i o l ógico. Quando ele
expõe, no primeiro d os três ensaios, o tema das a berrações
sexuais tal como era tratado pela med icina da época, não o faz
no sentido de adotar a mesma postura teórica e de endossar os
pontos de vista de Kraft-Ebing, M o l l , H avelock E l l is e outros
ma is, e sim no sentido de i r pau latinamente marcando a diferen­
ça que o caracteriza do ponto de vista psicanal ítico. F reu d ex­
põe o ponto de vista da ciência da época sobre a sex u a l idade
não para u t i l izá- l o como ponto de partida teórico, mas para pro­
ceder a u m a genti l desmo ntagem que o desqua l ifica para a psica­
ná l ise. Para além da q uestão das chamadas a be rrações sexua i s,
Freud insiste no fato de que a sexua l idade h u ma na é, em si mes­
ma, a berra nte: aberrante em re lação à fun ção b i o l óg ica da repro­
dução. O que a p u l são sexual v isa não e a reprodução, mas a sa­
tisfação. O m ín im o qu e podemos d izer da sexua l idade hu mana
é que ela não é natural, mas que se encontra necessariamente
submetida ao simból ico. E do corpo su bmetido ao s i m bólico
14 acaso e repetição em psicanálise

que F reud nos fa la e n ão do corpo enquanto "natu ra l" ou b io­


l ógico. Voltarei a esta questão ma is adiante.
A p u l são não é u m "dado" da rea l idade e nem u m conce ito
já pronto, d ispon ível na ciência da época, e do qua l F reu d lança
mão. O que é, então, a pu lsão?
Em pri meiro l u gar, e aceitando a indicação do próprio
F reud, devemos considerá- l a como uma ficção . A pu l são não é
u ma descoberta freu diana, mas u ma produção teóricd de F reu d.
Portanto, no sentido mais estrito da pa lavra, ela é u ma in venção.
Ta l como os conceitos das dema is ciências, o termo "pu l são"
não designa u ma rea l idade existente, mas um m odo de falar de
existentes; e l e aponta para um conju nto de ou tros conceitos que
formam a teoria psicanal íti ca. No entanto, não é u m conceito
como os d ema is, é portador de u ma opacidade que l he é essen­
cial; ele recusa a si mesmo a transpa rência p retendida pelos con­
ceitos das demais ciências e pela ma ioria dos conceitos da pró­
pria teoria psicanal ítica. Assim como aponta para a teoria, ele
aponta também para a lgo qu e se fu rta ao o l har conceitual. !: por
metáforas que falamos da pu I são.
Mas tam bém não é da pu l são em gera l que F reud nos fa la
i n icia l mente, e sim da pu lsão sex u a l em particular. Esta, nos d iz
ele, não é u ma coisa simples mas a lgo qu e resu l ta da reu n ião
de pu l sões parcia is,4 sendo que na fase i n icial do desenvolvi­
mento do indiv íduo, a própria d isti nção entre pulsões sexuais e
pulsões de autoconservação não pode ser feita. A diferenciação
entre elas só va i acontecer após um investimento objeta I. 5
!:, porém, em relação a su a fonte (Ouelle) e ao seu obj etivo
(Ziel ) que a pu l são parcial se define i n icialmente. F reud nos d iz
qu e essa fonte é de natu reza somática, o qu e aparentemente co­
l oca em risco a autonomia do conceito de pu l são em re lação ao
conceito de i nstinto, sobretudo quando ele nos afirma que ori­
g i n a l mente.'ft sexuallibido e a /ch- Triebe encontram-se m i stura­
das. No entanto, sabemos da ambigü idade de que se reveste a
noção de fonte da p u l sãq para F reud : ora ele nos fala de fontes
exclu sivamente internas," ora coloca lado a lado fontes i nternas

4
Freud, S. , E.S.B., Vol. VH, p. 1 65.
5
Freud, S., E.S.B., Vol. XIV, p. 92.
sobre o conceito de pu/são 15

e externas (isto se dá, pelo menos, nos Três ensaios). I:: somente
a partir do seu a rt igo de 1 9 1 5 (A pu/são e suas vicissitudes ) q u e
e l e vai afirmar que as pu lsões têm sua origem numa fonte pu ra­
mente somática, entendendo-se por "fonte somática" o órgão
de onde provém a excitação, ass i m como o próp rio processo de
excitação. I:: a fonte (Ouelle ), ju ntamente com o objetivo
(Ziel) , que confere à pu lsão parc i a l sua especi fic idade. E m se
tratando da pu lsão sexual, F reud denom i na essa fonte de zona
erógena. E esta é mais u ma das armad i lhas desse d i f íc i l texto. A
ênfase concedida à boca e ao ânu s como z onas erógenas nos
conduz novamente à h ipótese de u ma determi nação biológi­
co-anatômica para as pu l sões. N o entanto, em nota de rodapé
acrescentada em 1 9 1 5, F reu d nos d iz que após ref let i r ma is foi
levado a atribu ir a qua l idade de erogeneidade a todas as partes
do corpo e a todos os órgãos internos, b o que significa que ne­
nhum órgão em particu l a r, a ssim como nenhu ma parte espec ífi­
ca da superf ície corpora l , detém a exclusividade do que é
sexua l . Se qua lquer parte do corpo pode ser u m a z ona erógena,
é sinal de que nenhuma parte é considerada corno essencialmen­
te sexua l .
Perma nece, porém, o fato de que e l e não somente concede
um valor ma ior a certas z onas do corpo (às regiões mucosas, so­
bretu do ), como faz da experiência de satisfação do lactente o
protótipo da experiência de satisfação sexua l . N o famoso cap í­
tu lo V I l de A in terpretação de sonh os, F reud nos mostra u m
comportamento i nstintivo serv i n do de fonte para a pu lsão : o
instinto de a l i mentação fornecendo a base da experiência de
prazer-desprazer no lactente. Por esse texto, já fica claro qu e a
fonte da pu lsão é corporal . E ssa mesma experiência de satisfa­
ção (Befriedigungserlebnis ) é u t i l izada p or F reud mais tarde, 7
ao fa lar do auto-erotismo, p ara ind icar a origem somática e mes­
mo inst intiva da p u l são. No enta nto, essa art i cu lação da p u l são
ao instinto, tal como ele nos apresenta, assi nala mu ito mais u ma
distância e u ma diferença do que u ma ident i dade.
A relação da pu lsão (Trieb ) com o i nstinto ( lnstinkt)

6 F r e u d, S., E.S.B., Vol. VIl, p . 188, nota.


7 Freud, S. , E.S.B., Vol. VIl, pp. 186·7.
16 acaso e repetição em psicanálise

é descrita por F reud através do termo Anlehnung ( apo io) . A pu l­


são se apóia no insti nto não pa ra confundi r-se com ele, mas para
desviar-se dele. A pu lsão é fu ndamenta lmente u ma perversão do
instinto. Essa perversão se dá por uma desnatu ral ização deste
ú ltimo, na medida em que ela se desv ia de seu obj et ivo natu rétl
que é a au toconservação. A p u l são não tem por final idade man­
ter a v' i da ( n o sentido bio lógico do termo) ; sua final idade não é
natura l . Isto não quer dizer que a pu lsão nada tenha a ver com
o biológ ico, e s i m que o b i o l ógico sofre nela e por ela uma trans­
formação rad ica l, que a pu l são não se total iza, que ela, enquan­
to pu lsão sexual, é semp re parc i a l . Além do ma is, devemos ter
em mente qu e F reud nu nca pretendeu identif icar a pu lsão com
sua fonte inst i ntiva. A pu lsão, nos d iz ele, é o representante no
psiqu ismo de u m est ímu lo qu e ocorre nurr, órgão ou parte do
corpo. 8 Assim, ao mesmo tempo em que a pu l são representa
o corpo no psiqu ismo, ela só se faz presente neste ú l timo atra­
vés de seu s representantes psíqu icos : a idéia (Vorstellung) e o
afeto (A ffekt) .
Retornando à nossa questão, s e d e u m lado temos a fonte
da pu lsão, no extremo oposto temos o objetivo. O objetivo da
pu lsão, escreve Freu d, é sempre a satisfação. 9 E como a pu lsão
se satisfaz ? R esponde ele que é pela e l i m i nação do estado de es­
timu lação na fonte. Sabemos, no entanto, que desde o começo a
pu lsão sexual é i n i b ida quanto ao seu objetivo, isto é, desviada
de seu s fins exp l icitamente sexuais e d i rigida para o bj etos que
não apresenta m nenhu ma relação aparente com o sexua l . Mes­
mo quando permanece a lguma marca de sua origem sexual, po­
demos afirma r que h ouve um desv io de objetivo e uma su bstitu i­
ção de objeto. Essa i n ib ição qu anto ao objetivo é a caracter ísti­
ca central do mecan i sm o ao qual F reud chamou de sublimação.
Dentre os vários sentidos que o termo "su bl i mação" to­
mou em nossa l íngua (e o mesmo aconteceu na l íngua a lemã),
três são particu larmente significativos: Su b l imar = 1) E rguer
à ma ior a ltura, ou a u ma grande a ltura; 2) EJevar à maior perfei­
ção, pu rificar; 3) Fazer passar (um corpo) d i retamente do esta-

11 Freud, S .• E.S.B., Vol. XIV, p. 1 43.


9 Freud, S. , E.S.B., Vol. XIV, p. 142.
sobre o conceito de pulsaõ 11

do sól ido ao gasoso. 1 0 N os três está presente a idéia de descor­


porif icação, de desrea l ização. É enqu a nto desreal izada, enqu a n­
to idéia ( Vorstellung ) , que a p u l são se faz presente no psiqu is­
mo, sendo que sua satisfação se faz de forma fantasrifát ica. I sso
nos conduz a entender a frase de Freu d segu ndo a qua l o objeto
é o que há de mais variável na pu l são, como uma declaração
qua nto à i mposs i b i l idade da satisfação ser atingida. Como a pul­
são é i n i b ida quanto a o seu objetivo, o que a o briga a u ma mu­
dança de objeto, a satisfação é imposs íve l. I sto, p orém, só é ver­
dade em parte. O sentido mais forte da afirmação de Freud não
está na imposs i b i l idade da pu lsão ser satisfeita, mas nas m i l e
uma maneiras dela ser satisfeita. A cu ltu ra não é u m resídu o
inúti l da p u l são, mas a mu ltipl icação d e suas possib i l idades de
satisfação.
A suposição de Freud é de que a pu l são procu ra u ma satis­
fação que já fo i o btida u m dia, na nossa pré-h istória i n d ividual,
antes do interd ito que nos tornou huma nos. A part i r de então,
foi i n ib ida quanto ao seu objetivo e o brigada a um cam i n h o de
aventu ras qu e F reud chamou de Triebschicksale as vicissitu­ -

des da pu l são. Pe la ameaça que traz ia consigo, fo i proibida de se


apresentar d iretamente aos o lhos assu stados d o huma no . Porta­
dora do goz o e da m orte, viu-se forçada a fazer-se representar
pelos seus representantes para poder ter acesso ao mu ndo da
subjetividade. A Vorstellung e o afeto são seu s delegados, e é
sobre eles qu e a psicaná l i se nos fala. À pu lsão em s i mesma, fica
reservado o l u gar do si lêncio. Isso, porém, não significa que te­
nha sido suprim ida, mas que, ta l como os dragões m itológicos,
fo i condenada a v iver reclusa numa caverna à entrada da qua l
ouvimos apenas os seus ru gidos e sentimo:. o cheiro de enxo­
fre que ex ala de suas narinas. Cada um de nós v ive a ameaça da
virgem que l he tem de ser oferecida em sacr ifício.
O que f ica claro a part i r da primeira exposição que Freud
nos faz sobre a p u l são é que ela é entend ida como u m desvio
do instinto. A noção de apoio (Anlehnung) é o referencial privi­
legiado para esta concepção, o que levou Lapla nche a estabele­
cer uma ana logia entre a Anlehnung freud iana e o clinamen da
física epicuréia.

10 Holctlldd, A.B. - 01cionário da lingua portuguesa.


18 acaso e repetição em psicanálise

Se a pu lsã o é entendida por F reud como u m desvio do


instinto, ela é u m desvio da ordem, e portanto só poderá ser
concebida como acaso se este for considerado acaso-c on stitu ído
(secu ndário) e não como acaso orig inal. A pu l são-desvio-do- i ns­
tinto seria, quando mu ito, u m acidente e não acaso orig i na l .
Portanto, se considerarmos a noção d e apoio como definitiva
em F reud, a poss i b i l idade de falarmos em acaso em psicanál ise
teria que ser descartada. Mas se não qu isermos nos descartar tão
rap idamente da idéia, poder íamos su por a in da dois cam i nh os
poss íveis: O primei ro de les seria admitirmos, em F reud, n ão
uma, mas duas (ou mais) teorias das pu lsões; u ma delas corres­
pendendo ao período qu e vai de A in terpretação de sonhos até
os Escritos da metapsicologia (na qual a pu lsão seria pensada em
termos de apoio-desvio), e outra correspondendo ao per íodo
compreend id o pela seg u n da tóp ica, no qua l a noção de apoio é
aba ndonada ou pelo menos não é m a is tomada como referência.
O segu ndo caminho consist iria em mantermos a noção de apoio­
desvio, mas invertendo o seu sentido. É preciso lembrar aqu i
qu e o clinamen a o qua l Laplanche se refere é o de Epicu ro, e
n ão o de Lucrécio. Assim, do ponto de v ista deste ú lt i mo, não
seria a pu l sã o um desvio do instinto, mas este é qu e seria u m
desvio d a pu lsão. Este segu ndo cam i n h o n o s i mpõe u ma espe­
cu lação forçada, como d isse F reud, mas a t ítu lo de exerc ício
podemos empreendê-la.
Ad m itamos qu e o ser v ivo, em suas formas i n i cia is, embora
organ izado, não apresentasse pad rões fixos de condu ta (que se­
riam os insti ntos) , mas qu e aqu ilo a que chamamos de v ida con­
sistisse num impu lso anárqu ico p rodu tor de encontros ao acaso.
Desses encontros resu ltariam formas comp lexas, a lgumas efica­
zes (no sentido de se r e m au toconservadoras) e ou tras ineficazes.
A ma nute nção das p rimeiras seria responsáve l pela produção de
uma " natu reza" e pela fixação de um padrão de comportamen­
to. Este seria o instinto ( lnstin kt). Se aceitarmos esta h ipótese,
teremos o insti nto não como u ma ordem essencial e orig i nária,
mas como a "fixação" de certas a rt icu lações do organ ismo com
o meio. Uti l izando um termo retirado de Lei bniz, d i r íamos que
permaneceriam as a rt icu lações m a is composst'veis, sem que isto
i mplicasse nen huma dete rm i nação essencial desta compossi­
t.Jilidade. Ora, neste caso, o i n st i n to é qu e teria qu e ser conside-
sobre o conceito de pu/são 19

rado como "apoiado" na p u l são, e não o contrário. Aqu i l o a


que chamamos de "natu reza" nada mais seria do que a fixação
de determ inadas combinações pu lsiona is, e o instinto seria, nes·
te caso, a man ifestação dessa "na tu reza"; seria mantenedor da
"mesm idade", e não p rodutor de d iferenças. Assim, a p u l são de
qu e nos fala F reud seria a emergên cia desse caos original, dessa
força não domada e que persi ste como fundo não ordenado de
todo ser v ivo. A pu lsão seria, pois, a reafirmação constante do
acaso. E sta concepção, a lém de manter o caráter origina l da p u l ­
são entendida como acaso, poss i b i l ita pensar o conceito freud ia­
no de pu lsão de morte. De fato, toda pu l são é p u l são de morte,
já que ela não tem por o bjetivo a auto co nservação, a repetição
do "mesmo", mas é sobretudo expansão, p rodução de d iferen­
ças, puro lugar da d i spersão. O i nstinto seria reat1vo, enqu anto
que a pu lsão seria atividade pu ra.
Lamentavel mente, a idéia não é boa. A suposição i n icial de
um ser v ivo, e portanto organ izado, cujo comportamento seja
inteiramente anárqu ico, traz consigo d i ficu ldades que me pare­
cem i nsuperáveis. Pode r íamos lança r mão de especu lações feitas
por pensadores mais experimentados nesses vôos cosmogôn icos,
ta is como Leucipo, Demócrito, E p icu ro ou Lucrécio, mas ape­
sar desse recu rso, a h ipótese de u m acaso original, acaso abso lu­
to, permanece esbarrando em g randes d i ficu ldades.
A verdade é que a part i r do texto de 1920, F reud não se
mostra mais p reocu pado em def i n i r a pu lsão em termos de
apoio-desvio. Pelo menos em relação à pu lsão de morte, a noção
de é tayage não é ap l icáve l; e quanto à pu lsão sexu al, parece-me
que ela terá qu e ser repensada ou, pelo menos, reava l iada. A hi­
pótese da pu lsão de morte como sendo essencial mente conserva­
dora é tributária de u ma visão do mu ndo que F reud nos oferece
em Além do princípio de prazer, e que é consistente na medida
em que aceitamos a exi stência de u ma .ordem original, a lgo se­
melhante à physis dos pré-socráticos.
A idéia de que o mu ndo na sua total id�1de possu i u ma or­
dem essencial é rel ig iosa por excelência, e sempr� agradou à filo­
sofia e à ciência, e ao que parece agradava também a F reud. O
pressuposto dessa o rdem u niversa l é fu ndamenta l para a sua
teoria, mas enquanto ela é perfeitamente adequada à n oção de
i nstinto (lnstin kt), sua conci l iação com a teoria das pu lsões
20 acaso e repetição em psicanálise

apresenta algu n s problemas. O n i rvana freu d iano não é h u mano ,


não é sequer vital, j á que a próp ria vida é vista como pertu rba­
ção, como " ro mpedora da paz"; o estado de perfeito equ i l íbrio
seria encontrado apenas no mu ndo inorgân ico, a ntes da vida ter
feito sua ernt!rgência. Uma vez tendo se produz ido esse des­
vio - a vida - seu destino natu ral não poderia'ser outro senão
o retorno ao i nan imado. Para F reu d, a idade do ouro não per­
tence aos deuses, mas à matéria.
Pode r íamos a rgumenta r que toda essa questão é inócu a ou
pelo menos bizarra, já que a psicanálise não se propõe como
u ma teoria sobre a origem da vida, mas como u ma teoria do in­
consciente psíqu ico. N o entanto, a partir do momento em que
nos damos conta do conceito de pu lsão, da oposição entre pul­
são de vida e pu l são de morte, da noção de compu lsão à repeti­
ção e de outras mais que ganham relevo a part i r da segu nda tó­
pica, e quando sabemos a inda pelo próprio F reud que essas
noções são consideradas como fu ndamentais, então não pode­
mos fugir à questão.
Creio que por enqu anto podemos manter as duas afirma­
ções básicas referentes à pu lsão: 1) Qu e pu l são não é instinto;
2) Que as p u l sões são anárqu icas. Qu anto à prime ira delas, em
que pese a leitura que a lg u n s psicana l istas fazem da Standar d
Edi tion e o fato de tomarem a tradução de James Strachey à
letra, parece-me que restam poucas dúv idas. A qu estão princi­
pa l não me parece a de se saber se a pu lsão é ou não i nstinto,
mas se é ou oão um desvio do i nstinto. Aceito de bom grado
que as i nd icações fornecidas i n icialmente por Freud nos levaram
a considerá-l a como desvio (apoio-desvio, segu ndo Laplanche).
mas não estou certo se ele manteve este ponto de vista até o
fim. Quanto à segu nda afirmação, embora não concorde em que
ela seja apl icada i n d ist intamente à pu lsão de morte e à pulsão
sexual , pretendo defendê-la.
2

P U LSÃO E REPETI ÇÃO

Em seus começos v ienenses, a prática terapêut ica freu diana con­


sist ia em fornecer meios ao paciente para que pudesse recordar
um determ i nado fato i n fant i l que teria sido trau mát ico, a f i m de
p rovocar a a b-reação do afeto a ele l igado. E ra o momento da
catarse, e a recordação visava preencher lacu nas da memória. E s­
sa p rática era u ma das mu itas reatu a l izações modernas da teoria
platôn ica da rem i n iscência, segundo a qual somos portadores de
u ma verdade esquecida; se bem que a rememoração (Erinnern )
em F reud não deva ser identif icada à rem i n iscência platôn i ca.
E n qu anto esta ú ltima se refere a u ma forma, u m eidos h a bitante
do mu ndo das I dé ias, a rememoração freud iana permanece p ri­
sionei ra desse mu ndo fantasmático e m i nú scu l o que F reu d nos
revela em A' interpretação de sonhos. O que pretendo ressa l tar
aqu i é esse fato de sermos portadores de u ma verdade que não
se oferece docilmente à memória. Para F reud, o que o esqueci­
mento ocu ltava era a verdade da doença, da í o recu rso i n icial
à h i p nose como forma de se chega r ao acontecimento trau máti­
co esquec ido. A h ip nose era a técn i ca empregada para romper o
b loqueio da memória, e mesmo depo is de sua su bstitu ição pelo
método da associação l ivre, o o bjetivo visado era a i nda a rem i­
n i scência. N o entanto, por ocasião do tratamento da j ovem
Dora, na época em que sa (a pu b l icada A interpretação de so­
nhos, F reud se defrontou com u m fato novo que desempenh ou
u m papel decisivo no futu ro da teoria e da técnica psicanal íti­
cas: a repetição (W iederholen ). E n qu anto estava p reocupado
com a recordação dos aconteci mentos passados do paciente, es­
te desenvolvia u m outro mecan ismo, n ão tão evidente mas igu a l­
mente i mportante, de cuj o significado e alcance F re u d sequer

')I
22 acaso e repetiçaõ em psicanálise

suspeitava : " O paciente não recorda coisa a lguma do que esque­


ceu e recalcou , mas expressa-o pela atuação ou a tua-o (acts it
out). E le o reproduz não como lembrança, mas como ação; re­
pete-o sem, natu ralmente, saber qu e o está repetindo."1 A im­
portância desse fato ficou patente pa ra F reu d, quando sua pa­
c iente o abandona três meses depois de i niciado o tratamento,
repetindo com ele u ma situ ação que havia viv ido a nteriormente
com H err K.2
A part i r de então, F reud desdobra a sua escuta e tem a
atenção voltada para esse novo mecan ismo que passa a ser o re­
ferencial privi legiado da prática c l ín ica. " Logo percebemos- es­
creve F reu d - que a transferência é, ela própria, apenas um fn�g­
mento da repetição e que a repetição é u ma transferência do
passado esquecido ( . . . ) . " 3 O ra , se admitirm os que a transferên­
cia é o processo que fu nda a relação anal ítica, e se ela é um caso
particu lar da refJ�::l ição, podemos concl u i r que o tratamento psi­
cana l ítico só tem in ício quando o paciente produz u ma repeti­
ção desse tipo com o anal ista. Evidentemente , essa repetição
não se dá conscientemente, pois, se isto o corresse, ela perderia
sua eficácia como mecan ismo defensivo. Assim , se a repetição
é o que impede a rem i niscência, ela é, ao mesmo tempo, o sinal
i rrecusável d o confl ito ps íqu ico; se por u m lado é u ma forma de
resistência, por outro é o mais poderoso dos instru mentos tera­
pêuticos.4
Lacan o bserva qu e a afirmação segundo a qua l a transfe­
rência é u m a repetição tornou-se luyar-comu m, e que embora
a repetição esteja presente na transferência, e que foi a propó­
sito desta ú ltima que Freu d abo rdou o tema da repetição, "o
conceito de repetição nada tem a ver com o de transferência".5
Isto sign ifica que se na transferência dá-se uma repetição de
protótipos infantis, essa repetição não é uma reprodução de si­
tuações rea i s vividas pelo paciente, mas equivalentes simbó li-

I
Freud, S . , E.S.B., Vol. X II , p. 1 96.
2
Freud, .
S . E.S.B., Vol. VI l , p. 1 1 6.
3 Freud,
4 S., E.S,B., Vol. X I I , p. 1 97 .
F reud, S . , E.S.B., Vol. XV I II , p . 300.
5
Lacan, J., O Seminário, Livro 1 1 , pp. 36 e 1 36-7.
pu/são e repetição 23

cos do desejo inconsciente. 6 O que se repete, faz-se num ato


que só toma sentido em relação ao ana l ista, o qu e impl icaria,
pelo menos, que fizéssemos u ma dist inção entre " repetição
do mesmo" e " repet ição diferencia l"_ Se transferência é repeti­
ção, ela é u ma repetição d iferencia l , e somente sob este aspecto
a repet ição toma um sentido positivo e pode constitu ir- se como
u m i nstru mento no sentido da cu ra.
A qu estão da repetição volta a ser a bordada por F reud,
em 1912 no art igo A dinâmica da transferência, 7 mas é somente
em 1914, em Recordar, repetir e elaborar, 8 que a d istinção e n­
tre recordação e repetição é tratada de forma m a is ampla. A
transferência é aqu i considerada como u m " fragmento da repe­
tição" . O qu e se repete são protótipos infa ntis, de tal forma
que o anal ista, ao ser captu rado nestas repetições, toma o lu gar
da imago paterna ou materna, dando lugar à transferência. Essa
compu l são a repetir padrões a rcaicos su bstitu i a recordação, o
qu e faz com qu e F reud identifique a repetição como u m a resis­
tência: "Quanto ma ior a resistência, mais ex tensivamente a atua­
ção (acting out) (repetição) su bstitu irá o recordar, pois o recor­
dar idea l do que fo i esquecido, que ocorre na h ipnose, ·corres­
pende a u m estado no qual a resistência foi posta de lado. 9 En­
carada dessa forma, a transferênc ia é u m su bstituto da recorda­
ção (qu e seria o exi g id o terapeut icamente) e, portanto, u ma re­
sistência a esta ú lt i ma e à verba l ização. Atu a r (repetir) é não
atender à exigência da associação I ivre. 10
Mas se a repetição é aqu i l o que opera como resistência,
"nas mãos do médico, transforma-se no mais poderoso instru­
mento terapêutico e desempen ha um pape l que d ificilmente se
pode superestimar na d inâm ica do processo de cura". 1 1 R epe­
tição enqu anto resistência e repetição enquanto produtora de

6 Ldpldnche, J. e Pontal1s, J., Vocabulár io da psicanálise, p. 6 7 5.


7 f-reu<j, S., E.S.B .. Vol. XII, pp. 132·143.
1l Freud, S., E.S.B., Vol. XII, pp. 1 9 1 -203.
9 Freud, S., E.S.B., Vol. XII, p. 1 97 .
1 0 Míller, J.A., Cinco con ferencias caraquefias sobre Lacan, p. 92
11
Freud, S., E.S.B., Vol. XVIII, p. 300.
24 tlCtlso e repetiçtlõ em psicllnizlise

cu ra: como entender .essa aparente contradição?. O que fica claro


nesses textos é que pode haver dois tipos de repetição: a repeti­
ção do "mesmo" e a repetição d iferencial; enquanto a p rimeira
se ap roxima da reprodução ( na med ida em que é estereotipada ) ,
a segu nda é p rodutora d e novidade e , portanto, fonte de trans­
formações.
A d isti nção entre duas formas de repetição não chega a
constitu i r u ma novidade. Na Fenomenologia do Espírito, H egel
propõe que a p rópria fenomenolog ia seja u ma repetição. E sta é
entend ida como releitu ra impl icando dois momentos: no-pr imei­
ro, h á a consciência do fenômeno, u ma p u ra v ivência; no ségu n­
do, o fenômeno é inclu ído na total idade do E sp írito (Geist)
que lhe confere sentido. E, portanto, a Totalidade o que confere
verdade plena ao fen ômeno; sem ela, ele permanece incompleto
enquanto se n tido. Pouco tempo depois, K i erkegaard confere no­
vo sentido à re leitu ra fen omenológ ica de H egel, d isti ngu i ndo a
repetição nu mérica ( repetição do mesmo) da repetição como
re-ap reensão ( repetição d iferencial ) . A d iferenÇa entre as con­
cepções de H egel e Kierkegaard sobre a repetição reside p ri nci­
pal m ente no fato de que para K ierkegaard a repe_tição não admi­
te tota l ização. 12
N o a rt igo O estranho (Das Unheimlich), publ icado em
19 19, F re u d retoma o tema da repetição. Unheimlich rel acio­
na-se co m o que é assustador, com o qu e provoca medo e h or­
ror: "O estranho é aqu ela categoria do assustador que remete
ao qu e é conhecido, de velho, e há mu ito fam i l iar."131 O que ca­
racte riza o estranho é pois essa p rox i m idade e essa fam i l iaridade
a l iadas ao ocu lto. M as o abso lutamente novo, o que jamais se deu
na experiência, não pode se r tem ido. Só há Unheimlich se hou­
ver repetição. O estranho é a l go que retorna, a lgo que se repete,
mas que ao mesmo tempo se apresenta como d iferente. O
Unheimlich é u ma repet ição d ife rencial e não u ma repetição do

12 Ver: H . B . Vergote, Sens et repé tition.


13 Freud, S. , E.S.B•• Vol. XVIII, p. 277.
pulsão e repetição 25

mesmo. F reud refere essa repetição à próp r ia natu reza das p u l ­


sões, "u ma compu l são poderosa o bastante para p reva lecer so­
bre o pri ncl'p io de prazer". 14
F i na l mente, em Além do princípio de prazer (1920), o te­
ma da repetição passa defin itivamente para o p r i meiro p lano da
teoria. E: a repetição que va i servi r de fu ndamento para a exp l i­
cação da p u l são de morte, "algo ma is prim itivo, mais elementar
e mais pu lsiona l que o p r i nc ípio de p razer" e que se expressa pe­
la compu l são à repetição. A repetição é a cafàcter ística própria
da pu l são. Aqu i, F reud não pode evitar a h ip ótese, considerada
por ele mesmo como especu lativa, segu ndo a qual a pu l são é u m
i m pulso i nerente à v ida orgânica no sentido d e resta u ra r u m es­
tado anterior de coisas, i sto é, no sentido de retornar ao estado
i norgâni co. 15 Assim, contrariamente à concepção i n icial da pu l ­
são como sendo u ma força que impele o orga n i smo n o sentido
da mu dança, no sentido da produção de d iferenças, somos for­
çados. com F reud, a afirmar o caráter conservador da pu lsão :
resistência à m u dança e repetição d o mesmo. O que e l a repete
é, pois, o ma is arcaico, o estado i n icial do qu a l o orga n ismo se
afastou por ex igência de fatores externos: o i norgânico. "Sere­
mos então compe l id os a d izer que o objetivo de toda a v ida é
a morte", 1 6 escreve F reu d. Se a v ida é entend ida como pertur­
bação de u m equ i lfbrio estável a que se redu z ia a matéria i na n i­
mada, nada ma is natu ral do que ad mitir essa tendência no sen­
tido de recobrar o equ i líbrio perd ido. Dentro desse quad ro, a
pu lsão de vida teria como objetivo o cu mpri mento d esse cam i­
nho natu ral para a morte. O objetivo da pu l são de vida não é·
evitar que a morte ocorra, mas evitar que ela ocorra de forma
não natura l . "O que nos resta - escreve ele- é o fato de que o
organ ismo deseja morrer apenas do seu próprio m odo."17
Nesse texto de 1920, F reud, ao falar da compu l são à repe­
tição, faz qu estão de enfatizar que a repetição à qua l e l e se re-

14 Freud, S., E.S.B., Vol. XV I I I, p. 297.


IS
Freud, S., E.S. B. , Vol . XV I I I, p. 54.
:� Freud, S. , E.S. B. , Vol. X V I I I , p. 56.
Freud, S . . E.S. B., Vol. XVI I I, p.·57.
26 acaso e repetição em psicanálise

fere é a repetição d o mesmo, do idêntico, e que ·ela apresenta


em a lto grau u m caráter pu lsional ( Triebhaft). Essa repetição,
em se tratando de crianças, não contradiz o princ ípio de prazer,
mesmo quando se trata da repetição de experiências desagradá­
veis. No caso de experiências agradáveis, como a de uma bela
h istória que contamos, a criança exige que ao contarmos pela
segunda, terceira e enésima vez, o façamos de forma idêntica à
primeira. Qua lquer modificação introduz ida, mesmo no sentido
de melhorar a narrativa, é veementemente corrigida pelo peque­
no ouv i nte. N o caso de experiê ncias desagradáveis, como nas
brincadei ras repetidas cujo conteúdo é desagradável , F reud su­
põe que esteja presente u ma tentativa de dominar uma impres­
são poderosa de forma ativa, em vez de ser invadido passivamen­
te por ela. Portanto, não há aqu i contradição com o p rincípio
de prazer. O mesmo não ocorre, p orém, com o adu lto. Se lhe
contamos duas vezes a mesma h istória, ele se a borrece; uma p ia­
da contada pela segu nda vez perde quase toda a graça; o mesmo
passeio, quando repetido, não tem o mesmo sabor. Para o adu l­
to, a novidade é sempre a cond ição do deleite.1 8 O que aconte­
ce na compu lsão à repetição de experiências trau máticas, por
parte do adu lto, é que esta não atende, sob nenhum aspecto, às
exi gências do p ri nc ípio de prazer, e no entanto mantém o seu
caráter pu l sional. Este é o cami n h o que levará F reud a p ostu lar
a pu l são de m o rte.

18Freud, S., E.S.B., Vol. XVIII, p. 52.


3

A R E P ETIÇÃO E M H EG EL,
KI E RK EGAA R D E NI E TZSCH E

No com eço era o caos - é o que nos diz Heslodo na Teogonia.


Sobre esse l u ga r indiferenciado, inabitado pelos deuses e pelos
homens, anterior ao primeiro d ia e à prime i ra pa lavra, ca i o m a is
abso luto silêncio.
Rom p ido o si lêncio do caos, o que se ouvi u foi a pa lav ra
en igmática e lacu nar do mito contando a histór ia dos começos.
Frente ao i ndetermi nado, su rge o m ito narrando a ordem p ri­
meira, ordem esta concebida não como anterior ao caos, mas co­
mo um efeito dele, não como fu ndamento necessário aos acon­
tecimentos ou como razão i ma nente ao mu ndo e às coisas, mas
como resu ltante do acaso origin a l . O mythos é a narra t iva des­
ses começos.
Estrangeiro pela pa lav ra, o homem procu rou ordenar o
caos criando modelos para os acontecimentos presentes e futu­
ros !: a part i r desses aconteci mentos p r i me i ros que o homem
. .

grego vai forja r o conceito de natu reza. Os feitos dos deuses e


dos heróis não são determi nados a priori, não obedecem a ne­
nh uma ordem preestabe l ecida, não são a man ifestação de ne­
n h u ma lei . Os deuses e os heróis não atu a l izam u ma natu reza,
eles produzem-na a part i r do caos origina l . Esses aconteci mentos
pri mord ia is, uma vez produzi dos, transformam-se em mode los
para a conduta dos homens. O homem das cu l tu ras arca icas e
prim itivas repete esse modelo, sendo que é através dessa repeti­
ção que os fatos do cotidiano ganham sentido e rea l idade. Os
acontec imentos do mu ndo não possu íam rea l idade em si mes­
mos, mas apenas na medida em que repetiam aconteci mentos
pretéritos. Ora, como todo acontecimento orig i n a l caracteriza­
va-se por ser um ato de criação p or parte de u m deus ou de u m

27
28 acaso e repetição em psicanálise

herói, a conduta exemp lar era a quel a que repetia i ndef i n idamen­
te a criação orig i n a l . Temos, assim, acontecimentos sagrados e
aconteci mentos p rofanos, os primeiros repeti n do u m modelo
origi nal, e os segu ndos sendo estranhos a esse mode l o. Os atos
exemp l a res são, p ortanto, a-h i stóricos, cabendo a h i storicidade
apenas aos atos p rofanos. O mu n do, no que p ossu i de verdadei­
ro (ou de sagrado ) , é u ma repe tição. O que não é repetição per­
ma nece i merso no caos, carecendo de sentido e de rea l idade.
Assim, desde a ma is remota antig ü i dade, a repetição é
uma qu estão centra l para o homem. Desde o mito, passando pe­
l o "eterno retorno" de H erácl ito até N i etzsche, o tema da repe­
tição atravessa a história do pensamento ocidental . Quando ele
ressurge na obra d e F reud - n o início, tim idamente, até trans­
formar-se em tema central de Além do princípio de prazer o -

faz com o peso dessa h istória, e o Édipo é sua ma rca registrada.


Dentre os autores q u e tratam da questão da repetição, e
qu e fazem parte do mesmo so l o do sa be r no interior do qua l a
psica ná l ise fez su a emergência, H egel, K ie rkegaard e N ietzsche
transforma ram-se em referencia is privi legiados pelos comentado­
res de F reu d, apesar de a influência d i reta que os do i s primeiros
possam ter tido sobre ele ser quase n u l a . N ós porém não podemos
ignorá-l os. Se há algo que podemos considerar como sendo co­
mum a H ege l , K i erkegaard, N ietzsche e F reud, é, em primeiro
lugar, a imp ortância que e les conferem à repetição, e, em segu n­
do l u ga r, o fato de que pa ra eles repetição não é rem i n i scência.

!).!).1}

A aprox imação entre H egel e F reud através do conceito de repe­


tição já foi feita há trinta a nos por Jean Hyppolite, numa
conferência pro n u nciada na Sociedade F rancesa de Psicanálise.'
Hyppol ite p ropõe aproximar a Fenomenologia do Espírito de
Hegel e A interpre tação de sonho s de F reud através da noção

1
Publicada sob o titu l o "'Phénoménologie de Hegel et psychanalyse" em: F1gures
de la pensée philosophique - t=crits de Jean Hyppolite.
repetição em Hegel, Kierkegaard e Nietzsche 29

de re trospecção , n oção esta qu e se encontra também na base da


leitura qu e Édipo faz de sua próp ria h istória, e que encerra o
fu ndamenta l da p rát ica psicana l ít ica.
O fio condu tor da rele itu ra que Hyppol ite faz de Fenome­
nologia é a noção de verdade entendida como desvelamento,
qu e se efetu a pela intersu bjetiv idade ou, na term i nologia hege­
l ia na, pela intercomu n icação de duas autocon sciências h u manas.
Segu ndo H egel, essa comu n i cação i ntersubjetiva só pode ser fei­
ta pela l inguagem, ú ni ca med iação possível entre a utoconsciên­
cias, i sto é, ún ico meio dessas autoconsciências sa írem de suas
respectivas certezas su bjetivas e constitu irem u ma verdade ob­
jetiva. Mas como nos d iz Hege l , a verdade n u nca é u m dado, mas
o resu ltado de um p rocesso que ao mesmo tempo a produz e a
revela. Esse desve lamento i m p l ica, porém, u ma releitu ra- n u m
pri meiro momento, o fenômeno é con si derado enqua nto vivido,
enqu anto experiência do sujeito ( certeza su bjetiva ) ; n u m segu n­
do momento, o d a rele itu ra, e le é inclu ído na .tota l i dade do E s­
p írito (Geist) que reve l a a sua verdade.
O que Hyppol ite p ropõe é u ma ana logia entre o percu rso
real izado pela consc iência, desde o seu momento de inconsciên­
cia-de-si até a autoconsc iência, e o cam i n h o percorrido p or Éd i­
po em d i reção à sua verdade de parricida e i n cestuoso. E ssa ex­
periência, que é descrita na Fenomenologia do Espírito de H e­
gel, é também aqu ela que rea l iza o pac iente na p rát ica c l ín ica
psicanalítica. É i mportante ressa ltar que tanto em Hegel como
em F re u d, esse percu rso se const itu i com a experiência que o
sujeito faz de si mesmo e não como a lgo que l he possa ser acres­
ce ntado de fora. Da mesma fo rma como Éd i p o não se reconhe­
ce ria parric ida e incestuoso se essa verdade l he fosse d ita l ogo
após ter assu mido o trono de Tebas e ter-se casado com J ocasta,
também o pac iente psicanal (ti co não reconheceria como sua a h is­
tória que lhe fosse comu n icada p re matu ramente pe l o psicanal is­
ta. O desconhec imento de Éd ipo qu anto à sua verdade ass i m co­
mo o desco nhec i mento do paciente quanto ao sign i ficado do
seu si ntoma são da mesma natu reza qu e o desconhecimento
com que é marcada a consc iência i ngênua de que H egel nos fa la
na Fenomeno logia do Esp irito. A ce rteza (subjetiva) que carac­
teriza a consciência somen te será su bst ituída pela verdade (obje­
tiva) ao final do p rocesso qu e revelará, retrospectivamente, o
30 acaso e repetição em psicanálise

caráter ocu ltador do momento in icia l . N ão há outro cam i n h o


para a verdade senão aqu ele q u e s e const itu i p e l a experiência
que a consciência empreende dela mesma. É portanto a Tota li­
dade qu e confere verdade p lena ao fenômeno; sem ela, ele per­
manece incompleto enquanto sentido. Trata-se de uma concep­
ção essencia l m ente grega da rea l idade.
A visão ki erkegaard iana da repetição d ifere da de H egel na
med ida em que não adm ite a tota l ização (o mesmo podemos di­
zer da concepção freudiana ) . E stá mais próxi ma da visão cristã do
que da visão g rega , na med ida em que a visão cr istã adm ite que a
repetição pela fé ap resenta a possi b i l idade de u ma renovação.

Em Kierkegaard, o tema da repetição não está presente


apenas no l ivro que leva este t ítu lo, mas desenvolve-se na pa rte
de su a o b ra que ele designa como "estét ica " . Assim, por exem­
p lo, temos não apen as a repetiçãó ma lsucedida de Constantino
Co nstantius em A repetição, como também a repet ição bem-su­
cedida de Johannes de S i l entio em Temor e tremor. 2 Já no pre­
fácio do primei ro, Kierkegaard nos adverte que repetição não é
rem i n iscê ncia; não se trata também da repetição natu ral , identi­
f icada com a lei, nada que se asseme l he ao movimento dos as­
t ros ou ao ciclo das estações. O conceito su rge da confrontação
da su bjetividade com a rea l idade, e é co locada sob a forma de
uma pergu nta in icia l : " Uma coisa, ao ser repetida, ganha ou
perde?"
Uma prime ira resposta poderia ser a de que haveria indis­
cutivel mente u ma perd a , posto que o ganho só poderia advir
de u ma fu ga à repetição, tornando possível a vivência do instan­
te. Este nãu c:, porém, o ponto de v i sta de Con stantino Constan­
tius, para quem a ex istência não é o pu ro acaso do devir, mas re­
petição. R epet ição, diz e le, tomada "no sentido grego" do ter­
mo. É no con ceito grego de Kinesis (mov i mento, mu dança ) ,
particu larmente ta l como fo i pensado por Aristóte les, que
Ki erkegaard vai buscar apoio para empreende r sua cr ítica à con-

Comtdmmu Constd n t i u s e Joha n nes de Silentio f ora m dois dos vários pseudôni­
mos U>cidus por K ierkegaard_
reperição em Hegel, Kierkegaard e Nietzsche 31

cepção hege l iana d e mu dança. N o enta nto, apesar d a evidente


crítica de Constantino Constantius a H ege l , e do tão declarado
anti-hegel ian ismo de Kierkegaard, não seria i ntei ra mente desca­
bido afirmarmos que o pensador dinamarquês retoma a noção
hegel iana de " releitura" conferi ndo- l he novo sentido. Claro
está que i sto não impl ica estabe lecermos u m a f i l i ação de
Kierkegaard a H egel (pelo menos num sentido l inear) ou em
aproxima rmos o conteú do de a m bos os pensamentos; o que
está sendo assina lado aqu i, como prese nte a a m bos, é o con­
ceito de repetição.
Ao retomar a noção de repetição, Kierkegaard vai d istin"
gu ir o que ele chama de repetição numérica ( p u ra reprodução
de a lgo) da repetição prop riamente dita. E n qu a n to a p rimeira
é a repetição que encontramos na natu reza, u m a forma de ma­
nu tenção do mesmo, a segunda é produtora de dife renças; en­
qu anto a primeira se expressa sob a forma da lei e diz respei­
to ao semelhante, à genera l idade, a segu nda é contrária à lei.
f nesse sentido que Kierkegaard afirma que é preciso entender
a repetição "no sentido grego", isto é, como a l go que diz res­
peito a u ma singu laridade, singu laridade esta que afirma a eter­
nidade mas não a permanênc ia. N ão se trata de afirmar u ma
·
eterna repet ição do "mesmo", mas de mostrar que o eterno re­
to rno de que nos falam os gregos aponta para o que p odemos
chamar de repetição d i ferencia l . Os acontec imenos, quando re­
petidos, j á não são os mesmos. A próp ria repetição de u ma pala­
vra não traz com ela a repetição do sentido.
f mov ido por esse senti mento de que o tempo i mpõe ao
eterno retorno u ma marca renovadora, que Constantino/
Kierkegaard empreende .a tentativa de reviver todo o encanto de
uma noite de estréia n u m teatro em Berl im, e a experiência fra­
cassa . O fracasso ocorre porqu e o personagem de Constanti no
Constantius empreende sua tentativa de uma maneira excessiva­
mente obje t iva. N ão se trata, evidentemente, de proceder a u m a
reprodu ção pu ra e simples da experiência anterior, até mesmo
porque isto seria impossíve l , nem de retomá- l a desde fora, da
e x te r ioridade, mas ao contrário, trata-se de um exerc ício de
l i berdade.
O que Kierkegaard dist ingue aqu i é a repet ição natu ra l ,
q u e se confu nde c o m a l e i , e a repetição como l iberdade, como
32 acaso e repetição em psicanálise

potência de interioridade, como su bjetividade. O a lvo da cr ít ica


de K i erkegaard, nesse momento, é Kant. Sabemos que uma das
questões kantianas, sobretu do na Crltica do juízo, é a de encon­
tra r o funda mento da u nidade entre o dom í n io da natu reza e o
da l iberdade, assim como a passagem de um a outro. Kierkegaard
não admite que essa passagem possa ser feita pelo conhecimen­
to, e aponta a repetição como u ma poss i b i l idade, contanto que
ela não seja confu ndida com rem i n i scência. 3
E m Différence et répétition, 4 Del euze aponta quatro ca­
racter ísticas da repetição em K ierkegaard, que são ao mesmo
tempo pontos de coincidência com a concepção de N i etzsche:
1) A repetição impl ica a lg o novo, está vi ncu lada, para K ierkegaard,
a u ma seleção e coloca da como objeto sup remo da l iberdade e
da vontade. Repetir não é contemplar nem lembrar, mas atuar,
"trata -se de fazer da repetição como ta l uma novidade, quer
d izer, uma l iberdade e uma tarefa da l iberdade".5 E ssa opo­
sição entre o recordar e o atuar, vamos encontrá- la também
em F reud referida à questão da repetição. Para F reud, a repeti­
ção sub st itu i a recordação, e se ela num primeiro momento é
tomada sob u m a specto pu ramente negativo ( como resistência ) ,
n u m segu ndo mome nto e l a é considerada como o fu ndamento
da transferência e p rodutora de nÔv idade. 2) A repetição se
opõe às leis da natu reza; ela d iz respeito ao que há de ma is i n­
terior na vontade e não à s mu danças e igualdades que se dão em
confo rm i dade com a s leis da na tu reza. Sob este aspecto,
K ierkegaard condena tanto a repetição epicuréia como a estóica.
3) A repetição se opõe à lei mora l; é o bra do sol itár io, é o lagos
do "pen sador p rivado" . Este ú ltimo é tomado por K ierkegaard
como o oposto do professor pú bl ico, cujo d i scurso conceitual
torna-o " doutor da lei". 4) A repetição se opõe às general ida­
des do hábito a ss i m como às particu laridades da remi n i scência.
Pela repetição, o esquecimento transforma-se numa potência

3 C f . H. B. Vergote, Senset répétition - Essai sur l'ironie kierkegaardienne, pp. 452-3.


4 Deleuze, G . , Oifférence et répétition, " l n troduction".
5 Op. cir .• p. 1 3.
repetição em Hegel, Kierkegaard e Nietzsche 33

posit iva, e o inconsciente se converte em u m i nconsc iente su­


perior positivo. 6
Vi mos acima que podemos d istingu i r duas formas de repe­
tição : u ma repetição-reprodução, repetição do " mesmo", tipo
de repetição que K ierkegaard chamava de natu ral e que se con­
funde com a l e i ; e u ma repetição diferencia l , prod utora do novo
e de d iferenças. N ietzsche foi o g rande fi lósofo da repetição di­
ferencia l, o que faz dele u m pensador trág ico por excelência. O
que se entende por "trág ico" aqu i é a afirmação do acaso, repe­
tição d i ferencial de uma afirmação que é u m puro dev ir. Não há
trágico naqu ilo que é abso lutamente novo, o trágico impl ica a
repetição. Também o acaso pu ro não é trágico, ele é a afirmação
primeira, o devir, o puro aconteci mento. Este, como d iz C .
Rosset, pode até ser catastrófico, mas nada tem d e trágico, na
med ida em que o trág ico não se define pela dor e pe la tristeza,
mas pela afirmação do acasó. 7 O trág ico é a afirmação da afir­
mação, ele não é propriamente da ordem do acontecimento,
mas da afirmação do aconteci mento. A primeira afirmação é o
devir (acaso ) ; a segu nda afirmação, qu e afirma a primeira, afir­
ma o ser do dev i r ( necessidade ) . E sta repetição é, no entanto, re­
petição d iferencia l, não se trata de u ma cóp ia do p rimeiro acon­
tecimento, mas de u ma repetição produtora de diferenças. O
que é preciso acrescentar ao acontecimento (puro acaso) para
que ele se constitua como trdyJco é o Jogos - a pa lavra ou a in­
terioridade. Essa i nterioridade não deve ser entendida como in­
teriorização da exte rioridade, não se trata da interiorização da
ordem e da lei. A repetição trágica não é u ma negação do acaso,
mas a sua própria afirmação con st itu i ndo-se como necessidade.
E ssa concepção da repetição, N ietzsche vai buscar em H e­
rácl ito, b ú n ico dentre os pré-socráticos qu e ele considerava co­
mo u m pensador trágico, posto que afirmava o devir e o ser do
devir. E ssa dupla afirmação corresponde aos dois momentos do
jogo de dados de que nos fala N ietzsche em Zaratustrél: os dados
lançados e os dados que caem. Os dados lançados são a afirma-

6 Op. cit. , p. 1 5.
7 Rosset, C., Logique du pire.
34 acaso e repetição em psicanálise

ção do acaso; os dados que caem são a afirmação da necessida­


de. 8 O acaso é identificado ao mú ltiplo, ao caos, enquanto que
a necessidade (ananke) é a p rópria afirmação do acaso, sua pró­
pria combinação e não sua e l i mi nação do acaso. E m H erácl ito
esses dois momentos correspondem à physis e ao fogos. A afir­
mação não afirma o ser; é ela p rópria o ser. E n qu anto afirmação
p rime i ra ela é devir, mas ela mesma é objeto tam bém de outra
afirmação. Assi m, tomada em toda a sua exte nsão, a afirmação
é dupla, é p reciso u ma segunda afirmação para que a af irmação
seja ela p rópria afirmada. 9 Acaso e necessidade não se opõem,
combinam-se n u ma u n idade complexa, sendo a necessidade u rna
reafi rmação do p róprio acaso. E n qu anto ta l , ela é u ma repetição
diferencial - este é o sentido do eterno retorno de N ietzsche.
O trágico i m p l ica a rep�tição. I sto não faz, porém, com
que o pensamento trág ico opere sobre um "dado" . O acaso não
é 9 dado sobre o qu a l o trágico vai se constitu i r, já que o dado
impl ica o ordenado, enquanto o acaso é anterior a qualqu er or­
dem. Poderíamos a i nda su por qu e o primeiro momento do aca­
so-trág ico seria marcado pelo inconsciente e que o segu ndo mo­
mento assinalaria a passagem à con sc iência. C lernent R osset 10
nos mostra p orém que o que o pensamento trágico se propõe fa­
zer é passar o trág ico não do i nconsciente à consciência, mas do
si lêncio à palavra. O trágico é o que nos remete para a lém dos l i­
m ites do d iscu rso conceitu a l e o que si lencia esse discu rso.
A concepção nietzsch iana do t rágico d ifere a inda da que
nos oferece Schopenhau er, que o identifica com u ma visão pes­
sim ista do mu ndo. A repetição trág ica de que nos fala N ietzsche
nada tem a ver com o pessimismo, sendo mesmo sua negação, já
que o pessim ismo su põe u ma natu reza que aparece a ele como
insatisfatória !1 O t rágico de repetição, para N ietzsche, não
pressupõe uma natu reza - seja ela boa ou má -, não se refere a
uma cu lpa ou injustiça cósm ica do tipo proclamado por Anaxi-

8 Deleuze, G . . Nie tzsche e a filoso fia, pp. 9 - 1O .


9 Op. cit., p. 30.
10
Op. cit., ·p. 28.
11 Op. cit., p. 1 7 .
repetiçaõ em Hegel, Kierkegaard e Nietzsche 35

mandro, à q u a l temos q u e nos su bmeter nu ma expiação infindá­


vel . Para o pen sa mento trágico, o homem não é cu l pado, não ca­
rece de nada, não é def in ido pela falta : " O trágico se define pela
cotidian idade e não pela exceção e pela catástrofe ( . . . ). N ão
exi stem duas esferas de rea l idade - a trág ica e a não trági ca -
mas dois modos de o l har ( o trágico e o não trágico ) . 1 2
Não se trata aqu i de fazermos o inventário daqu i l o que se
repete de forma idêntica por oposição às repetições d iferenciais,
e nem mesmo de admitirmos que a repetição-reprodução perten­
ce ao dom ín io da natu reza, enquanto que a repetição diferencial
pertence ao dom ínio do hu mano. Trata-se, acima de tudo, de
de ixar patente a diferença p rofu nda que p reside cada uma das
concepções da repetição.
Foi partindo do fato de que a repetição-reprodução era
possível dentro do dom ínio do hu mano, que J . B. Watson, ao
fu ndar o behaviorismo, descartou qua lqu er referência à interio­
ridade do sujeito por considerá-la m etodologicamente inút i l . Pa­
ra o behaviorismo de Watson, " u ma vez dado o est ímu lo, a psi­
co log ia deve p red izer a resposta; ou inversamente, uma vez dada
a resposta, a psicologia deve espec ificar a natu reza do est ímu­
lo" .13 C l a ro está que a pa rt i r desse ponto de vista, toda vez que
se repet ir o mesmo est ímu lo teremos a mesma resposta. No en­
tanto, antes mesmo de f i ndar o sécu lo XIX , esse associacion is­
mo de tipo meca n icista j á era a lvo de severas c r íticas, sobretudo
no que se referia à questão da repetição. Assim, W i l l ia m James
recusava a poss i b i l idade de um mesmo estado de consciência se
repet i r de manei ra idêntica, pois cada sensação provoca u ma
mudança no cérebro e, portanto, para que u m estado de consci­
ência volte a se p roduz ir uma segunda vez de forma idêntica, te­
ria que se dar em u m cérebro imutável . 1 4 � somente de uma
manei ra artificial que essa repetição é poss íve l, e mesmo assi m é
d iscut íve l . O s experimentos sobre o behavior são possíveis com
anima is, dentro dos l im ites i mpostos pelas condições experi-

1 2 Op. cit., p. 7 1 .
1 3 Watso n , J . 8 . , Psychology fr om the standp oint o f a behaviorist.
14 James, W., Principies o f psychology, p. 2 1 7 .
36 acaso e repetiçaõ em psicaniÍlise

mentais. São portanto a bstratos. Transpor seus resu l tados para o


dom ínio do h u mano é desconhecer que o homem fala, que pela
l inguagem ela opera uma metamorfose rio rea l, constitu i ndo u m
m u ndo i rredutível à o mu ndo a nima l . o mundo humano é o
mu ndo do sentido, mu ndo que não é pensável fora da referência
ao simból ico. Esta é a razão pela qual Jacqu es Lacan, em a lgum
momento dos seus sem inários, afirma que não há behavior hu­
mano, mas ato hu mano, i sto é, a l go que se constitu i como senti­
do e que é i nd i ssociável da l inguagem. U ma palavra, ou mesmo
uma frase, quando repetida, não traz com ela a repetição do seu
sentido. E a esse respeito, o conto de Borges "Pierre Menard, au­
tor do Qu ixote" é exemp l a r. 1 5
Borges nos fala d e u m certo Pierre Menard, q u e teria con­
tra ído o m i ster ioso dever de reconstru ir l itera lmente o D. Qu i­
xote, de Cervantes. '·'Não queria compor out ro Qu ixote - o que
é fác i l - mas o Quix ote. I nú t i l acrescer que nu nca v isionou
qualquer transcrição mecânica do origina l ; não se propu nha co­
p iá-lo. Sua adm iráve l a m b ição era produ z i r pág inas que coinci­
dissem - pa lavra por palavra e l inha por l inha - com as de M i­
guel de Cervantes."16 Para tanto, o cu rioso romanc ista ded icou-se
ao espanhol do sécu lo X V I I , à fé catól ica, à guerra contra os
mouros e ao esquecimento de tudo o que havia ocorrido entre
os sécu los X V I I e XX. " Ded icou seus escrúpu los e vig í l ias a re­
petir num id ioma a lheio u m l iv ro preex istente. Mu ltipl icou os
apontamentos; corrigiu tenazmente e rasgou m i l ha res de páginas
manuscritas." R esu ltou desse tra ba l ho de anos e a nos um texto
rigorosamente igual ao de Cervantes, só que o de P ierre Menard
"é quase infinitamente mais rico" . E Borges p ropõe u m cotejo
entre os dois. Assim, no nono cap ítu l o da primeira parte, Cer­
vantes escreveu :

' ' ( . . . ) a verdade, cuja mãe é a h istória, êmu l a do tempo, depósito


das ações, testemunha do passado, exem p l o e aviso do presente,
advertência do futuro."

IS
Borges, J. L. , FiCÇÕ<Js.
16
P a ra o que se segu e : Borges, op. cit.
repetição em Hegel, Kierkegaard e Nietzsche 31

P ierre Menard , em compensação, escreveu :

"( . . . ) a verdade, cuja mãe é a h i stória, êmu l a do tempo, depósito


das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente,
advertên cia do futuro."

O primeiro texto, escreve Borges, red igido no sécu l o X V I I


por Cervantes, "é um mero e logio retórico da h istória", em nada
comparável ao de Menard. Este escreve que a h istória é mãe da
verdade; "a idéia é espantosa". "Menard, contemporâneo de
Wi l l iam James, não define a h istória como um i n dagação da rea­
l idade, mas como sua origem. A verdade h istórica, para ele, não
é o que sucedeu; é o que pensamos que sucedeu. As cláusu las f i­
nais exemplo e aviso do presente, advertência do futuro - são
descaradamente p ragmáticas."
" V ívido também é o contraste dos est i los. O est i l o a rcai·
zante de Menard - no fu ndo estrangei ro - padece de a l gu ma
afetação. N ão assim o do p recursor, que com desenfado manej a
o espanhol corrente de s u a época . " Com i ronia e com hu mor,
Borges p rossegue o cotejo, que nu nca ser ia excessivo reproduz i r
aqu i, mas prefiro remeter o l eitor a o p róprio Borges.
I maginemos um poeta excêntrico e so l itário, reescrevendo
a 1/íada e a Odisséia, compondo verso por verso, escol hendo cui­
dadosamente cada palavra para e l iminá- l as em segu ida, por não
estarem contidas no texto homérico. R epetição-reprodução que
o gên io de Borges transforma em repetição diferencia l . Será esse
Pierre Menard nosso neu rótico? O o bsessivo de que nos fala
Freud? Ou será ele a i magem do intelectua l que persegue m i nu­
ciosa e incansavelmente a s indicações de pé de pág i na do seu au­
tor p redi leto - que Borges i ronicamente chama de "precu r­
sor" -, ptocu rando assim repetir seu percu rso para reproduzi r
su a g ra nde obra? N ão é demais lembrar q u e " repetir" (do lati m
repetere ) sign ifica "torna r a d izer ou escrever", i sto é� a l g o q u e
diz respeito à l inguagem ou , num sentido ma is- amplo, a o s atos
humanos e não aos fenômenos naturais.
K ierkegaard se dá conta, através de Constantino Constan­
tius, que repetição não é reprodução, ou mesmo que a reprodu-
·
38 acaso e repetição em psicanálise

ção em se tratando de atos humanos é impossível. O qu e Cons­


tanti no não consegu e saber é como a repetição se constitu i. Sua
tentativa, inevitavelmente ma lsucedida, era a de reprodu z i r a
magia do aconteci mento primeiro. O que lhe escapava era que a
mag ia residia na p rópria repetição e não na reprodução mecâ n i­
ca de u m acontecimento primei ro. A repetição impl ica o novo.
A magia do conto de Borges não está na reprodução m inuciosa
do texto de Cervantes por parte de Pi erre Menard, mas no novo
qu e a narrativa de Borges faz su rg ir. E essa noção de que a repe­
tição demanda o novo, o acaso, de que ela está voltada para o
l ú dico, é que vai se constitu ir num dos pontos centra i s da anál i­
se empreend ida por Lacan do conceito de repetição em F reud.
4

SOB R E A NOÇÃO D E CAUSA ACI D E NT A L :


TYCH E E AUTOMATON

Ao a bo rda r a questão da repetição em F reud, Jacques La­


can recorre a Aristótel es e sua teoria dos princíp ios ( teoria das
qu atro causas), particu larmente tal como é exposta nos cap ítu­
los quarto e qui nto da Física. M a is do que as quatro causas
apontadas por Aristóte les como os princ ípios das coisas - cau sa
forma l , materia l , eficiente e final -, o que está em questão aqu i
é a sua noção de causa acidenta l (symbebekos) nas duas formas
em que é concebida por Aristóteles: tyche e automaton.
A chamada teoria das quatro causas de Aristóteles, exposta
no Livro I da Metafísica, d iz respeito, em verdade, aos princ í­
pios ou fatores expl icativos das coisas, e a rticu la-se, n u m con­
ju nto mais amplo, às distinções fundamentais de sua f i losofia :
essência-acidente, ato-potência e matéria-forma, no sentido de
mostrar que a f i losofia consiste fu ndamenta lmente numa inda­
gação de princíp ios.
Aristóte les d isti ngue qu atro princ ípios das coisa s : 1 ) A cau­
sa formal (eidos), que faz com qu e u ma coisa seja o que é d ist in­
gu i ndo-a das demais (sua su bstância, sua defin ição ou noção ) ; 2 )
A causa material (hyle ) , que é a matéria d e que u ma coisa está
feita; 3) A causa eficiente (kinoun ) , que é o princípio de movi­
mento ou mudança de u ma coisa, sua causa pro du tora; 4) A
causa final ( te/os) , o f i m para o que u ma coisa ex i ste. A teoria
das quatro cau sas responde portanto à exigência a ristotél ica de
que tudo o que acontece, acontece a pa rt i r de a lgo, de que não
há movi mento ou m u dança sem causa.
A questão da cau sal idade é retomada na Física, onde Aris­
tóteles a n a l i sa a noção de causa aciden tal (symbebekos) , que ele
divide em do is tipos: tyche e automaton. Ambos d izem respeito

39
40 acaso e repe tiçaõ em psicanálise

a acontecimentos excepcionais, sem que, no enta nto, sejam pen­


sados como a bsu rdos ou i rracionais, mas como "privações". Ty­
che e automaton são causas rea is que se incluem na categoria de
causa eficiente, d i stinguindo-se das dema is causas eficientes pelo
seu caráter de excepcional idade. E nquanto a tyche é associada
freqüentemente a u ma necessidade (fortuna) desconhec ida para
o homem, porém dotada de algum grau de del i beração, automa­
ton é tomada num sentido mais próx i mo de acaso, isto é, de
u ma causa acidenta l na qual não houve nen h u ma del i beração
hu mana ou d iv ina.
As noções de tyche e automaton foram em geral ass i m i l a­
das à noção de acaso, na med ida em que d iziam respeito a a lgo
que acontecia sem que a razão humana pudesse atribu ir uma in­
telig i b i l i dade . N o entanto, o sig nificado dessas noções, l onge de
ser o mesmo, foi mu itas vezes o oposto u m do outro. O fato,
por exemplo, de tyche designar u ma causa ocu l ta para a razão
hu mana não significava de modo a lgum qu e ela deveria ser assi­
m i lada a um caráter pu ramente fortuito ou absu rdo do fenôme­
no. Pelo contrário, a tyche grega designava em gera l u ma d ivin­
dade descon hecida - porém nomeada - responsável pela sorte
ou infortú nio dos h omens. O poeta Arqu íloco de Paras refere-se
insistentemente à tyche d iv ina e sua força sobre o destino dos
homens. Arqu íloco chega mesmo a afi rmar que o esforço do ho­
mem para a lcançar a independência e a l iberdade impl ica u ma
renú ncia ao que ele recebeu dos deuses, da tyche divina. A ty­
che é u ma entidade a bsoluta mente presente no cotidiano do ho­
mem grego, i ntervindo tanto na vida do i n d ivídu o como na vida
da coletividade. 1
Tam bém P latão, n a República e nas Leis, refere-se à tyche
como u ma força d ivina responsável pela sorte do i ndiv íduo e da
polis. É essa mesma noção que vai ser retomada por Aristóteles
e, destitu ida de seu caráter m ístico, inclu !'da na sua teoria da
causa l idade f ís i ca. N a verdade, l onge de designar aqu i l o que cha­
mamos de acaso, ela designa mu ito mais u m dest ino, algo ao
qua l o homem é su bmetido e que é exterior aos próprios aconte·

1 Ve r : Jaeger, W. , Paídeía, los ídeales de la cultura gríega , pp. 1 25-6 e p. 666.


sobre a noção de causa acidental 41

cimentos. O "acaso" que caracteriza a tyche designava também


o encontro de duas séries cau sa is, cada u ma perfeitamente deter­
minada, f icando o caráter de excepciona l i dade referido ao en­
contro-;.de u ma com a ou�ra. Este aspecto da tyche foi retomado
por Sa nto To más de Aqu ino, ao afirmar q u e a divina providên­
cia não exc l u i o fortuito nem o casua l ( caso contrário, a própria
idéia de d ivina p rovidência seria exc lu ída ) . O exemplo, retoma­
do por Tomás de Aqu i no, é o da pessoa que vai à p raça pú bl ica
para comprar ou vender a lgo e se encontra com uma outra pes­
soa que lhe devia d inheiro e l he paga. O motivo pelo qual cada
um foi à praça nada tinha a ver com o pagamento da d ívida, que
aconteceu "por acaso".2 Ta l como Aristóteles, Tomás de Aqu i­
no não entende o acaso como ausência de ordem, mas como u m ·

acidente q u e a rticu la séries causa is independentes.


A noção de automaton introduz i da por Aristóteles no Li­
vro l i da Física também é concebida como se referindo a u ma
causa acidenta l . Tal como a tyche, automaton pressupõe u ma
ordem natu ral em relação à qual é u ma exceção. Automaton sig­
nifica "aqu i lo que se move por si mesmo", 3 ou seja, aqu i lo que
acontece sem nen huma del iberação humana ou d iv i na e cujo
efe ito não era esperado. E em gera l traduz ido por "espontanei­
dade", e está mu ito ma is próximo daqu i lo a que chamamos de
acaso do que a tyche· (que se aproxima mais de ananke neces­ -

sidade). No entanto, i ndependentemente dos matizes de sentido


que a m bos os te rmos tiveram na G récia antiga, tanto tyche
quanto automaton designam u m acaso secu ndário e não u m aca­
so orig i n a l , isto é, estão ambos referidos a u ma ordem da qual
eles são u ma exceção ou um desvio, d i ferentemente de u m acaso
orig i n a l que não supõe nen huma natureza, mas que é produtor
de natu rezas d iversas.4 O a caso em Aristóte les não é igual ao
acaso em Lu crécio, por exemplo. Para Lu crécio, aqu i lo que pre­
side ao nascimento das co isas não é u ma lei, u ma ordem a priori,
mas o puro a ca so do clinamen. A natu reza em Lucrécio é prin­
c ípio do d iverso e não ordem essencial . E ntre as noções de ty-

2 Tomas de Aq u i n o , Súmula con tra os gen tios, Livro 3, cap. 74.


3 Ar i stoteles. F rsica, Livro l i (cit. por C. Rosset, Logica de lo peor, p. 1 0 2 ).
4 C. Rosset, op. cit.
42 acaso e repetiçaõ em psicanálise

che e automaton, ta l como foram empregadas por Aristóte les, e


a noção de clinamen de Lucrécio, existe pois u ma grande d i stân­
cia, na medida em que esta ú lt i ma não é a lteração da ordem,
mas ausê ncia de qualquer ordem.
Lacan entende o automaton como a rede de significantes,
enqua nto vê a tyche como "o encontro do rea 1 ".5 Trata-se, para
ele, de trazer à luz a fu nção da tyche, para a lém do automaton.
A tyche d esigna o real como encontro, mas como u m encontro
faltoso. Para a lém do jogo dos signos e seu retorno (automaton ) ,
para a l é m da fantasia, para a lém d i sto que é regu lado pelo prin­
c íp io de prazer, há o rea l . O rea l é o qu e se repete, e "o que se
repete, com efeito, é sempre a lgo que se produz - a expressão
nos diz bastante da sua rel ação com a tyche - como por aca­
so. "6 Aqu i l o que Lacan procu ra esclarecer através das n oções
de tyche e automaton, pa rticu l a rmente através da prime i ra , é a
fu nção do rea l . Antes porém de respondermos sobre a fu nção
do real , u ma q uestão primeira se i m põe: o que é o real ?
N u ma conferência feita e m j u nho de 1 955,7 Lacan d iz que
. o sentido que o homem sempre deu ao rea l é o de a lgo ql!e se
e ncontra sempre no m esmo lugar. Foi em relação a esta fu nção
do rea l que as ciências exatas tornaram-se poss íve�s. Mas en­
quanto a ciência mede o espaço com sólido, ela mede o tempo
com tem p o. E a u nidade de tempo é sempre referida ao real , ao
fato de ele "voltar a o mesmo lugar". E de maneira semel hante
que Lacan vai pen sa r o real em psicanál ise - e nquanto tempora­
Hdade l igada à cadeia sign ificante.
A cadeia significante nada mais é d o que a cadeia do dese­
j o coma ndada pel o p ri n c íp io de prazer. A i nsistência dos signos
de que Lacan n os fala é a p rópria insistência do desejo; a a rt icu­
l ação tempora l entre o s significa ntes con st itu i n d o- se como p re­
sença do desejo cujo o bjeto absoluto fal ta sempre. O objeto p re­
sente, i lu são do o bjeto abso lu to, é o que constitu i o imaginário,
marcado pela decepção, pela negatividade, pela \:.asti'ação. E ntre

5 l.dcan, J., O Seminário, Livro 1 1 , p. 54.


6 t..a ca n , J., op. cit., p. 56.
7 La ca n , J . , O Seminário, Livro 2, p. 373.
sobre a noção de causa acidental 43

estes dois objetos - o p resente ilusório e o ausente abso luto - é


que vamos situar a fu nção do rea l .
O rea l não s e situ a entre o s objetos do mu ndo, entendidos
estes como o bjetos possíveis d o desejo, mas como o impossível,
como o que falta ao encontro marcado, e em cuj o vazio toma
luga r o significa nte. O objeto, enquanto falta fu n damental , é de­
nominado a Coisa. Lacan d isti ngue entre das Ding e die Sache. 8
Ambos os termos, em a lemão, designam "coisa". Procu ramos
das Ding mas encontramos die Sache. Este ú ltimo é o que se
constitu i como objeto do desejo e que é referido à cadeia signifi­
cante; sua presença é u m a presença i l u sória, já que ele preenche
o vaz io de das Ding, sem no entanto possib i l itar a satisfação ple­
na. I sto, porém, não significa que, por oposição ao caráter i lusó­
rio de die Sache, das Ding seja o rea l . A rigor não podemos se­
quer dizer que das Ding é o objeto perd ido, posto que ele jamais
o foi rea l mente; o que o constitu i como "perd ido" é a nossa
procu ra . Alain Ju ranvil le9 d iz que o rea l não é o desejável , mas
"o tanto de tempo que o desejado não su rge" . E nessa med ida
que não devemos confu nd ir a função de repetição ( Wiederholen )
com a fu nção de retorno ( Wiederkehr), ou com a rememoração
(Erinnern ) . O rea l não é o que retorna - o que retorna são os
signos -, mas o que se repete como falta, é o encontro fal toso
que Lacan designa como tyche. O rea l não é a real idade, na me­
dida em que entendemos por esta ú lt ima os objetos do mu ndo,
mas é o que confere " real idade" ao mu ndo. Presença i rredutí­
vel , o rea l é o que se repete, e nessa repetição fu n da o próprio
mundo enquanto rea l idade. E sta é a repetição que va i caracteri­
zar essencialmente a pu lsão.

8 Laca n . J . , O Semin�rio , Livro 7 (i nédito ) .


9 J u ranvil le, A. , Lacan e t la philosophie, p . 84 .
5

A R E PETI ÇÃO E AS MÁSCAR AS

N os cap ítu los a nteriores, fiz referênc ia a dois tipos de repe­


tição : a repetição do " mesmo" ( rep rodução) e a repetição dife­
rencia l; no entanto, não cheguei a precisar a natu reza desta ú lti­
ma para a psica ná l ise. O que a repetição repete? Qua l a relação
da repetição com a p u l são?
Deleuze1 nos d iz que repetição não é general idade, não é
semel h a nça, qu e ela na verdade é o oposto da genera l iz ação,
pois d iz respeito a u ma singu laridade que não é su bstitu ível ou
interca m b iável . " Repet i r - nos d iz ele - é uma forma de se
comportar, mas em rel ação a a lgo ú n ico pu singu l a r, que não
possu i semel hante ou equ iva lente ( . . . ) . N ão é acrescentar u ma
segunda e u ma terceira vez à primeira, mas condu z i r a primeira à
enésima p otência."2 E pe las máscaras que a repetição se consti­
tu i, isto é, como disfarce. As máscaras, porém, não encobrem se­
não outras máscaras, o que faz com que não haja u m prime i ro
termo da repeti ção, mas que a própria máscara seja o sujeito da
repetição. "A repetição não é representação"; 3 a repetição não
representa u ma coisa, ela significa a l go, ela ê, em sua essência,
de natu reza simból ica.
Aqu i l o de que a psicanál ise nos fala é dessa repetição inter­
minável, desse jogo amoroso que const itu i a l igação de E ros com
um passado reencontrado. O que se repete aqu i é o sexua l , ou

1
� ?::/'r.. pp.
Deleuze, G., Différence et réptltition.
7-8.

44
repetição e as máscaras 45

melhor, a repetição é const itu inte do sexual. Repeti mos u m en­


contro amoroso que, em si mesmo, já é máscara ( encontro p ri­
mei ro com a mãe ) . Nos casos em que a repetição aparece desnu­
da, isto é, em que se apresenta como repetição do ' ' mesmo" e
não como repetição d iferencial, como nos ritu a i s obssessivos, ela
encobre uma repetição mais profu nda que se desenvotve nu ma
dimensão vertical e não horizontal como os d i sfarces. G il les De­
leuze4 assim como Clement R osset5 são de opin ião que, neste
caso, a repetição se a l imenta da p u l são de morte. N ão creio, po­
rém, que a interpretação tenha que ser necessariamente esta,
apesar de ser a que expressa ma is fielmente o F reud de Além do
princípio de prazer. Mas se admitimos pensar a oposição pu l são
de morte/p u l são sexual não como u ma oposição entre entidades
su bstanc iai s d i sti ntas mas como uma oposição de modos, então
podemos reformu lar a questão acima. Mais à frente, voltarei ao
tema. Por enquanto procu remos entende r a questão das másca­
ras dentro do quadro teórico da segu nda tópica freu diana, sem
introduzirmos a lterações em sua estrutu ra.
Nesse jogo de repetições que constitu i o sexual, o que se
repete não é, pois, u m pri mei ro termo em relação ao qua l todos
os dema is seriam máscaras. O que se repete são os d i sfarces, as
máscaras, mas com a cond ição de não se entender a repetição
como externa aos d isfarces. E la não é aqu i lo que, de fora, vem
se sobrepor às máscaras, mas é parte integrante e constituinte
dessas próprias máscaras. I sto significa d izer que não há u m ele­
mento prime iro, sem máscara, que poderia ser tomado como re­
ferencia l abso luto e como a verdade sob os d isfarces. Como diz
Deleuze, nessa série de travesti mentos não encontramos o tra­
vesti desnu do que seria o primeiro elemento da série.
Não foi por outra razão que F reud abandonou a teoria do
trau ma. E sta supu nha um aconteci mento original, primei ro e le­
mento de uma série cujos efeitos atua is seriam os sintomas neu­
róticos. A cena trau mática ser ia, desta maneira, o "travesti des­
nudo", o fato bruto cau sador dos dema is elementos da série, e

4 Op. cit.
5 Rosset, C., Logique du pire.
46 acaso e repetição em psicaruílise

cuja descoberta desfaria o j ogo de máscaras. O empre go do p ro­


ced imento h ipnót ico t i n h a por obj etivo poss ib i l itar o acesso do
paciente ao seu próprio passado, a fim de que ele encontra sse
esse elemento pri meiro cau sador de sua neu rose. Cada sintoma
era uma máscara que ocu ltava um acontecimento real esquecido
(porém retido) pelo paciente. Dessa forma, a neu rose era pro­
duto de u ma a mnésia e a cura seria obt ida pela rem i n i scência.
O que F reud percebeu , a ntes mesmo de escrever A interpreta­
ção de sonhos, fo i o caráter fantasmático dessas cenas traumá­
ticas, isto é, que as seduções sexua is sofridas na i nfância eram
fantasias de sedução e não sedução rea l . 6 Deixa de haver, pois,
u m começo, assim como deixa de haver u m fim. A a n á l ise é in­
termi náve l porque somos remetidos a este j ogo i nterminável
das repet ições.
O qu e d izer, então, da experiência primária de satisfação
(Befriedigungserlebnis) ? F reud a aponta como a primeira experi­
ência onde se dá o diferencial p raze.r-desprazer. N ão seria esta
experiência o primeiro elemento da série a ser repetido i ndef i n i­
damente? Creio que isto só seria poss ível se v íssemos nessa ex­
periência não u m encontro, mas apenas a vivência isolada da
criança. No entanto, esse "primeiro e ncontro a moroso" repete
outros encontros amorosos. Sem dúvida, podemos ver no amor
pela mãe o ponto i n icia l de u ma série, mas isto se considerarmos
apenas a série particu lar que u ne a cria nça à mãe. N o entanto,
nessa a rticu lação criança-mãe podemos reencontrar outras arti­
cu lações amoro sas. " Dedu z i remos d isto que a i magem da mãe
não é ta lvez o tema mais profu ndo, nem a razão da série amaro�
sa, pois, embora seja certo que nossos amores repetem nossos
sentimentos pe la mãe, também repete m outros amores que n ós
mesmos não vivemos. A mãe aparece mais como a transição d e
u m a espéc ie a outra , a maneira como nossa experiência começa,
mas qu e já se encadeia a ou tras experiências rea l izadas por ou-

6 � verdade que F reud d e � I a ra j a ma is ter abandonado totalmente a teoria d a sedução


e que, de f ato . todos nós fomos seduzidos na i n fância a través dos cu idados que nos
foram d rspensados (ver: Três ensaios; E.S. B., Vol. V I l , p. 2 29 ) . O reconhecimento
desse fato n ão faz, porém, com que essa "sedução" seja tomada por F reud como
"primeiro termo".
repetição e as máscaras 47

tro. E m ú lt i ma i nstância, a experiência amorosa é a de toda a


hu manidade que atravessa o transcu rso de u ma herança trans­
cendente."7
I sto não sign ifica, porém, que a experiência primária de sa­
tisfação não tenh a nen h u ma i mportância. E l a, de fato, se const i­
tu i como o momento de instau ração de u ma experiência d ife­
rencial não apenas quantitativa como também qua l itativa : a do
prazer-desprazer. Além do ma is, é a part i r desta experiência que
podemos passar a falar de identificação primária, representante
primário e fantasia primá ria, isto é, de a l go que, p or referência
à pu l são, vai se const itu i r como uma i nstância ps íqu ica : o l d . O
"pri mário" aqu i d iz respeito à série pessoa l de nossas n�lações
amorosas, mas que não é primá r io em rel ação a outras sér ies
ma is amplas que são transpessoais.8
O prazer tem i n ício, pois, com essa experiência diferenci a l .
A questão q u e Deleuze aponta como sendo de fu ndamental i m­
portância para F reu d é a de se saber como o prazer, que origi­
nalmente é um processo, torna-se um princíp io organ izador da
vida psíqu ica.
Segu ndo F reud, o que há inicial mente é prazer de órgão
( Organlust). Anteriormente a qua l quer organ ização, as p u l sões
parciais se satisfazem de forma auto-erótica, sem levar em consi­
deração as demais pu l sões e sem obedecer a q u a lquer coisa que
possa ser denom inada "princípio". N ão há nenhu ma região do
corpo que seja essencia l mente caracterizada como erógena, as­
sim como não há nen h u m objeto que responda especificamente
pel a sat isfação. O que há i n icia l mente é u m a superf ície corporal
sobre a qua l o d iferencial p razer-desprazer se fará com a bsoluta
indepen dência de qua lquer princ íp io organizador. Assi m, não é
o princíp i o de p razer o que fu nda o prazer, mas, ao contrário, é
o prazer o que se erigi rá em p r inc íp io. A passagem do prazer en­
tend ido como processo psicol óg ico para o prazer entendido co­
mo princípio se daria em fÚ nção da ligação (Bindung) , isto é,
por u ma contenção ao l ivre escoamento das excitações, transfor-

� Deleuze, G . , Proust y los signos, pp. 85-6.


Deleuze, G. , op. cit. , p. 86.
48 acaso e repetição em psicanálise

mando o estado de pu ra d ispersão em estado de integração


(tra nsformação de energ ia l ivre em energia l igada ) . E sse estado
de pura d ispersão das exc itações, anterior à instau ração do prin­
c ípio de prazer e de seu complementar, o princípio da real idade,
é evidentemente um estado h i potét ico e que só pode ser pensa­
do recorrentemente. � a part i r do aparelho psíqu ico já consti­
tu ído que F reud pensa esse estágio i n icial a nárqu ico. Ta l como
na f ísica, o nde a concepção de um estado caótico de pura d is­
persão de energia só pode ser feita recorrentemente a part i r de
u m sistema já estrutu rado, também em psican á l i se, esse momen­
to in icial é u ma ficção teórica, ·não tendo como referente u m
momento rea l d a gênese do aparelho psíq u i co.9
A noção de ligação não é, poré m , empregada por F reud de
mane i ra u n ívoca. Algu mas vezes é empregada com referência ao
processo secu ndário e ao ego, outras vezes é util izada para de­
signar u m mecanismo próprio ao p rocesso primário e responsá­
ve l pela estrutu ração das fantasias primárias. 1 0 É neste ú ltimo
sentido que ela é empregada no cap ítu lo V de Além do princí­
pio de prazer. A l i , F reud nos diz que a tarefa de sujeitar a exci­
tação que ati nge o processo primário caberia aos estratos mais
elevados do apare l ho ps íqu ico, mas que antes mesmo de haver
u ma dominânc ia do p ri n c ípio de prazer e do princ ípio de rea l i­
dade, essa fu nção é exercida pelo aparelho ps íqu ico, " não em
oposição ao princ ípio de prazer, mas independentemente dele e,
até certo ponto, desprezando-o" . 1 1 São essas I igações, anterio­
res à própria vigência . do princ íp-io de prazer, isto é, anteriores à
transformação do p razer em princípio, que vão constitu i r u m
primeiro esboço d e o rgan ização n o l d.
Origi nal mente, o l d seria esse lugar ps íqu ico ou essa mu lti­
plicidade de l u ga res p s íq u i cos, onde a l igação introduz iria u ma

9 !: preciso levar também em cons ideração o fato de que F reud não concebe a energia
l ivre apenas em termos de descarga maciça de excitação, mas também como livre c i r­
cul ação ao longo de cadeias de representações impl icando laços associativos (ligações)
(ver : Laplanche e Po ntalis, Vocabulário da psicanálise, p. 350 ) .
!� La planche e Ponta l i s, Vocabulário da psicanálise , p . 350.
F reud, S ., E.S. B. , Vol. XVII I , p. 52.
repetição e as máscaras 49

primei ra forma de organ ização. Mas se o l d j á é u ma i nstância


ps íqu ica, as pu lsões são p ré-psíqu ica s ou quase-ps íqu icas. O que
encontramos nesse l d a rcaico não são as pu l sões, mas seus repre­
sentantes, sendo que cada representante é uma síntese ou u ma
l igação d e excitações. Detenhamo-nos u m p ouco neste ponto.
Qu ando d izemos que o ld é u ma instância p s íqu ica e que a
pu lsão é pré-ps íqu ica, nada mais estamos fazendo do que levar
em consideração a advertência de F reud segu ndo a qual a pu l são
é essa ent idade m ítica situada na fronte i ra entre o somático e o
ps íqu ico, e que ela jama is se faz p resente no psiquismo, a não
ser pelos seu s representantes. Portanto, o que perte11ce ao regis­
tro ps íqu ico são os representantes da p u l são e não ela mesma.
Esses representantes primários é que vão constitu i r o ld. Ass i m,
só de forma mu ito ampla podemos falar do l d como u m " lu gar
ps íqu ico" . ld não é u m conceito tópico, não designa p ropria­
mente um lugar, e se quisermos ser mais rigorosos, d i r íamos que
designa mais propriamente u m não- l u gar.
A forma ma is primitiva de relação entre a pu l são e seu s re­
presentantes é a fixação ou inscrição , o que F reu d vai chamar de
recalcamento orig i nário. Nesse momento, não há a inda " l u ga res
ps íqu icos" (se por este termo entendermos o s sistemas l cs , Pcs
e Cs ) . Na verdade, a fixação é o p rimeiro del ineamento desses
lugares e a precu rsora e cond ição necessária do recalcamento
propriamente d ito.1 2 A fixação à qua l estamos nos referindo é,
pois, a fixação da pu l são em seu s representantes p s íqu icos, e
que é correlativa da fixação da excitação nestes representantes.
São os representantes da pu I são que a p resentifica m no psiqu is­
mo, ao mesmo tempo que del i mitam suas i n stâncias, e i sto se dá
pela mediação do recalcamento primário. Mas enquanto o recal­
camento posterior ( ou reca lcamento p ropriamente d ito) "apa­
renta ser um processo essencia lmente ativ o, ( . . . ) a fixação pare­
ce de fato constitu i r um retardamento passivo",13 da mesma

2
1 F reud, S., E.S.B., Vol. XII, p . 90.
13 Desde o Projeto de 1 895, F reud nos fala de u m ego concebido como u ma orga n i ­
zação i n terna a o s neurônios 'l', isto é, como u ma organização de representantes psf-
50 acaso e repetiçaõ em psicalUÍlise

forma como a p r i meira diferenciação a se produ z i r no I d é a de


um eu passivo, ou a de uma p l u ra l idade de eus passivos. São,
portanto, as l igações e os i nvestimentos ql.!e vão constituir esse
ego arcaico. 1 4
A l igação é, po is, essa s íntese que opera a passagem de um
estado d e p u ra d ispersão a estados parci a is de integração ou o r­
gan ização no l d . E sta o rganização se faz sobre a exc itação, que
se torna elemento de u ma repetição, e que j á foi acompanhada
de p razer ou de dor, a ntes mesmo que pudéssemos falar em vi­
gência de um princ ípio de prazer. A rigor, essas organ izações
elementares são correl ativas à institu ição do princíp io de prazer;
ou melhor d izendo, correspondem a um a lém do princ ípio de
prazer, isto é, à determi nação das condições sob as quais o prin­
c íp io de p razer se const itu i . As primeiras l igações que l i mitam
ou im pedem o l ivre escoamento das excitações são s ínteses pas­
sivas - reprodu ção e não repetição; tornam-se repetições d ife­
renciais ou s í nteses ativas apenas num segu ndo momento.
Ao falar d o ego no Projeto de 1 89 5, F reud refere-se a ele
como u m a d iferenciação interna ao sistema de neu rônios \}1 cuja
função é essenc ia lmente i n i b idora, mas que não d ispõe de uma
p rova de rea l idade. E sta seria fornecida pelos neu rôn io s w que
informariam o ego em \}1 quanto à d i ferenciação entre percep­
ç ão e lembra nçasY As primei ra s organizações passivas ou os vá­
rios egos passivos vão dar l u ga r a u m ego ativo, sede dos p roces-

quicas destinada a evitar ou d i f i cu ltar a descarga de energia. Esta integração de repre­


sentantes psíquicos é a própria ligação a que nos referimos acima, constituinte de
formas relativamente estáve i s que l imitam o l ivre escoamento das excitações e que
são permanentemente investidas de energia pu l si o n a l . E ste ego do Projeto não é
tdéntico ao ego dos textos posteriores a 1 920 . À diferença deste outro, el e não
tem acesso a realidade {função que é exercida pelos neurônios W e não pelos neurO­
n tos '-11 que f o rmam o ego ) , não é capaz de d i st i ngu i r o o bjeto rea l do o bjeto a l ucina­
do. Paradoxalmente, ele é u ma proteção contra a descarga e , ao mesmo tempo, aqui­
lo que deve ser protegido de s u a falta de indicador de realidade (ver a este respeito:
Garcia-Reza, L.A., Freud e o inconscien te , cap. 2 ) .

:: F reud. S . , E.S.B., Vai. I { o Projeto d e 1 S95).


F reud, S. , E.S.B. , Vai. I , p p . 431 -2.
repetiçaõ e as máscaras 51

sos secu ndários. Ass i m é que, em Sobre o narcisismo ( 19 14),


F reud nos d iz que "uma u n idade comparável ao ego não pode
ex ist i r no indiv íduo desde o começo; o ego tem que ser desen­
volvido. As pu lsões auto-eróticas, contudo, a l i se encontram des­
de o i n ício ( . . . ) ' ' . 16 O eu que se forma inicialmente não é, con­
tudo, o eu u n if icado e u n 1 f 1 cador que se forma rá postenormen­
te, mas esses eus parcia is, s ínteses passivas, correspondentes às
prime1ras l igações efetuadas sobre representantes p u l sion a i s dis­
persos. As l igações não são porta nto efetuadas pelo ego, 1 7 mas
precondições do próprio ego.
Vo ltando à questão de que as pu l sões são repetições, qual
o sentido d.r,sta afirmação, se levarmos em conta que F reud , ao
falar da pu lsão em seu a rtigo de 1 9 1 5, em nen h u m momento as­
sinala a repetição como sendo sequer u m a de suas caracter ísti­
cas?
O que sem dúvida a lgu ma é marcado pela repetição é E ros,
a p u l são sex u a l . Ass i m como o nosso primeiro encontro a moro­
so é j á u ma repetição, repetição de encontros que não foram vi­
vidos por nós, os demais encontros são também repetições. O se­
xual é o que se repete, nos d iz F reud.
O que já v imos, porém, é que essa repetição jamais é desnu­
da, ela não aponta para um primeiro termo, mas está irremed ia­
velmente constitu ída pelo j ogo i nterm inável das máscaras. N ão
possu ímos u ma sex u a l idade que é mascarada; a sexual idade é
constitu ída pelas próprias másca ras. A sexual idade hu mana é,
essencia l mente, d isfarce. I sto quer d izer que a repetição não é
representação, a máscara não representa u m objeto, e la significa
algo. Esta é a razão pela qua l Deleuze nos d iz que a repetição,
em sua essência, é de natu reza simbólica . 1 8 Ora, isto significa,
então, que antes da pu l são constitu i r seu s representantes psíqui­
cos pelo reca lcamento primário, ela não é pu l são sexua l , pois é
p recisamente o diferencial prazer-desprazer que vai caracterizar
o sexual, segu ndo F reud. Neste caso, não é a bsu rdo afirmar que
é o reca lcamento originário que constitu i a própria pu l são.

16
F reu d , S . , E. S. B. , Vol. X I V, p . 93.
: 7 E mbora F reud admita q u e posteriormente isto ocorra .
8 Deleuze, G . , Différence et répétition, p. 1 40 .
52 acaso e repetição e m psicaruí/ise

O recalcamento é o mecanismo ou a operação pela qual se


i nstau ra o j ogo das máscaras, . sendo que desse jogo a pu l são não
participa d iretamente, mas através de seu s representantes. A re­
petição é, pois, o ato pelo qual a pu l são é presentificada, mas,
ao mesmo tempo, o ato pelo qual ela permanece ocu l ta. Assi m é
que F reud, no artigo Recordar, repetir e elaborar, acentua o fa­
to de que o paciente, na repetição, não recorda a lguma co isa.
que esqueceu, mas s i m que ele atua. 1 9
A qu estão q u e se co loca é qua l a relação d a repetição com
o rea l . V imos que a repetição aparece como ato, e sabemos q ue
u m ato é sempre hu mano, que não há ato animal, mas apenas
comportamento a n im al. O que Lacan nos diz é que "um verda­
dei ro ato, tem sempre u ma parte de estrutura, por d izer respei­
to a u m rea l que não é evidente". 2 0 E ai nda : "O real é o que re­
torna sempre ao mesmo lugar - a esse l u gar onde o sujeito, na
medida em que ele cogita, não o encontra." O rea l é, portanto,
essa presença si lenciosa, à qual diz respeito toda a prática psica­
nal ítica, e que transparece ou se faz presente pelas máscaras. As
máscaras não ocu ltam o real, fazem-no aparecer. O rea l está
além das máscaras, dos d isfarces, dos �ignif icantes, está a lém do
princípio de prazer. O real está a lé m da repetição, não porque
seja contrário a ela, mas p orque a fu nda.

1 9 F reud, S., E.S.B., V o l . X I I, p. 1 96.


20
Lacan, J., O Seminário, Livro 1 1 , p. 52.
6

PU LSÃO D E MORTE E PU LSÃO SEXUAL

Vi mos no cap (tu lo anterior que a noção de pu lsão sexual


encerra u ma dificu ldade: se nos colocamos, como sugere Lacan,
nos dois extremos da experiência ana l ltica - o recalcado pri­
mordial e a interpretação -, temos que a sexua l idade situa-se
nesse interva lo ou, para empregar suas pa lavras, ela dom ina toda
a economia desse interva lo. 1 !: portanto em termos da rede de
significantes que a sexual idade se constitUi e em relação à qua l
podemos falar d o desejo. M a s nesse caso, é enquanto pertencen­
te à su bjetividade ou à rede de significantes, que a sexual idade
d iz respeito ao sujeito. Como então falar em pu/são sexua l , se a
pu lsão é exterior a essa rede? Podemos fa lar em pulsão sexual da
mesma maneira que falamos em desejo sexual? O sexual podP
ser predicado tanto da pu l são como do desejo?
C la ro está que a sexual idade só se real iza na medida em
que é suportada pelas pu lsões parciais, mas isto nos autoriza a
falar dessas pul sões como sendo sexua is? O que confere às pul­
sões parciais o caráter de sexuais? O fato de serem parciais ·em
relação à final idade biológ ica da sexual idade, ou o fato de serem
regidas pelo princípio de prazer? Deleuze nos diz que é pelas
máscaras que a repetição se constitu i ; isto não elim ina porém o
fato de que essa repetição d issimu l a a lgo fu ndamenta lmente de­
terminante na função de repetição, que é o real. Nesse caso, te­
ría mos duas repetições: u ma ao n ível da rede de significantes,
que não seria propriamente repetição, mas retorno ( Wieder-

1 Lacan, J., O Seminário , Livro 1 1 , p. 1 67.

53
54 acaso e repetição em psicanálise

kehr) dos signos, e outra nu rri n ível mais p rofundo e dissi mu l a­


do pela primeira , qu e seria da o rdem do pu l sional p ropriamente
dito. A qu estão, p ortanto, é a segu inte : a pu l são qu e constitu i o
se x u a l é, ela própria, sexua l ? E se a repetição, no que ela tem de
menos dissimu lado, é o que nos aponta para o rea l , como f ica a
d isti nção pu l são sexua l-pu l são de m orte? Ou a inda : se o que de
mais rad ical a repetição encerra é a repetição em s i mesma, co­
mo sustentar a oposição p u l são sexual-pu l são de morte?
O que terá que ser repensado, acred ito, é a concepção freu­
d iana da p u l são de morte entend ida como tendência de retornar
ao inorgân ico. A compu l são à repetição, que foi a p rincípio a
ú n ica manifestação da pu l são de morte apontada por F reud, en­
contrava sua j u stificativa no fato de que contrariava o p rincípio
de p razer, ou melhor, ela nos remetia para u m "além do princí­
p i o de p razer", exata mente porque não encontrava su a j u stificati­
va no princ(p i o de prazer, no fato de qu e nenhu m a das instâncias
p s íqu icas parecia se beneficiar dela. Assi m sendo, ela nos remetia
para a l go mais primitivo e mais fu ndamenta l , que F reud identifi­
cou como sendo a pu lsão de m o rte. N o entanto, poucos ano s de­
pois da pu b l icação de Além do principio de prazer, F reud nos
brinda com o pequeno artigo A negativa (Die Verneinung, 1925),
n o qual a f i rma não apenas que nem sempre o funciona mento do
apare l h o p s íqu ico é regido pelo p rincípio de prazer, mas sugere
a i n da que a p rópria pu l são de morte pode e deve ser v ista como
um princípio p ositivo de constituição do psiqu i smo, e que esse
papel positivo nada teria a ver com a h ipótese u m tanto metafí­
s ica de uma tendência ao i norgâ nico de que seria dotado todo
ser v ivo.
O qu e me parece mais problemático não é a postu l ação de
uma pu l são de m o rte, mas sua identificação com a hipótese aci­
'
ma, e isto porque a pu ! são de morte não p recisa ser v i sta como
impu l so para morrer. Podemos perfeitamente prescindir de
F reud pqra afi rma r que todo ser v ivo morrerá u m dia. Se a teo­
ria de Weismann nos fornece a i lu são da i mo rta l idade, não el i­
m i na contudo a nossa m o rte individua l . Não me parece, por­
tanto, que a grande revolução p rovocada por Além do princf­
pio de prazer resida nessa verdade cotid iana , mas em a lgo que se
refere ao n ível propriamente teórico da construção freudiana.
Pu/são de morte não é u ma noção descritiva, mas um conceito
pu/são de morte e pu/são sexual 55

explicativo ou uma hipótese metapsicológica, e enquanto tal


acha-se indissoluvelmente l igada à pu/são sexual.
Essa dua l idade pu lsional, a l iada à repetida afirmação de
F reud do seu modo dual ista de pensar, conduziu seus comenta­
dores a u ma d i stinção ontol ógica entre pu l são de vida e pu l são
de morte. Ass i m, segu ndo eles, haveria desde o começo duas
entidades distinta s, cada uma i mpel indo o organ i smo vivo numa
d i reção, a lgo análogo à dua l i dade afirmada por certas rel i g iões
entre as forças do bem e as forças do ma l . No entanto, podemos
respeitar a exigência dua l ista de F reud sem necessariamente
ca i rmos num dua l i smo ontológico. Spinoza, três sécul os atrás,
já nos falava sobre uma dua l idade (ou mesmo p l u ra l idade) de
modos que não i m p l icavà dual idade ou p lu ra l idade su bstan­
cia l . Claro está que p u l são não é su bstância , mas nada nos im ­
pede conceber "pu lsão de vida" e "pu l são de m orte" com o
modos d e ser d a pulsão. Apresso-me e m d izer que nunca pode­
ríamos conceber a pu/são si mplesmente; ela sempre seria p u l são
"
de vida ou pu lsão de morte. O u so do termo pu/são i solada men­
te poderia, quando mu ito, o bedecer a uma economia expositiva.
A d iferença em relação à concepção freu diana residir ia no fato
de que nenhuma pu lsão seria, em si mesma, pu lsão de vida ou
pu lsão de morte, mas que esta dist inção resu ltaria da organ iza­
ção do campo p ul siona l .
A o ser submetida a o s i mból ico e portanto sofrer o recal que
originário, a pu lsão se constit u i ria como pu l são sexual através
de máscaras ou d isfarces. Admitindo-se que o sexua l , enquanto
humano, só se dá nas e pelas m áscaras, portanto já a n ível do
i maginário e su bmetido ao simbólico, não há como conceber­
mos a sexual idade h u mana fora do s i m ból ico. Mas neste caso, se
o sexual pertence ao regi stro do imag inário, não é mais pu/são
sexual, já que a p u l são, como nos d i sse F reud, não é da ordem
do p s íqu ico. "Pu l são sexual" seria, pois, u ma contradição - se
é pu l são, não é a inda psíqu ica, sendo anterior às máscaras que
pertencem apenas a este ú ltimo; se é sexual, é posterior à sub­
missão ao simbólico e i nterno ao i maginário, não podendo ser
considerada pu l são. Admitir o sexual como sendo uma caracte­
r ística i nerente à pu l são, como que constitui nd o sua natu reza,
i m p lictl uma das duas h ipóteses: 1) Que a pu lsão pertença
ao dom ínio do simból ico; ou 2 ) Que o sexua l possa se constitu i r
56 acaso e repetição em psicanálise

fora das máscaras e dos d isfarces, isto é, fora do simból ico. Am­
bas as h ipóteses parecem contrariar a teoria psica na l ítica.
U ma metáfora da pu l são e sua diferenciação em pul são
sexu a l e p u l são de morte pode ser constitu ída da segu inte ma­
nei-ra : i maginemos um espaço cósmico mergu l hado na mais
absoluta escuridão, onde nem mesmo a luz de algum astro dis­
tante se fizesse p resente no campo v isua l. I maginemo-nos soltos
neste espaço portando uma possante la nterna unidirecional, com
a qual esquadrinhamos o cosmo, com a cond ição de não voltar­
mos o foco contra nós mesmos. N u ma situação dessas, apesar
de estarmos com os o lhos abertos e com a la nterna acesa, não
ver íamos absolutamente nada, nem mesmo o facho de luz emiti­
do pela la nterna, já que não h averia part ícu las em su spensão ou
atmosfera. Apesar de estarmos com os olhos a be rtos e com a
la nterna acesa, nada ver íamos, estaríamos na mesma situação
que um cego. Su ponhamos agora que um objeto qua lquer, por
"acaso", atravessasse nosso campo visual e fosse i l u m i nado pela
lanterna. E le, ao mesmo tempo que se tornas� v i s ível, denu n­
cia ria a ex istência do foco de luz e da nossa própria v isão. O ra,
se su bstitu irmos o objeto pelo seio materno e o foco de luz pela
pu lsão, podería mos dizer que o objeto, ao se constitu i r como fi­
gu ra, constitu iu simu ltaneamente a pu lsão como p u l são sexu a l .
O sexual é o que s e con- figura pela articulação entre a pu lsão e
u m objeto capaz de fu ncionar em termos .de diferencial prazer­
desprazer. A p u l são de morte, na nossa metáfora, seria o próprio
foco enquanto não re lacionado a u m objeto e, portanto, aqu ilo
qu e perma neceria invi s ível e s i lencioso. Assim sendo, o que d is­
tingu iria a p u l são sexual da pu lsão de morte seria o investimen­
to. É enquanto i nvestida num o bjeto que a pulsão se constitu i
como p u l são sexu al, constitu indo p or contraposição a p u l são de
morte como energ ia dispersa. I sso porém contraria o que foi di­
to acima, isto é, que a concepção de u ma p u l são sexual é aber­
rante, já que i m p l ica a ex istência do sexual fora do simbólico, o
que, no m ín imo, acarreta u ma natu ra l ização do sexua l . A solu­
ção para o impasse · poderia ser a de aceitarmos que os termos
" morte" e "sexual", enquanto qual ificando diferencial mente a
pu lsão, correspondem.a modos de ser da pu lsão e não a u ma dis­
tinção ontológica . Neste caso, o "sexual" corresponderia à ins­
crição da pu lsão nu m outro registro - o da realidade ps íqu i-
pu/são de morte e pu/são sexual 51

ca -, o que se daria através de seus representantes p s íqu icos e


não em termos da pu lsão em si mesma. E com isso, ser ía mos le­
vados a concordar com F reud quando ele afirma que a ou l são
de morte "é a pu l são por excelência".
Essa concepção, porém, corre o risco de tra nsformar a teo­
ria freudiana das pu l sões numa teoria monista, contrariando o
propósito de F reu d. A própria metáfora empregada deixa claro
esse risco. Se é o objeto que ao ser investido constitu i a p u l são
como pulsão sexual, an tes do investi mento haveria apenas a
pu lsão de morte. R igorosamente fa l ando, isto é verdadei ro, pois
o que permanece i merso no acaso, o que não se configura como
forma, como sentido, é o que pode ser considerado como rigo­
rosamente pu lsional . A pu lsão de morte é, pois, a p u l são por. ex­
celência, "a primeira pu lsão", como d iz F reud.2 No entanto, a
questão não é ass i m tão simples, posto que é apenas do l u gar da
ordem, isto é, do lugar do sexual, que podemos fa lar em pulsão
de morte. Antes da d iferenciação pu lsão sex u a l-pu l são de morte,
não podemos, a rigor, falar de pu l são. N ão há esse "antes", ele
só se dá ao n ível da nossa metáfora, e supor a existência desse
momento fora do tempo, fora da ordem, fora do pensáve l, é
algo que se reduz a u m nome apenas: pul são. Assim, pu l são é
sempre pu lsão sexual ou pu lsão de morte; desde o i n ício essas
duas modal idades encontram-se j u ntas, "desde o i n ício os fenô­
menos da vida podiam ser expl icados pela ação concorrente ou
mutuamente oposta dessas duas pu l sões ( . . . ) As manifestações
de E ros eram v i s íveis e bastante ru idosas ( . . . ) Deve-se confessar
que temos u ma d if icu l da de mu ito maior em apreender essa pul­
são (de morte) ; podemos apenas suspeitá-lo, p or assim d izer, co­
mo algo situaqo em segu ndo plano, por trás de E ros, fugindo à
detecção".3 Voltarei a essa questão no cap ítu lo segu inte.
I n icialmente, F reud abordou a questão do ponto de vista
da repetição traumática. Oua l é a função da repetição trau máti­
ca? Se ela não serve ao princ ípio de prazer, se não atende às exi­
gências de nenhum s i stema p s íqu ico, e se apesar disto apresenta­
se com insistente regu laridade, a que serve ela? Por que o pa-

2 Freud, S., E. S. B. , Vol. XV I I I , p. 56.


3 Freud, S. , E.S. B. , Vol. X X I , pp. 1 41 e 1 44.
58 acaso e repetição em psicanálise

ciente repete nos seus sonhos situações trau máticas? F reud su ge­
re que estes sonhos teriam a fu nção de dominar retrospectiva­
mente o est ímulo.4 Laca n considera que a resposta é apressada
ou, pelo menos, que lemos a pressadamente a resposta sugerida
por F reud: " Do m i nar o acontecimento doloroso, l hes di­
rão - mas quem dom ina, onde está aqu i o senhor, para domi·
nar? Por que fa lar tão depressa quando, preci samente, não sabe­
mos situar a instância que se entregaria a essa operação de dom í­
n io?"5
Essa domi nação não seria fe ita por um dos sistemas psíqui­
cos, nem pelo psiqu ismo entend ido como u ma tota l idade. Na
verdade, ela nos remete a u ma fase anterior à vigência do p rincí­
pio de prazer, anterior ao momento em que os sonhos passaram
a ser rea l ização de desej os,6 anterior ao psiqu ismo entend ido co­
mo u m conju nto de sistemas d iferenciados.
Vi mos, em cap ítu lo anterior, que o aparelho ps íqu ico co­
meça a se constitu i r como u m aparelho, isto é, como u m con­
ju nto de sistemas, a part i r do momento em que a energ ia l ivre,
proven iente de fonte pu lsional, começa a ser ligada. E essa sujei­
ção da energ ia l ivre, transformando-a em energia l igada, que vai
passa r a ser, da í p or diante, a tarefa principal daqu i lo que F reud
chama "os estratos mais elevados do aparelho mental" . Uma vez
feita a diferenciação do psiqu ismo em sistemas, caberá ao siste­
ma Pcs/Cs suje itar a excitação do l cs, o qua l funciona como lo­
ca l de i mpacto da fonte pu l siona l . Essa energia l ivre tende à des­
carga, e poderá provocar u ma desestrutu ração do psiqu ismo se
não for dominada e conduz ida à descarga de forma adequada.
Portanto, antes mesmo da domi nância do princípio de p razer, o
aparelho ps íqu ico fu nciona no sentido de ligar a energ ia l ivre;
ou, mais p recisamente, o aparelho ps íqu ico, enquanto "apare­
l ho", é o efeito dessa l igação, posto que anteriormente a ela não
podemos falar em nada que se assemelhe a u m aparelho, uma or-

4 Op. cit., p. 48.


5 Lacan, J . , O Seminário , Livro 1 1 , p. 53.
6 F reud, S . , op. cit., p. 49.
pulsiio de morte e pulsão sexual 59

ganização, u m sistema fechado.


Mas então, por que, posteriormente à constitu ição do a pa­
relho psíqu ico com sua divisão em sistemas, o indiv íd u o con­
tinua a repetir experiências tr<:�umáticas de origem i nfanti l ?
Freud responderá (não tão claramente como desejaríamos) que
a repetição persiste porque a p u l são i nsiste. Volto, porém, à
questão que levantei acima : qual pu lsão insiste, a pu l são sexual
ou a pu lsão de morte?
Ambas evidentemente, sendo que cada u ma const itu i u m
tipo diferente d e repetição. Ta lvez a qu estão deva ser colocada
de outra manei ra : O que o homem repete, segu ndo a psicanál i­
se? E m primei ra instância, ele repete a sua i nfância. Ta l como
os m itos, qu e nos remetem aos começos (o tempo original de
que nos fa la M i rcea E l iade), F reud nos remete ao nosso começo,
à nossa infância concebida aqu i como u m dest ino; não u m desti­
no já inscrito ab aeternitatae, mas u m destino i n scrito ab initio.
Esse começo, tal como o começo m ítico, pertence a u m outro
tempo. Mareei Detienne7 fala-nos do aedo do poeta da G récia
arcaica que, insp i rado pelas musas, tinha acesso ao tempo origi­
nal, ao tempo m ítico dos começos. Esse tempo não é u m tempo
passado, ass i m como a m emória do poeta não é u ma memória
psicológica; o poeta, no estado de êxtase, "vê" esse outro tempo
como presente, ou mel hor, ele presentifica o tempo e o espaço
sagrados. As musas não l he fornecem u m relato dos feitos dos
deuses e dos heró is, esses acontecimentos primord iais são "vivi­
dos" pelo poeta como p resentes. O tempo sagrado é o tempo
aion, feito de passado e futuro, que o p resente do poeta con­
templa. De forma análoga, o começo que o psicana l ista nos leva
a contemp lar, ou melhor, a repetir, não se apresenta como u m
passado crono l óg ico. Não se trata d e constru i r u m relato fiel do
passado psicológico de cada um de nós, mas de possib i l itar u m
acesso a esse l u ga r m ítico que está a í e que é v iv i do em contem­
poraneidade com nosso presente histórico.
Esse passado-presente é, porém, du p l o : é o passado-presen­
te do inconsciente, mas é também o passado-presente das pul-

'
7 Detienne, M. , Les maí'tres de vérité dans la Grece archai que.
60 acaso e repetição em psicanálise

sões. Se o inconsciente i nsiste, enquanto recalcado, em se tor­


nar consciente, a pu lsão insiste mais fortemente a inda i nvestin­
do o próprio inconsciente. E poderíamos dizer ma is a inda : que
o i nconsciente. só persi_s_te_ porque. a pulsãu insiste. E. a. p.ul são.
que confere rea l idade ao inconsciente. A repetição do incons­
ciente só se faz nas e pela s máscaras, o mesmo acontecendo com
a repetição que se dá a n ível do p ré-consciente/consciente. A
repetição qu e se dá ao n ível da pu l são é de outra natu reza, não
é máscara, d i sfarce ou sentido, é real.
Creio que este é o momento de retomarmos uma questão
que foi apenas insinuada anteriormente: Pu/são é corpo ou l in­
guagem ?
Dois m i lênios antes d e F reud, o s estóicos d istingu iam dois
tipos de coisas: corpos e acontecimentos. Apenas os corpos po­
dem ser causas, os acontecimentos são efeitos. Assim, enquanto
os corpos são m istu ras e estados de coisas, com suas tensões,
suas qua l idades, suas ações e paixões, os acontecimentos são
efeitos de su perf ície, " incorpora is", não possuem propriamente
ex istência. N ão são su bstantivos ou adjetivos, mas verbos (cres­
cer, d i m i n u i r, cai r, bri lhar, correr, r ir, são acontecimentos) . Os
acontecimentos não são agentes nem pacientes, ass i m como não
são tam bém qua l idades de corpos. E nqua nto os corpos são o ser
profu ndo, força, os acontecimentos são efeitos dos corpos, efei­
tos não classificáveis entre os seres. Um acontecimento jamais
'
pode ser causa de nada, não age nem padece, é i mpassíve l . No
entanto, os acontecimentos não existem fora da l i nguagem que
os exprimem. Deleu ze nos diz que "o aconteci mento su bsiste
na l inguagem, mas acontece às coi sas" . 8 E nquanto os corpos são
o l ugar das ações e das pa ixões, os aconteci mentos- l inguagem
são o atributo de estados de coisas. Portanto, de u m lado temos
os corpos, de outro temos os incorpora is ( acontecimentos- l i n­
guagem) ; os primeiros são coisas, com suas qua l idades f ísicas e
reJações reai s; os segu ndos, como atribu tos l ógicos, são efeitos
i mpassíveis. N o ssa questão é : O que são as pu lsões - corpos ou
acontecimentos-! inguagem ?9

8 Deleuze. G . , Lógica do sen tido, p. 2 6 .


9 Para a questão dos incorporais no estoicismo, ver: E . Bréhier, La th�orie des incor·
porels dans /'ancien stoicisme , e G . Deleuze, op. cit.
pu/são de morte e pu/são sexual 61

F reud nos fa la das pu l sões como marcadas pe l o acaso, a n­


teriores à ordem e à le i . Poder íamos ser tentados, a partir di sto,
a identificá-las com os encontros de que nos fala Lucrécio - aca­
so pu ro, p rodutor de orden s secu ndárias. No . entanto, Lucrécio
nos fala da superf ície dos aconteci mentos e não da p rofu ndida­
de dos corpos, co locando-se de i n ício a n ível das másca ras, dos
sign if ica ntes, e não da pu lsão. Os acontecimentos ( ou a l ingua­
gem qu e é sua expressão) são " i m pass íveis", n ão são o l u gar
nem das ações, nem das paixões. Assi m, a pu l são, enqu anto rea l ,
é corpo o u d iz respe ito a corpos.
Mas nesse caso, não seria a pu lsão redu t ível ao biológ ico?
N ão esta r íamos reto rnando e nega ndo o princíp io desta exposi­
ção, qu a ndo afirmei tão enfat ica mente a d i sti nção entre pu l são
e i nsti nto? Não creio que assim seja, mesmo porque afirmar que
a pu l são é corpo ou qu e d iz respe ito a corpos não signi fica que
"corpo" seja aqu i considerado enquanto corpo b i o l óg i co. Mas
então, de que corpo estamos fa lando? A resposta pode ser u m
tanto desconcertante, mas este corpo é o corpo enquanto
su bmetido à cu ltu ra, à l i nguagem. E nquanto o d i scu rso da bio­
l og ia de l i beradamente natu ra l iza o corpo hu mano para poder
tratá- lo como co isa, o d iscurso psica n a l ítico va i pensá- l o en­
qu anto i merso na cu ltu ra e com o superf ície de i n scrição da h is­
tória.
As p u l sões e nqua nto corpo ( ou como representantes do
corpo, como p refere F reu d) i nstituem o l u gar do real em psi­
canál ise. E ste rea l não é um "dado", ele é, se qu isermos, u ma
h ipótese ou u m suposto. I sto não ó torna, porém, su pérfluo;
não nos habil ita a fazermos u m corte entre a pu l são e o i n cons­
ciente com o i ntu ito de nos desca rta rmos do p r i mei ro, como
te ndem a fazer a lgu ns teóricos da psicaná l ise. E stes ú lt i mos;
quando o fazem, se recusam a ouvir as palavras de Lacan quan­
do afirma que " ma is do que qua lquer outra p rática, a psica ná­
l i se é o rientada para aqu i l o que, no coração da experiência, é
o núcleo do rea l ", 1 0 ou a i nda quando afi rma que, d izer que a

10 Lacan. J., O Seminário , Livro 1 1 , p, 55.


62 acaso e repetição e m psicanálise

pu l são é o . rea l , é d izer que e la está presente no centro da ex­


periência psicana l fti ca, enca rnando-a e, ao mesmo tempo, pertur­
ba ndo-a na sua d issimu lada porém freqüente contam i naçãq_ car­
tesiana.
Mas de que rea l é esse que falamos? N ão se trata da rea l ida­
de psíqu ica (psychische realit'át) à q u a l F reud faz referência na
Interpretação de sonhos. 1 1 Esta é ident if icad a com o desejo i n­
consciente e com os fantasm as l igados a e le, enquanto que o rea l
ao qual nos referimos acima nos remete pa ra o registro da pu l­
são . Portanto, a p u l são é corpo não no sentido de ser um órgão,
uma pa rte ou u ma fu nção do corpo, mas no sentido de ser u m
modo particu l a r d o corpo se art i cu lar com a l i nguagem ( ou com
os objetos const itu (dos a partir desta ) . E como a pu l são se cons­
t itu i como repetição? E l a não repete segundo u ma lei a priori,
ta mbém não repete u ma ordem cósm ica i nexorável ; o qu e a p u l ­
sã o repete i m p l ica sempre o novo, é u m a repetição que s e dá no
lugar do acaso.

11
F reu d , S. , E. S. B. , Vol. IV, p p . 1 5 1 e 1 58-9.
7

O R EA L E A PU LSÃO D E M O R T E

O rea l é corp o o u d iz respeito a corpos. " Corpo" não deve ser


entendido aqu i como sendo, desde o in ício, u ma tota l idade es­
tru tu rada formada de pa rtes, mas como u m conju nto ad itivo de
elementos que funcionam em termos do d iferencial p razer-des­
prazer, sem nen h u m p r i n c íp io u n if icador a priori. Se, do ponto
de vista biológ ico, este corpo é uma tota l idade estru tu rada ca­
paz, desde o i n ício, de fu ncionar i n tegrada m ente, o mesmo não
ocorre qua ndo o consideramos do ponto de vista psicanal ítico.
A pu lsão d iz respeito aos encontros desse corpo com o mundo
ou , m a is especificamente, aos seu s enco ntros com o bjetos que
tam bém não se apresentam como forma ndo parte de uma tota l i­
dade orga nizada ( qu e seria o m u ndo ) . A pu lsão não deve ser en­
tendida, portanto, como u ma propr iedade do corpo, mas como
a lgo que d iz respeito ao modo desse corpo se a rt icu l a r com os
objetos. Quando F reud nos d iz que i n i cial m ente as pu l sões são
anárq u i cas, devemos entender por isto q u e elas não fu ncio nam
i ntegradamente, que cada p u l são, iso ladamente, a rt icu la u ma
pa rte do corpo com u m objeto, e que esta a rt icu lação se faz em
fu nção do d iferen c i a l prazer-desprazer. O q u e há, nesse momen­
to, é pois uma p l u ra l idade de pu lsões elementares, um estado de
d ispersão anárqu ica de energ ia.
Um estado de pu ra d i spersão de energ ia, caos orig i n a l de
forças elementares, é ev identemente u ma ficção qu e não corres­
pende a nenhum mo mento rea l . !: apenas recorrentemente que
podemos pensá-lo, ou seja, é do l u gar da ordem que falamos nes­
se caos origi nal, e este lu gar assim como o d i scu rso que a partir
dele p rodu z i mos não podem ser neutros em relação ao caos-ob­
jeto desse d iscu rso.

63
64 acaso e repetição em psicanálise

E m Além do princípio de prazer, F reu d nos convida a i ma­


g i nar um organ ismo vivo extremamente simp les que é su bmeti­
do ao i mpacto incessante de est ímu los externos. Esse organ ismo
acabaria p or formar u ma ca mada protetora que fu ncionaria co­
mo u m escudo contra est ímu los, ev itando com isso a destru ição
de suas camadas mais p rofu ndas e a sua própria morte. Ocorre
porém qu e, no caso do aparelho ps íqu ico, as excitações são
p rovenientes não apenas do exterior, mas também do i n terior
do orga n i smo, sen do que neste caso não há poss i b i l idade de se
erigir u m escu do p rotetor, ou sua u t i l ização é i neficaz: em se tra­
ta ndo de exc itações excessivamente intensas. U ma i nvasão des­
se tipo tem u m efeito desagregador sobre o aparelho ps (qu ico.
Qu ando i sso a co ntece, o pri ncip i o de prazer é col ocado momen­
ta nea mente fora de ação e "su rge o problema de dom i nar as
qu a ntidades de est ím u l o que irromperam, e de v i ncu l á- l as, no
sentido ps íqu ico, a fim de que delas se possa então desvenci­
l har. " 1 A noção de trau ma ps fqu ico está l i gada a essa concepção.
O trauma seria o efeito, a n ível ps íqu ico, do romp imento desse
escu do proteto r e da i nvasão de quantidades excessivas de
excitação.
O que p odemos depreender do exposto acima é que um sis­
tema que fu ncionasse exclu sivamente segu ndo a modal idade de
energ ia l iv re não teria como se defender do excesso de est i mu la­
ção, e teria sua capacidade de sobrevivência reduzida. Na verda­
de, como já v imos, essa h ip ótese não é rea l izáve l concretamente.
'
Uma pu ra d i spersão de energ ia é impensáve l , e admitir um "apa­
rel h o" que fu ncio ne dessa forma é contrad itório, já que o apare­
l h o se constitu iria, ele próprio, como uma contenção a essa dis­
persão.
Assim, não teria sentido d izermos que o apare l ho psíqu i co,
em seu começo, teria por objetivo conter a l iv re d ispersão de
energ ia, porque não pode r íamos, então, falar em aparelho psí­
qu ico. Este não é o que contém a energia, mas o que resu lta des­
sa contenção. E a l igação (Bindung) da energia, isto é, sua trans­
formação de energia l iv re em energ ia l igada, que va i " constitu i r

1 Freud, S., E. S. B., Vol. XV I I I , p . 45.


o real e a pu/são de morte 65

p ropriamente o a pare l h o ps íqu ico. D izer, como F reud d i sse, q1-1e


no começo h á a penas o l d, não corresponde à af i rmação da ex is­
tê ncia de u m a i n stância ou u m sistema p s íqu ico orig i na l . " l d"
sig nif ica apenas " isso", u m não- l u ga r, u m não-sistema, U ma p u ra
d i spersão que, enqu anto ta l , é apenas u ma idéia l i m i te, não cor­
respondendo a u m mome nto real do aparelho ps íq u ico.
A dom inância da energ ia l iv re corresponder ia à dom i nância
da pu l são de m orte. Se por "energia l ivre" entendemos um esta­
do de p u ra d i spersão, au sência de ordem , i nexistência de l iga­
ções, então "energia l ivre" e "disj u nção" ser iam a ná logas. U m
si stema q u e fu ncionasse segu ndo a m oda l idade d e energia l iv re
não ser ia u m sistema, posto que energ ia l ivre designa p recisa­
mente a a u sê ncia de sistema; a menos que se concebesse o siste­
ma corno a lgo exte rno a essa energ ia e às rep rese ntações que ela
i nveste, e neste caso, ou te r íamos que admitir um sistema p re­
ex i stente - u ma espécie de a l m a ou esp írito - ou que esse apa­
re l h o se ria u m apare l h o a natôm ico, corpora l , o que i mped i ria
que o concebêssemos como u m apare l ho psíquico.
E n erg ia l igada e energ ia l iv re corresponde riam, dessa for­
ma, à o rdem e acaso, e poderiam ser ta m bém pensadas em ter­
mos de figura e fu ndo. Se procu ra rmos i magi nar a gênese do
aparelho p s íq u i co no ind ivíd uo, temos q u e admitir q u e é através
da s ligações q u e os p ri meiros conju ntos vão se const itu i r, sendo
que o estado i n icial de p u ra d ispersão a que F reu d se refere per­
manece co mo u ma referêr.�c ia " m ít ica" . O q u e pretendo d izer
com isto é que esse caos original não se apresenta como u m "da­
do i n icial" que fu n cionaria como pon to de part i da emp írico pa­
ra a construção teórica da psicanál ise. E ssa é á razão pela qual
Laca n nos d iz que a p u l são não está na base da teo ria psica na l í­
tica, mas no topo dessa teoria, i sto é, que é a lgo ao qua l chega­
mos pe lo cam i nho teórico e não a lgo do qua l partimos emp iri­
cam ente .
O rea l da psicanál i se não é, porta nto, u m dado, mas u m su­
posto, opera como cau sa mas só conhecemos os seu s efeitos dis­
torcidos : as m áscaras. A f i cção de u m estado i n icial a nárqu ico,
pu ro caos de pu lsões parc iais, estado m ít ico segu ndo F reu d, não
tem a m esma final idade das narrativas m íti cas, não se p ropõe
como u ma con cepção evolu tiva da gênese do u n iverso, e tam­
bém não p reten de situar-se no mesmo reg istro da cosmologia de-
66 acaso e repetição em psicanálise

senvo lvida pelos f ísicos atuais; o objetivo aqu i n ão é o de traçar


a gênese do cosmo, a gênese da v ida ou a gênese do psi qu ismo.
Não é u ma qu estão de gê nese o que está sendo colocado. O c1os
a que nos referimos acima não d iz respeito ao que se passou in
i/lo tempore, mas ao que é atua l . Trata-se menos de gênese do
qu e de figu ra e fu ndo.
Em termos psicana l íticos, não se ria poss íve l falarmos n u m
puro acaso. O rea l não se constitu i como pu ro acaso n e m como
ordem abso l uta, mas em termos do diferen cial acaso- ordem : u m
fundo de acaso contra o qual se constituem ordens emergentes.
Essa articu lação figu ra-fu ndo não p recisa ser pensada em termos
evolu tivos. N ão se trata de i magina rmos um grande caos ong i nal
a partir do qual emerg i riam conju ntos mais ou menos estáveis
até o ponto em que, ba n ido o acaso, não haveria mais do que
u ma g ra nde ordem. Ordem e acaso, assim como f igura e fundo,
não são duas rea l idades d i st i ntas, mas dois modos do rea l . Ass im
como é i mposs íve l percebermos um pu ro fu ndo ou u ma pu ra fi­
gu ra, tam bém é i mposs ível concebermos u m p u ro acaso ou u ma
ordem abso lu ta .
Temos aqu i dois conceitos q u e pertencem a registros d ife­
rentes: o conceito de p u l são, conceito exp l icativo e espec ifica­
mente psicanal ítico, e o conceito de f igu ra- fundo, produz ido fo­
ra da teoria psicanal ítica, n u m n ível p u ram ente descritivo e que
procuraremos a rt i cu lar com o conceito de p u l são.
A noção de figu ra e fu ndo é evidentemente u ma noção
mu ito a ntiga, mas fo i em 1 9 1 5 que o psicólogo d inamarquês Ed­
ga r R u bin2 trouxe-a pa ra o pri meiro p lano da teoria psicológ i ca.
Ao aprese ntar u ma descrição fenomenológica do ca m po percep­
tivo; R u b in nos d iz que todo objeto se ns ível não existe senão
em re lação a u m fu ndo, e que este permanece si len cioso, i nvi sí­
vel sob a figu ra, caracterizando-se como u ma continu idade
amorfa e ind iferen ciada mesmo quando é formado por objetos
que fazem parte do nosso cotidiano. Assim, u ma mel odia desta­
ca-se contra u m fu n do de vozes e de ru ídos, da mesma forma

2 R u bin, E . , Synsoplevede Figurer; Copenhagen, Gy ldendalske; 1 9 1 5 (publ icado em


inglês sob o t ftulo " F igure and Groud" em: Readings in perception , de Beardslee e
We rtheimer.
o real e a pu /são de morte 67

que u m objeto se destaca de u m fu ndo constitu ído por outros


objetos. Somos capazes de rep rodu z i r a melodia mas não o fun­
do contra o qual ela se apresentou . Mesmo sendo constitu ído de
sons, o fu ndo é "si lencioso", a ss i m como os espaços entre os o b­
jetos são "vazios" ou " i nvis íveis" . É dessa i nvisi b i l idade do visí­
vel qu e F re u d nos fala em O estranho ( Das Unheimliche ) e que
Laca n a na l isa em A carta roubada, de Edgar Al lan Poe.
A noção de figu ra e fu ndo não pertence porém ao mesmo
registro que o conceito de pulsão. Este ú l t i mo é um conceito di­
nâm ico, enqua nto que f igu ra-fu ndo é u ma noção descr itiva. O
que p retendo não é expl i car a pu lsão pelo diferencial figu ra-fun­
do, mas articu lar os dois conceitos de modo que esta a rt icu lação
nos perm ita compreender a d i st i nção entre pu lsão de vida e pul­
são de morte.
O qu e os psicólogos gesta ltistas nos legaram foi a afi rmação
de que o campo perceptivo, por ma is s i mp les qu e seja, é consti­
tu ído de figu ra e fu ndo. Perceber a lgo é perce ber u ma figu ra so­
bre u m fu ndo, e esta não é u ma caracter ística conti ngente da
percepção, mas a l go que l h e é essencia l . "A i m p ressão p u ra - es­
creve Merleau -Ponty - n ão é apenas não encontráve l, mas i m­
percept íve l, e, por consegu i nte, i m pen!>ável como momento de
percepção. " 3 Mas se percebemos sempre u ma f igu ra sobre u m
fu ndo, é apenas a f i gu ra q u e possu i forma, coesão e individu a l i­
dade. O caráter de "co isa" pertence à figura e não ao fundo. E s­
te permanece ind ife renciado. Esta indiferenciação permanece
mesmo quando o fu ndo é const itu ído de objetos que, quando
perceb ido� co mo figu ra is, são perfeitamente d iferenciados. A pe­
sar de os exemplos de orga n ização do campo perceptivo serem
em sua maioria t i rados da percepção v i su a l , a mesma orga n iza­
ção figu ra-fu ndo ocorre na percepção audit iva, tátil, o l fativa e
gustativa. Tomare i u m exem plo de percepção v i su a l porque ele
se p resta particu l a rmente ao que pretendo anal isar a segu i r. Tra­
ta-se do famoso exemplo de ambigü idade figura-fu ndo de E . Ru­
bin: a taça e os dois perfis.

3 Merleau-Ponty, M. , Fenomenologia da percepção, p. 22. Ve r també m : Ru bin, E . ,


Visue/1 wahrgenommene Figurer; Koffka, K., Principies of Gesta/t psychology;
Gu rwitsch, A., Théorie du champ de la conscience.
68 acaso e repetiça-o em psicanálise

A figu ra acima pode apresenta r-se como sendo o desenho


de u ma taça ou o de d o i s perf is. Ambos, taça e perf is, são perfei­
tamente n ít i dos e se ap resentam a l ternat ivamente. N ão há ne­
n h u m a poss i b i l idade de percebermos simu l ta neamente taça e per­
fis. Se percebemos a taça como f igu ra, o que corresponderia aos
dois perf is transfo rma-se em fu ndo e perde i ntei ra mente o signi­
ficado de perf is. O fu n do, i n c l u s ive, pa rece cont inuar por debai­
xo da figu ra. Ana l ogamen te, se percebemos os perfi s como f igu­
ra is, a taça tra n sforma-se em fu ndo amorfo e desaparece. O con­
torno pertence se m p re à fig u ra. Assim, se percebemos os perfis,
uma certa cu rva do desenho toma o sign ificad o de nariz; se per­
cebemos a taça, o que antes era nariz tra n sforma-se em cu rva da
taça. O ra, o qu e acontece quando, por exemplo, percebemos os
dois perf is? Acon tece q u e a taça "mo rre" como taça ; e l a l iteral­
mente desapa rece, p erdendo a forma e o s i g n i ficado de taça e
tra nsforma ndo- se n u m fu ndo amorfo, ind iferenc iado, s i l en cioso
e 1 n v 1 s ível . E no entanto n e n h u ma a l teração foi introduz i da no
desen ho, todos os traços que a ntes compu nham a taça perma ne­
cem presentes. Ta l como a carta rou bada, de E. A. Poe, a taça
perm anece prese n te porém i nv i s íve l . Para que os pe rf i s apare­
ça m como perf is, é necessá r io que a taça desapareça como taça
e que em seu l u ga r su rja u m espaço i n d iferencia.do, amorfo, invi­
s ível, carente de ordem e de se n t ido. O rdem e acaso ap resentam­
se aqu i como contrários comp lementa res e não como duas rea l i­
dades ontol ogicamente d isti ntas.
C l a ro está que o ex emplo gráfico é art i f ic ioso, qu e o rea l
o real e a pu/são de m orte 69

não é const itu ído por l i nhas que formam figu ras a m b íguas, e
q u e a reversi b i l i dade que aqu i verificamos é excepciona l . M as é
exata mente nesta excepcional idade que reside a excelê ncia do
exem plo. Se m esmo nu ma situ ação na qua l f igu ra e fundo p os­
suem a mesma i n te n sidade verificamos a i nvisi b i l idade de u ma
delas quando se tra n sforma e m fu ndo, com mu i to ma is razão
isto acontece nos casos em que a figu ra é p regnante e não rever­
síve l . No entanto, os casos em que essa reversib i l idade pode
ocorrer fac i l m ente são mu ito mais corriq u e i ros do qu e imag i na­
mos. Se esta m os n u ma esqu ina mov i mentada conversando com
um am igo, o baru l h o do trân sito, apesar de ru idoso, transforma­
se n u m fu ndo si lencioso e indiferenciado, o m esmo acontecendo
com as pessoas que passam e as outras vozes que compõem o
bu rbu rinho da mu ltidão. Mas se a contece de ouvirmos u ma frea­
da bru sca e o baru l h o de u m a batida, a voz do nosso a m igo
transforma-se em fu ndo e o aci dente transforma-se em figu ra.
Não seremos capazes de reproduz i r, posteriormente, o que o
no sso interlocu to r continuou a falar quando se deu a batida, da
mesma maneira que não consegu i r íamos reprodu z i r o que estava
acontecendo ao nosso redor quando estávamos conversando
co m e le .
O i m portante a destacar é que figu ra e fu ndo n ão corres­
pondem a duas rea l i dades que possu am existê ncia i ndependente,
mas a u ma IT'esma rea lidade que se apresenta sob dois m odos.
A l ém do ma is, meu p ropósito não é o de anal isar a questão da
orga n ização do ca mpo perceptivo, nem o de fazer u m a aborda­
gem psicológ ica às q uestões psicana l íticas, mas s i m o de pensar
ordem e acaso de forma a ná loga à que fizemos com figu ra e fun­
do, e de p rocu rar compreen der, a part i r deste d iferencia l , a opo­
sição p u l são de v ida-pu lsão de morte que F reud estabelece em
Além do principio de prazer.
Se a pu lsão sexua l é, como nos diz F reu d, ru i dosa, se ela é
pród iga em nos oferecer seu s rep resentantes ps íqu icos, e se por
ou tro lado a pu lsão de morte é s i lenciosa e teima e m se ocu l tar,
e se além disso a pu lsão de vida age no sentido de constitu i r to­
ta l idades organ izadas, enquanto a p u l são de morte age no senti­
do da desd iferenciação, não poder íamos d izer que a p u l são de
vida representa a ordem enqua nto que a pu l são de m orte rep re­
senta o caos-acaso? E mais a i nda: não poder ía mos também d izer
70 acaso e repetição em psicanálise

que a p u l são de morte const itu i esse fu ndo-acaso sobre o qual se


d iferencia a pu lsão sexu a l como ordem-figura? Se assim for, o
dual ismo pu lsional não possu i nen h u m matiz ontológico, mas
resolve-se nesse dual ismo estrutura l figu ra-fu ndo. N este caso,
pu lsão sexu a l e pu lsão de m orte são termos que designam, a n í­
ve l d i nâm ico e econôm ico, o que a n ível descritivo estamos c ha­
mando de figura e fu ndo ou ordem e acaso.
V i m os que a pu lsão sexual se coloca, desde o i n ício, ao n í­
vel das máscaras, dos d i sfarces. Se assim for, ela encontra-se,
desde os seu s começos, su bmet ida ao simból ico; a pu lsão sexual
e seus disfarces são u ma só e mesma co isa. N ão há portanto pul·
são sex u a l a nárqu ica, ela sempre se dá n o l u gar da ordem, apre­
senta-se sempre como figura i . Mesmo a pu lsão sexua l auto-eróti­
ca só é a ná rquica se co mparada às organizações concebidas pos­
teriormente por F reud. P u l são sex ual signi fica pu lsão ordenada,
mesmo porqu e se fosse a n árq u i ca não teria como nem por que
ser chamada de sex u a l .
De certo modo, isto é o q u e nos d iz F reud no cap ítu l o V
de Além do princípio de prazer. A vida teria su rg ido por aciden­
te no se io da matéria i nerte, "a tensão que então su rgiu no que
até a í fora u ma su bstância i na n i mada se esforçou por neutra l i­
zar-se e, dessa mane i ra, surgiu o primei ro i nstinto : o i nsti nto a
retornar ao estado inan imado" .4 Este retorno era, de i n ício, fá­
c i l de ser empreendido dada a i n stab i l idade do ser v ivo; n o en­
tanto, os sobreviventes, benef iciados por cond ições externas
prop ícias, t iveram esse reto rno mais retardado. Foi este prolon­
gamento do retorn o ao inorgân ico que deu lugar aos inst i ntos de
conservação. " I nst into de co nservação" nada mais é, portanto,
do que o nome que F reud dá a esse cam inhar organ izado para a
morte. A fu nção destes i nsti ntos "é garantir que o orga n i smo se­
gu i rá seu próprio cam i n h o para a morte, e afastar todos os mo­
dos poss ívei s de retornar à ex i stê ncia inorgân ica que não sejam
os imanentes ao p róprio organ ismo" . 5 O sex u a l é u ma ordem
(ou uma p l u ra l idade de o rdens) i nstitu ida sobre um fu ndo pul­
siona l a nárqu ico. V ida é, em pri ncíp io, perturbação; e o qu e é

4 F reud. S., E.S. B. , Vol. XV I I I , p. 56.


5 Freud. S., op. cit. , p. 57.
o real e a pu/são de morte 71

pertu rbado é a qu ietude do inorgânico, espécie d e para íso perdi­


do ao qual a p rópria v ida tenderia. Assim, tanto a pu l são sex u a l
como o i n st i nto sexual seriam ordens emergentes a part i r de u m
estado anárqu ico qu e seria a v i d a em seus começos. J á v i mos,
porém, qu e esse estado a nárqu ico original é u ma ficção, que tan­
to a n ível da matéria i na n imada quanto a n ível da v i da, esse es­
tado de d i spersão abso lu ta, de pu ra i n d iferenciação, é u ma abs­
tração que não corresponde a nenhum momento rea l . O que te­
mos são d iferentes modos do rea l se organ izar em termos de fi­
gu ra e fu ndo, e esta o rgan ização i m p l ica, evidentemente, o ob­
servador (ou, se quisermos, o p onto de vista do teórico) . N ão há
pois u ma pu l são de morte em si, que é o fundo, e u ma pu l são de
vida em si, que é a f igu ra. O que ocorre é justa mente o contrá­
rio : num campo p u l s ional const itu ído de figu ra e fu ndo, o que é
fu ndo, por ser si lencioso, i nvisível e sem forma, é chamado de
pu lsão de morte; enquanto que a f igu ra, por ser d i ferenciada,
por apresentar u ma forma, é chamada de pu lsão de v ida. Não
existem duas p u l sões onto logicamente d i sti ntas, u ma se apresen­
tando sempre como fundo e outra como figu ra, mas sim u m
campo const itu ído d e corpos-forças, no i nterior d o qu a l o q u e é
figu ra é chamado de p u l são sexu a l , e o que é fu ndo é chamado
de pu l são de morte.
A qu estão que se co loca a partir da í é a segu i nte : Se o se­
xual se const itu i pelas máscaras ao const itu ir as próp rias másca­
ras, se ele é fu ndamenta lmente da ordem da const itu ição su bje­
tiva, então ele já se dá a n ível p s íqu ico, i sto é, ele é a p u l são cap­
tu rada pela su bjetiv i dade. Se a ss i m é, a frase de F re u d segu ndó a
qual a pu l são de morte é a pu l são por exce lência não encerra ria
a verdade da pu I são?
8

MORTE E P U LSÃO DE MO RTé

Qual a relação da pu lsão de morte, enquanto conce ito psi­


canal ítico, com a morte, enquanto dest i no e poss i b i l idade hu­
manos?
E m p ri meiro l u ga r, e ta lvez acima de tu do, o si lêncio com
qu e a m bos são m a rcados. No entanto, ao postu lar a pu l são de
morte, não é da morte enqu a nto dest ino pessoa l que F reud
prete nde falar. A pu lsão de morte d iz respeito sobretudo aos l i­
m ites de v a l idade do princípio de p razer; e seu referencial, pelo
menos num pri meiro mo mento, não é a morte i ndividual e nem
mesmo a destru tiv idade, mas a compu lsão à repetição. A morte,
ela mesma, mais a inda do qu e a pu l são de morte, assinala o l i m i­
te da nossa experiência e o l i m ite do próprio discu rso. A morte
como l i m ite é o muro de Sartre, o que não pode ser exper i men­
tado porque ass i n a la o f i m da própria experiência - pelo menos
d� exper iência h u m a na. Poder íamos argu mentar que, se a ex­
periênci a da nossa p rópria morte é imposs ível , podemos pelo
menos ter a experiência da morte do outro. No enta nto, ta l expe­
riência é também i m possíve l ; q ua ndo m u ito podemos ter a expe­
r iência dos ú lt i m os momentos da vida do outro, mas não
podemos ter a experiência do seu próprio m orrer. Portanto,
entre a morte, enqu anto poss i b i l idade ú lt i ma da ex i stê ncia de
cada u m de nós, e a pu lsão de m orte, e n quanto h ip ótese meta­
psico lóg ica, há u m a considerável d iferença . No entanto, a m bas
são recobertas pe l o s i lênc io. Ass i m como n ão podemos fal a r na­
da da m o rte em si m esma, também a pu l são de morte permane­
ce si lenciosa. I sto não quer d izer porém que a mbas não se façam
p resentes na vida; em torno delas constru í mos nossos fantasmas,
nossos m itos, nossas re l ig i ões. E m torno da m orte constru ímos,
sobretu do, nossas i l u sões.

72
morte e pulsaõ de morte 73

E a partir do a rt igo de 1 92 5 Die Verneinung


- que o -

conceito de pu l são de morte sofre u ma transformação rad i ca l , e


isto não apenas em relação ao seu conteúdo, mas também no
que se refere ao seu lugar n a teoria psica nal ítica. U ma das nov i­
dades deste a rt igo - e elas são m u itas - reside no fato de F reud
apresentar u ma concepção das pu lsões e do fu nciona mento
ps íqu ico que n ão é mais dependente exc lusivamente do p ri n c í­
pio de p razer, a lém de não mais se adequar ao modelo homeos­
tático defend ido cinco anos a ntes em Além do princípio de pra-
zer.
D i f i c i l m ente u ma anál ise desse texto pode ser feita sem se
levar em conta u ma outra, empreendida em 1 954 por J ea n
H yppol ite, a conv ite de J . Lacan, em seu s sem inários sobre
F reud. 1 H yppol ite i n i cia seu comentário p ropondo a tradução d e
Verneinung para denegação ( a o i nvés de "negação" o u "negati·
va ") . A Verneinung, segundo ele, é uma forma de se apresentar o
que se é no m odo de não sê-lo - "Agora o senhor vai pensa r que
qu e ·o ofender- l he, mas não ten h o essa i ntenção" ou "O senhor
pergunta quem p ode ser essa pessoa no sonho. Não é m i nha
mãe . " Pelo ju ízo de negação, o que ocorre é a su spe nsão (A u­
fhebung) do reca lca me nto , sem que isto i m p l ique u m a aceita­
ção do reca lcado2 e isto é possível pe la separação entre o inte­
l ectu a l e o afetivo. O j u íz o de negação é assi m "o su bstituto i n­
te lectua l do reca lcamento", 3 sendo que a r igor não dever íamos
falar em separação entre o i ntelectua l e o afetivo, mas em gêne­
se do i ntelectu al pelo ju íz o de negação. E neste ponto que
H yppol ite chama a atenção para o fato de q u e aqu i lo que F reud
está nos oferece'ldo nessa passagem é uma h ip ótese sobre a pró­
pria gênese do pensamento a partir da denegação. O i ntelectua l
resu lta pois dessa suspen são (Au fhebung) presente na fu nção de
denegação, através da qua l o reca lcamento é suspenso mas não
e l i m inado, posto que o conteúdo perma nece negado. H yppolite

1 H y ppolite, J., "Comentaria hablado sobre la Vernein ung de F reud" e m : Escritos 2,


de J . Lacan .
.� Freud, S. , A negativa ; E.S.B., Vo l . X I X, pp. 295·6.
Freud, S., op. cit., p. 297.
74 acaso e repetição em psicanálise

pergunta, modestamente, se este não seria o cam i n h o para en­


tendermos a su b l i mação.
E ssa gê nese do pen samento fica ma is bem entend ida se
considerarmos o que ocorre quando o anal ista denuncia para o
paciente aqu i l o que este ú lt imo p retende com sua atitude de de­
negação. Se o paciente aceita a denú ncia do anal ista, ele desdiz
sua denegação; isto é, rea l iza u ma negação da negação. No en­
ta nto, a afi rmação que da í resu lta é u ma afirmação pu ramente
i ntelectua l ; ou me l hor, esta afirmação i n te lectual su rge prec i sa­
mente pela negação da negação, o que a d ist ingue da afi rmação
orig i n a l (afetiva ) que, por não poder ( a i nda) se r p rotegida pela
denegação, tem q u e Ser reca lcada. Antes, p ortanto, da aqu isição
da l i nguagem (e da poss i b i l idade de d izer " não" ), a criança per­
manece dom i nada pelo "sim" do afetivo p rimord i a l que não
poss i b i l ita u m afastamento em - relação à sua p rópria v ivência pe­
la l i nguage m . C l a ro está que este afetivo p rimord i a l não é u m
afetivo pu ro, p osto q u e faz sua emergên cia " no ca mpo d isti nt i­
vo da situação hu mana",4 e é nesta medida que H yppol ite fala
não em gê nese psico l ógica mas em gênese h i stórica ( ou mesmo
m ítica) do pensa mento. O " afetivo pu ro" é uma abstração; opor
o afetivo pu ro a u m i ntelectua l pu ro só -é poss ível se de ixarmos
de lado o fato de que mesmo o mais p r i m i tivo dos nossos atos
já se dá no i nterior do simbó l ico e é por ele marcado.
F reu d a rt i cu la nesse artigo o ato de j u lgar com os meca n is­
mos de expu l são e i ntrojeção e com a· pu l são sexu a l e a pu l são
de m orte : "Ju lgar é u ma continu ação, por toda a extensão das
I mhas de conve n i ência, do p rocesso o riginal através do q u a l o ego
i ntegra coisas a si ou as expele de si ( . . . ) ."5 Apesar de os meca­
nismos de exp u l são e i ntrojeção o bedecêrem ao p rinc ípio de
prazer, o ju ízo de negação, por se fazer através do simból ico,
consegue fugir à compu l são do p r i n c íp io de p razer. O j u ízo de
· af irmação ou de negação está, em gera l , relaciona do a duas si­
tuações d iferentes. N u ma , ele af i rma ou nega a posse de a l go;
noutra, ele afirma ou nega a existên c ia na rea l idade de a lgo que

: Hyppolite, J . , op. cit., p. 397.


Freud, S. , E.S.B., Vol. X I X, p. 299.
morte e pu/são de morte 75

se refere a u ma representação. No primeiro caso, trata-se de in­


corpora r ao ego a l go que é vivido como bom, ou de exp u l sar al­
go que se ap resenta como ru i m ; no segu ndo caso, trata-se tam­
bém de u ma questão que diz respeito ao i nterno e ao externo,
mas não mais sob o ponto de v i sta do bom e do ru i m e s i m do
ponto de vista do rea l e do i rrea l . Neste caso, o p ri n c íp i o de p ra­
zer n ão é mais o determ i nante. 6 .
Essa gênese do i nterior e do exterior que F reud tenta tra­
ça r em A denegação já se insinuava desde o a rt igo Formulações
sobre os dois princípios do funcionamen to psfquico ( 1 9 1 1 ) no ,

qu a l ele i ntroduz a oposição e ntre o ego-p razer e o ego-rea l ida­


de, para fa l a r da relação do indiv íduo com o mu ndo exterior e
ma is pa rticu larmente das relações entre as pu l sões e o ego. !: em
As pulsões e suas vicissitudes ( 19 1 5 ), no enta nto, qu.e a d ist i n­
ção é feita no sentido de opor o ego ao mu ndo exte rior --' oposi­
ção suje ito-o bjeto : o suje ito co incid i ndo com o que é agradável,
e o m u ndo exterior com o . que é i ndiferente. Em A denegação,
ele reto ma o mesmo po nto de v ista : " ( . . . ) o ego - p razer ori­
g i na l deseja i ntrojetar para dentro de si tu do qua nto é bom, e
ejetar de si tudo qua nto é mau. Aqu i lo que é mau, que é estra­
nho ao ego, e aqu i l o que é exte rno são, para começar, idênti­
cos. "7 Esse p rocesso de i ntrojeção e expu lsão é correlativo do
processo de constitu ição do ego e do o bjeto, e se faz pela ação
tanto da p u l são de v ida (enqu a nto p u l são de u nificação) quanto
da pu l são de morte (enqu anto pu l são de desu n ião) .
H yppol ite nos d iz que "a afi rmação p r i mordia l não é ou tra
co isa qu e af i rmar; mas negar é ma is do que querer destru ir".8
Há pois u ma afirmação p rimord i a l que corresponde à forma p ri­
mei ra de relação da cria nça com a mãe, relaçã'J esta que é cha­
mada "afetiva" e qu e é pu ramente afi rmativa na med i da em que
é exp ressão d i reta do pu l s ional, a nterior a qua lqu er fo rma de re­
ca lque. V i mos qu e esta afi rmação primord ia l , enquanto afi rma­
ção p u ra, pu ro estado afetivo e i n d ife renciado, é uni momento
m ítico, não corresp ondendo a nen h u m momento observáve l

6 F reud , S . , E.S. B. , Vol. X I X, p. 298.


7 F r eud . S . , op. cit., p. 29 7 .
8 H y pp o l t te , J . , op. cit., p . 397.
76 acaso e repetição em psic análise

c l i n icamente. E m segu ida, há u ma negação dessa afirmação


sob a forma do reca l qu e original . No entanto, essa negação não
é exercida pelo suje ito, mesmo porque o suje ito é o qu e vai re­
su ltar dessa negação e não o que a exerce. A fonte desse reca l­
que é a exterioridade (a mãe) enqu anto produtora de i n scri­
ções (Niederschrift) que fixam a pu l são ao representante idea­
tivo. É p reciso não esquecer a observação de Hyppol ite segu ndo
a qua l mesmo a relação afetiva primordia l já está situada " no
campo d ist i ntiv o da situ ação hu mana". Portanto, dialeticame nte
fa lando, essa primeira negação corresponde à negação da af irma­
ção, e enquanto esta ú lt i ma (a afirmação) n ão é p rodutora de di­
ferenças, a negação dá l u gar a u ma disj u nção prime i ra que é vivi­
da pela criança em termos do d iferencial i nter ior-ex ter ior. No
entanto, não há a i nda aqu i a "criação do sí mbolo de negação" .9
A d i ferenc iação é pu ramente corpora l . l ntrojetar o que é vivido
como p razeroso e expu lsar o que é vivido como desp razeroso e
estra nho é o primeiro meca n ismo defensivo de que o infans l a n­
ça mão. Toda i ntrojeção é u ma forma de re- i ntrojeção, já que a
operação de i ntrojeção só tem sentido se ela for precedida de
uma expu l são, posto que para o infans, em seus momentos mais
arcaicos, nada h av ia de estra nho ( e portanto de externo) . É a ex­
pu l são que fu nda o externo (e correlativamente o i nterno ) . As­
sim, o p r i me i ro mome nto m ít ico i ndiferenciado é rompido pela
expu l são, cujo su cessor será o j u ízo de negação. E ssa primeira
negação - a que d ist i ngue o ex terior do i nteri or - não é, po­
rém, a i n da u m ju ízo, mas sim o aparecimento da negação em
sua função s i mból ica. Por detrás de la está o mito da i nd iferen­
ciação orig inal.
O que temos p resente aqu i ·sob a forma de expu l são e atra­
ção são as duas p u l sões p rimevas: a pu l são de morte e a p u l são
sexual. "A afi rmação - escreve F reu d -, enquanto su bstituto
da u n ião, pertence a E ros; a negativa, o sucessor da expu lsão,
0
pertence à p u lsão de destru ição. " 1 Há na afirmação de F reud
u ma evidente d issi metria entre a afi rmação e a negação: enqu a n-

9 F reud, S. , E.S. B., Vo i . X I X, p. 297.


1O
Freud, S., E.S.B., V oi. X I X, p. 300.
morte e pulsão de morte 77

to a primeira é um su bst i tu to da u n ião, a segu nda é o sucessor


da expu lsão, isto é, a lg o que resu lta u lteriormente da expu l são.
Há p ortanto u m a p rimeira negação que se opõe à afi rmação ori­
ginal, e posterio rmente há u ma segu nda negação que é negação
da negação ( ou denegação ) , que se const itu i como uma af irma­
ção i ntelectu a l . Pela denegação, dá- se u ma su spensão (Au fhan­
gen ) do reca lcamento, de modo que o reca lcado p ossa, i ntel ec­
t·..J al m ente, ter acesso à consciência sem que isto i m p l ique sua
aceitação, isto é, o reca lcado ressu rge "sob a forma de não
sê- lo". 1 1
É pois pela ação d a pu lsão d e morte q u e se d á a separação
e a constitu ição do objeto. O que até então era visto como a lgo
pu ramente negativo - a pu lsão de m orte - passa a ser cons ide­
rado como um p r i n c íp io de const itu ição do objeto e responsá­
ve l pela estrutu ração do psiqu ismo. O que temos a í articu lados
são pares de opostos complementares : i n terior-exterior, introje­
ção-expu I são, afirmação-negação, fu são-desfusão, pu I são de vi­
da-pu I são de morte .
A constitu ição do psiquismo i nfa ntil é fu nção desses pa res
de opostos. Vo ltando ao a rt igo de 1 9 1 1 - Formulações sobre os
dois princípios do funcionamento psíquico , nele F reud afir­
-

ma que u ma orga n ização p s íqu ica regida exclu sivamente pelo


princípio de p razer, e p ortanto desconhecedora da real idade,
tem escassas possi b i l idades de sobreviver. U ma organ ização p s í­
qu ica deste tipo visa ú n ica e exc lu siva mente a sat isfação, e esta
é obtida a l u c i nator iamente. Podemos d izer, porém, que esta
sat i sfação aluci natória é tornada rea l idade pelo oferec i mento do
se io materno. Tu do acontece como se a a l u c i nação invocasse u m
se io, tal como o primitivo i nvoca o s seu s deuses, e esta i nvoca­
ção prod uz isse o efeito desejado. D essa fo rma, a alucinação
não perma nece a luci nação, posto que o se io real vem co brir
a fa lta . O ra, se as coisas continu assem a ocorrer dessa forma,
não haveria possib i l idade de a cr iança d istingu ir entre o seio que
a mãe lhe oferece e seu p róprio corpo. 1 2 O se io enquanto obje-

1 1 H yppo l ite. J . • op. cit. , p. 400.


12
F reud, S., E.S.B., Vol. X X I I I .
78 acaso e repetição em psicanálise

to fantasmát ico e o seio real confu ndem-se nessa orga n ização


ps íqu ica reg ida apenas pelo princ íp io de p razer. É , pois, a per­
da do objeto que vai fu ncionar como p rova de rea l idade, e
F reu d nos d iz, e m A denegação, que a perda de objeto, a separa­
ção o rig inal, ocorre em fu nção da ação da pu lsão de morte co­
mo p u l são de desu n ião. E nquanto a cri ança não é a i nda capaz
de d isti ngu i r entre o seio que a mãe l he oferece e o seu próp ri o
corpo, e l a se constitu i como u m sistema fechado n o i nterior do
qua l é i m poss ível a d i st inção suje ito-objeto. E sse sistema fe­
chado somente será romp ido quando ocorrer a ausê ncia de satis­
fação, o que p rovocará a desi l u são e a renú ncia à satisfação pela
via a l u c i natória. O a pa rel ho p s íq u ico é .compel ido então a reco­
nhecer a existência de u ma exterioridade, o que o o brigará a
u ma m u da nça rea l através da i ntrodução de u m novo p r i n c íp i o
de atividade p s íqu ica : o p r i n c íp i o d e rea l idade. N ã o se trata
ma is agora de d ist ingu i r o agradável do desagradável, mas o rea l
do a l !-l c i nado. 1 3
Essa m u dança operada no p lano do fu ncion amento ps íq u i­
co é que R . D o rey 1 4 identifica com o p rocesso de perda do ob­
jeto, isto é, co m a exper iência da separação origina l . Também
aqu i, a experiência é marcada pela repetição, pois o que F reu d
nos d iz é que o o bj etivo prime i ro e i med iato da p rova de rea­
l idade não é enco ntra r u m o bjeto que corresponda à repre­
sentação, mas reencontrar tal objeto. ''Co ntudo, é evidente q u e
u ma precondição pa ra o estabe leci mento d o teste d e rea l idade
consiste em que o bjetos, que ou trora trouxeram satisfação real ,
tenham sido perd idos." 1 5 E sse processo, ass i m com o o ato de
j u l ga r, depende da ação rec íp roca das pu lsões p r i má r ia s e parti­
cu la rmente da pu isão de morte, nã medid3 em que é ela a r�s­
ponsáve l pela d isju nção�
Assim como é a mãe q u e oferece o seio à criança, fundan­
do com isto a relação a morosa e i n icia ndo u ma n ova série em

13 F r eud, S . . E. S. B., V o l . XII, p p . 277-286.


14 Dorey, R . , " Réal ité de la perte, réa l ité de l a mort en psychanalyse" em : Des
psychanalystes vous parlent de la m ort.
15 F reud, S . , E.S.B. , V o l . XIX, p. 299.
morte e pu/são de morte 19

re lação à q u a l ela é o e lemento i ntermed i ár io, é ela também que


l he recu sa o seio, produz i n do a frustração da sati sfação. E ssa du­
pla separação - a da criança em re lação ao seio e a da rnãe em
relação ao f i l ho - é sugerida por F reud como sendo dev ida à
ação da pu l são de morte enquanto p r i n c ípio de d isju n ção.
A questão que D o rey coloca em seu a rtigo é como co ncil iar
essa i dé ia da pu l são de mo rte como princ íp i o de estrutu ração do
psiqu ismo e a h ip ótese de F reud segu ndo a qual ela deve ser en­
tend ida como u ma tendência ao i n orgâ n i co, isto é, à redução
comp leta da te nsão. Dorey consi dera qu e as duas i déias são per­
feitamente compat íveis. N esse ca m i n h o em d i reção à redução
comp leta das tensões, d iz e le, o apare l h o p s íqu ico p roduz a l go
que não estava p rogramado, isto é, a const itu ição do objeto.
Dessa forma, a homeostase, que era o objetivo ú ltimo da a rticu­
lação da p u l são de v ida com a pu lsão de morte, teria sido u ltra­
passada pelo su rg imento da d iferenciação suje ito-objeto.
Claro está que o i nteresse em se a ssi nalar a compat i b i l idade
entre essas d uas idéias é u ma fu nção da manute nção da pu l são
de morte entend ida como tendência ao i norgâ n i co. Sem dúv i da,
qu ando F reu d falou em tendência a retornar ao estado i norgâ ni­
co, o que ele tinha em mente era o retorno da su bstâ ncia v iva à
matéria i nan i mada, à su bstância não v iva. " M o rte" aqu i era
tomado em seu sentido l itera l , e " pu l são de morte11 desig nava
o cam in ho natu ra l para a morte, destino i nev itável de todo ser
vivo. No entanto, se entendermos "pu lsão de v ida" e "pu l são
de m o rte" não como duas rea l idades ontologicamente d ist intas,
mas como componentes de u m campo de forças que se estrutu­
ra em termos de f ig u ra e fu ndo, podemos p resci ndir da h ipótese
metaf ísica de u m retorno ao i norgân ico . Se f izermos questão,
pode mos até manter a identificação da pu l são de m o rte com o
retorno ao i norgâ n ico, só que " i norgân ico" n ão seria mais iden­
tif icado com a matéria i ne rte, mas com o fu n do inorgan izado
contra o qual se constitu i a f igu ra que é a "pu lsão" sexual.
Co m a oposição entre pu l são de vida e pu l são de morte co­
locada em te rmos de figu ra e fu ndo, ficaria tam bém deslocada a
qu estão do acaso e da ordem. Ass i m como não pode r ía mos mais
fa lar em acaso p u ro, também não p oder íamos mais falar e m or­
dem absoluta. Apenas, a questão do acaso e da ordem não d i r ia
mais respeito à possibi l idade de u m campo pu l s ional ser ou n ão
80 acaso e repetição em psicanálise

ser orga n izado. E le sempre é o rga n izado em termos de f igura e


fu ndo . O acaso passa ria a d izer respeito a quais elementos consti­
tu iriam a fig u ra e quais perma necer iam como fu ndo, e como se
daria a a lternâ ncia entre ambos. N ão haveria pois, origina lmen­
te, a pu I são de morte identif icada ao caos orig inal, estado de
pu ra d i spe rsão de energ ia e, em segu ida, o su rg i mento de u ma
ordem qu e se identificaria com a p u l são sex u a l . O mesmo gesto
que i nstau ra a p u l são sexual i n stau ra também a p u l são de morte.
Esta nada mais se ria do que o fu ndo não o rga n izado su bjacente
às máscaras. "Se, portanto, não q u i sermos a ba ndonar a h ipótese
das p u l sões de morte, temos que su por que estão associadas,
desde o i n íc io, com as pu l sões de vida." 1 6

16 F reud, S., E.S.B., V o l . X V I I I , p. 78.


9 .

M ITOS C OSMOGÕN ICOS E DUAL ISMO P U LS I O NAL

Desde o i n ício deste traba l h o estamos l idando com idéias que,


enquanto idéias-l i m ite, apo ntam pa ra os mais va riados campos
do saber, nem todos portadores dos emblemas que d isti nguem
os saberes cientfficos. Caos e o rdem , vida e m o rte são temas que
não perten cem com exclu siv idade a nenhuma área do saber, e
sem dúvida alguma não é no i nterior d a ciência que eles se sen­
tem mais à vontade. E F reud sa bia d i sto, da í o apelo tão fre­
qüente à l i teratura e ao m i to , que ele faz em seu s escritos. Esse
ape lo não impl ica um desprezo pela ciência, mas um reconhec i­
mento de sua parcial idade e de su as l i m i tações, por um lado, e
por outro , a crença de que ta l como o psiqu ismo h u m an o, a
ciência possu i também o seu i n consciente, e que o d i scu rso des­
se incon sc iente é o m ito . N u m a carta em resposta a Albert
E inste in quanto ao ponto de vista da psicanál i se sobre a guerra,
F reud escreve o segu i nte : "Talvez ao sen hor possa parecer se­
rem nossas teo rias u ma espécie de m ito logi a e , no p resente caso,
m itologia n ada agradáve l . Todas as ciências, porém , não chegam,
afinal , a u ma espécie de m i to logia como esta? N ão se pode di­
zer o mesmo, atual mente, a respeito de sua f fsica?" 1 A "m ito­
l og i a nada agradável " a que F reud se refere é sua teo ri a sobre a
pu l são Je morte .
Para um ep istem ólogo, essa m istu ra de ciência, l iteratu ra
e m ito pode ser v ista como u m sintoma de g rave contam i n ação
e ameaça à pu reza do d iscurso cient(fico ; F reud, porém, não

I Freud, S., E.S.B., Vol . X X I I, p. 254.

81
82 acaso e repetição em psicanálise

era um purista em matéria de ep istemologia e freqüentemente


col ocava-se mais na posição do sábio do que na do c ientista, ou
mel hor, co mpreendia que o. cientista , se se p retende cri ador,
tem que rom per com os l i m i tes impostos pela c iência do seu
tem po . Su rpreendentemente, porém, quando F reud rompe esses
l i m i tes, nem sem p re o faz no sentido de cond u z i r-nos a um
fu turo que está para a l ém dos nossos horizontes, mas para levar­
nos de volta a u m passado remoto já esqueci do. Assim é que
num dos seus ú l timos textos - Análise terminável e interm iná­
vel ( 1 937) - ele nos remete a E m pédo cles de Agrigento, no
sécu lo V a.C. Por que tão longe e por que E m pédocles?
E m pédocles é um pensador fortemente i nfl uenciado po r
Parmên ides e por Pitágoras, e nos deixou fragmentos de do is
g randes poemas : Da natureza e Purificações. Enquanto o pri­
meiro nos oferece uma visão f (sica do u n iverso, o segu ndo trata
fundamental mente da imorta l id ade e da transm igração das al­
mas. E m pédocl es fo i alvo de severas cr fticas po r pa rte dos
comentadores da f i l osofia, que apo ntavam a contrad ição dos
pontos de vista exp ressos em seus poemas. No entanto, essas
crft icas perderam su a força sobretudo a pa rti r das análises em­
preen didas por Cornford?, para quer:n "a primeira cond ição
para comp reender E m pédoc les é ban ir a noção de que hav ia
qualquer fosso entre su as crenças rel igiosas e suas noções
c ient fficas. A sua o bra constitu i um todo, no qual estão indis­
so luve l me n te l ig adas a re l ig ião, a poesia e a f i l osofia".3 Na obra
poética de E mpéd ocles não podemos sepa ra r o que é o d iscurso
do f i l ósofo, o m i stic ismo do poeta-p rofeta e a experiência do
méd ico que ta nto cu rava o corpo como pu rificava as a l mas. E sse
pensador, reverenciado por Lucrécio como o maior dentre os
cosmólogos da Ant igu idade e considerado pelos seus contem ­
porâneos u m ser sobren atura l , foi o ú n ico a ser d ist ingu ido por
F reud.

2 Cornford, F . M . , From religion to philosophy ( 1 9 1 2 ) e Principium sapien tJae: The


origins o f Greek philosophical though t ( 1 95 2 ) .
3 Cornford, F.M., Principium sapien tiae, trad. port. p. 1 97.
mitos cosmogônicos e dualismo pulsional 83

E fáci l atri bu i rmos essa simpati a à seme l ha nça que ex iste


entre as dou trinas de F reud e E m pédocles, relativa ao papel
desem pen h ado pelas duas grandes forças responsáve i s pe l o
dev i r cósm ico : o Amor (Philia ) e a D i scórd i a (Neikos ) em E m ­
pédoc l es, e E ros e Tanatos em F reu d . Para E m pédocl es, o Cos­
mo é constitu ído por quatro substâ ncias orig i na is - F ogo, Ar,
Terra e Agua - q u e permanecem sem p re d i sti ntas, mas que se
com binam em proporções va riadas fo rm a ndo todas as co isas.
N ada há a lém dessas quatro su bstâ nci as, nem mesmo o vaz io,
sendo a mudança um mero rearranjo entre os elementos segun­
do a ação de duas forças m otoras - o Amor e a D iscórd ia -
concebidas como forças de u n ião e de desun ião entre os ele­
mentos. O dev i r cósm ico é c íc l ico e eterno e se comp l eta cada
vez que u ma das po laridades (Amor ou D i scórd ia ) ati nge seu
ponto máx i mo de do mi nação. Ass i m , sob o dom ín io do Amor,
há uma u n ião de todas as coisas, forma ndo uma m i stura tão
u n iforme dos q uatro elementos que se ria impossível d isti n­
gu i rm os nela a l gu ma coisa ; sob o dom ínio da D iscórd ia, os
elementos estão com p letamente separados u n s dos outros. N a
a n á l ise que fazem do poema d e E m pédocl es, K i rk e R aven4 as­
sinalam que o Amor e a D iscórd ia não são cont�bidos pelo f i l ó­
sofo como forças m e ramente mecân icas, mas que essas mesmas
forças são as que determ i na m o dev ir cósm ico e as que a tuam
sobre as pessoas, isto é, que o a m o r sexu a l e o amor cósm ico
são u ma só e mesma força ( o mesmo acontece, evidentemen te,
com a D iscórd i a ) .
Podemos i ma g i n ar o qua nto E m pédocles despertou o i n te­
resse de F reud, dada a se m e l ha nça existente entre as concepções
de ambos quanto ao papel desempenhado pelas du as forças em
su as doutrinas. "Os d o is p ri nc ípi os fundamenta i s de E mpédo­
cles - escreve F reud - são, tanto em nome q u anto em função,
os mesmos que nossas duas pu lsões pri mevas, E ros e destrutivi­
dade, dos quais o primeiro se esfo rça por comb i n a r o que existe
em u n idades cada vez maiores, ao passo que o segundo se esfor­
ça por d isso lver essas com b i nações e destru i r as estruturas a que
elas deram o rigem . ' ' 5

4G S. K i rk e J . E . Raven, O s filóso fos prtJ-socráticos.


.
5 F r eud, S. , E.S.B. , Vol. X X I I I , p. 2 80 .
84 acaso e repetição em psicanálise

C reio po rém que podemos encontra r u m pa rentesco m a is


p rofu ndo entre os dois pensadores, a l ém da qu ele que se baseia
na semelhança entre o Amor e a D iscórd ia do primeiro, e a pu l­
são sexual e a pu lsão de m o rte do segu ndo. Um comentário de
Cornford em seu texto so bre a f i l osofia g rega nos ajudará neste
sentid o . D iz ele q u e "os l ivros sobre psicologia têm s ido escritos,
na m a i o r p a rte, por f i l ósdfos e homens de c i ência cujos háb itos
menta is não são m u ito compat íveis com a imaginação poética
( . . . ) N ão é p ru dente, sequ e r verdade iramente cient ífico, pôr
de pa rte, como fruto da imag i nação ociosa ou superstição u l­
trapassada, a ex periência dos g ra ndes poetas só porqu e ela está
além do alca nce do h omem comu m e não pode se r traduz ida em
. termos do que e l e chamaria u ma 'ex p l i cação' . 6 O ra, a obra de
"

F reud nos remete f req üentemente para essa "imaginação poé­


tica " e para a v i são m (tica do mu ndo, e isto sem prej u (zo da
exp l i cação científica, mas sugerindo que esta ú ltima se pro­
l onga nas p r i m e i ra s. N u m dos seus p rimei ros textos - A psi­
copatologia da vida co tidiana ( 1 90 1 ) , declara acred itar "qu e
u m a g ra nde parte da v isão de mu ndo m i to lógico ( . . . ) nada
mais é do qu e psico l og i a p rojetada no mu ndo externo", 7 o
que significa ace itar que o m ito é u m a espécie de i nconsciente
da ciência e q u e é p oss (ve l, em decorrência d i sto, "trànsformar
metaf fs ica em m etapsico logia " . 8
Mas se F reud supõe essa cont i n u idade entre o m ito e a
ciência, por que teve e.le de i r tão l onge? Por que E mpédoc les?
Podem os a po ntar pelo menos dois m otivos : primeiro, pela
i nd iscu t íve l sem e l h ança que há entre dm bos quanto às forças
que atuam no indiv (duo; segu ndo, pelo fato de E mpédocles
ser um pen sado r p ré-socrático. E ste segundo motivo é, a meu
ver, tão i m portante quanto o pri mei ro, posto que "pré-socrá­
tico" designa, dentre outras coisas, u m pensamento que é ante­
rior ao d i scu rso conceitual p regado por P l atão. A f i l osofia " pós­
soc rática" i m p l ica o aprisionamento do pensamento pela razão
conce itual e a rec u sa da pa lavra poética , considerada, a parti r
de então, como supersticiosa . O d iscu rso fi losófico se constitui

b C o r n ford, F . M. ,
op. cit. , pp. 1 99-200.
7 Freud, S., E.S.Il., Vol. V I , p. 309.
g lbid.
mitos cosmogônicos e dualismo pulsional 85

por um p rogress 1vo afastamento do m i to e da poesia, em d i reção


à c iência . O que F reud estaria nos d izendo é que a fil osofia e a
c iência recalcara m seu passado m i to-poético e que a psicanál ise,
coerente com seus p rincíp ios, teria todo o d i reito de recorrer
ao m i to e à poesia na procura de sua verdade. Recorrer a u m
f i l ósofo " pós-socrático" ( ao i nvés de u m pré-socrát ico ) seria
permanecer dentro do mesmo referenci a l cient ffico que marca
a psicanál ise enquanto teoria conceitua l ; o i nconsciente da c i ên­
cia não poderia se r encontrado no lugar do reca lcador, mas no
lugar do reca l cado, i sto é , num l uga r ante rior ao ocu pado pelo
Sócrates p l atôn ico.
No entanto, parece-me que o essencial da questão a i nda
nos está escapando. O que, de fato, pretende F reud ao recorrer
ao m ito, à re l ig ião, à l iteratura? E staria ele nos d izendo que
para além daqu i l o que a ciência consegue a barcar ex iste a re­
gião do m istério? Neste caso, "m istério" seria u m ou tro nome
para "acaso" ou apontaria para outra o rdem d istinta da ordem
c ientífica?
E retornamos, assim, à nossa questão i n i c ia l : a do acaso
e da o rdem . Claro que F reud não p ropõe a questão em toda a
sua extensão , mas apenas na med ida em que ela se i n screve no
âmbito do saber e da p rática psicanal fticos . Não é para o U n iver­
so em sua total idade que ele l a nça o seu o l har, mas para o ho­
mem enqu anto indiv(duo concreto. No entanto, mesmo tendo
em vista os atos humanos, ele adm i te ou mesmo i n si ste no fato
de que a psicanál ise deve beneficia r-se do recurso ao m ito, à
rel igião e à l iteratura . N u ma nota de rodapé acrescentada em
1924 à Psicopato/ogia da vida co tidiana,9 F reud cita u ma h istó­
ria contada por N . Ossipow que pode nos ajudar a respo nder a
q uestão aci ma .
O narrador conta que após ter-se casado numa pequena
cidade do i nterior da R ú ssia, empreendeu uma v i agem de trem
a M oscou com sua esposa. N u ma estação intermed i ária, ele sen­
tiu o desejo de lançar u m olhar sobre a cidade, e como o trem
ficaria parado a l gu m tempo, d esceu e foi até o po rtão da esta­
ção, de i xa ndo a esposa no vagão. Ao voltar, verificou que o

9 Freud, S., E.S.B. , Vol. V I, pp. 308-9.


86 acaso e repetição em psicanálise

trem já havia partido, l evando sua esposa. Comentando depois


o i ncidente com sua velha empregada, esta declarou profetica­
mente : " E sse casamento não vai dar certo." Passados c i nco
meses, ele se separou da esposa. R ecordando a profecia da
empregada, argu mentou consigo mesmo que o ter descido do
trem já era u m protesto inconsc iente contra aquele casamento.
Anos mais tarde, e le vem a l igar-se a uma pessoa que vivia pre­
c isamente na cidade em que e l e descera do trem . Se a exp l ica­
ção psicanal ftica encara o acon tec imento como u ma parap rax ia
e rem ete-o a um desej o i n consciente, uma exp l icação m {stica
d i ria que o seu destino já estava traçado e que o acontecimento
seria um sinal de u m futu ro i nev itáve l .
P o r m a i s d i ferentes q u e possam ser, ambas a s "ex p l icações"
a pelam para um mesmo referencia l : u ma o rdem determ i nante
dos acon teci mentos. N ão há l uga r para o acaso em nen huma das
duas i nte l ig i b i l idades. Poder íamos argu mentar que i sto é ve rda:.
dei ro para a expl i cação m {stica, mas não para a psicanal {tica,
poi s se é certo que a descida do trem pode ser atri bu fda a uma
"recusa .·i nconsciente" ao casamento, esta mesma recusa não
exp l icaria por que a outra relação afetiva teria que se dar na­
quela mesma c idade, ou mesmo o porquê de a nova pessoa ter
sido a que foi e não qua lquer outra. E verdade que, ainda do
lugar da psicanál i se , poder famos afirmar que o ter vol tado
àquela c idade e o ter casado com uma moradora do l ugar seria
a i nda u ma fo rma de real izar seu desej o i nconsciente e que por­
tanto todos os fatos descritos se i n se rem n uma cadeia sign ifican­
te. Ou sej a , tendo acontec ido os fatos B e C (vo l tar à cidade e
casar-se ) , p osso articu lá-los ao fato A (descida do trem ) e en­
contrar uma mesma determ i n ação i nconsciente para os três,
mas isto só pode ser feito recorrentemente. E nisto parece resi-·
d i r o ponto cen tra l da nossa questão. Quando F reud afirma que
todos os fen ô menos ps íqu icos são determ i nados, i sto não i m ­
p l i ca q u e, a priori, possamos d izer o que vai acontecer, mas
s i m que, u ma vez tendo acontecido a lgo, possamos remetê­
lo a u ma série determ i nante.
Se essa reco rrênc ia é poss {ve l , é porque há uma ordem
abarcante que exc l u i o acaso. O recu rso ao mito, à re l igião e
à I iteratu ra não seria u m reconheci mento por parte de F reud
de u ma reg ião do real que perma neceria imersa no m istério, mas
mitos cosmogônicos e dualism o pulsional 87

a tentativa de estender a racional idade pa ra além dos l i m i tes


estreitos do d iscu rso cien t (fico. Afirmar, como ele o fez, que
o mito seria como que o i nconsciente da ciência não é reconhe­
cer o lugar do m istério , mas afirma r a racional idade do m ito.
O m ito, ta l como o i n consciente, está no l u ga r da ordem e não
na d ispersão do acaso . Se recorrentemente podemos revelar
a verdade que j á estava p resente nos começos, é porque nada
escapa à razão.
A questão que se coloca não é a de F reu d se r ou não um
rac i qnal ista. E le i ndubitavel mente o é. A questão que me pa rece
pertinente, no caso, é se há a l gu m conf l i to entre o F reud racio­
nal i sta e um outro F reud para quem a razão recuaria frente ao
m istério . 10 N ão creio que a questão seja fac i l mente respondida
se toma rmos a o bra de F reud em toda a sua extensão, mas me
parece que em A lém do princlpio de prazer, texto que comu­
mente é apontado como "especu lativo", esse confl ito não ex iste.
De qualquer forma , mesmo considerando-se a o bra de
F reud em seu conj unto , creio que podemos afi rma r que o fio
condutor é a noção de verdade considerada como desvelamento ,
o que a coloca, como assinala H yppol ite, no mesmo registro da
Fenomenologia do Esp/rito de H eg e i .U E o recurso à tragéd ia
de i:d ipo é aqu i exemplar. A experiência da consc iência não se
faz no sentido de "produ z i r" u ma verdade a pa rti r de uma
matéria-prima inconsciente, mas no se ntido de revelar ou desve­
lar uma verdade já contida no inconsc iente, porém ocu l ta pelo
recalcamento . E apenas de um ponto de vista fenomenológico
que podemos d izer que Ed ipo, através da i nvestigação que em­
preende, "torna-se" parric ida e i ncestuoso. D e fato, o parric íd io
e o i ncesto já constitu i riam a verdade de i: d i po desde o começo.
O percu rso da tragéd ia de Sófocles é o do modo de desvelamen­
to dessa verdade. O cam i n h o percorrido por i:dipo em d i reção à
sua própria verdade é, no entanto, necessário. Ta l como nos
d i sse Hege l , a verdade não é um dado, mas o resul tado de u m
processo . Se alguém afi rmasse a Ed ipo ser e l e parricida e i nces-

10
Esta foi a dúvida levantada por Jean Hyppolite no Seminário 2 de Lacan.
11
H y pp o l i te, J., "Phénoménologie de Hegel et psychanalyse" e m : Figures de la pens�Je
·

phtlosophtque - Ecrits de Jean Hyppolite. ·


88 acaso e repetição em psicanálise

tuoso, ele reagi ria coin justificada i nd ig nação, da mesma forma


que o paciente psicanal (ti co não aceita como sua a verdade do
sintoma revelada p rematu ramente pelo ana l ista. O p rocesso psi­
canal ftico é o percorrer esse cam i n h o que leva o paciente à
consciência -de-si (na termi.no logia hegel iana) ou à verdade do
seu desej o ; "não h á outra via da verdade, para a nossa cons­
ciên cia natural , que essa longa v iagem que a conduz a ler ela
mesma sua verdade". 1 2
E ntendamo-nos po rém a respeito d e u m ponto. O q u e foi
d ito acima não torna o i n co nsciente freudiano idêntico à cons­
ciência natu ral de H egel . O inconsciente de F reud d ifere do
hege l iano em vários po n tos fu ndamenta is. No entanto, perma­
nece vál ida a afirmação de que o fio conduto r de ambos os
auto res é a verdade e ntendida como desvelatnento que a expe­
riência emp reendida pelo suje·i to torna poss (vel . Tanto em Hegel
( pe l o menos no H egel da Fenomenologia ) como em F reud, o
que p oss i b i l i ta a verdade é essa releitura que o sujeito faz de
s i mesm o . E portanto de u m l ugar ep igonal, como disse Jean
Beaufret,1 3 que a verdade pode ser revelada.
M as seria i sto real mente vál ido tanto para H egel como para
F reud ? V i m os que a releitu ra hege l iana compreende dois mo­
m entos : um primeiro momento no qual a consciênc i a seria
consciên cia d o m u ndo, mas i n consciente de si mesma, e u m se­
gundo momento (este, o da releitura p ropriamente d i ta) no
q u a l o fenômeno é inclu ido na tota l idade do esp írito (Geist)
que l h e confere sentido. Se é portanto a total idade o que con­
fere verdade p lena ao fenômeno, sem ela, este permaneceria
sempre incomp leto quanto ao seu sentido. Porém, na medida
em que F reud ( ao que parece) não admite a idéia de total idade
de que nos fa la Hegel, a verdade perma neceria sempre i ncomple­
ta. Creio q u e este é o ponto central da teo ria psicanal (tica no
que se refere à noção de verdade ; qualqu e r tentativa de tota l i­
zação nos remeteria ao "umbigo" de q u e fala F reud em A in-

12 H � ppo l i te, J .• op. cit. • pp. 21 3-230.


.
13
Beaufret, J., O poema de Parmênides.
mitos cosm ogônicos e dualismo pulsional 89

terpretação de sonhos. Parece-me que a idéia de total idade e a


idéia de u mb igo · não são compa t íveis. I n sistamos porém u m
pouco mais n a questão do raciona l i smo e m F reud .
10

ALE M

A primeira frase de A lém do princ/pio de prazer nos fal a da


Seelenleben, isto é, da "ativ idade da al ma" e não da atividade
psíquica ou da atividade da mente ; assim como é do Seelísche
apparat (apare l h o an ím ico) que F reud fa la e não em aparelho
psíqu ico ou apare l ho menta l . Se compararmos essa frase i n icial
do texto de 1 920 com a frase i n icial do Projeto de 1 895, no
qual F reud afirma sua final idflde de estruturar uma psico l og ia
que seja concebida como u ma ciência natura l , não podemos
evitar a perg u nta : Natural ismo do Projeto contra animismo de
A lém do princ /pio de prazer?
Não me pa rece que a questão deva ser colocada nesses
termos. E m primeiro lugar, p orqu e o natu ra l ismo do Projeto não
é tão natu ra l i sta quanto se pensa ; estruturar a psicologia como
ciência natu ral significava para F reud , em 1 89 5, mu ito mais
uma proposta metodológica do que u ma afirmação natural ista
do conteúdo da psicanál ise. A ênfase incidia muito mais sobre o
termo "ciência" do que so bre o termo "natu ral" ; e isto sem
levarmos em conta que essa proposta "natu ra l ista" foi engave­
tada por e le, o que podemos considerar pelo menos como u m
ind feio de q u e n ã o contava com su a plena adesão. O q u e F reud
pretendia com o Projeto era fazer uma psico logia cient ífica,
mu ito mais do que fazer u ma psico logia natu ral ista .
Creio que isso fica c l a ro quando em A in terpretação de
sonhos ele opera a passagem da natu reza para a l i nguagem. Em
segu ndo l u gar, o "anim ismo" sugerido pela term inologia freu­
diana no texto de 1 92 0 não u ltrapassa o n ível term i nológico.
E m bo ra os termos empregados por um autor possam vir carre­
gados de sign if icados passados, devemos vo ltar nossa atenção

90
além 91

é p ara os conceitos que a nova teoria produz. Mesmo assim ,


podemos nos pergu ntar por q u e F reud emp regou o termo See/e.
( a l m a ) é não outro qualq Ú er que correspondesse a " mente" w
" psiqu ismo", que estariam mu ito mais ao gosto da psicolog ia
da época.
Parece-me que Seele é o índ ice persistente do antinatu ra­
l ismo que atravessa os textos freudi anos desde A interpretação
de sonhos. Se podemos admitir que o aparelho an ímico (See/is­
che apparat) enca rna-se no sistema nervoso, não devemos nos
esq uecer q ue pa ra F reud esse sistema nervoso é capaz de produ­
zir son hos, isto é, que por ele se produz a fala e que é no regis­
tro da l inguagem que a psicaná l i se se situa desde o começo.
Segundo Lacan, F reud toma a bio logia po r ant (frase : " A
bio logia freudiana n ã o tem nada a ver com a biolog i a."1 Ora,
tomar a b i o l ogia por ant ífrase é tomá-la pelo seu oposto. E m
seus semi nários d o inverno de 1954-55, Lacan nos mostra o
·
sentido que possu ía para F reud a concepção de u m "aparelho
a n ím ico" como sendo o de fornecer ao organ ismo vivo - no
caso particu lar, ao homem - uma organ ização an í m i ca que
funcionasse como u m recinto fechado, no sentido de opor re­
sistência à passagem livre e i l i m itada das forças de origem pu l ­
sional e à s descargas energéticas delas decorrentes. E ssa orga ni­
zação operaria no sentido de manter u m equ i l íbrio i nterno
frente à i rrupção de energ i a p rovinda do exterior.
Trata-se portanto de um sistema ou conjunto de sistemas
que fu nciona segu ndo o mecanismo de homeostase. A essa re­
g u l ação, Lacan chama de função restituidora da organização
pslquica 2 e a compa ra, a inda que num n fvel mu ito elementar,
ao movi mento de descarga e de retração da pata da rã, isto é,
d escarga e retorno à posição de equ i l íbrio. Este é, fu ndamental­
mente, o modo de funcionamento do aparelho a n ím i co, e nessa
tarefa estão igual mente comp rometidos o princípio de p razer
e o princíp io de rea l idad e. Paralelamente à fu nção rest ituidora,
há tam bém u ma função repetitiva - é o que F reud nos mostra

1 Lacan. J ., O Semirulrio, Livro 2, p. 1 00 .


2 Op. cit., p. 82.
92 acaso e repetição em psicanálise

em A lém do prindpio de prazer, a tré.. �s da noção de compulsão


à repetição ( Wiederholungswang) . E sta noção, porém, não está
l ivre de ambigü idade em F reud . Se por u m lado ela manifesta
uma- tem:Jêm:·ia repetitiva; por outro, manifesta também uma
tendência restitutiva . Se admiti rmos o princ ípio de prazer como
aquele que rege o conju nto dos sistemas p s íqu icos, deverfamos
adm iti r também que a tendência restitutiva predom inaria em
ú ltima instância so bre a tendência repetitiva. O que parece
paradoxal e en igmático em F reud é que tal não acontece. Da í
a h ipótese da pu lsão de m o rte.
Ao co l ocar a questão de um além do princ fpio de prazer,
F reud não está de modo algu m retoma ndo o ponto de vista
natu ral ista com o qual a psicanál i se rompe desde os seus come­
ços. D izer que a vida aponta para a morte não significa abrir
mão da d i mensão simból ica que caracteriza essencialmente a
psicanál i se, mas sim adm iti r a possibil idade de um l im ite da
palavra, de algo que para além do princ ípio de prazer, para
além Jo jogo dos signos, d i z respeito ao real .
Se o conju nto dos si stemas psíqu icos tende para o equ i l f­
brio, por que esse equ i l íbrio não é obtido? Por que há uma per­
sistência do desprazer? Por que a tendência repetitiva acaba por
predom i nar sobre a tendência resti tutiva? E aqu i que se man i­
festa a ambigü idade da comp u l são à repeti ção, na med ida em
que ela impl ica os dois reg istros : Q· repeti tivo e o restitutivo.
Para além da tendência restitutiva há u ma tendência repetitiva
que se impõe de forma paradoxal e en igmática. 3 Essa ambi­
gü idade é o que coloca em q t J estáo a h ipótese do princ ípio de
prazer e da sua fu nção homeostática.
Desde o in (cio de Além do princ1'pio de prazer, F reud
destaca a importância que concederá , na seqüência do texto,
ao ponto de vista energético. Essa ênfase não apenas distingue
o texto em questão daqueles outros que compõem a chamada
pri mei ra tópica freudiana, como assinala ainda a d istância que
separa F reud dos au to res que, de Descartes a Hege l , pretende­
ram conceber o corpo h u ma no como uma máquina. I sto por-

3 Lacan , J . , op. cit., p. 88.


além 93

que, se para esses a u to res o modelo tomado era o da máqu ina


mecânica, o que emerge ju nto com F reud é a máqu i na ener­
gética .
Se a concepção do mu ndo, de Descartes a Hege l , era a da
máq u i na newtoniana, a parti r de Watt a velha "ciência do fogo"
se encarna na máqu ina a vapor fazendo com que a palavra­
chave desse novo mu ndo seja energia. Essa é a distância maior
que sepa ra Hegel de F reud : a visão energética do mundo. M á­
quina de so nhar, máq u ina de fa lar, máqu ina energética são ter­
mos que agridem os ouvidos h u ma n istas, e no entanto podemos
concordar com Lacan quando d iz que nada encarna tão profun­
damente o u niverso h u mano quanto u ma m á q u i na. A máqu ina
só toma sentido se referida ao u n iverso simbó l ico. Como a l in­
guagem, ela assinala a d istância em relação ao natura l . Po rtanto,
ao pensa r o homem dessa forma , F reud não está pretendendo
fazer um reducion ismo biológico, assim como tampouco está
tomando a b iolog ia como modelo exp l icativo do func ionamen­
to do aparelho psíqu ico. Se podemos falar em modelo, aque le
que F reud toma para exp l i car o homem é o energético, que
tam bém foi tomado pela bio logia. N o entanto, entre a biologia
moderna e a metapsicologia freu d iana a d i stância é considerá­
vel . O que F reud fez em Além do princ/pio de prazer foi ju ntar
essa concepção energética à sua teoria do apare l h o an ímico
desenvolvida desde A interpretação de sonhos. 4
F reud i n icia o texto de 1920 dizendo : "Supomos, sem
hesitação, na teoria psicanal ítica, que o decurso dos processos
da alma é regu lado automaticamente pelo pnnc ípio de prazer
(Lustprinzip )", e em segu ida completa : " Decidi mos pôr em
rel ação Lust e Unlust com a quantidade de excitação ex istente
na vida da a l ma - e não vi ncu lada de algum modo - de tal
rn <H1eira que Unlust corresponde a u m incremento e L ust a
u m a d i m i nu ição desta quantidade. ' ' 5

4 N a verdade, a concepção ene rgét ica nu nca esteve ausente dos textos freudianos; o
que ocorreu na p rimeira tópica f o i u ma necessidade de explicitação da concepção tó·
pica, o que foi feito e m detrimento da ên fase sobre os fatores energéticos.
5 O texto u t i l i zado como referência foi a tradução feita por W. L. Chebabi do o r iginal
alema'o Jenseits des Lustprinzips. A refe1 ida tradução não está p u b l i cada, a que d i s­
ponho é u m a cópia datilografada gen t i lmente ced ida pelo Dr. Chebabi.
94 acaso e repetição em psicanálise

Ora, u m a coisa é a afirmação de u m princípio que regu la


o funcioname nto do apare l h o an ím ico, outra é o diferencial
prazer-desprazer. O princ (pio de p razer só toma ·sentido quando
referido ao aparel h o an ím ico conceb ido como um todo, isto é,
concebido como um apare l h o , um aparato ou um sistema fe­
chado, cuja fu nção é regu lar a entrada l ivre e i l i m itada da ener­
gia de origem pu lsional ass i m como as descargas motoras. O
apare l ho an ímico é, pois, u ma organ izaçao. Acontece que o
diferencial prazer-desprazer se faz com anterioridade a qual­
quer organ ização. O q u e h á orig inal mente, d i z F reud, é prazer
de órgão (Organlust) , p u l sões parciais satisfazendo-se de forma
auto-erótica e i ndependentemente de qualquer princ íp io organ i­
z ador. O que é primário em F reud não é o princ ípio de prazer,
mas o d i ferencial prazer-desprazer que se daria num estado de
d ispersão d as excitações. O su rgi mento do p r i ndp io de prazer
se daria pel a ligação (Bindung) , isto é, pela passagem do prazer,
entendido como p u ra experiência subjetiva e referido a uma
quantidade de excitação não vi ncu lada, para u m estado de inte­
gração que nos possi b i l itará falar em aparelho a n ím ico.
A função desse apare l h o é ma nter o n ível de exci�ação o
mais baixo pos s rvel ou pelo menos consta nte ( F reud nos d iz
que o L ustprinzip deriva do Konstantprinzip ), o que não signi­
fica red u z i r o n ível de tensão a zero (que seria a morte do ser
vivo ) . Mesmo se ente ndemos a p u l são de morte como "tendên­
cia para mo rrer", p u l são de morte e princ íp io de prazer não se
confu nde m . O que F reud afirma é que há a lgo além do princí­
pio de p razer ou d istinto dele e que tende a remeter todo o ani­
mado ao inan i mado.
Não é da morte que F reud nos fala quando se refere à
pu lsão d e morte, mas da vida. E d o viv ido h u ma no que a psica­
nál ise trata, e se há a lgo nesse v ivido que impe l e o homem a sai r
dos l im ites d a vida é a inda d o v iv ido que estamos fala ndo. 6 D e
qualquer m a neira, o princ ípio d e p razer não se confunde com a
pu l são de m o rte, assim como esta não se confu nde com a morte
enquanto desti no i nd ivid u a l .
Apesa r da ênfase conced ida à di mensão conceitu a l da obra

6 Lacan, J . , op. cit., po. 1 06- 7.


além 95

de F reud, Jean H yppol ite7 pergu nta se não há nele u m confl i to


profu ndo entre o racionalista (que acred ita poder racional izar a
human idade} - este é o F reud terapeuta - e u m outro F reud
especu lativo que se opõe ao racional i sta . Não se ria o F reud
especu lativo aquele que, deixando de l ado o raciona l i smo, pos­
tu la a p u l são de morte? Lacan responde que o texto de A lém
do princ/pio de prazer perma nece racional ista de ponta a ponta,
que em nen h u m momento a razão abdica e afi rma : "Aq u i co­
meça o opaco e o i nefáve l ." 8 O recu rso à pu l são de mo rte não
sign ifica um recuo de F reud com relação à exigência raciona l i s­
ta. Além do princ1pio de prazer não é u m texto onde a razão
recua frente ao inefável , "o insti nto [ pu lsão] de m o rte não é
uma confi ssão de i m potência, não é o ato de estacar diante de
u m irredut íve l , de u m derrade i ro i nefáve l, é um conceito ". 9
Tal resposta parece não so mente afastar a sugestão de
H yppo l i te como tam bém co loca r uma ped ra em c i ma da ques­
tão da possib i l idade do acaso em psica n á l ise (pelo menos de u m
acaso original } . N o entanto , antes de cedermos sob o peso da
ped ra laca n iana, vamos d i scuti r a i nda outros aspectos relativos
ao conceito de pu l sã o de morte.

Sob o títu l o "O que é o instinto de morte?",1 0 Deleuze faz


uma bri Ih ante aná l i se de A lém do principio de prazer, mostran­
do que o "a lém", aqu i, não sign ifica exceções ao p r i nc íp io de
prazer n a vida psíqu ica , ma s designa um resfduo irred u t ível ao
princ í p i o : " N ão há nada contrário ao princípio, mas há algo
exterior e heterogênea para com o princ ípio - u m a l ém (. . . }."
E sse além não se refere às exigências da real idade, poi s estas
encontra m sua origem no fantasma e, portanto, em a lgo que
também está so b o dom ínio do pri n c íp io. O além é, portanto,

7 Op. CJt., p. 92.


!S Lacan, J . , op. cit., p. 93.
9 lb1d. los co l chetes e o g r i fo são meus ! .
1 0 Dele u ze. G . , Apresen tação de Sacher-Masoch, pp. 1 20 e seg.
96 acaso e repetição em psicanálise

u m res íduo, e é esse res ídu o que ele vai rel acionar ao "i nstinto
de m orte" . N o m esmo texto, Deleuze afirma que a disti nção
entre pu lsão de vida e p u l são de morte só poderá ser plenamente
com pree nd ida se l eva rmos em conta u ma outra distinção rnais
profunda : aquela que h averia entre a própria pulsão de morte
e o instinto de morte. 1 1 Ev identemente não se trata aqu i da
velh a e já desgastada confusão decorrente da tradução do Trieb
freudiano para " insti nto", mas de algo que diz respeito aos
fundamentos do conceito de pulsão de morte e que nos remete,
segundo ele, ao estatuto da negação na obra de F reud.
O ponto de partida da análise de Deleuze é a obra de
Leopo ld von Sacher-Masoch . M as não é apenas de M asoch que
Deleuze nos fala, fala-nos também do Marquês de Sade. Ambos
os nomes serv i ram para designar perversões que retomadas por
F reud passaram a fo rma r o par sadismo-masoq u i smo, funda­
mental para a teo ria d a sexu a l i d ade.
Deleu ze nos diz que o que está em jogo na o bra de Sade
é a negação, e que esta su rge em toda a sua extensão e em toda
a sua prof u nd id ade, ma s que se apresenta sob duas fo rmas dis­
t i ntas : como deso rdem, destru ição, degradação (o que não
deixa de ser u ma forma de o rdem ou de estar referida à o rdem ) ;
e como negação pura, caos primord i a l, puro estado de d ispersão.
A essas duas fo rmas de negação co rrespondem duas naturezas :
a natureza segunda, que não é a bso lutamente negativa porque
está referida à ordem e que se constitu i como processo parcial
de morte e destru ição ; e a natureza primeira, que se situ a pa ra
a lém da o rdem e da l e i , que não tem nen h u m compromisso com
a conservação, seja i nd ividual ou da espécie. Portanto, natureza
segunda apresenta ndo-se como processo parcial do negativo, e
natureza primeira que corresponderia à negação pura. No entan­
to, essa natureza pri m e i ra ou o riginal jama is se apresenta como
um dado , "só a n atu reza segu nda forma o mu ndo da experiên­
c i a, e a negação só é d ada nos processos parciais do negativo", 1 2
sendo a natu reza o rig ina l o bj eto apenas de uma idéia . .
1: a partir dessa d i sti nção entre as duas formas de negação

11
Op. cit., pp. 32-33.
12
Deleuze, G., op. cit., p. 30.
além 97

que Deleuze ap resenta a outra d isti nção entre p u l são de morte


e i nstinto de morte. Segundo ele, a d isti nção freud iana entre a
pu lsão de vida e a pu lsão de m o rte só ganha plena i nte l i g i b i l ida­
de se referida a u ma outra que lhe serve d e fu ndamento : a d i s­
ti nção entre pu/são de morte e instinto de morte. Enqu anto a
pu l são de morte jama is se ap resentaria em estado puro, mas
sem pre mi stu rada com as p u l sões de vid a, o i nsti n to de morte
seria Ta natos em estado p u ro , negação pura , caos orig i nal . 1 3 Tal
como a natu reza original a que nos referimos ac ima, o i nsti n to
de m o rte não pode ser "dado " na vida psíqu ica. De leuze ter­
m i n a por di zer que "para designá-lo, devemos manter aqu i o
substa ntivo instin to , ú n ico capaz de sugeri r u ma tal transcen­
dência ou de designar um ta l p ri nc ípio t ranscendenta l " . 14
C reio que temos aqui duas questões : u ma d i zendo respei to
ao estatuto e extensão da negação e sua re lação com as duas
naturezas; e outra d izendo respeito ao que F reud entende po r
Todestriebe em A lém do princt'p io de prazer e da necessidade
apontada por De leuze de se fu ndamenta r essa pulsão n u m
iJlst�nto, mesmo q u e este ú l timo seja en tend ido como um "princ i­
pio tran scendenta l " . Parece-me que o primeiro passo a ser
dado é no sentido de estabe lecermos o esta tuto da negação
nos textos de que estamos tratando. Assim, negação é apenas
privação ou possu i um estatuto de posi tividade?
Spi noza entendia a negação como sendo necessariamente
privação, restrição, como algo que em re lação à p len itude abso­
l u ta da su bstância co rresponde a um "ser menor" Determi­
-

naria nega tio est, a determ i nação é negação, esta é a fórm u la


f J m osa de Sp inoza . Para ele, o Abso luto, a Su bstância, é afi r­
mação p u ra, ausência total de dete rm inação (que seria l i m ita­
ç ão 1 . o ind ifere nciado ple.no. A proposição de número sete da
Etica de Spi noza afi rma : "Pertence à substância existi r. " A
substância enquanto ta l não comporta nenhuma falha nega­
t iva, o negativo não faz parte dela. Persiste para Spi noza o con­
ceito de negação entendido como p rivação. No entanto, D .

1J D e . e u z e , G . , op. cit., p. 32.


1 4 / O td
98 acaso e repetição em psicanálise

Jan icaud, 1 5 num artigo sobre H egel e Spinoza, perg unta se não
podemos entender esse h orror de Spinoza ao negativo como
sendo, de fato, u ma negação da negação; se esse abso l utamente
positivo da substância sp inozista não é no fundo a negação
absoluta .
Numa primeira apro x imação, parece que essa h ipótese não
é su stentável . Apesar de Sp inoza jogar sempre com a negação, e
apesar do a bsp lutamente posi tivo da substância encerrar em sua
defi nição a negação da negação, esta continua sendo pensada
como p rivação. A negação em Spinoza não faz parte da essência
da su bstância . "A exc l u são da negatividade do se io do su bsta n­
cial - acrescenta Janicaud - v o l ta a encontrar-se ao n lvel da
individual idade, que nada ma i s faz do que perseverar no seu
ser, pois - l e m os no l ivro 1 1 1 da Etíca (proposição 5 ) : 'coisas
de uma natu reza contrária não podem esta r no mesmo suj eito,
na medida em que U ma pode destru i r a outra' . Para Spinoza, a
contrad ição interna equ ivale à autodestru ição , o que é absu r­
d o . " 1 6 A substância, e nquanto infi nita, não comporta a nega­
ção, esta só ocorre ao n ível dos modos f i n i tos enquanto deter­
minação. No entanto , a negação i m p l ícita nos modos não afeta
a su bstância enquanto ta l ; a fin itu de dos seres não afeta a infi­
nitude d o Ser. O Abso luto não pode conter a falta so b pena de
deixar de ser Abso l u to .
M as se os modos são finitos, o s atributos são infin itos e m
seu gênero. Como exp l icar então a determ i n ação pela negação ?
Deleuze nos responde que a el imi nação rad ical da negação em
Sp inoza apóia-se na diferença entre distinção e determinação.
E nq u a nto esta ú l tima é sempre negativa e diz respeito a os
m odos da su bstância, a d istinção é sempre positiva e refere-se
aos atributos. Cada atributo é marcado pe la sua d i stinção, de
ta l m odo q u e cada um p ode ser concebido sem que se refira
em nada a o outro atri buto . Cada q u a l é infin ito em seu gêne-

JS jan i caud, 0 . , " D ialética e substan cial idade - sobre a refutação h e ge l iana do sp ino­
z ismo" e m : Hegel e o pensamento moderno.

16 J a n i caud, D., op. cit.


além 99

ro ou em sua natu reza. "Toda natu reza é positiva ."17 "À po­
sitividade como essência i nf i n ita corresponde a afirmação como
ex istência necessária. " 1 H
M a s à posi tividade d o s atri butos não corresponde uma
pu ra negativ idade dos modos. E m bo ra caracterizados pelas duas
figu ras da negati vidade - a l i m itação e a determ i nação - os
m odos são negativos apenas logicamente, enq ua nto q u e sua
ex i stência é semp re uma fo rma de afi rmação, i m p l ica sempre
u m a força. A negação não tem, para Sp i noza, estatuto onto ló­
g ico, ela é um ente de razão, ou , como prefere Deleuze, uma
forma de co mparação que em nada afeta a natu reza daqui l o
que é comparado. Assim sendo, se d etermi nação é negação,
isto não sign ifica que em relação aos modos Spinoza tenha
fe ito uma onto log ia do negativo ; para e le, a negação não é nada,
é pu ra ficçao abstrata.
Por esse esboço, fica claro que para Spi noza a i nd iferen­
ciação d a su bstância nada tem a ver com a negação, mas si m
com a afirmação plena, e que mesmo em relação às coi sas singu ­
lares é em termos da positividade q u e elas são ap resentadas ;
o negati vo não faz parte de su a essência. "Tod a a coisa se esfor­
ça, enqu anto está em si , por perseverar no seu ser" e ''o esforço
pelo qual toda co isa tende a persevera r no seu ser não é senão
a essência atu al dessa coisa" : estas são as proposições V I e V l i
da Parte 1 1 1 da Etica e exp ri mem o que Sp inoza designa por
conatus, a potência do modo, sua perseveração na existência,
sua tendênc ia interna a d u rar indefin idamente.
Ao contrário de F reud, para quem o ser vivo tende a mor­
rer por causas inte rn as, para Spi noza " nenhuma coi sa pode ser
destru fda a não ser por uma cau sa exterior" . 1 9 A idéia de uma
p u l são de morte inere nte à substância é i nconceb fvel para
Spinoza, assim como a idéia de um "instinto de morte" en­
tendido como "caos primord i a l " . A i nd i fere nc iação da subs­
tância nada tem a ver com o caos, acaso ou d ispersão, como
tam bém não é signo da negação, mas, ao contrário, fndice de

17 Dele uze, G . , Spino:ta, p. 80.


I �> Sp,n oza. ética, I, 7 e 8.
I •J S >' I OOZa, ética, 1 1 1 , 4.
1 00 acaso e repetiça·o e m psicanálise

afi rmação p lena . A su bstância é chamada de natureza natu­


rante, causa da natu reza natu rada ( modos ) , e i sto não devido
ao acaso mas a u ma o rdem necessária.
A concepção spi nozista da substância retoma a tradi ­
ção g rega inic iada p o r Parmên ides, cuj o fundamento é a i den­
ti dade . O que Parmên ides recusava era o conceito d e qual idade
negativa , a posi t ividade do negativo, o não-ser. O que o pri nc(­
p io de i den tidade afi rmava era : "O que é, é ; o que não é, não
é", p r i n c íp io lógico que transfo rma Parmên ides numa "máq u i n a
d e pensar" , como d iz ia N ietzsche. Sobre este princípio é cons­
tru (da a onto logia g rega, e é a i nda em to rno de le que se cons­
titu i , vinte séc u l os depo i s, o moni smo spi nozista.
H ege l su rge como um dos cr íticos mais agudos dessa tra­
dição a o den unciar que essa fi losofia f icou presa à noção de
substância, desp rez ando a noção de suj eito. O pressuposto da
fi losofia que se i n ic i a com os g regos é de que é poss(vel consti­
tu i r-se u m d i scu rso so bre o ser, a natu reza ou a substância, isto
é, de constitu i r-se u m d iscu rso so bre o Objeto sem l evar-se em
conta o Suj eito. Para H ege l , u m d iscu rso sobre o Ser tem que
col ocar-se a si próprio, j á que a tota l idade daq u i l o que é i n c lu i
o p róprio d iscu rso .
Ao incl u ir o suj e i to na tota l idade daqu i l o que é, fazendo
com que o Abso l u to abarque tanto o Se r como o D i scurso,
Hege l i n troduz a catego ria onto lóg ica de negativ1dade . Se a
Su bstância é concebida como Ser (Sein ) e seu fundamento onto­
l óg ico é a iden tidade , o Suje i to tem seu fundamento na nega­
tividade. Segundo Hege l , u ma das fa l has da f i l osofi a grega e de
grande pa rte da fi l osofia moderna foi ter concebido o homem
como uma en ti dade também natu ra l . Para ele, o homem nada
tem de natu ral , sendo q ue, na verdade, ele se const i t u i pela
negaç ão do natu ral ; não h á conti nu idade entre o homem e a
natu reza, entre ambos i n terpõe-se a l i nguagem. I sto não faz
porém com que suj e i to e objeto passem a const i tu i r um dual i s­
mo i rreconci l i ável , pois pelo co nheci mento verdade i ro o d i scu r­
so co i n c i de com o ser que ele revela.2 0 Lóg ica e ontologia são
p J ! él H egel indiscern lveis.

:;o K uJ év e , A . , ln troduc tJon a la lecture de Hegel.


além 101

H á po rtanto u ma grande d i ferença entre a l óg ica ta l como


Hegel a concebe e a l ógica ta l como era encarada pelas f i l osofias
que preced eram a su a. De fato, ele i nstaura u ma nova lógica
que deixa de ser vista como u ma arte ou i n stru mento de pensar
o ser, para tran sfo rmá-la numa experiência de revel ação do ser
e de si própria como d i scu rso . O suj eito desse d iscu rso enco ntra
seu fu ndamento na negatividade ; é ao negar a natu reza, assi m i ­
lando-a e transforma ndo-a, q u e o homem se consti tu i como
homem. A negatividade aparece como ação do homem sobre a
natu reza, ação criadora porque negadora do dadó. Como assi ­
nala Jacques D ' H o nd t , 2 1 o mundo natu ral não é , segu ndo H ege l,
uma d ád iva ao homem, mas algo que se l he opõe e que tem que
ser conqu istado : a ação ( Tun ) su põe "exatamente o contrário
de uma oferta tota l por u ma natu reza benevo lente" . 22
Afi rmar que a Tota l idade i m p l ica a negatividade (além da
identidade ) sign ifica d izer que o homem se consti tu i pela nega­
ção do dado, q ue o Eu h u ma no não é uma real id ade natura l ,
imed i ata, mas o resu l tado dialético d e u ma ação so bre o dado.
O homem não se constitu i como u m pro longamento-coroamen­
to do natu ral , mas como desconti nuidade em relação ao natu ral .
Essa desco nti nu idade. é produz ida pelo discurso ( L agos ) que,
ao i nvés de se r dado, é ação negadora (transformadora ) do d ado.
Com Hege l , o d i scu rso deixa de ser o l uga r neutro onde o mun­
do natural é representado e passa a ser a forma pela qual o
mu ndo natu ra l é revelado e ao mesmo tempo transformado
por essa atividade negadora. E ssa atividade do d i scurso é o
entendimen to ( Verstandes ) , que no prefácio da Fenomenologia
do Esp irito Hegel apresenta como o maior e mais adm i rável
poder do homem, e esse poder se ma n ifesta pela capacidade de
separação.
Pelo d i scu rso , o homem separa o e lemento que no real é
i nseparável d a tota l id ade da qual faz parte, separação esta que
nad a mais é do que o poder de abstração através do qual u m o b­
jeto é iso lado do resto do u niverso . Produz i r o conceito de algo

21 D ' Hondt, J., "Teologia e práxis na l óg i ca d e Hege l " em: Hegel e o pensamento mo­
derno.
22 D ' Hondt, J., op. cit., p. 30.
102 acaso e repetição e m psicanálise

é separar esse a l go das cond ições de espaço e tempo a que ele é


submeti do enqu anto o bjeto real. O conce ito de mesa só é pos­
s íve l na med ida em que meu entend imento separa a mesa real,
sobre a qual escrevo, das cond ições rea is concretas que fazem
dela u ma mesa real . A mesa real é portanto separada de seu
suporte material e to rnada idé i a , sentido. O sentido "mesa" não
se· dá senão pelo entend imento, isto é, pela l inguagem. O meca­
nismo do entendi mento con siste pois em separar u ma coisa de
seu suporte material e fornecer-l he u m outro su porte que é o
discurso. L: a esta capacidad e d e separar a essência da ex istência
que H egel chama negatividade, e que tem como resu l tado a
produção de u m mu ndo distinto do natu ra l : o m u ndo da cu l ­
tura. Considerada i so lad amente , a negatividade é puro nada.
A consc iência i mersa na experiência acred i ta como verda­
deiro aqu i lo que se l he apresenta como "certeza sensível" ,
"coisa perceb ida", para descobri r em seguida que essas supostas
verdades são fa l sas. O resu l tado da experiência da consciênc ia
é pois u m resu l tado negativo, mas este caráter negativo não é
absol u to, posto que ele é sempre a negação de u m "aq u i " e
u m "ago ra" que ao den unciar o erro perm ite sua superação por
uma verdade. t essa superação ou suspensão (Aufheben ) da
experiência que vai constitu i r a positividade da negaç/Jo. N ão é
portanto da negação abso lu ta q u e Hege l está fa lando, mas da
negação determinada, imanente ao rea l e fundamento da dia­
l ética .
Toda negação determ i n ad a é, portanto, u ma afi rmação. A
questão q u e se co loca é a de como pode surg i r a lgo de novo a
parti r d a negação determi nada. Se a negação determ inada é
um não-A em relação a um A inicial, como pode su rg i r u m 8
que seja algo de novo em relação a A ? Segu ndo H yppo l ite, 23
"para entender o texto hegel iano neste ponto, é necessário
adm iti r que a Tota l idade é sempre i manente ao desenvo l vi men ­
to d a consciênci a . A negação é criado ra porque o termo dado
havia sido iso lado, porque ele mesmo era u ma certa negação.
A parti r desse momento, se concebe que sua negação permite
voltar a enco ntrar a Total idade em detal he. Sem essa imanência

23 Hyppol i te, J . , Génesis y estrutura de la Fenomenología de/ Esp íritu de Hegel, p. 1 7.


além 103

da Tota l idade à consciência não se poderia entender como pode


rea l mente a negação engen drar um conteúdo".
A consciência é esse su perar-se, essa necessidade de ir mais
além de si mesma , o que a disti ngue fundamentalmente do ser
l imitado a uma vida natu ral . E ste ú ltimo não tem em si mesmo
a capacidade de " i r mais a lém", isto só ocorre se ele é impel ido
po r u m outro. M as o ser impel ido para além de si próprio im­
pl ica a negação de suas forma s l i m itadas e, po rtanto, a sua
própria m o rte. Assim, enquanto na natu reza a morte é sempre
uma negação externa , o homem carrega a morte em si mesmo,
posto que a consciência é esse transcender-se constante, esse
supera r-se sem cessar que faz dela a lgo de i rred u t (ve l ao natu­
ral . No h omem, a negação é a própria mo rte que ela porta e da
qual ele é conscien te. E ssa morte não é � negação a bso luta, mas
a negação determinada, portadora de pos itividade e que é i nse­
parável da vida enq uanto vida h umana.
A negatividade em H ege l é sempre negatividade pa rcial
(já que determinada ) ; só abstratamente poder (amos concebê-l a
com o abso l u ta. Considerada iso ladamente, a negatividade é
pu ro nada. N ão existe u m em-si da negatividade, aqu i lo que
poder íamos chama r de negativo puro . A negatividade para H egel
é a marca da f i n itude do ser. I sto o aprox ima perigosamente
de Spi noza, e não creio que ten ha sido esta a i ntenção do f i l ó­
sofo de Jena. Quando H egel d i z que a negatividade conside rada
iso lad amente é u m puro nada, ele não quer d izer como Spinoza
que a negati vidade sej a u ma ficç ão, mas que ela i m p l ica u m
suporte natu ra l . E enqu anto negação d o natu ra l q u e emerge a
ordem h u ma na , a cu ltu ra , o que faz com que a negatividade
passe a ter u ma posi tividade que im pede que a identifiquemos
ao pu ro nada . A positividade da negatividade resul ta da afi rma­
ção do nada através da negação do dado . Ao negar o dado en­
qua nto em-si , enquanto natu ra l , a negação fu nda o para-si que
é a consciência h u ma na . A persistên cia deste para-si é a afi rma­
ção do nada pela destru ição-tra nsfo rmação do ser. Hege l chama
de morte essa negatividade posto que é realizada pela perma­
nência do nada (destru ição do em-si ) que se constitu i como pen­
samento e d iscu rso .
A negação não é, pois, em Hege l , u m proced imento exte­
rior. u m acidente ou u ma ficção do entend imento, mas,. como
1 04 acaso e repetição e m psicanálise

já h avia assinalado Kant, "um pro ced imento necessário à ra­


zão", ú n ico capaz de revelar a objeti vidade da verdade. Essa
negação essencial à consciência é a morte de que ela é porta­
dora; não a m o rte de si própria mas a destru ição-transformação
do natu ra l . O natu ra l é por ela neg ado mas mantido enquanto
negado ; o natu ra l é su perado.
Na i n trodução . da Fenomenologia do Espirito, H egel
escreve : " O que está l i mitado a u ma v ida n atural não pode por
si mesmo ir mais a lém de sua existên cia emp írica i med iata ; mas
está i mp u l sionado mais a lém dessa exist.ê ncia por outra coisa,
e esse fato de ser arrancado (e p rojetado) mais além é a sua
m o rte. " A morte do ser natu ral é portanto u ma morte estran­
geira, enquanto que a morte que o se r h u ma no porta é a sua
própria vida : " m o rte que v ive u ma vida h u ma na", como diz
Koj êve.
Spinoza e H egel : Se levarmos em consideração a idéia
freudiana de um p rimeiro momento m ítico na re lação da crian­
ça com a mãe, momento de indiferenciação o riginal anterior à
l i nguagem e ao recalque, a nterior ao p róprio tempo (ou perten­
cente ao tempo m ítico o rigina l ) , momento no qual criança e
mãe fo rmam u ma tota l idade ind iferenciada, o que teremos a (
é u ma pura afi rmação, u ma relação afetiva que é a expressão
d i reta do p u l si o na l e que não encerra negação a lguma . A nega­
ç ão su rg i ria para queb rar essa u n idade ind iferenciada, d istin­
g u i ndo um i nterno e um externo. A seme lhança com a concep­
ção sp inoz ista da Su bstância é bastante razoável . Tal como a
Substância de Sp inoz a , essa re lação primordial criança-mãe
forma u m todo indiferenciado , afi rmação plena, puro estado
pu l siona l . No enta nto, o p róprio F reud toma o cuidado de nos
apresentar essa concepção como "m ítica", não correspondendo
ela a nenhum momento rea l o bservável c l i n icamente. T rata-se
poi s de u ma ficção teó rica .
Mas não é por apresentar-se como u ma ficção teórica que
e l a deverá ser o bjeto de cr ítica . Afin a l , todos os conceitos teó­
ricos são ficções. O alvo da c r ítica seria a aceitação i rrestrita
dessa afi rmação absoluta que co rresponderia a um "afetivo
pu ro" em F reu d. De fato , essa u n idade indiferenciada cria nça­
mãe incl u i a mãe, e esta "j á está situada no campo d i stintivo da
além lOS

situ ação h u mana",24 e portanto só pode ser concebida como


afi rmação abso lu ta abst ratamente. A mãe, enquanto parte dessa
tota l idade, é u m indiv ídu o adu l to, imerso na cu l tura e que já
passou pela castração. Assim sendo, ela encerra a negação, o
que faz com que a "afi rmação plena" orig i n a l j á contenha em
si mesma a negação . E neste caso aprox imar íamos F reud de
Hege l .
Esta é, i nclu sive, a c r ítica que H egel faz a Spinoza. Não
haveria afi rmação pu ra assi m como não haveria negação pura.
Toda negação se ria negação de u ma af i rmação, mas esta ú l tima,
por imp l ica r u ma determi nação, encerraria uma negação. U ma
afi rmação p u ra, isenta de qualquer negação, como a que preten­
de Spinoza com seu conceito de Substância, seria, no entender
de Hege l , u ma abstração.
V o l tando entao à questão co locada por Deleuz e em rela­
ção ao conceito de pulsão de morte em F reud, a pergunta que
su rge é : Qual o sentido do "i nsti nto de mo rte" que ele aponta
como fu ndamento necessário à pulsão de morte em F reud ?
Segu ndo Deleuze, 2 5 "as p u l sões de morte e de destru ição
são claramen te dadas ou apresentadas no inconsciente, mas
sempre m istu radas com as pu lsões de vida". Não me pa rece
que este ten ha sido o ponto de vista sustentado por F reud ;
para ele, não apenas as pulsões não são "dadas" no ·in co nscien­
te, mas si m presentificadas pelos seus representa ntes p s íqu i­
cos, 26 como afi rma ainda q ue em se tratando das p u l sões de
morte, elas são si lenciosas e invis íveis em contraposição às
pu l sões sexuais, que são ru idosas. 27 Aqu i l o que "encontramos"
no inconsciente são representantes das pul sões parciais (se­
xuais ) ; a pulsão de morte não tem propriamente representan­
tes, ela se faz p resente si lenciosamente como princ ípio d i sj u n­
tivo do sex u a l . " N ão era fác i l - esc reve F reud - demonstrar

�4 H y p po l i te , J . , "Comentaria hablado sobre la Verneinung de Freud" em Escritos


2, de J . Laca n .
25 D e l e u ze . G . , op. cit., p . 33.
�� F re u d . S . , E.S.B., Vai. X I V, p. 203.
• F re u d , S . , E.S.B., Vai. X V I I I , pp. 84-5.
106 acaso e repetição em psicanálise

as ativi dades dessa suposta pu lsã o de morte. As manifestações


de E ros eram visívei s e bastante ru idosas. Poder-se-ia presum i r
que a pu lsão d e morte operava silenciosamente dentro d o orga­
n ismo ."2 8 A p u l são de morte , prossegue F reud no mesmo texto,
escapa a qua lquer detecção, "podemos apenas suspeitá- la, por
assi m d i zer, como a l go situado em segundo plano, por trás de
E ros" .2 9 E ste pode ser um dos sentidos da afi rmação de F reud
de que não se encontra o não no i nconsc iente. O não não se
encontra presente enquanto Vorstellung, m as enqua nto prin­
c fpio de desu n ião, de disj u nção de E ros.
A i nda dentro dessa mesma questão, De leuze identifica pu l­
são de m o rte ( Todestriebe ) com p u l são de destru ição (Destru­
kionstrieb ) e pu I são agressiva (Aggressionstrieb ) . Sem dúvida
alguma, a confu sã o no emprego desses termos foi provocada
pel o próprio F reud, mas ele mesmo, em seus ú l ti mos textos,
encarrega-se de desfazer parte dela. Assim, em O mal-estar na
civilização , ele nos d iz que " u ma idéia mais fecunda era a de
que u ma parte da p u l são (de morte ) é desv iada no sentido do
mu ndo externo e vem à luz como pulsão de agressividade e des­
tru tividade'',3 0 e a inda : " E ssa pu lsão agressiva é o derivado e o
principal representante da p u l são de morte." 3 1 Portanto, a pu l­
são de morte n ão .se man ifesta diretamente, perma nece "em
segu ndo p lano por trás de E ros", como fundo si lencioso pa ra
este ú lti m o ; aqu i l o que se man ifesta da pu l são de morte não é
e l a mesma, mas u m derivado ou rep resentante seu que é a des­
t ru tividade. Assi m , aqu i l o que Oeleuze chama de instinto de
morte , "que como tal não pode ser dado na vida psíqu ica, mes­
mo no i nconsciente",32 em nada d ifere daqu i l o que F reud
denom i n a pu/são de morte . Também esta n ão é "dada" no
psiqu ismo, mesmo no inconsc iente; n ão possui representantes
ideativos e fu nciona mu ito ma i s como princípio d i sj u ntivo por­
tad o r da negação p u ra do que como conteúdo ideativo do psi-

28 Freud. S., E.S.B., Vo l . X X I , p. 1 41 .


29 F reud, S., E.S.B., Vo l. X X I , p. 1 44.
30 lb 'd
I
31 F reud,

S., E.S.B., Vol . X X I , p. 1 45.
32 Deleuze, G., op. cit.
além 107

q u i sm o . Como o próprio F reu d af irmou , trata-se de uma enti­


dade mítica, Tanatos, e não agressividade ou destrutividade.
O que F reud va i afirma r, e talvez este tenha sido o ponto
de apoio de Deleuze para postular o "i nstinto de morte" , é que
a n lvel pslquico, pu lsão de morte e pulsã o de vida encontram­
se sempre m i stu radas. M as isto ocorre a n ível ps íqu ico. Se con­
corda rmos com F reu d em que as pulsões são pré-ps íqu icas, que
aq u i lo que se m i stu ra no psi quismo são seus representantes
(Psychischereprasen tanz ou Triebreprasen tanz ) e não as pu l sões
elas próprias, então podemos ma nter o termo pu/são de morte
sem a necessidade de apontarmos u m " i nstinto de mo rte" que
sej a seu fu ndamento . A própria pulsã o de morte seria esse fundo
"além de qua lquer fu ndo" de que fa la Deleuze.
Deleuze d iz a inda que " p"r inc íp io" é aqu i l o que rege um
dom ín io, e no caso do p rinc ípio de p razer esse dom ín io é a vida
psíqu ica - " O princ fpio de prazer rei n a sobre tudo mas não
governa tu do . " 33 Se ria este o se ntido do "a l ém do pri nc fp i o
d e prazer" de F reud ? Parece-me q u e Deleuze n ã o levou em con­
ta que, para F reu d, o ld não é, no começo da constitu ição do
apare l h o psfqu ico, um domínio ; e isto não só porque não há
nele d i ferenciaç ão algu ma , como porque não há nada que se
assemel h e a u m princ ípio ordenador. Podemos d i zer que há u m
d iferencial p razer-desprazer, m a s esse d iférencial n ã o defi ne
u m dom ín i o e mu ito menos u ma ordem. Mais do que u m d o m í­
n io, o l d é u ma p l u ra l i d ade de l u gares ps íqu icos, u m " isso"
anterior ou exterior a qualquer o rdem e a qualquer lei. Portan­
to, o que há in icial mente é prazer e não princ ípio d e prazer.
O princ fp i o de prazer seria u m efeito da mu l t i p l icidade de
d iferenciais prazer-desprazer, no l ugar de ser aqu i lo que rege
esses d i ferenciais.
O princíp io de p razer é, seg u ndo Deleuze, um p r incíp io
emp írico ; a q uestão que ele coloca a seg u i r é : O que submete
o dom ín i o p s íqu ico ao pri n c ípio? Teria que haver, seg u nd o
e le, u m outro princ fpio q u e exp l icasse essa su bmissão necessá­
ria. Ocor re, porém, que se o princ ípio de prazer é u m efeito

33 Deleuze, G . , op. cit., p. 1 2 1 .


1 08 acaso e repetição em psicanálise

da m u l t i p l icidade de d iferenciais prazer-desprazer, o que temos


no in ício da v ida ps íqu ica são esses d i ferenciais num estado de
dispersão; sequer poderíamos apl icar a essa subjetividade arca i­
ca o termo "aparel ho" . U m aparelho su põe u ma organização,
supõe l imi tes, supõe um pri nc fpio de funciona mento, en quanto
que o l d é i n ic i a l mente u ma pura dispersão de excitações oriun­
das das pu l sões. No entanto, o l d já é ps íqu ico, enquanto que
as pu l sões são pré-ps íqu icas. Ass i m , o l d já responderia no
plano p s íq u ico às ex igências que Deleuze faz a u m a "natu reza
prime i ra", "l ivre da necessid ade de criar, de conserva r e de in­
d ividu a r : sem fu ndo a lém de qualquer fundo, del frio original,
caos p rimordial feito u nicamente de moléculas fu riosas e dila­
cerantes" . 34
A crítica de Deleuze exposta em Différence et répétition
pode ser resu m ida da seg u i n te ma nei ra : 1 ) "A vida biops íquica
i m p l ica um campo de ind ivid uação no qua l as diferenças de in­
tensidade se d istribuem aqui e a l i , sob a forma de excitações";
2) "Chama-se prazer o processo, ao mesmo tempo quantitativo
e qual itativo, de reso l ução da d iferença "; 3) " Esse conj u nto de
repartição móvel de diferenças e resol uções locais num campo
intensivo corresponde ao que F reud denom inou o l d (pelo me­
nos a camada p rimária do l d ) " ; 4) "O problema de F reud é o
de saber como o p razer deixa de ser u m processo pa ra se tornar
um princ íp io" . 35
A resposta de F reud, a inda segundo Deleuze, é que a exc i­
tação enquanto l ivre d iferencial p razer-desprazer deve ser ligada,
de tal maneira que sua reso lução seja sistematicamente poss íve l ,
passando assim d e um estado d e pura d ispersão para u m estado
de integração que é o in feio de uma organização. A própria
afi rmação de Deleuze, segu ndo a qual "as p u l sões não são nada
m a i s do que excitações l igadas", 36 não me parece i nteiramente
correta. Aqu i lo que va i se r objeto da l igação, para F reud, são
os representantes psíq u icos da p u l são e não a pu lsão ela pró-

� Deleuze, G., Apresen tação de Sacher-Masoch.


3 Dele uze, G . , DifMrence et rl}pt} tition, pp. 1 28-9.
36 lbid.
além l 09

p ria. A p u l são p erma nece aquém do ps fq u ico. As p u l sões e o l d


não se confundem.
A idé ia-ch ave aqui é a de ligação (Bindung ) . � através da
l igação que u m estado (h ipotético ) de pura d ispersão de exci­
tações dá lugar a u ma organização, que é o aparelho a n ím ico.
Esta noção já foi estu dada no Cap ítu lo 5 ; no entanto, creio
que devemos retomá-la em fu nção da c r ítica de De leuze.
A idéia de ligação ou vinculação nem sempre é empregada
de fo rma u n (voca por F reud. Seu aparecimento se deu no Pro­
jeto de 1 895, e diz respeito a O , quantidade de energia de que
um neurônio está i nvestido. N esse texto, a O é ainda concebida
como u ma energia fl'sica ou como a excitação que percorre u m
sistema neu ro na l . � somente a parti r d e A in terpretação de
sonhos que F reud pa ssa a empregar o termo "energia ps íqu i ca",
marcando com isso seu afastamento em relação ao natural ismo
do Projeto. Mas ainda no Projeto , F reud d i sti ngue duas formas
de a : u ma seria a a fluente, tendendo à descarga completa; e
outra a O 'n retida nos neu rônios, necessária à rea l ização de uma
ação espec ífica. "A fu nção secu nd ária (do sistema nervoso ) ,
porém, que requer a acu m u l ação da O 'n , to rna-se poss fve l a d m i­
tindo-se que ex istam resistênc ias opostas à desca rga ; e a estru­
tura dos neu rôn ios torna p rovável a local ização de todas as
resistências nos contatos (en tre os neurônios ) , que desse modo
funcionariam como barreiras. A h i pótese de barreiras de contato
é frut ffera em vár ios sentidos."37 As barrei ras de contato cons­
tituem a p rimeira tentativa de F reu d no sentido de expl icar a
diferença entre os doi s estados de O : a O I ivre, f luente, ten­
dente à descarga tota l . e a O 'n armazenada nos neurônios. No
entanto, é através da noção de catexia colateral que a idéia
ganha u ma expressão m a is n ítida.
Segu ndo F reu d,38 na trama dos neurônios surge uma orga­
n ização cuja presença i mpede ou dificu l ta a passagem de a que
ori g i nalmente foi acompanhada de satisfação ou de dor. A essa
o rganização de neurôn ios, ele dá o nome de ego, e o define
como a total idade das catexias existentes, n u m determ inado

�: F reud, S., E . S. B., Vol. I, p. 399.


F reud, S., E.S.B., V oi. I, pp. 428 9.
110 aca�o e repetição em p�icanálise

momento, no si stema de neu rônios em 4uustão ( neurônios \11 ) .


E sse ego tende a l ivrar-se dessas catexias " pelo método da sat i s­
fação", o que é poss (ve l de duas maneiras : Através da repetição
das experiênc ias anterio res e da inibição da descarga.
A energ i a que atinge um sistema de neurôn ios tende a d is­
tribu i r-se através das barreiras de contato que oferecem menor
resistência, em d i reção à descarga moto ra . No entanto, pode
acontecer que um neurô nio vizinho ao neurônio catexizado
tam bém esteja si m u l taneamente catex izado , fazendo corn que,
pela p roximidade entre ambos e pe la sim u l tanei dade do i nves­
ti men to , crie-se a l go seme l h ante a um campo de forças u n ifi­
cado, fazendo com q ue o cu rso orig inal da energia seja alterado
em favor de u ma catexia colateral. O resu l tado é a inib ição da
passagem de Q e, porta nto, de sua descarga, isto é, u ma ini bição
dos processos p rimários pelo ego. 39
E , porta nto, a catexia colateral que p roduz a vinculação ou
ligação da energ i a , sendo que "o p ró p rio ego é uma massa de
neu rônios dessa espécie que se ma ntêm presos a sua s catex ias
- isto é, que estão em estado de ligação, coisa que, com toda a
certeza, só pode suceder como resu ltado d e sua influência
mútua" . 40
Numa p rime i ra instância, portanto, o ego não é o agente
da vincu l ação ou l ig ação, mas u m efeito dela. Essa é a razão
pela qual F reud afirma que "desse modo nos encontramos
inesperadamente d iante do mais obscuro de todos os problemas :
o d a origem do 'ego' ".4 1 Devemos ter em mente que o ego do
Projeto não é entend ido como sujeito ou como possu indo aces­
so à rea l idade ; e l e é de fato um comp lexo de neurônios l igados
por catexias que permanecem rel ativamente constantes. Vimos
acima que e l e repete experiências anteriores ( experiências de
satisfação ) ou i n i be a d escarga . A repetição ocorre em função
da associação que estabelece com a experiência de satisfação.
Desse modo, ele tende a repeti r a catexia da lembrança do obje-

39 lbid.
40 F reud, S., op. cit. , p. 483.
41 F reud, S., op. cit., p. 484.
além 111

to de satisfação, col ocando em ação o processo de desca rga.


No entanto , se este objeto é apenas u ma i mage m , a satisfação
não pode ocorrer ou o que oco rre é u m a sat i sfação a l u c inatória.
Na Pa rte 1 1 1 do Projeto , F reud dese nvolve a idéia de que a
" atenção ps(qu ica" é o mecan ism o responsável pe la ind icação
de qual idade, o que perm i t i r ia ao ego um acesso às percepções
com a conseq üência de poder agir sobre elas. A atenção p s (qu ica
é o que poss i b i l ita o invest ime nto dos mesmos neu rô n i os por­
tadores do investi mento perceptivo, repeti ndo, dessa maneira,
a experiência p rimária de sati sfação, dando l ugar à transfor­
mação de estados de anseio em estados de desejo e estados de
expectativa : "O anse io i m p l ica u m estado de tensão no ego e,
em conseqüên cia d isso , fica catex izada a representação do
obj eto amado ( a idéia de desejo ) . A experiência b i o l óg ica nos
e nsina que essa represen tação (Vorste l l u ng ) não deve ser catex i­
zada tão i n te nsamente a ponto de ser confu nd ida com u m a per­
cepção, e que a sua descarga deve ser ad iada até que dela (da
rep resentação ) partam i n d icações de qual idade que demonstrem
que a representação ago ra é rea l , que sua catexi a é perceptiva." 42
O ego do Projeto é, pois, esse conju nto de neurô n i os cuja
energia é l igada , o q ue faz com que cada conj u n to exerça u m a
ação sobre o s dema i s neurônios c o m catexi a variável . O efeito
dessa ação de u m grupo de neurônios sobre os d em a i s é o que
F reud denom i n a processos secundários. E nquanto os processos
pri mários se riam catexizados por uma energ i a l ivre, os processos
secu ndá rios seriam catex izados por uma en ergia l igada. A liga­
ção seria o meca n i smo responsável pel a transformação de u m
estado d e d ispersão d e energ i a ( o que tornaria i mposs rvel u m a
resposta espec ífica ) nu m estado d e organ ização e d e maior
eficácia adaptativa .
N o enta nto, a i n da se trata de neurônios e de energia física.
O aparelho p s íqu ico a i nda é concebido, no Projeto, segu ndo o
modelo neuro l óg ico, e a ligação a i nda é l igação entre neu rônios
e d iz respeito a u ma energ ia f ísica qu e c i rcu l a entre e les. E. so­
mente com A in terpretação de sonhos que vai emerg i r u ma con-

42 F reud, S., op. cit., p. 474.


1 12 acaso e repetição em psicanálise

cepção topológ ica do apare l ho ps íqu ico e o conseqüente a ban­


dono dos referencia i s neu ro lóg icos e a natômicos.
O que se vai evidenciando, porém , no Projeto, é u m a falta.
Como p r i m e i ro momento de u m processo d ia l ético, o Projeto é
u m mo mento negativo. N ele, o que fica patente é a i m p ossib i l i­
dade do modelo neu ro lóg ico - seja qual for o modo segundo o
qual encaramos essa "neu ro logia" - de dar conta de fenômenos
tais como os sintomas h istéricos ou o so nho. Quanto mais F reud
ca m inha no Proje to, ma is vai ficando patente a lacu na em re la­
ção a a lgo q u e , em bora insinuado, não está presente : a Ordem
simbólica. N o entanto, não se trata apenas de preencher u ma la­
cu na teórica ; não se trata de u m conceito que, u ma vez i ntrodu­
z ido, conferirá pl ena con sistência ao mode l o . O que F reud va i
ter que opera r é uma mu dança de modo de pensa r, a a bertura de
u m outro espaço de questões que o Projeto tornava impronu n­
ciáveis. Essa mudança é a que se i n icia com A interpretação de
sonhos e qu e vai te r seu s del ineamentos finais com Além do
principio de prazer.
I sso não sign if ica que devemos desprezar a tota l idade do
conteúdo do Projeto. Se por u m lado ele se constitu i como u m
obstácu lo a u m d iscu rso cujo objet ivo seria a Ordem s imból ica,
por outro contém noções qu e, u ma vez retomadas por F reud e
su bmetidas a u m outro esquema, ganharão sua verdadeira ex­
pressão. A n oção de ligação (Bindung) é uma delas.
Vo ltemos, então, à questão que estávamos anal isando e
que serve de t ítu lo para este cap ítu l o : a do a lém - a lém do
" "

princ íp io de prazer.

Já fo i d ito que a p u l são d iz respeito às relações entre o


corpo e o mu ndo dos objetos, ou , mais p recisamente, entre o
corpo e a l i ngu agem. Assim, se por um lado ela se refere ao cor­
po considerado corno su a fonte ( Quelle ) , por outro, se refere
aos objetos do mu ndo. O mesmo esquema se apl ica ao i nstinto
( lnstinkt ) . A d i ferença fundamenta l entre ambos resi de em que,
no caso do instinto, essas relações se fazem segu ndo esquemas
corpora is i natos, de tal modo que entre essas disposições i nternas
do indiv íduo e os objetos Jo mu ndo externo haja u ma adequ a­
ção natu ra l ; enquanto qu e no caso da pu l são, novas articu l ações
( não natu ra is) são constitu ídas. No p rime i ro caso ter íamos, se-
além 113

gu ndo Lacan, u ma relação d e ser com ser, enquanto que n o se­


gu ndo ter íamos uma relação de ser com falta. 43
N a verdade, o qu e F reud faz é considerar a pu l são como
disju ntora dos esquemas corpora is inatos e produtora de novos
esquemas, perversos em relação ao natu ral . A pu l são é, porta n­
to, desma nteladora da ordem natu ra l e constitu inte da ordem
hu ma na . Essa disju nção produ z ida pela pu l são deve ser entendi­
da em termos de morte do natu ral ( negação/superação do natu­
ra l ) , dando lugar à emergência da ordem h u mana. A vida h u ma ­
n a é u ma A ufhebung d o natu ra l .
N o entanto, esse modo d e pen sa r a pu l são é a i nda demasia­
damente hegel iano, demasiada mente antropo l ógico. F reud não
se propõe a fazer uma antropolog i a . Se podemos d izer que nele o
homem se constitu i pe la morte do natu ral , não é como u ma an­
tropogênese que a psicanál ise se apresenta ao mu ndo cient ífico.
Não é do homem qu e F reud fa la, mas de algo qu e no homem u l ­
trapassa o p róprio homem.
Ao considerar a p u l são como d isju ntora, o qu e F reud tem
em mente é a pu/são de morte. O que ela d isjunta são os esque­
mas corvora is qu e têm por objetivo cu mprir u ma fu nção vita l ,
dando lugar a ou tras formas de a rticu l ação com o objeto que
não têm d i retamente nada a ver com a função vita l . E na med ida
em que os esquema s b i o l ógicos inatos são pervertidos em sua
função conservadora qu e a diferença tem l u gar. Foi nessa medi­
da que dissemos qu e o termo "perversão" a p l icado ao h omem
toma um sentido próprio : o homem é perverso. E le é tanto mais
hu mano qua nto m a is perverso; perverso em relação ao natu r4
Do ponto de vista do natu ra l , o prazer que sentimos ouv indo
uma fu ga de Bach ou resolvendo uma equação matemática é
tão ou ma is perverso do que o prazer que resu lta do exerc ício da
violência sobre a lguém. Para o homem, o norma l não é natu ra l,
ou , o que é natu ra l para o homem nada tem a ver com o natu ra l
da bio logia. Mas aqui estamos novamente resva lando para u ma
antropo log ia. O conceito de pu lsão não é u m conceito antropo­
l ógico, mas psicanal ítico.

43 Laca n, J . , O Seminário, Livro 2, pp. 1 3 1 e 280.


1 14 acaso e repetição em psicanálise

Já v i mos que nos escritos da Me tapsicologia F reud afirma


que se a fonte da p u l são é corporal, seu objeto é psíqu ico. O
qu e signif ica isto? S ignif ica, numa primei ra aprox imação, que
o objeto não é considerado como um em-si, mas na sua fu n­
ção de sig no, qu e ele é retirado de sua a rt icu lação natu ra l e
su bmetido a u ma outra a rt icu lação na qual tanto ele qua nto o
próprio corpo são su bmetidos à O rdem si mból ica. Ambos são
desnatu ra l izados. I sto não quer d izer que a pu l são seja de or­
dem si m b ó l i ca, mas que é pela sua relação com a ordem sim­
ból ica que· ela se ex erce. D izer, porém, que o obj eto é signo,
não corresponde a i nda, de forma adequada, à qu estão psicana l í­
tica. Se o o bj e to, enqu anto sig no, remete a outro obj eto, en­
qu anto significante ele remete a um sujeito. E isto, segundo
Laca n, o que d istingue o signo d o significan te : "O s ig n ificante
se caracteriza por representar um sujeito para outro sign ifican­
te."44 A ssi m, no exemplo da fumaça e do fogo, a fu maça tan­
to pode remeter ao fogo como pode tam bém remeter ao sujeito
que o p rovoca; e essa seria a fu nção essencial do signo em psica­
ná l ise : p rodu z i r u m efeito de sujeito. O sujeito é o efeito de u ma
cadeia de significantes ou , ma is p recisamente, efeito i ntermed iá­
rio entre dois sign ificantes.
N ão podemos, porta nto, fa lar de pu l são senão por referên­
cia ao s i m bó l ico, apesa r dela própria não ser da ordem do s i m­
bó l ico. N o entanto, é o simból ico que em ú lt ima i nstância d i s­
tingue a p u l são do instinto, pois é em fu nção do simból ico que a
re lação entre o corpo e os objetos do mu ndo sofre u ma meta­
morfose, de tal modo qu e, u m a vez a rticulados como signos, os
objetos p roduzam como efeitq o sujeito. Se ''a anatomia é o
dest i n o", qu em coma n da esse dest i no é a pa lavra. Sem ela se­
qu er nos dar íamos conta de nossa própria morte. E pela palavra
que nos tornamos mortais.

A questão da relação entre o sujeito e o obj eto atravessa


a obra de F reud de ponta a ponta, mas é no pequeno artigo A
denegação ( Die Verneinung) que ela vai ser colocada de u m mo­
do que se reveste de particu lar interesse para o que estamos ven-

44 LJC<Jn, J . . O Semmário. Livro 20, p. 68.


além 1 15

do. Trata-se do ju íz o de existência e do j u íz o de atribu ição, e de


sua re lação com o princ íp io de rea l idade.
Desde o Projeto, quando F reud nos fa la dos "estados de
desejo", como em A interpretação de sonhos, qu ando fa la da
"rea l ização de desejos", e l e se vê às voltas com a questão da "ve­
rificação da rea l id ade".45 Como o caminho m a i s cu rto para a
rea l ização do desejo é a a lucinação, isto é, o rei nvesti mento de
u ma i magem, to rnava-se necessário esta bel ecer um critério segu n­
do o q u a l fosse poss ível verifica r se o objeto era rea l ou não.
Ao comentar a abordagem freu d iana à questão da re lação entre
o suj eito e o obj eto do seu desejo , Laca n46 mostra que F reud
dist ingue dua• ma neiras segu ndo as quais a experiência hu mana
é estru tu rada : pela reminiscência e pela repe tição. Na rem i n is­
cência, o que se supõe é um acordo entre o homem e o m u n do
dos objetos; nela, o qu e se procu ra j á está lá, trata-se não do en­
contro com o o bjeto, mas do reencontro com e le. Na repetição,
o que ocorre é u m a procu ra do objeto perd ido, u ma tentat iva
de reencontro que no entanto jamais se dá de forma p lenamente
satisfatória, p osto qu e o o bjeto que se apresenta co incide apenas
parcial mente com aquele qu e original mente p roporcionou satis­
fação. � portanto essa busca sem fim do objeto o que caracteri­
za o desejo. N e la , o mundo dos objetos é produ z id o i ncessante­
mente, e cada objeto reencontrado é não o o bjeto em-si, mas
u m signo do o bjeto perd ido. M a i s à frente, no mesmo Seminá­
rio,47 Lacan d iz que n isto reside a d iferença fu ndament a l entre
a concepção clássica da relação suje ito-objeto e a que caracteri­
za o ponto de vista psicanal ítico: como foi d ito acima , o de ser
uma relação de ser com ser, enqu anto que em psica ná l i se o que
ocorre é u ma relação de ser com falta.
E m A denegação, F reud articula essa questão com a fun­
ção do j u l gamento. Toma ndo como referência a d i st inção entre
os j u ízos atributivos e os ju íz os de ex istência, e le os a rt icu la ao
IJI ocesso pelo qual a cria nça opera a d i stinção entre o interno e
o externo. N os termos em que F reud o considera, o ju ízo atri-

45 F re ud, S . , E.S.B., Vai. V, p . 603.


40 Lacan , J . , O Seminilrio, Livro 2, p. 1 31 .

47 Ldcan, J . , op. cit., p. 280.


1 16 acaso e repetiçaõ em psicanálise

bu tivo con siste em se afirmar ou negar u m atributo particu lar a


uma determi nada coisa . I mporta, sobretu do, se esse atributo é
considerado bom ou mau. Nos seu s estágios i n icia is, o ego, re­
gido pelo p r i n c íp i o do prazer, introjeta aqu i lo que é exper imen­
tado como prazeroso e expu l sa de si para o mu ndo externo
aqu i l o qu e é vivido como desprazeroso; assim, "aqu i lo que é
mau , que é estranho ao ego, e aqu i l o que é externo são, para
começar, idênticos".48
Há, porém, u ma outra função do j u l gamento que consiste
não em atribu i r u m p red icado particu lar a u m objeto, mas em
afirmar ou negar a existê ncia de a lgo qu e corresponde a u ma re­
presentação. Se o ju íz o atri bu tivo está I igado origina lmente ao
ego-p razer, o ju íz o de existência está l igado ao ego-real idade .
E m ambos os casos, t rata-se de uma questão relativa ao interno e
ao externo, mas em cada u m dos casos o referencial é d istinto.
O recu rso aqu i à d isti nção que Lacan estabe lece entre o
rea l , o si mból ico e o imag inário pode nos ser de extrema val ia.
A part i r da concepção freu diana do narcisismo. Lacan ela­
bora o tipo de relação do sujeito com seu s objetos, que é conhe­
cida como "estágio do espe l ho " . O pressu posto dessa concepção
é que o imaginário é u ma noção cujo ponto de partida é a refe­
rência ao próprio corpo.
Toda relação i maginária coloca como que u ma ameaça de
d issolução de u m dos seu s pólos: o eu ou o o bjeto. Se o p rinc í­
pio de u n idade dos objetos perceb idos é a u n idade do p róp rio
corpo, quando a u n idade do eu se torna p reponderante, os obje­
tos tendem a se esvanecer; quando é o objeto que ganha prepon­
derância, o que é ameaçado de d i sso lução é o eu . E sse tipo de
estrutu ração do eu e do mu ndo é extremamente frág i l , a l ém
de ser marcado por u m a consta nte ameaça de para l i sação ou d is­
so lução. E aqu i qu e Lacan faz interv i r u ma outra ordem qu e, in­
terpondo-se entre os suje itos ou entre os suje itos e os objetos,
introduz u ma consistência exterior àquela que decorre da rela­
ção narc ís ica : é a relação simbólica.
E o poder de n omea r os objetos o que estrutu ra a percep-

48 F reud, S., E.S.B., Vo l . X I X, p. 297.


além 1 17

ção, ret ira ndo-a da pura evanescência do imaginário .49 É o ato


de nomear os objetos que l hes fornece a lg u ma peren idade, além
de articu lá-los segundo uma outra ordem d ist i nta do reg istro
do imaginário. Se a percepção se esgotasse no imag inário, os ob­
jetos não possu iriam nenh u ma permanência, se d i l u i riam no
insta ntâneo da percepção. É a palavra, enquanto que nomeia o
objeto, que const itu i sua permanência no tempo e, so bretu do, o
qu e perm ite que u m objeto seja o mesmo para dois sujeitos.
Através do reconhecimento - e este só pode se dar pela pala­
vra - dois sujeitos concordam ou constituem a " mesm idade" do
objeto. A rigor, aqu i lo a qu e chamamos de mu ndo nada mais é
do que o efe ito do reconhecimento por parte de diferentes sujei­
tos, de d iferentes objetos. O mu ndo, na med ida em qu e se nos
apresenta com a l gu ma u n idade, é um efe ito da i nterveniência
do si mból ico. 50
Se por u m lado a entrada em cena do s i m ból ico poss i b i l ita
a estrutu ração do mu n do e fu nda o próprio sujeito, este ú ltimo
corre o risco de ter su a ação sobre esse mundo para l isada se o
sistema simból ico faz valer sua hegemonia de forma radica l . Se
com o predom ín io do imaginário o suje ito se vê assolado por
um mu ndo alucinado, com a rad ical ização do simból ico ele é
dominado por u ma ordem que lhe transcende e que o determi­
na i ntegra l mente.
Com a rad ica l ização do simból ico, o i n d i v íduo é como que
esmagado por u ma ordem que ele sente como estranha e que o
para l isa. N ão há, num mu ndo estru tu rado dessa manei ra, l u ga r
pa ra o acaso, e a p rópria v ontade individu a l é tra nsformada num
mero efeito dessa ordem. " A e ntrada em fu nção do sistema s i m­
bólico em seu mais rad ica l , mais a bso luto, emprego, acaba a bo­
l i ndo tão completamente a ação do i n d i v íduo, qu e e l i m i na, da
mesma feita, sua relação trágica com o mu ndo . " 5 1 Sem a rel a­
ção simból ica o i maginário permanece e n l ouquecido, com a ra­
d ical ização do simbólico o sujeito é transformado num objeto

49 Lacan, J., O Semin/1rio, Livro 2, p. 2 1 5.


50 lbid.
5 1 Laca n , J . , op. cit., p. 2 1 4.
1 1B acaso e repetiçiio em psicanálise

sujeitado por u ma ordem abso luta que é sentida por ele como
exterior e inexoráve l .
Apesar dessas duas ordens não serem vividas separadamen­
te pelo sujeito, elas não se confu ndem. O i magi nário e o simbó­
l ico são dois dom ín ios d i sti ntos. Desde os seus pri mei ros semi­
nários, o esforço de Lacan se . dirigiu no sentido de d istingu ir o
que pertence ao dom ín io do imaginário e o que pertence ao do­
m ín i o do simbólico. Essa distinção ou disju nção é correlat iva da
que ele esta belece entre o eu em sua d imensão imaginária e o
sujeito enquanto pertencente ao simbó l ico.
V i mos acima que é o poder de nomear os objetos o que
perm ite ao sujeito superar a eva nescência do i maginário. Essa
nomeação diz respeito a u m dos reg istros do simból ico: o regis­
tro da palavra. E a palavra que instau ra a permanência temporal
do mundo - entendido este como um sistema de objetos - e
também a continuidade do sujeito. E a i nda a palav ra, na sua
fu nção mediadora, que possi b i l ita o reconhecimento do outro e
que perm ite a su peração do desejo de morte que caracteriza a
relação d u a l . Mas, além da vertente da pa lavra, temos que d ist in­
gu i r no simból ico u ma ou tra vertente : a da linguagem. 52 O sim­
ból ico como l i nguagem é o que Cdracter iza propria mente aqu i lo
que Lacan chama de Ordem simbólica enquanto conju nto estru­
tural independente do sujeito q u e fala. Esse é o l ugar do Outro
(o grande Outro ) , sistema de elementos sig n ificantes ao qual o
sujeito é su bmetido desde o começo.
Assim, em termos do desenvolvi mento da criança, o que
ocorre é u m aprend izado da fala, da palavra, mas não um apren­
dizado da l i ngu agem. E sta encontra-se presente desde o in ício, e
é ela que vai poss i b i l itar a fala. Não há, portanto, aqu isição pro­
gressiva da l ingu agem pela criança. E n qu anto Ordem si mból ica,
ela está p resente desde sempre e, em termos da criança, antes
mesmo do· seu nascime nto. E somente do lugar desse Outro que
a i ntersubjetividade pode se dar. O d i scu rso do Ou tro é u m sis­
tema de e lementos significantes ao qual o :.uje ito é su bmetido
desde o in ício e que l h e permite falar ao outro ( com m i núscu la) .

52 Mi ller, J . A., Cinco conferencias caraqueiias sobre Lacan, p. 1 B.


além 1 19

Já vimos como, em Die Verneinung, F reud articu l a o j u ízo


de atribu ição e o ju íz o de ex istência à distinção que a criança
opera entre o interno e o externo. En quanto o ju íz o de atribu i­
ção tem sua origem no ato pe lo qual o ego-prazer i ni cial i ntroje­
ta aqu i l o que é experimentado como bom e expu l sa para o mun­
do externo aqu i lo que é sentido como mau , o j u íz o de ex istên­
c ia tem sua origem na necessidade do ego- rea l idade de saber se
a lgo qu e está no ego como representação ( Vorstellung) pode ser
redescoberto também na rea l idade.
O que a a ná l ise feita por Jean H yppol ite53 nos revela é que
F reud fu ndamenta essas duas formas de ju íz o em dois meca n i s­
mos primários : a Bejahung, a afirmação, que corresponde à
introjeção daqu i lo que é experi mentado como bom; e a Verwer­
fung, a reje ição, que corresponde ao que é expu l so, ao que é co­
locado para fora por ser experimentado como mau.
A Bejahung, enqu anto afirmação p rimord i a l , é o p rocesso
p rimário que serve de fu ndamento ao ju íz o atributivo; corres­
ponde a u ma simbol ização primitiva a nterior à aqu isição da fala,
e é o mecan ismo pelo qua l a l gu ma coisa passa a ter existência
para o sujeito. Nela, o qu e temos é a i nda a dom i nância do prin­
c íp io de p razer; o que é simbol izado não é u ma perda, o que a
Bejahung p rocu ra rep roduz i r é a situação de u n ificação originá­
ria. � coisa de E ros, como d iz F reud . 5 4 A Bejahung é p ensada
por e l e como u ma espécie de primeiro tempo da enunciação in­
consciente, p recedente necessário à Verneinung, entend ida esta
ú lt ima como u m j u ízo de existência.55 R . Dorey56 compara a
Bejahung f reud iana aos fenômenos tra nsicionais de q u e nos fa la
W i n nicott. Um objeto transiciona l é u m objeto material que se
reveste de importância especia l para o lactente (e para a crian­
Çél), e que fu nciona no sentido de operar a transição entre a re­
lação ora l prim itiva com a mãe para o que ele considera como
a primeira posse de a lgo d istinto da própria criança. Trata-se

53 Hyppo l ite, J. , "Comentaria hablado sobre la Vemeinung de Freud" em: Escritos 2,


de J. Lacan.
54 Freud, S., E.S.B., V o l . X I X, p. 300.
55 Lacan, J., Escritos 2, pp. 243 e 282.
56 Dorey, R., op. cit., p. 37.
1 20 acaso e repet ição em ps icanálise

portanto de u m su bstituto do primeiro objeto perdido, mas que


. não fu ncio na no sentido de simbol izar a perda, e sim no sent ido
de reconqu istar a u n ificação original com a mãe. I sto o distingue
do carretel da bri ncadeira do Fort-Da que consi stia na sim bo l iza­
ção da perda.
O outro mecan ismo a que F reud se refere é a Verwerfung,
a rejeição, que Lacan vai chama r de forclusão ( forclusion) . 57
Se a Bejahung é a afirmação prim it iva, a Verwerfung é a rejeição
p r i m itiva . A Verwerfung constitu i o que primordia lmente é ex·
p u l so do sujeito e que, em decorrência disto, não entra na s i m ­
bo l ização. Não sendo simbo lizado, aqu i l o q u e é expu l so aparece
no rea l const itu i ndo-o como um dom í n io d isti nto do simbó l ico.
Em relação a esse real que se impõe ao sujeito como uma signi­
ficação iso lada que não remete a nada, não funcionam as defe­
sas que operam ao n íve l da neu rose . Tanto o recalcamento co­
mo a denegação mostram-se incapazes de operar defensivamente
pois a m bos p ressupõem a simbol ização. A Verwerfung é o meca­
nismo que fu nda os fenômenos psicót icos. Mas não é este aspec·
to da Verwerfung que nos interessa no momento, e sim o rea l
que p or ele é constitu ído.
O qu e é, então, o real para a psicanál ise? E o mesmo que
"real idade"? E sta ú ltima identifica-se com " rea l idade psíq u i­
ca"? Estes termos nem sempre foram empregados por Freud de
maneira a não deixarem margem a dúvidas, e mesmo a t ua lmente
eles são empregados de forma i mprecisa na I iteratura psicana l í­
tica. Creio que não resta mu ita dúvida quanto à distinção entre
"rea l i dade psíquica" e "rea l idade externa", mas não acontece o
mesmo no que diz respeito ao emprego do termo " rea l " .
Assim, e m A interpretação de sonhos, Freud afirma que
"o inco nsciente é a verdadeira rea l idade psíqu ica ; em su a natu reza
mais íntima, ele nos é tão desconh ecido qu anto a rea l idade Ju
mundo exterior, e é tão incompletamente apresentado pelos da­
dos da consciência quanto o é o mu ndo extern o pelas comu n i ca­
ções de nossos órgãos dos sentidos". 58 E mais à frente comple-

57 Laca n, J . , op. cit., p. 245.


S!:! F reud, S., E.S. B., Vol. V, �- 651 .
além 1 21

ta : "Se o l harmos para os desejos inconscientes reduz idos à sua


ma is fu ndamenta l e verdade ira forma, teremos que conclu ir, fo­
ra de dúvida, que a rea l idade psfquica é u ma forma especial de
ex istência que não deve ser confu nd ida com a rea l idade mate­
rial."5 9 Por rea l idade psíqu ica devemos entender portando a
rea l idade do inconsciente, do desejo e de seu s fantasmas. E ssa
rea l idade possu i u ma di nâm ica própria e é a ela que F reud se
d i rige em sua investigação.
A realidade ex terior é o mu ndo material enqu anto percebi­
do pelo sujeito como possu indo sentido e apresenta n do u ma
certa ordem e relativa peren idade. N ão cre i o que F reud, com a
vasta erud ição que possu ía, identificasse essa rea l i dade exterior
com o rea l em-si, assim como tampouco ignorasse as d ificu l da­
des impl icadas na d isti nção entre externo e interno. Aqu i lo a
q ue cha ma mos de rea l idade exterior é a rea l idade percebida,
portanto, algo em re lação ao qua l a d isti nção entre o su bjetivo
e o objet ivo se torna, no m ín imo, pro blemática. H u sserl, por
exemplo - para c ita r um autor contemp orâneo a F reu d - d is­
tingu ia entre Real, Reei/ e Wirklich. Real dizia respeito ao mun­
do enquanto ex istente no sentido vu lgar do termo; Reei/ signi­
ficava também "rea l" mas nu m sentido mu ito d i stinto do pri­
meiro, pois designava a rea l idade daqu i lo que faz ia parte da
"su bjetividade transcendenta l " ; finalmente, Wirklich , qu e sig­
nificava também "rea l" e nquanto oposto a "fict ício". 60 M es­
mo assim, prudentemente, H u sserl lançou mão de sua epoché
( redução ) , suspendendo qualq u er ju (zo de exi stênci a, seja a
respeito do mu ndo, seja a respe ito d o próprio eu .
A real idade ex terior de que n os fala F reu d é rea l no pri­
meiro sentido acima, o que não o torna, porém, i ngên u o ou vu l ­
gar. Mu ito pelo contrário. Sabia e l e mu ito b e m q u e a rea l idade
ps íqu ica não era u ma cóp ia imagética de u ma rea l idade exterior
entendida como rea l em-si. O i maginário, para F reud, n ão é en­
tendido como u m reflexo dos objetos materia is, mas como u ma
rede intrincada que supõe necessariamente o simból ico. Para e le,

59 F reud, S., op. cit., p. 658.


60 H usserl, E . , /deas, I, I n t rodução e 1 1 , parág. 56.
122 acaso e repetição em psicanálise

a noção de rea l idade exterior está l igada mu ito mais à d ist inção
entre o interno e o externo para o sujeito, do qu e a uma exigên­
cia de rigor filosófico. Se a ênfase, em a lgu ns de seus textos, é
dada a esse "exterior" ao suje ito, Freud nem por isso se deixa
apa nhar pela simpl if icação positivista. Sabia ele, e Lacan nos
mostra isto magistra l mente, 6 1 que o mu ndo externo, ta l como
o percebemos ingenuamente, só é possível na med ida em que
intervém a palavra. Sem a intervenção da fu nção si mból ica, o
mu ndo seria reduzido a u m fluxo en louqu ecido, caos de ima­
gens sem ordem e sem permanência no tempo. E a palavra que
cria o passado e o futu ro, assim como é a pa lavra qu e permite
a do is suje itos o reconhecimento, não apenas u m do outro,
mas tam bém de a m bos em relação ao mesmo objeto. Sem o re­
conheci mento pela palavra, ficar íamos prisioneiros de nossa
própria su bjetividade.
Sobre isso H egel já nos fa lou o su ficiente na Fenomenolo­
gia do Esp írito . Restaria pa ra expl icar como se dão as gestalten
no mundo a n i m a l , já que estes não t:stão de posse de palav ra. A
psico logia e a eto logia já nos mostra ram de forma clara e conv i n­
cente que os a n im a is respondem a gestalten, a formas, que apre­
sentam inclusive a l gu ma poss i b i l idade de reestrutu ração. E os
animais não possuem a palavra. Por que, então, o m u ndo não é
para eles u m fluxo enl ouq uecido de imagens? A resposta estaria
em que o mundo a n i m a l , natu ra l , não é caótico, mas possu i u ma
o rdem própria, distinta da o rdem hum ana. 6 2 Tanto no mu ndo
animal como no mu ndo f ísico encontramos formas, estrutu ras,
gestalten. A diferença qu e estas formas apresentar iam em re la­
ção ao m u nd o hu mano resid iria no fato de que elas se reduzem
ao imaginário a n i ma l, a ordem que elas apresentam resu lta dos
princ íp ios de pro x i m idade, semelhança e fechamento, e não da
i nterven iência do simbó l ico. Quando mu ito, encontraríamos no
mu ndo a n i m a l um esboço de simbólico, mas que seria a bu sivo
identificarmos com a fu nção simbólica no homem, e nisto não
va i nen h u m narcisismo da espécie h u ma na. De fato, o animal é

61 Ldcan. J., op. cit., pp. 41 - 56 e p. 2 1 5.


62
Ver a este respeito os experimentos de W . Kohler, K . Koffka e dos psicólogos ges­
taltlstas em geral.
além 123

capaz de responder a padrões de est ímu lo bastct r r le complexos,


mas estes fu ncionam como sinais e não como símbolos. Na il ll
sência do est ímu lo, o comportamento do a n i m a l não ocorre, ou,
mesmo na presença do est ímu l o, u m animal não é capaz de
transmitir para outro o que aquele sinal significa . N o homem, a
palavra desprende-se da coisa e fa; com que as próprias coisas
formem um sistema de sig nos/sig nif icantes que tra nscende intei­
ramente a ordem natu ral . E a fu nção simbólica, especificamente
hu mana, que, rompendo a relação narcisista do i maginário, fu n­
da o mu ndo a que chamamos de "rea l i dade ex terna" .
Como situar, então, o rea l em psica nál ise? O rea l é sempre
su posto. Na med ida em qu e def ine u m campo d ist into do sim­
ból ico, é o l u ga r do si lênc io . Ao contrário da rea l idade p s íq u i ca
que é reg ido pelo princ (pio de prazer, o rea l é, como diz Lacan,
"o obstácu lo ao princ(pio de p razer" . 6 3 Situado fora do dom (­
nio do simbólico e além do princ íp io de prazer, o rea l só pode
ser conceb id o como dessexua l izado (o qu e é sex u a l izado é o
desej o ) . A razão d i sto está em que, para F reud, assim como para
Lacan, o que sustenta a sexu a l idade não é o ObJ eto e sim a fan­
tasia, e esta encontra-se necessariamente articulada ao si mból i­
co. Da mesma forma, por estar situado fora do campo do s i m­
ból ico, o rea l permanece tam bém fora do circu ito que articu la
dois suj eitos pela pa lavra, e portanto fo ra das d istorções que a
palav ra permite. I sto significa que o real está aquém ou além
da mentira , do disfarce, das distorções, das máscaras que cons­
tru ímos na tentativa de ocu ltá- lo. O rea l é sempre verdadeiro.
Por se situar fora do simból ico, e p ortanto fora da O rdem
e da Lei, não def i n i ria ele o l u ga r do acaso em psicaná l ise? N ão
seria ele o fu ndo anárqu ico, natu reza primeira de que nos fala
Deleuze, " sem fundo a lém de qua lquer fu ndo ( . . . ) feito u ni ca­
mente de m o l éculas furiosas e di lacera ntes" ? 6 4 E não seria esse
tam bém o lugar da p u l são?
Lacan nos d iz que "o correlato d ia lético da estrutura fu n­
damenta l que faz da palavra de suje ito a sujeito uma pa lav ra

63 Lacan. J . , O Seminário, Livro 1 1 , p. 1 59.

64 Deleuze, G . , Apresen tação de Sacher-Masoch, p. 29.


1 24 acaso e repetiçaõ em psicanálise

que pode enga nar, é que há também a lg u ma co isa que não en­
gana" :6 5 esse algo que não engana é o real. E também não é
para esse a lgo qu e não engana que o conceito de pu l são apon­
ta?
O rea l é u ma palavra, ass i m como a pu l são é u ma pa lavra.
N ós os nomeamos mas, em segu ida, silenciamos. Este silêncio
não é, porém, um si lêncio abso luto. Trata-se sobretudo do si­
lêncio conceitu a l E esta é ta lvez a questão maior que a psica­
ná l ise nos co loca. E m sua p rática e em sua teoria ela nos apon­
ta pa ra o rea l, mas ao mesmo tempo ela teme o ab ismo que se
segue à borda do u n iverso simból ico. Ao lançar seu o l h a r por
sobre este abismo, o máximo que ela consegue é ampl iar os l i­
mites do próprio u n iverso conceitual a part i r do qual ela fa la.
A psica nál ise, assim como qualquer d iscu rso conceitu a l , encon­
tra-se na situ ação de u m navegante que quer atingir o horizon·
te e qu e nada m a is consegu e do que amp l ia r os l i m ites do seu
próprio espaço. Persegu indo o rea l , a psicanál ise vê esse hori­
z onte se afastar j u ntamente com a sua ca m inhada.
Mas não é assim desde Platão ?
N ão creio que a situação seja a mesma. O viajante platôn i­
co so nhava em c hega r a um outro m u ndo, transcendente ao m u n­
do sen s ível , habitado por formas pu ras e dotado de u ma ordem
absoluta . O real que a psicaná l ise persegue não é transcendente ao
humano, ele está a í p resente fazendo sentir toda a sua força, po­
rém, invis ível e si lencioso. E le não é estra ngeiro, não habita o
Topos U ranos, ele é fam i l iar, Un-heimlich. Se a palavra não con­
segue captu rá- t o, é pela palavra que ele se insinua.
Essa palav ra, ta l como a palavra do aedo na G récia arca i ca,
é portadora dos d isfarces, das distorções, do engano, mas é tam­
bém portadora da A le theia, da verdade. E pela palavra que o
rea l faz su a irru pção na O rdem simból ica, denunciando que essa
ordem possu i um u mbigo, qu e ele nos remete ao i n sondável e
ao s i l êncio, para algo qu e ficou exc l u ído do simból ico. É essa
irru pção que marca o lugar do trágico em psica n á l i se. A radica-

bS
Lacan. J . . O Seminário, Livro 3, p. 78.
além 125

l ização da função si mból ica fazendo com que "todo o rea l seja
rac ional" é a tentat iva de "recu perar" esse trág ico tornando-o
ordem.
Obras citadas

r
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R i o, 1 972-80. (V o l u mes relacionados abaixo referem-se a esta
edição. ]
- A interpretação de sonhos ( 1 900 ) , Vols. IV-V.
- A psicopa tologia da vida cotidiana ( 1 90 1 ) , V o l . V I .
- Três ensaios sobre a sexualidade ( 1 905), Vo l . V I l .
- Notas psicanalfticas sobre um relato autobiografico de um caso
de paranóia ( 1 9 1 1 ) , Vo l . X I I .

1 26
o bras citadas 1 27

- Formulações sobre os dois princfpios do funcioname n to men­


tal ( 1 91 1 I, V o l . X I I .
- A dinâmica da transferi!ncia ( 1 91 2), Vo l . X I I .
. - Recordar, repetir e elaborar ( 1 9 1 4 1, V o i . X 1 1 .
- Sobre o narcisismo: uma in troduçãu ( 1 9 1 41, Vo l . X I V .
- As pulsões e suas vicissitudes ( 1 9 1 5 1 , Vo l . X I V .
- Repressão ( 1 9 1 5 1 , V o l . X I V .
- O inconsciente ( 1 91 51, V o l . X I V .
- Além do princtpio de prazer ( 1 9201, V o l . X V I I I .
- Psicologia de grupo e análise do ego ( 1 921 ) , V o l . X V I I I .
- Dois verbetes de enciclopédia ( 1 922 :3 ) . V o I . X V 1 1 1 .
- O ego e o id ( 1 9231, V o l . X I X .
- A n egativa ( 1 92 5 ) , V o l . X I X .
- O futuro de uma ilusão ( 1 92"1), V o i . XX I .
- Dostoiévski e o parric/dio ( 1 9281. V o l . X X I .
- O mal-estar na civilização ( 1 9301, V o l . X X I .
- Novas conferências introdu tórias sobre psicanálise ( 1 933
[ 1 932 )1. Vol. X X I I .
- Por que a guerra ? ( 1 933 ( 1 932 ]1. Vo l . X X I I .
- Análise terminável e interm inável ( 1 937 ) , Vo l . X X I I I .
- Esboço de psicanálise ( 1 940 [ 1 938 ] 1 . V o l . X X I I I .
- Projeto para uma psico logia cien tifica ( 1 950 f 1 895 ] I. V oI. I .
- Estratos d e documentos dirigidos a Fliess ( 1 950 [ 1 892-99 ] I ,
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Gurwitsch, A. - Théorie du champ de la conscien ce. Desclée de Brouwer,
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ACASO E REPETIÇAO
EM PSICANALISE
Ma is do que qu alquer outra coisa, a
teoria d as pu lsões provoca a inte l i­
gência do l eitor de F reud. E m ver­
dade, a pu lsão desen ha o horizonte do
discu rso psicanal ít ico. S ituada aquém
do inconsciente e do reca lque, ela
escapa à trama da linguagem e da
representação, marcando o l i m ite do
discu rso conceitual.

Formu lada por F reud em 1 905,


em Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade, ele próprio declaro u , em
nota de rodapé escrita em 1 924, que
"a teoria das pu lsões é a parte mais
importante da teoria psicanal (tica
embora, ao mesmo tempo, a menos
completa". Estran ha declaração esta,
seg u ndo a qual a parte mais i mpor­
tante da teoria psica nal ítica perma­
necia, vinte anos depois de formu lad a,
a menos completa . A que seria devido
essa incomp letude insu perável ?

Este l ivro, escrito c o m clareza, mas


com a ex igência de rigor que é a
p rincipal caracter ística dos textos d e
Luiz Alfredo G arcia-Roza, pretenda
contribu ir para uma tentativa de res­
posta, partindo do conceito de pu lsão
em F reud , sua relação com as noções
de repetição e acaso, para desembocar
na anál ise do conceito de morte.
N essa tentativa, o autor formu la
por sua vez outras perg u ntas: seria a
teoria das pu lsões, e particu larmente o
conceito de pu lsão de morte, o (nd ice
de um irracional ismo em F reud? E ,
ao ro mper com a ordem natura l ,
disting u indo-se do insti nto, n§'o estaria
a pulsão co ndenada ao misterioso e

ao i nefável do puro acaso? Caberia


talvez advertir que, se a ep ígrafe i ni·
cial do l ivro, u ma citaç§'o de Além do
principio de prazer, convida o leitor a
u ma especu lação, ela em nada d i minu i
o respe ito pelos textos de F reud e o
rigor teórico com que este l ivro é
conduz ido.

Um dos po ntos mais i mportantes


deste l ivro é a concepção que e le
apresenta da d ist i nção entre pulsão
sexual e pu l são de morte, exposta no
cap (tu lo que tem por t ítu lo "O real e
a pulsão de morte" e deseiwo lvida nos
cap ítu los segu intes.

Apesar de ter como referência central


e constante os textos freudianos, o
autor não teme perco rrer outros
espaços do saber habitados por Spi­
noza, H egel, Kierkegaard, N ietzsche,
Deleuze e Lacan, além de revisitar as
concepções m íticas da Grécia antiga.

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