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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Museu Nacional
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social

Êxodos e refúgios.
Colombianos refúgiados no Sul e Sudeste do Brasil
Ángela Facundo Navia

Rio de Janeiro
2014
ÉXODOS E REFÚGIOS:
COLOMBIANOS REFÚGIADOS NO SUL E SUDESTE DO BRASIL

Ángela Facundo Navia

Tese de Doutorado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de
Doutor em Antropologia.
Orientadora: Adriana de Resende
Barreto Vianna

Rio de Janeiro
Abril de 2014

ii
ÉXODOS E REFÚGIOS:
COLOMBIANOS REFUGIADOS NO SUL E SUDESTE DO BRASIL
Ángela Facundo Navia
Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna

Tese de Doutorado submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em


Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Antropologia. Aprovada
por:

_________________________________________
Profª. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna, (orientadora)
PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

_________________________________________
Profª. Dra. Giralda Seyferth
PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

_________________________________________
Prof. Dr. Antonio Carlos de Souza Lima
PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

_________________________________________
Profª. Dra. Marcia Anita Sprandel
Senado Federal

_________________________________________
Profª. Dra. María Gabriela Lugones
Universidad Nacional de Córdoba

_________________________________________
Profª. Dra. Maria Barroso (Suplente)
PPGSA/IFCH/UFRJ

_________________________________________
Prof. Dr. John Cunha Comeford (Suplente)
PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

Rio de Janeiro
Abril de 2014

iii
Dedico essa tese à vida, as viagens e à memória
de Ana Mary Navia e José Gildardo Facundo

iv
FACUNDO NAVIA, Angela.
Êxodos e refúgios: colombianos refugiados no Sul e Sudeste do
Brasil/ Angela Facundo Navia. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu
Nacional/PPGAS, 2014.

xviii, 388 p.; 31 cm.


Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna.
Tese (doutorado) – UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social, 2014.
Referências Bibliográficas: pp. 359-369.
1. Refúgio de colombianos 2. Reassentamento 3. Administração de sujeitos
migrantes 4. Interpretação social do sofrimento. I. Vianna, Adriana de
Resende Barreto. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu
Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. III. Título.

v
RESUMO

Esta tese é o resultado de uma pesquisa sobre a figura contemporânea do refúgio no Brasil,
analisada por meio dos processos de refúgio de alguns nacionais colombianos. A tese
interroga as diferentes categorias de refúgio e seu processo de produção no contexto de
algumas cidades de três estados brasileiros (Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São
Paulo), assim como o substrato moral das relações que são tecidas no mundo institucional
do refúgio entre pessoas administradas e “agentes de Estado”. Essas relações são
consideradas como processos de formação de Estado nos quais não apenas é produzido um
sujeito refugiado, mas são criadas constantemente as fronteiras externas e internas do
Estado-nação. Para isso, a análise foca nas formas de governo e interpretação social dos
sofrimentos que permitem separar administrativamente a experiência dos sujeitos
refugiados daquela de outros sujeitos migrantes, assim como definir as formas e limites de
seus movimentos. Ao mesmo tempo, examina a exigência que é feita aos sujeitos para
oferecer narrações de si próprios, por meio de uma multiplicidade de formatos orais e
escritos, como sendo uma estratégia de produção de uma “verdade” sobre as pessoas
administradas e sobre a nação que as recebe. Finalmente, considera diferentes dimensões
da categoria tempo para analisar tanto os ritmos cotidianos das relações administrativas,
quanto os processos de longo prazo da pretendida integração de refugiados na sociedade
nacional brasileira.

Palavras-chave: Refúgio de colombianos, reassentamento, administração de sujeitos


migrantes, interpretação social do sofrimento.

vi
RESUMEN

Esta tesis es el resultado de una investigación sobre la figura contemporánea del refugio en
Brasil, analizada a través de las experiencias de algunos nacionales colombianos. La tesis
interroga las diferentes categorías de refugio y su proceso de producción en el contexto de
algunas ciudades de tres estados brasileros (Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul y São
Paulo), así como el sustrato moral de las relaciones que se tejen entre personas
administradas y una amplia gama de “agentes de Estado”. Esas relaciones son consideradas
como procesos de formación de Estado en los que no solamente se produce a un sujeto
refugiado sino que se crean constantemente las fronteras externas e internas de los Estados-
nación. Para ello, el análisis se centra en las formas de gobierno e interpretación social de
los sufrimientos que permiten separar administrativamente la experiencia de los sujetos
refugiados daquela de otros sujetos migrantes, así como definir las formas y límites de sus
movimientos. Al mismo tiempo, examina la exigencia hecha a los sujetos de narrarse a sí
mismos, por meio de una multiplicidad de formatos orales y escritos, como una estrategia
de producción de una “verdad” sobre las personas administradas y sobre la nación que las
recibe. Finalmente, aborda diferentes dimensiones interconectadas de la categoría tiempo
para analizar tanto los ritmos cotidianos de las relaciones administrativas, como los
procesos de largo alcance de la pretendida integración de refugiados en la sociedad
nacional brasilera.

Palabras clave: Refugio de colombianos, reasentamiento, administración de sujetos


migrantes, interpretación social del sufrimiento.

vii
ABSTRACT

This thesis is the result of a research about the contemporary figure of the refuge in Brazil,
analyzed through the experiences of some Colombian nationals. The thesis interrogates the
different categories of refuge and its production process in the context of some cities in
three Brazilian states (Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul and São Paulo) together with the
moral substrate of the relationships woven between administrated people and a wide range
of “State agents ". These relationships are considered State formation processes in which a
refugee subject is not only produced but there is also a constantly external and internal
creation of borders in nation states. For this, the analysis focuses on the forms of
government and social interpretation of suffering that administratively allows separating
the experience of individual refugees from other migrants, and defines the forms and limits
of their movements. At the same time, it examines the demand made to the participants to
narrate themselves, through a multiplicity of oral and written formats, as a strategy of
producing "truth" about the administrated people and about the nation to receive them.
Finally, it addresses different interconnected dimensions of time category to analyze both,
the daily rhythms of administrative relations, and furthermore the long-term processes of
the intended integration of refugees into the Brazilian national society.

Key words: Colombians refuge, resettlement, migrant subject’s administration, social


interpretation of suffering.

viii
Agradecimentos

Às pessoas que aceitaram falar e se encontrar comigo, receber-me nas suas casas e
pacientemente entender o que eu pretendia com a minha pesquisa. Agradeço seu tempo,
sua disposição e, sobretudo, agradeço por me deixarem indagar sobre suas vidas, mesmo
sem a certeza do que iria se desencadear com essa nova narração das suas experiências.
Obrigada pelas reflexões que me ajudaram a elaborar, pelos contatos que me propiciaram a
realização de mais entrevistas, o interesse em que meu trabalho desse certo e, claro, por
terem compartilhado comigo suas reservas de café colombiano, chocorramo e outras
delícias.
Sou muito grata a Luis, meu companheiro e esposo, pela luz destes anos felizes.
Sua companhia, sua paciência, seu amor e seus cuidados fizeram dos meus planos um
projeto conjunto em que eu aprendi a ver outras formas do mundo e outros mundos. Graças
a ele os dias de escrita (e os dias em geral) tiveram mais risos, mais músicas e mais horas
de serenidade. Também agradeço a escuta e leitura atentas de longos trechos da tese, a
ajuda na busca de documentos e as conversas nas que cada dia uma aventura começa.
A Helena, minha irmã de sangue, de vida e de memória, devo agradecer por ter
vindo ao mundo antes de mim para fazê-lo melhor e mais fácil de viver. Sua cumplicidade
com todos os meus planos, inclusive aqueles com os quais ela discorda, tem sido uma força
vital para empreender caminhos, para conseguir terminá-los e para saber que existe um
lugar aonde posso voltar. A ela também agradeço o suporte material durante esses anos de
doutorado e extranjería. Também sou grata a José María, meu cunhado, pelo apoio e
solidariedade incondicionais e pelos bons momentos compartilhados com ele, que tornam
mais leves os fardos da vida.
A Adriana Vianna, minha orientadora, sou muito grata por ter tornado possível essa
tese; o alento e o interesse por minha pesquisa, o tempo atento, as observações sempre
agudas e pertinentes, a escuta cuidadosa e respeitosa e o fascínio compartilhado pelo não
evidente; pelos silêncios e as ausências. Graças às longas e divertidas sessões de orientação
consegui encarar o tempo de escrita, com todas suas cargas, de uma forma tranquila e
alegre. Neste texto, em que as faltas são somente minhas, a presença de Adriana sulca as
linhas, as reflexões, as críticas e os afetos.
Agradeço a Antonio Carlos de Souza Lima pela agudeza de suas reflexões, o
interesse pelos meus temas de pesquisa e as diferentes formas com as quais alentou minha

ix
presença no PPGAS e no Brasil. O ânimo com que Antonio convida a desnaturalizar e
repolitizar o mundo foi uma permanente motivação para meu trabalho. Sou grata a Giralda
Seyferth pelas valiosas contribuições nos seus cursos e publicações e também durante a
troca pessoal de ideias. A ambos, como membros da banca do Exame de Qualificação,
obrigada pela leitura atenta, as sugestões bibliográficas e, muito especialmente, pelo fato
de terem me estimulado a aprofundar nas críticas sobre o Estado brasileiro, num
movimento que eu considerei de intenso valor intelectual e político e uma agradável forma
de desfazer as fronteiras da minha condição de estrangeira.
Agradeço também a todas as outras professoras que aceitaram integrar junto com
eles a banca da minha defesa de tese. A María Gabriela Lugones, com quem sempre é
inspirador compartilhar ideias, reflexões, histórias e detalhes. Minha tese se beneficiou de
sua capacidade de análise e de sua agudeza na descrição. A Márcia Sprandel, cuja
disposição e cujo compromisso crítico me permitiram entrar em múltiplos espaços durante
minha pesquisa de campo. A sua capacidade de articular temas e universos e a tarefa de
iluminar lugares sombrios beneficiaram esta e mais outras teses. A Maria Barroso que me
permitiu aprender com ela durante o estágio docente. A criatividade com que ela aborda os
temas de pesquisa, sua imensa capacidade pedagógica e seu respeito pela forma de
construir conhecimento foram também muito inspiradores para este texto e para minha
formação. Ao professor John Cunha Comerford, além de aceitar integrar a banca, agradeço
pelas estimulantes e pertinentes reflexões nos seus textos, cursos e atividades acadêmicas
no PPGAS.
Devo, além disso, toda minha gratidão a cada uma e cada uma das professoras e dos
professores do PPGAS/Museu Nacional com quem também tive a sorte de assistir a cursos
e trocar ideias: Moacir Palmeira, João Pacheco de Oliveira, Olivia Gomes da Cunha, Luiz
Fernando Dias Duarte, Renata Menezes e Federico Neiburg. Também agradeço a Mariza
Peirano pelo instigante curso sobre Antropologia do Poder que ministrou conjuntamente
com Moacir Palmeira.
Meus agradecimentos, por todo o apoio e boa disposição que tornaram mais fáceis
os assuntos burocráticos e muito mais amável a estadia no programa, a Adriana Valcarce
de Alcantara, Carla Cristina Jones Cardoso, Anderson Arnaud Simões, Afonso Santoro,
Bernardo Carvalho, Marcelo da Silva Maciel, Rita de Souza Santos Saraiva e, mesmo não
estando mais no programa, Izabele Gomes. Da mesma maneira, devo meus agradecimentos
às funcionárias da biblioteca que facilitaram enormemente meu trabalho de pesquisa e de

x
escrita: Fernanda Ribeiro Alves, Márcio Nunes de Miranda, muito especialmente Carla de
Freitas e, mesmo não estando mais no programa, Alessandra Orrico. Também agradeço ao
programa PEC-PG e à CAPES pela bolsa para a realização do doutorado e ao PPGAS
/Museu Nacional pelos auxílios de pesquisa que permitiram o desenvolvimento da
pesquisa de campo.
Esta tese, como resultado de pesquisa, foi possível graças aos encontros com as
pessoas que trabalham no universo institucional brasileiro do refúgio. A elas agradeço por
terem me recebido, pelas informações que me ofereceram sobre os programas de refúgio e
as reflexões que aceitaram realizar durante nossos encontros. Dos múltiplos espaços
visitados e da importante quantidade de encontros, devo agradecer especialmente, pela sua
disposição e entusiasmo com o meu trabalho, à Irmã Rosita Milesi, Aline Passuelo e
Marcelo Haydu. Agradeço também a Juliana Arantes Dominguez e Carolina Moulin por
terem aceitado se reunir comigo, esclarecer minhas dúvidas sobre o refúgio e compartilhar
suas reflexões acadêmicas a esse respeito.
O encontro, durante a pesquisa de campo, com Sonia Hamid foi um oásis pelo seu
ânimo crítico, seu entusiasmo com nossas pesquisas, seu apoio durante a escrita e a sua
generosidade com as informações que me ajudaram a navegar na pesquisa. Em cada cidade
houve outros encontros decisivos para o desenvolvimento material da investigação;
agradeço por eles a Marco Martínez, Patricia Villen, Carolina Caffé, David Hernández,
Tomás Guzmán e muito especialmente a meu irmão da vida Marco Tobón Ocampo a
quem, além disso, sou grata por todos esses anos de amizade e de camaradagem. Sou
profundamente grata a minha amiga Leonor Solano por toda a sua ajuda, tempo, carinho e
cuidados durante minha pesquisa de campo. Agradeço também a C’ayu Hernández por sua
agudeza nas reflexões sobre o mundo, pela força com a qual as compartilhou comigo e pela
sua rebeldia.
Obrigada a todas as companheiras e companheiros do PPGAS que conheci durante
o doutorado pela presença e pelos aprendizados. Muito obrigada especialmente a todos
aqueles que me acompanharam de perto durante o processo da elaboração da tese e,
sobretudo, aos que me ajudaram a fugir por momentos: sou muito grata a minha amiga Rita
Santos por todo seu apoio; foram também muito importantes para mim a companhia e as
reuniões de discussão com Marine Corde, María Rossi, Katiane Silva e Marta Antunes. A
todas elas e a Ricardo Palacio e C. Veloso Jr. um imenso agradecimento pelos encontros
maravilhosos de dança, música, licores e sabores. Obrigada a Raquel Sant’Ana pela sua

xi
alegria e permanente presença. Agradeço também as trocas acadêmicas e cotidianas com
Sandra Arenas, Carla Semedo, Andrés Góngora, Rodica Weitzman, Eleana Catacora,
Natalia Quiceno, Juliana Farias e a amizade de Paulo Victor Leite Lopes que me ensinou
que “tamo junto nessa”. Agradeço a Pablo Antunha Barbosa, Leticia Ferreira e Laura
Lowenkron pelos valiosos contatos para a pesquisa e a Andréia Resende pelo apoio e
solidariedade com a tese nos seus momentos finais. Agradeço também a Milena Morais
pela revisão da versão em português da tese.
Outras pessoas e encontros foram igualmente fundamentais para a realização da
tese e para a alegria e bem-estar da vida; agradeço a Jenny Fonseca pelos domingos de
mar, paz e conversa sobre os mais diversos temas; a Johanna Salazar pela amizade, a
inteligência e a força vital; a Antonia Góngora Salazar pela alegria e a esperança que traz
com a sua presença; a Johanna Pardo e Daniel Rodrigues Fortes pela solidariedade e
carinho permanentes; a Fidel Pardo Rodrigues Fortes pela alegria imensa de sua existência;
a Aruã Silva Vargas pela sua curiosidade com o mundo; a Sergio Quintero, Juan Sierra
Tapiro, Catalina Revollo, Javier Rodriguez e Ivonne Cáceres (a quem agradeço pela
lembrança do desexílio) pelos aprendizados e as lutas compartilhadas; a Héctor, Stella,
Mauricio e Élen pela confiança e carinho.
Agradeço a Aracelly Navia por todo seu amor e seus cuidados que mantém viva a
Mary; todo meu amor para ela e para Diana Milena, Rosa Fernanda e Santiago. Minha
gratidão também com as pessoas que, desde as lonjuras, conservam comigo trocas
intelectuais e vitais e um espaço para mim nas suas vidas: Sarah Mazouz, Angélica
Ramírez, Doris Ochoa, Mario Hernández, Marta Zambrano, Clara Inés Pérez, Laura
Acebedo, José Maria Papá e, por último, mas não com menos carinho agradeço a Mara
Viveros e Franklin Gil Hernández.

xii
LISTA DE TABELAS, DIAGRAMAS E IMAGENS

Tabela 1 Principais países receptores de refugiados colombianos p.20


Tabela 2 Recepção de refugiados colombianos no Brasil e no Equador p.20

Diagrama 1 Estrutura do Conare p.52


Diagrama 2 Inicio do processo de solicitação de refúgio p.116
Diagrama 3 Continuação do processo de solicitação de refúgio p.117
Diagrama 4 Fim do processo de solicitação de refúgio p.132
Diagrama 5 Processo de reassentamento p.146

Imagem 1 Publicidade de seminário p.81


Imagem 2 Deslocamento noticiado p.110
Imagem 3 Centro de Acolhida para Refugiados p.132

Quadro 1 Ressumo da Lei n° 9.474/97 p.114


Quadro 2 Trechos de entrevistas com advogadas p.189

Ilustração 1 Termo de declaração p.205


Ilustração 2 Questionário de solicitação de refúgio p.207

xiii
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ACNUR: Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados

ACT: Acordo de Cooperação Técnica

ADRB: Asociación de Residentes Bolivianos

ADUS: Instituto para a Reintegração do Refugiado – São Paulo

ASAV: Associação Antonio Vieira – POA

CARJ: Cáritas Arquidiocesana de Rio de Janeiro

CARSP: Cáritas Arquidiocesana de São Paulo

CDDH: Centro de Cidadania e Direitos Humanos – Guarulhos

CNBB: Conferência Nacional dos Bispos de Brasil

CNIg: Conselho Nacional de Imigração – Brasil

CODHES: Consultoría para los Derechos Humanos y el desplazamiento – Colômbia

CONARE: Comitê Nacional para os Refugiados – Brasil

CPF: Código de Pessoa Física – Brasil

DELEMIG: Delegacia de Policia de Imigração – Brasil

DF: Distrito Federal – Brasília

DPF: Departamento de Polícia Federal – Brasil

GEP: Grupo de Estudos Prévios (do Conare).

HIAS: Organización Hebrea de Ayuda a Inmigrantes y Refugiados

IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IPEA: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Brasil

IMDH: Instituto de Migração e Direitos Humanos – Brasília

INEC: Instituto Nacional de Estadística y Censos – Equador

MERCOSUL: Mercado Comum do Sul

MJ: Ministério da Justiça – Brasil

xiv
MEC: Ministério da Educação – Brasil

MRE: Ministério das Relações Exteriores – Brasil

MS: Ministério de Saúde – Brasil

MTE: Ministério do Trabalho e Emprego – Brasil

OAB: Ordem dos Advogados do Brasil

ONU: Organização das Nações Unidas

PF: Policia Federal

PNUD: Programa das Nações Unidas Para o Desenvolvimento

SENAC: Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – Brasil

SENAI: Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – Brasil

SESC: Serviço Social do Comercio – Brasil

SUS: Serviço Universal de Saúde – Brasil

UNRWA: United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees.

xv
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ______________________________________________________________ 1
Interrogando o refúgio brasileiro por meio dos refugiados colombianos _________________ 1
Condições da pesquisa ________________________________________________________ 9
A organização do texto ______________________________________________________ 15

PRIMERA PARTE: O universo institucional do refúgio _____________________________ 19


1. Primeiro Capítulo Um problema que não dê problema ___________________________ 19
1.1. United Nations City __________________________________________________ 33
1.2. Um episódio disruptivo: um problema ____________________________________ 38
2. Segundo Capítulo Institucionalização contemporânea do refúgio __________________ 50
2.1. A forma triádica _____________________________________________________ 63
2.1.1. A tríade em seus agentes localizados _________________________________ 77

2.2. Eixo Sul-Sudeste ____________________________________________________ 83


2.3. Os outros da “sociedade civil” __________________________________________ 86

SEGUNDA PARTE. Processos, interações e locais de fixação_________________________ 94


3. Terceiro capítulo As guerras e os refúgios, o político e o humanitário _______________ 94
4. Quarto capítulo Os processos _____________________________________________ 112
4.1. Refúgio por elegibilidade _____________________________________________ 112
4.1.1. Segundo a lei __________________________________________________ 112

4.1.2. As formas de (inter)ação: “o processo” segundo os agentes do refúgio, os


solicitantes e os refugiados _______________________________________________ 115

4.1.3. “O processo” no espaço: os postos administrativos _____________________ 132

4.1.4. O final do processo? _____________________________________________ 138

4.2. Refúgio por Reassentamento __________________________________________ 143


4.2.1. Escolher e transferir: a salvação das vidas ____________________________ 143

4.2.2. Uma oferta secreta e os contornos do desejo __________________________ 153

4.2.3. O perfil dos candidatos desejados e os processos paralelos/soberanos ______ 166

xvi
TERCEIRA PARTE. Narrações, silêncios e segredos _______________________________ 177
5. Quinto Capítulo Regimes narrativos exaustivos e a verdade do sujeito na “história” __ 177
5.1. Verificar, singularizar, legitimar: um temor fundado, uma história detalhada, uma
solução adequada _________________________________________________________ 182
5.2. A verdade em um sofrimento e a mentira migrante _________________________ 194
6. Sexto capítulo Começando a tradução: a entrada oficial por meio da Polícia Federal __ 204
7. Sétimo Capítulo
Cavar no sujeito, verificar o objeto e estabelecer um nexo: “a entrevista” ___________ 228
7.1. O sujeito, a história e as provas ________________________________________ 228
7.2. Interpretações objetivas: a fuga da emoção e a marca da razão ________________ 241
7.3. O improvável, o inaudível, o inenarrável _________________________________ 248
7.4. A propriedade privada do segredo e a oralidade do Estado brasileiro ___________ 263

QUARTA PARTE. O tempo: a integração ou o retorno da vida _______________________ 270


8. Oitavo capítulo Ritmos e tempos do refúgio __________________________________ 270
8.1. Demorando muito, recebendo pouco: o quanto sempre defasado com o quando __ 272
8.2. As rupturas: um presente contingente ___________________________________ 284
8.3. Quanto tempo passou: o tempo que demonstra e o tempo que transforma _______ 296
9. Nono capítulo A integração e as fronteiras do Estado-nação _____________________ 311
9.1. Uma solução duradoura, um esforço pedagógico cotidiano ___________________ 314
9.2. Como quais brasileiros? ______________________________________________ 321
9.3. O tempo da descendência, o tempo da integração __________________________ 338
9.4. Uma morte lenta e algumas formas de subverter a mensagem da salvação _______ 341

COSIDERAÇÕES FINAIS ___________________________________________________ 350


Da intimidade do exílio ao anonimato do refúgio _________________________________ 350
A trajetória por meio dos territórios do refúgio ___________________________________ 354

BIBLIOGRAFIA ___________________________________________________________ 359


ANEXO 1: Algumas das pessoas contatadas para a pesquisa._________________________ 370
ANEXO 2: Atividades pesquisadas durante o período de pesquisa de campo ____________ 374
ANEXO 3. Programas e reportagens sobre refúgio _________________________________ 376
ANEXO 4. Nota programa de Reassentamento Solidário I ___________________________ 381
ANEXO 5: Nota programa de Reassentamento Solidário II __________________________ 384
ANEXO 6. Renda e redes das pessoas contatadas durante a pesquisa ___________________ 387

xvii
Epígrafe

Así como la patria no es una bandera ni un himno, sino la suma aproximada de nuestras
infancias, nuestros cielos, nuestros amigos, nuestros maestros, nuestros amores, nuestras calles,
nuestras cocinas, nuestras canciones, nuestros libros, nuestro lenguaje y nuestro sol, así también el
país (y sobre todo el pueblo) que nos acoge nos va contagiando fervores, odios, hábitos, palabras,
gestos, paisajes, tradiciones, rebeldías, y llega un momento (más aún si el exilio se prolonga) en
que nos convertimos en un modesto empalme de culturas, de presencias, de sueños. Junto con una
concreta esperanza de regreso, junto con la sensación inequívoca de que la vieja nostalgia se hace
noción de patria, puede que vislumbremos que el sitio será ocupado por la contranostalgia, o sea, la
nostalgia de lo que hoy tenemos y vamos a dejar: la curiosa nostalgia del exilio en plena patria.
Y si no debemos sentirnos culpables por todo lo que recordamos y trajimos con nosotros,
así fueran miedos, decepciones, frustraciones, derrota, tampoco debemos avergonzarnos de los
recuerdos que hoy estamos construyendo, y que si un día o una noche nos vamos, integrarán
nuestra mochila. Aunque se llamen soledades, consuelo, incomprensión, solidaridad, amagos de
xenofobia y otros esperpentos y disfrutes. No hay que desperdiciar ni malograr las ocasiones de
entender el mundo, esa sublime madriguera (BENEDETTI, 1985, p. 41).

xviii
INTRODUÇÃO

Interrogando o refúgio brasileiro por meio dos refugiados colombianos

Esta tese é o resultado de uma pesquisa sobre a figura contemporânea do refúgio no Brasil,
analisada por meio dos processos de refúgio de alguns nacionais colombianos. A tese
interroga as diferentes categorias de refúgio e seu processo de produção no contexto de
algumas cidades de três estados brasileiros (Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São
Paulo), assim como o substrato moral das relações que são tecidas e produzidas no mundo
institucional do refúgio entre pessoas administradas, diferentes agentes de governo,
funcionários de organizações não governamentais, delegados de agências internacionais e
“agentes de integração” nas comunidades locais. Tudo isso interrogando também de que
forma o processo existencial do exílio afeta e é afetado pelo processo jurídico-
administrativo por meio do qual algumas pessoas, cujas vidas têm sido marcadas pelo
êxodo, tornam-se refugiadas.

Na pesquisa, privilegiei a análise dos diferentes tipos de encontros entre nacionais


colombianos e uma multiplicidade de agentes de Estado. Encontros esses que são
mediados por relações diferenciadas de poder e de autoridade, em um campo de
governança que produz sujeitos refugiados e os diferencia de outros sujeitos migrantes. A
partir da pesquisa, sugiro que parte da gestão e da produção de refugiados requer da
mobilização de imagens, representações e explicações a respeito das pessoas que se
encontram em diferentes tipos de situações migratórias e sobre as características,
presumidas ou atribuídas, às sociedades nacionais e aos princípios e tradições dos Estados-
nação envolvidos nessa circulação e fixação de pessoas nos territórios.

Com esses elementos em mente, no curso da pesquisa de campo, a pergunta de


investigação também foi se orientando para as tecnologias de governo e os formatos de
ação e de gestão que permitem que um imenso drama de deslocamento forçado na
Colômbia – relacionado com um intenso e antigo conflito social e armado que, há anos,
desbordou suas fronteiras geopolíticas – se transforme no Brasil em um número reduzido e

1
supostamente bem administrado de sujeitos (indivíduos e famílias) refugiados 1. Sujeitos
sobre os quais, além disso, se constrói uma imagem bem-sucedida do refúgio que, por sua
vez, ajuda a reforçar a imagem internacional do Estado-nação brasileiro como uma unidade
caracterizada por seu espírito acolhedor, humanitário e solidário (RADHAY, 2006).

A política brasileira do refúgio e suas ações a respeito têm sido elogiadas pelo Acnur em
várias oportunidades nos anos 2000, e diferentes agentes de governo, vinculados com
assuntos migratórios, apontam, reiteradamente em atos públicos, o caráter exemplar da
legislação em matéria de proteção aos refugiados. Essa apresentação costuma ir para além
do elogio às políticas de governo, incluindo a caracterização, tanto do Estado quanto da
nação brasileira, de um passado e um presente definidos pela proteção de refugiados e a
abertura para os migrantes. O passado é apresentado como um histórico de migração bem
recebida que teria engrandecido a nação e lhe teria imprimido um caráter multicultural e
uma tendência entusiasta à recepção dos estrangeiros. O presente é mostrado como uma
vanguarda protecionista consignada na legislação sobre refúgio cujo caráter humanitário
contrastaria com as legislações, cada vez mais restritas, das potências mundiais que
tradicionalmente têm sido o destino de importantes contingentes de pessoas em procura de
refúgio e que, atualmente, estariam marcadas pelos interesses da segurança nacional e o
fechamento de suas fronteiras.

Apesar dessa proclamada abertura, não há uma quantidade significativa de refugiados no


Brasil e, ao contrário do que acontece nos países vizinhos da região como Equador e
Venezuela, o “problema dos refugiados colombianos” é, na realidade, um “não problema”.
A quantidade de refugiados recebidos não parece representar um desafio para as
comunidades locais. A experiência de reassentamento de colombianos é avaliada de
maneira positiva e tem representado elogios para o governo brasileiro. Os colombianos são

1
As cifras de pessoas refugiadas em território brasileiro representam um percentual muito baixo no nível
mundial. Se levarmos em conta a cifra de 10,5 milhões de refugiados no mundo, que publicou o Acnur para o
período compreendido entre 2011 e 2012 (Acnur, 2012), o Brasil teria somente o 0,04% do total de
refugiados no mundo. Isso levando em conta que, segundo cifras oferecidas pelo Conare, para março de
2013, havia no Brasil 4.262 refugiados reconhecidos. A relação a respeito dos refugiados colombianos não é
melhor, dos quase 400.000 refugiados colombianos reconhecidos no mundo, o Brasil tem recebido menos de
700. Isso quer dizer que o Brasil tem recebido ao 0,19% dos refugiados colombianos no mundo. Enquanto
que Equador e Costa Rica têm recebido respectivamente perto de 55.000 e 17.000, o que quer dizer que
somente o Equador tem reconhecido perto de 15% dos refugiados colombianos, sem contar aqueles que se
encontram em processo de reconhecimento ou que têm ingressado ao território sem ativar nenhum dos
programas de proteção. Na primeira parte da tese, apresenta-se uma discussão detalhada sobre esses números.

2
apresentados como facilmente “integráveis” pela sua “proximidade cultural”, e os casos
não exitosos de integração são avaliados como exceções dessa norma. Porém, as interações
cotidianas de solicitantes de refúgio e refugiados com os agentes de Estado sugerem que
existe uma defasagem entre essas imagens e a situação concreta das pessoas que são
produzidas como refugiadas. Em contraste com a visão positivada do refúgio que
apresentam os primeiros, as pessoas administradas se referiram constantemente a situações
caracterizadas pela precarização, pelo desamparo e pelo desespero. Emoções que não
estiveram relacionadas necessariamente com os eventos que lhes fizeram sair de seu país
de origem, mas especialmente com a difícil gestão de sua situação jurídico-administrativa e
de sua reconstrução vital no território brasileiro.

Procurando aprofundar nessas leituras diferenciadas dos processos de refúgio, deparei-me


com que elas foram se mostrando relacionadas – e, por vezes, justificadas – com uma
contradição aparente entre uma ação humanitária sobre vítimas sofrentes que privilegiaria
o alívio da dor dessas pessoas e uma razão de segurança nacional que se lhe oporia,
subordinando as ações tendentes à sua proteção à necessidade de resguardar a integridade e
as fronteiras de um Estado imaginado como nacional. Contudo, mais do que interrogar
como verdadeira ou falsa essa oposição, me interessou indagar os próprios limites do
humanitário como uma ação de governo de populações que inclui nela mesma um cálculo
de contenção e uma necessidade de diferenciação entre as dores dignas de serem
transformadas na figura de refúgio – que, como oferta de salvação da vida, adquire um
caráter sagrado – e as dores profanas que não justificariam a transformação do sofrimento
em um novo pertencimento à ordem ordenante da nação.

Para fazer aquilo, detive-me em diferentes lugares e encontros administrativos do universo


institucional brasileiro do refúgio. Os espaços de gestão nos quais foi baseada esta pesquisa
fazem parte de duas formas diferenciadas de refúgio geridas pelo governo brasileiro
conjuntamente com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – Acnur.
Trata-se do Refúgio por Elegibilidade e do programa de Reassentamento Solidário. Os
dois têm como base comum o marco legislativo internacional de “proteção aos refugiados”
estabelecido por acordos e convenções regulados pela Organização das Nações Unidas
(ONU), mas seu caráter, sua definição e sua implementação comportam significativas
diferenças, como será exposto ao longo da tese.

3
A existência legal do atual marco normativo do Refúgio por Elegibilidade remonta-se ao
ano 1951, quando foi aprovada a declaração conhecida no campo do refúgio como A
Convenção de Genebra. Conjuntamente como a Convenção de 1951, que finalmente
entrou a vigorar em 19542, outra ferramenta internacional é importante para entender os
mecanismos atuais de “proteção aos refugiados”. Trata-se do “Protocolo de 1967, Relativo
ao Estatuto dos Refugiados”, por meio do qual foram eliminadas as restrições temporais e
geográficas que tinham sido estabelecidas na Convenção de 1951. Até então, o refúgio
como categoria jurídica era pensado como uma ferramenta para o atendimento das pessoas
perseguidas antes do 1º de janeiro de 1951, no contexto europeu de guerra e pós-guerra.

As autoridades do governo brasileiro ratificaram a Convenção de 1951 em novembro de


1960 e, 12 anos depois, em abril de 1972, aderiram ao Protocolo de 1967, levantando as
restrições em matéria geográfica e temporal. As políticas migratórias brasileiras durante a
época da pós-guerra têm sido abordadas por alguns autores (SEYFERTH, 2002),
apontando uma preferência nacional pela eleição de certos grupos migratórios,
estabelecendo filtros para a recepção, inclusive no caso daqueles cuja migração se
enquadrava na legislação internacional sobre refugiados e apátridas. Apesar da importância
de esse histórico, esta tese se concentra nas políticas contemporâneas de refúgio que, no
Brasil, estão definidas pela Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997 e pela posterior
implementação de outros programas de proteção.

Mediante essa lei – e graças a uma ampla mobilização de diferentes setores sociais
envolvidos com os assuntos migratórios – mais de 20 anos depois de haver aderido à
Convenção de 1951 e ao Protocolo de 1967, o Estado brasileiro definiu e regulamentou os
mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951. Dessa maneira,
estabeleceu-se um marco jurídico-administrativo segundo o qual:

Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:

2
A Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados abre sua apresentação com a seguinte informação: “Adotada
em Genebra, Suíça, no dia 28 de julho de 1951, pela Conferência de Plenipotenciários sobre o Estatuto dos
Refugiados e dos Apátridas (Nações Unidas), convocada pela Assembleia Geral em sua resolução 429 (V),
de 14 de dezembro de 1950. Entra a vigorar: 22 de abril de 1954, de conformidade com o artigo 43, Série
Tratados das Nações Unidas, Nº 2545, Vol. 189, p. 137”.

4
I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião,
nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de
nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;
II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência
habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias
descritas no inciso anterior;
III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a
deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país. (Lei nº 9.474,
de 22 de julho de 1997, Título I, Capítulo I, Secção I, Artigo 1º, Incisos I, II e
III)

Esse último inciso (inciso terceiro) que foi incluso na lei brasileira de refúgio e que faz
alusão a uma situação de “grave e generalizada violação dos direitos humanos” obedece à
adoção dos princípios formulados em 1969 pela Organização Para a União Africana (Atual
União Africana) e sua inclusão na Declaração de Cartagena3. Declaração que foi o
resultado, em forma de conclusões e recomendações, do “Colóquio sobre proteção
internacional dos refugiados na América Central, México e Panamá” realizado na cidade
colombiana de Cartagena de Índias em 1984. Esse instrumento, discutido e reformulado na
América Latina na década de 1980, é muito sugestivo na história do campo do refúgio,
pois marca um momento importante na discussão sobre o tema perante o panorama
regional de conflitos armados, reemergência de exércitos para estatais e ditaduras ativas ou
recém-terminadas que exigiram a reconfiguração dos marcos de ação a propósito dos
deslocamentos maciços de pessoas e das novas ordenações nacionais e continentais de
violência e desterro.

Para aquela época, a Declaração de Cartagena foi apresentada como uma resposta à
situação centro-americana na qual o número de pessoas com necessidade de proteção
aumentava por conta da situação sociopolítica da região. Tratava-se de pessoas não
necessariamente perseguidas a título individual, mas que eram obrigadas a fugir de seus
locais habituais de moradia como consequência dos conflitos armados. Posteriormente,
esse motivo para o refúgio foi frequentemente ativado para avaliar a situação de
deslocamento maciço na Colômbia, não somente nos processos de reconhecimento

3
Segundo a mencionada declaração: “[…] A definição do conceito de refugiado recomendada para sua
utilização na região é aquela que, além de conter os elementos da Convenção de 1951 e do Protocolo de
1967, considere também como refugiados às pessoas que hajam fugido de seus países porque sua vida,
segurança ou liberdade hajam sido ameaçadas pela violência generalizada, agressão estrangeira, conflitos
internos, violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstancias que hajam perturbado gravemente a
ordem pública” (Terceira conclusão da Declaração de Cartagena).

5
jurídico-administrativo de pessoas como refugiados internos (deslocados) mas também no
seu reconhecimento como refugiados em outros países.

Precisamente, foram as impactantes dimensões do drama do deslocamento forçado na


Colômbia que lhe serviram de base à proposta de alguns governos da região – entre eles, o
brasileiro – para implementar, conjuntamente com o Acnur, o segundo programa de
proteção do qual se ocupa esta tese. Trata-se do programa de Reassentamento Solidário
que, na sua versão latino-americana, é incorporado por meio da “Declaração e Plano de
Ação do México para fortalecer a proteção internacional dos refugiados na América
Latina”4. Nesses instrumentos, salienta-se a situação dos refugiados colombianos como o
cenário mais problemático da região para esse momento, e foi proposta a opção do
reassentamento como uma das três soluções duradouras, depois das prioritárias
“repatriação voluntária” e “integração local no primeiro país de origem”. Basicamente,
trata-se de oferecer às pessoas, previamente reconhecidas como refugiadas por algum
Estado-nação, e sem integração exitosa nele, a possibilidade de se estabelecer em outro
país.

Ao longo do texto da Declaração e Plano de Ação do México, é realizado um constante


elogio e um reiterado chamado à “solidariedade internacional” e à “responsabilidade
compartilhada” nos casos de “crises humanitárias”. Em outros documentos internacionais
sobre refúgio5, esse chamado havia sido feito em termos de procurar a cessação das causas
que originavam o deslocamento forçado dentro dos países expulsores. Porém, nesse caso, o
chamado à solidariedade foi enunciado como a necessidade de adiantar ações conjuntas
para atender a crise originada pelos refugiados colombianos nos países fronteiriços,
invocando mais o espírito de uma das conclusões feitas na Declaração de Cartagena,
segundo a qual se deve:

Ratificar a natureza pacífica, apolítica e exclusivamente humanitária da


concessão de asilo ou do reconhecimento da condição de refugiado e sublinhar a
importância do princípio internacionalmente aceite segundo o qual nada poderá

4
Essa declaração é adotada pelo Acnur e por alguns países signatários, durante a reunião comemorativa do
vigésimo aniversário da Declaração de Cartagena, realizada em Cidade do México, nos dias 15 e 16 de
novembro de 2004.
5
Ver, por exemplo, a Declaração de San José Sobre Refugiados e Pessoas Deslocadas, que em sua oitava
conclusão diz: “Reiterar la responsabilidad de los Estados de erradicar, con apoyo de la Comunidad
Internacional, las causas que originan el éxodo forzado de personas y, de esa manera, limitar la extensión de
la condición de refugiado, más allá de lo necesario”.

6
ser interpretado como um ato inamistoso contra o país de origem dos refugiados
(Declaração de Cartagena, III, conclusão quarta).

Esses princípios expressados em termos de comportamento humanitário e caráter apolítico


da concessão de refúgio, nos quais é privilegiada a ajuda solidária para com os países
vizinhos dos países expulsores, serão importantes elementos na orientação do programa de
Reassentamento Solidário no Brasil. O foco com essa orientação não está nos problemas
que originam o êxodo das populações, mas é assumido que as populações em êxodo são o
problema que tem de ser resolvido.

Para a época da promulgação do Plano de Ação do México, o Brasil já tinha assinado (em
1999) um acordo com o Acnur para o reassentamento de refugiados. De fato, a Lei nº
9.474/97, no artigo 46, já previa o reassentamento e, além disso, já se tinham duas
experiências a respeito. No ano 2002, chegou o primeiro grupo a ser reassentado, composto
por 23 refugiados afegãos provenientes da Índia e do Iran e, em setembro de 2003,
chegaram 16 refugiados colombianos provenientes da Costa Rica e do Equador
(MOREIRA, 2012; SAMPAIO, 2006). Contudo, foi na reunião que deu origem ao Plano
de Ação do México, quando o governo brasileiro propôs estabelecer, no seu território, “um
programa de reassentamento regional para refugiados latino-americanos, marcado pelos
princípios de solidariedade internacional e responsabilidade compartilhada” (Plano de
Ação do México, Capítulo 3, N° 3). Desde então, o programa de Reassentamento Solidário
no Brasil estaria basicamente orientado para a recepção de refugiados colombianos, e a
única exceção até o momento foi o reassentamento de um grupo de refugiados de origem
palestina que chegou em 2007 (HAMID, 2012).

Com a promulgação da Lei nº 9.474/97, e como parte dos mecanismos para implementar
no Brasil o Estatuto dos Refugiados, foi criado o Comitê Nacional para os Refugiados
(Conare). Esse Comitê foi definido como um “órgão de deliberação coletiva no âmbito do
Ministério da Justiça” e é o encarregado de “analisar o pedido e declarar o reconhecimento,
em primeira instância, da condição de refugiado” (Lei nº 9.474/97, Artigo 12, Inciso I). No
caso do refúgio por elegibilidade, foi estabelecido um convênio com as Cáritas
arquidiocesanas de São Paulo e do Rio de Janeiro para seu gerenciamento. No caso do
programa de Reassentamento Solidário, outras organizações não governamentais (ONGs)
estabeleceram convênios com o Acnur e com o Ministério da Justiça para serem
implementadoras e administradoras do programa. Na cidade de Porto Alegre, encontra-se a

7
Associação Antonio Vieira (Asav) e, em Guarulhos, o Centro de Defesa dos Direitos
Humanos (CDDH). Somente esses estados (Rio Grande do Sul e São Paulo) têm
programas ativos de reassentamento, e são as duas ONGs mencionadas as encarregadas de
acompanhar e assessorar o processo de “integração” dos refugiados nas comunidades
locais6.

Além da manutenção permanente dessas formas de refúgio, os agentes governamentais, os


delegados para Brasil de agências internacionais e a chamada “Sociedade Civil
organizada”, vinculada com assuntos relativos à migração, tem participado e organizado,
nos últimos anos, diversas atividades ao respeito da migração e do refúgio, liderando, por
exemplo, no ano 2010, uma reunião comemorativa do 60º (sexagésimo) aniversário do
Acnur da qual resultou a Declaração de Brasília. Esse documento é apresentado pelo
Acnur e pelas autoridades do governo brasileiro como uma contribuição regional na
ratificação dos mecanismos de proteção aos refugiados e apátridas.

Atualmente, adiantam-se preparativos para a comemoração em 2014 dos 30 anos da


Declaração de Cartagena. Além disso, estão se desenvolvendo as etapas prévias da
Conferência Nacional sobre Migrações e Refúgio (Comigrar) que, sendo uma iniciativa
governamental, procura produzir insumos para a formulação da Política e o Plano
Nacionais de Migrações e Refúgio que modificariam o Estatuto do Estrangeiro (Lei nº
6.815, de 19 de agosto 1980), que foi formulado durante a época da ditadura militar e que,
ainda hoje, regula a política migratória brasileira.

Essas atividades somadas a outras iniciativas mais pontuais, como a criação ou reativação
de comitês estaduais para refugiados, a assinatura de alguns acordos de cooperação técnica
para produzir números sobre o refúgio e outros variados encontros de discussão e
processos de formação sobre o tema do refúgio, evidenciam um interesse manifesto nessa
questão, tanto por parte do governo quanto da chamada “sociedade civil organizada”. Essa
profusão de atividades e suas características mostram também um espaço social em
movimentação e transformação que, porém, conserva importantes características das

6
Outros estados brasileiros fizeram parte do programa de Reassentamento Solidário, mas foi desativado
depois das primeiras experiências. Segundo as informações de um membro do Conare, em Caxias do Sul,
foram reassentadas três famílias; em Pernambuco, uma família; e no Rio Grande do Norte, cerca de 30
famílias. Esse assunto será abordado detalhadamente na segunda parte da tese.

8
formas de abordar os assuntos migratórios de outros momentos históricos, como tratarei de
analisar no desenvolvimento do texto.

Condições da pesquisa

Nesse ativo marco social e jurídico-administrativo descrito, a pesquisa de campo implicou


o mapeamento de um importante número de relações, espaços administrativos e encontros
de diversa índole entre os atores envolvidos no universo institucional do refúgio e a
posterior necessidade de privilegiar alguns desses contextos e encontros com suas
consequentes renúncias de aprofundamento em outros aspectos. Assim, um primeiro
momento da pesquisa de campo, que começou em 2011, foi dedicado a mapear, contatar e
alinhavar, a rede de organismos e agentes do mundo institucional do refúgio em Brasília.
Nessa etapa do campo, realizei vários tipos de encontros e entrevistas com alguns dos
funcionários do Conare, do escritório brasileiro do Acnur e do Instituto de Migrações e
Direitos Humanos (IMDH) – que participa ativamente da vida institucional do refúgio.
Esses encontros foram muito importantes para entender os processos oficiais e não oficiais
de refúgio e reassentamento, para poder desenhar o mapa institucional referente ao refúgio
e para identificar vários tipos de relações diferenciadas entre seus agentes.

No segundo semestre do mesmo ano (2011), realizei uma etapa de campo no Rio Grande
do Sul, onde encontrei e entrevistei várias funcionarias da Asav, encarregadas do programa
de reassentamento nesse estado. Por intermédio dessa ONG, pude encontrar e realizar as
primeiras entrevistas com refugiados reassentados, que, por sua vez, me ajudaram a entrar
em contato com outras pessoas. Com algumas delas ainda hoje mantenho contato
periódico, e seus movimentos e suas relações com a burocracia do refúgio têm sido muito
importantes para poder explorar os detalhes da renovação de documentos, as possibilidades
reais de suporte, a assessoria que recebem os reassentados depois da finalização do
programa e, em geral, as dificuldades que devem enfrentar por conta da sua condição
jurídico-administrativa como refugiados.

Também no Rio Grande do Sul – em diversas cidades –, pude entrar em contato, graças a
redes pessoais, com alguns solicitantes de refúgio e refugiados espontâneos7. Esses

7
Com este adjetivo são nomeados os refugiados ou solicitantes que chegam ao Brasil pelos seus próprios
meios e não pelo programa de Reassentamento Solidário.

9
encontros foram de grande importância para a continuação da pesquisa, uma vez que eles
conjuraram o temor que eu tinha sobre a dificuldade de encontrar refugiados colombianos
que quisessem me falar a respeito de sua experiência. Até esse momento da pesquisa de
campo, essa dificuldade me havia sido apontada pelos diversos agentes entrevistados e, em
grande parte, esteve baseada naquilo que os agentes consideravam um receio ou medo dos
colombianos de falarem com outros conterrâneos, particularmente se o tema era a sua
experiência de êxodo e refúgio.

O contato com esses refugiados espontâneos me levou a conhecer outros nacionais


colombianos vinculados a grupos de caráter político e cultural, cuja interação com as
pessoas refugiadas também mostraria importantes aspectos das negociações, os receios e as
mútuas interpretações entre diferentes tipos de presenças e condições migrantes, mediadas
pela existência do conflito social e político na Colômbia e os distintos tipos de êxodo que
tem gerado. Durante a mesma temporada de campo, frequentei também outros espaços
tangencialmente envolvidos com o universo institucional brasileiro do refúgio, como a
Igreja de Pompeia e o Centro Ítalo-Brasileiro Americano de Apoio ao Migrante (Cibai) da
comunidade religiosa Scalabriniana, ou dedicados à atenção de diversas situações
migratórias de colombianos, como o Consulado Honorário da Colômbia em Porto Alegre.
Em 2013, realizei outra curta temporada na cidade para acompanhar algumas atividades
que se desenvolviam ali e para reencontrar ou visitar algumas das pessoas conhecidas
durante a pesquisa.

No ano 2012, realizei uma temporada de campo no estado de São Paulo, onde desenvolvi a
maior parte da pesquisa e a maior quantidade de encontros e entrevistas. Nesse estado,
além de se implementar o programa de Reassentamento Solidário por meio do CDDH de
Guarulhos, também se encontra o Centro de Acolhida para Refugiados, da Cáritas
Arquidiocesana de São Paulo, que concentra os processos de solicitação espontânea de
refúgio. Dessa forma, realizei diversas entrevistas e conversas com agentes do universo
institucional brasileiro dessas ONGs, com alguns dos oficiais da Polícia Federal (PF), com
representantes do Comitê Estadual para os refugiados e com funcionários de outras ONGs,
associações civis e instituições que trabalham com migrantes e refugiados, incluindo os
diferentes espaços da Missão Paz da igreja Scalabriniana e seu albergue para migrantes.

10
Na cidade de São Paulo e em outras cidades menores do estado, mantive vários encontros,
conversações e entrevistas com refugiados e reassentados colombianos. Apesar de contar
com a intermediação do CDDH, somente para entrar em contato com uma família
reassentada, o vínculo com os membros dessa família e o contato com ex-funcionários do
programa permitiram-me ampliar significativamente a quantidade de entrevistas com
pessoas reassentadas. Essas entrevistas significaram a necessidade de meu deslocamento
por várias cidades do interior do estado, onde o programa localizou aos núcleos familiares
seguindo a estratégia de “dispersão territorial”, que vai ser explicada na tese. Os encontros
com solicitantes ou refugiados espontâneos foram mais fáceis de estabelecer e se
ampliaram por meio de redes pessoais e da minha presença nos locais que eles frequentam
para resolver assuntos burocráticos, para se hospedar, procurar emprego ou socializar.

Ao longo do ano 2012, voltei várias vezes ao estado de São Paulo para realizar novas
entrevistas, visitar algumas das pessoas conhecidas e acompanhar atividades relativas à
migração ou ao refúgio. A possibilidade de ver novamente as pessoas, de deixar passar
tempo entre os encontros e de manter algum tipo de contato foi muito importante para
entender os diferentes momentos de suas histórias de refúgio, de sua relação com as
instituições e dos significados da experiência do exílio nas suas vidas. As relações mais
próximas em campo foram gerando laços afetivos importantes que me permitiram ter
acesso a espaços cotidianos das pessoas e conversas nas que, a miúdo, discutíamos sobre as
minhas hipóteses sobre as suas próprias histórias. Evidentemente não em todos os casos,
foi possível fazê-lo e, do numeroso grupo de pessoas encontradas e entrevistadas, só com
algumas consegui estabelecer essa forma de relacionamento mais próximo e multiplicar o
número de encontros.

Finalmente, na cidade do Rio de Janeiro, realizei uma curta temporada de campo entre o
final do ano 2012 e o começo do ano 2013. Na cidade, estabeleci contato e fiz algumas
entrevistas com as funcionárias da Cáritas arquidiocesana, com famílias e pessoas
refugiadas e com um grupo de caráter político de nacionais colombianos que conheci por
meio de algumas das pessoas que encontrei durante a pesquisa. As atividades desse grupo,
as reflexões sobre as causas dos exílios e as próprias experiências de alguns de seus
integrantes foram muito importantes para refinar minhas perguntas e para iluminar
algumas das relações entre o conflito social colombiano e a produção brasileira de

11
refugiados. De outra parte, no Rio de Janeiro e na minha condição de estrangeira,
aproveitei minhas obrigadas visitas aos escritórios da Polícia Federal da cidade para
indagar sobre os procedimentos de refúgio ou acompanhar os trâmites de outras pessoas.

No Rio de Janeiro, além disso, ao longo dos anos que dediquei ao trabalho de campo,
desenvolveram-se várias oficinas, palestras e comemorações sobre o tema do refúgio ou
das migrações que também acompanhei e durante os quais conversei com alguns
funcionários do Acnur o do Conare e com refugiados – colombianos ou de outras
nacionalidades. Finalmente, também na capital carioca, reencontrei algumas das pessoas
encontradas originalmente em outras cidades, que vieram à cidade de visita ou que ali se
mudaram, e cujos trânsitos implicaram relações particulares com as instituições que
administram os assuntos relativos ao refúgio.

Em todos os encontros, a minha condição de colombiana foi um elemento importante tanto


pela sua mobilização com resultados positivos para alcançar os objetivos da pesquisa
quanto pelo seu caráter revelador das formas diferenciadas de tratamento dispensado às
pessoas segundo sua posição relativa numa interação social. Em outras palavras, ser
colombiana foi uma condição que – sem ser enunciada como tal – serviu para legitimar
meu interesse no tema dos refugiados colombianos ante os agentes do refúgio e ante os
próprios refugiados. Nunca fui interrogada, por exemplo, sobre o porquê de meu interesse
no tema do refúgio, pois esse foi percebido como um interesse pelos colombianos
refugiados. Interesse, ao parecer, explicável pela minha nacionalidade compartilhada com
eles. Contudo, quando minha presença em campo não era explicitada como aquela de uma
doutoranda de uma universidade brasileira, a interpretação feita mudou radicalmente. Por
exemplo, o tratamento geralmente amável que me dispensaram os diferentes agentes do
refúgio com quem entrei em contato, na minha condição de pesquisadora, virou, em várias
oportunidades nas quais não me identifiquei, um tratamento hostil que incluiu exclamações
em alto volume ou interrogatórios displicentes sobre minha situação migratória ou a minha
presença em determinados lugares.

Em qualquer caso, a grande maioria dos encontros com os funcionários e entrevistados


esteve precedido da minha apresentação e identificação. Nesses casos, a minha condição de
pesquisadora de uma universidade brasileira e a recomendação consignada no Plano de

12
Ação do México sobre a necessidade de favorecer pesquisas acadêmicas sobre o tema do
refúgio, foram importantes recursos para conseguir ser recebida pelos agentes do refúgio.
Porém, não foi fácil conseguir os contatos nem muito menos concretizar as entrevistas.
Houve algumas negativas de gravar as conversas e, na maioria dos casos, me foi oferecida
uma espécie de “versão oficial” dos programas, facilmente encontrada com o mesmo
formato e conteúdo nas declarações para a imprensa, os websites e a produção bibliográfica
dessas agências e instituições. Várias vezes também alguns agentes anteciparam possíveis
críticas da minha parte aos programas e responderam a minhas perguntas de forma
defensiva.

Também as pessoas, em outras situações migratórias, que se relacionaram comigo sem eu


explicitar as razões da minha presença em determinados lugares, mudaram o tratamento e a
forma de se relacionar comigo. Em alguns dos espaços de socialização de migrantes
“latinos” em São Paulo, por exemplo, onde fui convidada por alguns dos refugiados que
conheci, alguns homens ali presentes indagaram pelos meus movimentos migratórios
querendo saber se eu queria ficar no Brasil, se em realidade estava querendo chegar a outro
país e se sempre viajava só. Alguns deles indagaram pela forma em que eu pagava minhas
despesas, afirmando que “as colombianas” encontravam facilmente recursos no exterior,
onde eram “muito bem recebidas”, insinuando – às vezes, com muita clareza – a suspeita
de eu me dedicar à prostituição. Alguns dos refugiados que encontrei nesses espaços
mudaram inclusive o jeito de se referir a mim, passando do “mami”8, antes da minha
identificação como pesquisadora, à “doutora”, no momento de me conceder uma
entrevista.

De outra parte, a minha presença como pesquisadora colombiana, que, no começo,


desempenhou um papel ativador de suspeitas para algumas pessoas, foi ao mesmo tempo
um elemento fundamental para a criação de conivências e confianças. O fato de que vários
elementos da minha vida foram susceptíveis de serem localizados numa história nacional
comum e em um espaço hierarquizado de classe, gênero e raça, com códigos formais
compartilhados, gerou algumas tranquilidades nas pessoas. De maneira geral, o medo das
pessoas, que, no início dos relacionamentos, constituiu uma barreira na comunicação, foi

8
Uma expressão de muita familiaridade, utilizada para se referir às mulheres, que tem significado de “mãe”,
“mãezinha”, “mainha”, “minha filha”, mas que também pode ser utilizada como uma forma de paquera.

13
cedendo aos poucos nas nossas conversações. Contudo, continuou presente como um
elemento transversal nas histórias da maioria das pessoas entrevistadas. Nesses casos, a
minha condição de colombiana também foi importante para falar de temas que, segundo
meus interlocutores, não seriam entendidos por uma pessoa que não conheça as dinâmicas
do conflito na Colômbia. Alguns fantasmas da guerra só são visíveis para quem os
identifica como tais em práticas cotidianas ou pessoas que, no contexto brasileiro, não são
associadas à guerra. Para alguns dos meus interlocutores, foi importante que eu entendesse,
por exemplo, porque determinados ruídos, profissões, comentários ou situações podiam ser
lidos como ameaças potenciais. Além disso, foi importante falar com uma pessoa que, na
sua condição de estrangeira, estivesse sensibilizada com as implicações subjetivas da
emaranhada e agressiva gestão de vistos, permissões de estadia e documentos de
identidade.

Algumas pessoas aceitaram rapidamente falar comigo, outras ao contrário se mostraram


apreensivas ao começo dos contatos. Às vezes, a reticência de me contar sobre suas
histórias de refúgio radicava no temor de criar contradições entre as múltiplas repetições da
mesma narração que devem fazer para serem reconhecidos como refugiados,
especialmente quando os solicitantes são frequentemente acusados de serem “migrantes
econômicos”, querendo solucionar sua situação migratória e as versões narradas são a base
para julgar se seu caso corresponde ou não com um “fundado temor de perseguição”. Em
outros casos, a resistência a falar consistia em uma sorte de fadiga pela repetição em
excesso da sua história para conseguir o refúgio ou a contínua exibição de partes de suas
vidas como refugiados para as produções audiovisuais do Acnur, de periodistas ou de
outros pesquisadores universitários.

Em outros casos, a apreensão de algumas pessoas para aceitar falar comigo teve relação
com o temor da reativação de perseguições contra elas, colocando um halo de suspeita
sobre as verdadeiras razões que me levavam a contatá-las. Considerei, em campo, que essa
desconfiança que ativou minha presença podia abrir uma greta em uma história de
persecução que, para muitos, se presumia mais ou menos bem fechada, o que me levou a
extremar meus cuidados para que minha presença e meu trabalho não engendrassem novas
angústias nas pessoas. Assim, nos primeiros encontros, eu limitei minhas perguntas ao
processo de solicitação de refúgio e à vida como refugiados no Brasil. Só em alguns relatos

14
apareceram espontânea e explicitamente as causas da saída da Colômbia. No entanto, com
algumas pessoas, em conversas e encontros posteriores, os detalhes da perseguição e dos
motivos do exílio apareceram como elementos explicativos fundamentais para entender as
condições de sua estadia no Brasil. Em muitos casos, porém, os silêncios permaneceram e
a exibição do lado secreto da história continuou sendo um de seus elementos constitutivos.

Particularmente nas conversações com os refugiados reassentados, não apareceu de forma


tão explícita o temor de se contradizer nas narrações de sua história, porque, em seu caso, o
reconhecimento como refugiados não estava em julgamento. Ao contrário, existia um
temor de colocar em perigo os benefícios derivados do programa, não cumprindo as
recomendações de sigilo que lhes fazem os agentes ou expressando críticas ao programa e
suas funcionárias. Também, e inclusive mais do que os solicitantes, havia uma fadiga pela
repetição constante de suas histórias de refúgio e um temor sobre minhas intenções e sobre
o uso que eu faria da informação. No caso das pessoas que contatei por meio das ONGs,
foi preciso, além disso, explicitar várias vezes que eu não era funcionária do Acnur nem
das ONGs para que eles se sentissem à vontade e com a tranquilidade para falar sobre o
programa.

Finalmente, os diálogos com as pessoas, as longas conversas, os acompanhamentos mútuos


para fazer trâmites e os momentos de lembrar os locais, as comidas, as músicas e os
eventos de uma história comum – frequentemente evocada como nacional – marcaram o
ritmo e o ambiente da maioria dos nossos encontros. Ao finalizar as entrevistas e no
momento das despedidas, várias pessoas expressaram terem-se sentido bem com os
exercícios narrativos que eu provoquei como pesquisadora e, de fato, alguns deles se
mantêm ativos, marcados agora por tempos e interesses que desbordam os limites desta
pesquisa. Como será abordado nesta tese, considero que essa espécie de liberdade narrativa
que várias pessoas apreciaram, contrasta com os formatos e as obrigatoriedades de tempos
e espaços para a narração ao quais estiveram – ou ainda estão – submetidos nas suas vidas
como refugiados ou solicitantes.

A organização do texto

A tese está dividida em quatro partes, cada uma delas dividida em capítulos. Na primeira
parte, me propus a abordar o contexto institucional contemporâneo do refúgio brasileiro,

15
sempre a partir da perspectiva dos programas e das políticas de refúgio orientados à
recepção de nacionais colombianos. Para tanto, no primeiro capítulo, abordo o assunto do
“problema dos refugiados colombianos” tanto do ponto de vista dos agentes do refúgio
quanto da perspectiva de sua construção como um problema de pesquisa no sentido
proposto por autores como Malkki (1995) ou Sayad (1991). Para isso, indago, a partir uma
perspectiva foucaultiana, a produção dos refugiados como uma população que precisa de
intervenção e, com essa ideia, discuto os números do deslocamento maciço de populações
na Colômbia, aquelas dos refugiados no território brasileiro e a imagem produzida de uma
escassez positiva que, baseada nas qualidades supostas dos refugiados, projeta uma
imagem de grandiosidade sobre o Estado-nação brasileiro. A reflexão desse capítulo
constitui também uma crítica à ideia de refúgio como um estado metafísico de abandono,
no sentido de que tem sido formulada por Butler e Spivak (2007).

No segundo capítulo, realizo uma descrição do universo institucional brasileiro por meio
da qual procuro identificar os diferentes organismos e agentes envolvidos nos processos de
refúgio. Discutindo a morfologia da implementação do refúgio, proponho abordar essa
figura como uma prática de governança sobre populações, no sentido proposto por Texeira
e Souza Lima (2010), que reatualiza ao “Estado” como uma entidade com vontade própria
(ABRAMS, 2000) por meio da ideia de uma teodicea secular (HERZFELD, 1992). Ainda
no segundo capítulo, apresento esses agentes do refúgio localizados em espaços concretos
tanto administrativos (sedes, escritórios, ministérios, ONGs) quanto geográficos (as
cidades concernidas na pesquisa). Finalmente, decomponho a noção de “sociedade civil” à
medida que esta foi se mostrando ao longo da pesquisa.

A segunda parte está dedicada aos processos por meio dos quais as pessoas viram sujeitos
refugiados ou reassentados, partindo novamente de uma discussão sobre o substrato que
alimenta as relações entre nacionais colombianos e um amplo leque de agentes brasileiros
de refúgio. Assim, no terceiro capítulo, apresento as imagens e interpretações que fazem os
agentes brasileiros sobre a guerra na Colômbia, baseada na confrontação empírica e teórica
entre soberania e direitos humanos, propondo-a como uma discussão entre “político” e
“humanitário” (FASSIN, 2010). O quarto capítulo está dedicado a explicar
minuciosamente os passos que devem seguir as pessoas para serem reconhecidas como
refugiadas ou admitidas como reassentadas, assim como as tecnologias de governo de

16
populações refugiadas. Tudo isso prestando especial atenção às formas de interação entre
agentes de refúgio e refugiados, nas quais identifico tanto técnicas de produção e
administração de sujeitos precarizados quanto estratégias de resistência e subversão dessa
condição, inspirada tanto na proposta de poder tutelar de Souza Lima (1995) quanto nas
reflexões sobre as relações de autoridade no mundo administrativo, tal como têm sido
abordadas por Vianna (2002) e Lugones (2012).

A terceira parte da tese ocupa-se da produção oral, textual e gestual que conforma uma
parte fundamental dos processos de produção de refugiados. No quinto capítulo, com uma
forte inspiração foucaultiana, abordo a verdade e a crença como bases morais e
administrativas com as quais o Estado-nação legitima a ação do refúgio por meio da
produção da “verdadeira história” dos sujeitos solicitantes. Além disso, indago a
diferenciação requisitada para esse efeito de outras categorias de mobilidade,
particularmente aquela do migrante econômico, baseando-me, para isso, nos trabalhos de
Seyferth (2008, 2000, 1997). No sexto capítulo, abordo as características da entrada dos
sujeitos solicitantes de refúgio aos moldes do Estado-nação por meio dos encontros com a
Polícia Federal, com a ideia de uma tradução (ASAD, 1993) e exploro as contradições que
a figura do refúgio faz manifestas entre uma preocupação pela proteção dos sujeitos e uma
preocupação pela segurança nacional.

O sétimo capítulo dá continuidade a essa discussão, mas se centra na prática profissional


das advogadas que realizam “a entrevista” que serve de base para o reconhecimento da
condição de refugiado. Também inclui uma análise sobre os aspectos que esses exercícios
narrativos oficiais obliteraram e sobre a inconveniência da aparição de certas experiências
neles, tudo isso a partir de autores como Cho (2008), Das (2007) e Pollak (1990).
Finalmente, incluí uma reflexão sobre o poder da oralidade dos agentes de Estado que lhes
exime de fixar, com o peso da escrita, alguns dos critérios que servem de base e explicação
para as ações empreendidas na produção e governo dos sujeitos refugiados.

A quarta e última parte, baseada em uma discussão entre o processo existencial do exílio
(SAID, 2001) e a experiência administrativa do refúgio, centro-me no tempo como
categoria fundamental de ambos os processos. Assim, o oitavo capítulo aborda, em
primeiro lugar, a relação entre o quando e o quanto que permite identificar um ritmo

17
particular da gestão dos recursos como parte essencial das técnicas e tecnologias de
produção, administração e subordinação de sujeitos refugiados, em diálogo com Vianna
(2011). Em segundo lugar, analisa os tempos existenciais dos sujeitos cujas vidas têm sido
marcadas pelo êxodo. Tempos que escapam e, muitas vezes, contradizem aos ritmos
administrativos de gestão. Finalmente, nesse capítulo, outro plano da categoria tempo será
proposto por meio dos postulados de Fabian (1983) para discutir as visões civilizadoras
que negam a existência coetânea dos sujeitos e que estão na base das relações e interações
do universo institucional do refúgio.

O nono capítulo dá continuidade a essa ideia do tempo como categoria de conotação


civilizatória para discutir a suposta proximidade cultural dos colombianos que faria deles
mais susceptíveis ao “abrasileiramento” (SEYFERTH, 2000) sempre em comparação com
outros grupos nacionais construídos como uma “alteridade radical”. Procurando, além
disso, questionar os limites internos do Estado-nação brasileiro e os lugares sociais que
lhes são simbólica e socialmente atribuídos aos refugiados.

Finalmente, esse mesmo capítulo aborda ainda mais um plano dessa categoria tempo para
refletir sobre o provisório (refúgio) e o duradouro (reassentamento) – dialogando com as
propostas de Sayad (1991) – na compreensão dos processos de refúgio como processos de
formação de Estado de longo prazo, como processos que só se completam por meio da
descendência e das gerações futuras. Termina com uma breve reflexão sobre a forma em
que as pessoas subvertem a mensagem de salvação e redenção do refúgio, contrapondo à
ideia do humanitário como uma ação de emergência para salvar vidas, a ideia de sua
situação de refugiados como uma “morte lenta” ou como uma continuação fragmentária e
descontínua daquilo que os levou a sair do seu lugar.

18
PRIMERA PARTE: O universo institucional do refúgio

1. Primeiro Capítulo
Um problema que não dê problema
Como foi apontado na introdução, o conflito social e político que existe na Colômbia faz
mais de meio século. Na sua versão armada recrudescida nas últimas décadas, tem deixado
um número impactante de pessoas deslocadas dentro das fronteiras políticas do país, assim
como um número também significativo de pessoas refugiadas em outros países. Segundo
os dados que oferece o Acnur no documento Tendencias Globales de 2012, existem
394.100 pessoas de nacionalidade colombiana refugiadas em diferentes partes do mundo.
Esses dados colocam a Colômbia, para o ano de 2012, no oitavo lugar na lista da ONU de
países com mais nacionais refugiados, depois de Afeganistão (2.585.600), Somália
(1.136.100), Iraque (746.400), República Árabe Síria (728.500), Sudão (569.200),
República Democrática do Congo (509.400) e Myanmar (415.3000).

No relatório apresentado em março de 2012 pela ONG, Consultoría para los Derechos
Humanos y e Desplazamiento9 (Codhes10), baseado no relatório Global Trends 2010 do
Acnur, aclara-se que só 28% do total de pessoas consideradas nas estatísticas têm sido
reconhecidas oficialmente como refugiadas pelo Acnur ou por algum governo nacional;
71,4% (282.344 pessoas) encontram-se em condições “análogas ao refúgio”, na
“necessidade de proteção internacional”, como “solicitantes de refúgio” ou “sem o status
reconhecido”. O cálculo realizado pela ONG é que 12% do total estimado dos colombianos
no exterior são refugiados, o que equivale a: “de cada 10 colombianos no exterior, ao
menos um é refugiado ou encontra-se em ‘condições análogas ao refúgio’” (CODHES,
2012, p. 34).

Levando-se em conta somente as pessoas que têm sido oficialmente reconhecidas como
refugiadas, os principais países receptores são apresentados nesse mesmo documento na
seguinte sequência: Equador (54.243 em 2011), Estados Unidos (33.455 em 2010), Canadá

9
CODHES INFORMA: Boletim da Consultoría para los Derechos Humanos y el Desplazamiento, Número
79, Bogotá, Quito, Março de 2012.
10
CODHES é uma ONG criada em 1992 com apoio internacional, que trabalha em pareceria com varias
agências de cooperação e organismos multilaterais como o ACNUR. A organização trabalha com população
deslocada e é uma importante produtora de dados a respeito. A ONG tem, além disso, uma forte capacidade
de interlocução com a “comunidade internacional” e com amplos setores do governo e da chamada
“sociedade civil organizada” na Colômbia.

19
(16.054 em 2010), Costa Rica (10.279 em 2011), Venezuela (2.734 em 2011), Panamá
(1.328 em 2010), Chile (814 em 2011), Brasil (654 em 2011), Argentina (403 em 2011) e
México (247 em 2011). Conforme esses dados, Equador é receptor de 47,9% do total de
refugiados reconhecidos de nacionalidade colombiana11.

Com algumas discordâncias em relação ao número total de pessoas reconhecidas


oficialmente como refugiadas12, o relatório de Codhes apresenta um gráfico (ver tabela 1)
que ajuda a identificar visualmente as distâncias numéricas entre os países receptores. Por
exemplo, para o caso que nos interessa, entre o Equador como principal receptor e Brasil
no oitavo lugar da lista, com uma diferença entre eles de 53.589 colombianos refugiados.
Permito-me apresentar em outra tabela as extensões territoriais de ambos os países, assim
como a população estimada e os dados (aproximados) de população refugiada recebida
(ver tabela 2) para os mesmos efeitos comparativos.

Tabela 1
Países receptores de refugiados de nacionalidade colombiana
País de Refúgio Refugiados reconhecidos Data e fonte
Equador 54.243 Dezembro de 2011, Dirección de Refugio Ecuador DR
Estados Unidos 33.455 Dezembro de 2010, Ministerio de Justicia
Canadá 16.054 Dezembro de 2010, Acnur Global Trends 2010
Costa Rica 10.279 Junho de 2011, Acnur
Venezuela 2.734 Julho de 2011, Conare-Acnur
Panamá 1.328 Dezembro de 2010 Acnur
Chile 814 Julho de 2011, Acnur
Brasil 654 Dezembro de 2011, Ministerio de Justicia
Argentina 403 Julho de 2011, Acnur
México 247 Julho de 2011, Comisión Mexicana Ayuda a Refugiados,
Comar.
Total: 10 países 123.143
Fonte: CODHES INFORMA: Boletim, n. 79, Bogotá, Quito, mar. 2012.

Tabela 2
Extensão territorial População estimada Total de refugiados Percentual de refugiados
Equador 283.520 km2 15.785.750 55.480 0,351
Brasil 8.514.876 km2 190.732.694 4.689 0,002
Fontes: para Brasil, IBGE e Conare. Para Equador, Inec e Acnur.

11
Segundo o Acnur (Tendencias Globales 2012), o número de refugiados colombianos oficialmente
reconhecidos no Equador aumentou para 54.600 e, ainda para o final do ano 2012, foram contabilizados
nesse país 123.000 pessoas em “situações análogas aos refugiados”. Na República Bolivariana da Venezuela,
o número de refugiados e de pessoas em “situações análogas” procedentes da Colômbia atingiu a cifra de
203.600.
12
No relatório, é explicado que os dados fornecidos pelos países receptores apresentam diferenças, não
explicadas, a respeito da quantidade de refugiados reconhecidos, a depender da data e da fonte.

20
A magnitude do drama que tem representado o desterro forçado e o êxodo maciço de
populações durante os últimos anos na Colômbia é uma realidade impactante, mesmo para
além de sua eloquência numérica. Segundo a ONG Codhes, mais de 5 milhões de pessoas13
tiveram de fugir dos lugares habituais de moradia, em meio a um complexo conflito
armado, social e político14. Por outro lado, também é fácil identificar a importância que
tem tido a produção de dados a respeito das pessoas desterradas, devido especialmente à
capacidade de algumas agências de disputar com o governo nacional a fabricação de
categorias, de visibilizar o estado de guerra em que vive o país e o consequente caráter
político do deslocamento. Também têm sido elementos-chave para questionar a imagem de
pós-conflito que vem se elaborando e promovendo nos últimos anos a aprtir do governo
central, embora as causas e as dinâmicas da guerra continuem. Porém, me parece
pertinente refletir sobre outras implicações sociais que subjazem nesses processos de
elaboração de estatísticas, bem como seu arquivamento e sua circulação por meio de
diferentes meios impressos ou digitais.

A produção de números e estatísticas em si mesma é um objeto complexo. A crítica mais


básica que poderia ser feita apontaria para suas possíveis dificuldades para traduzir em
números uma determinada realidade social. Perguntaríamos também sobre o risco de fazer
coincidir forçosamente a existência de um fenômeno social com o momento de sua
enunciação por meio de sua evidência estatística. E, é claro, é necessário questionar a
fabricação de números a partir da análise de seus contextos de produção e de seus atores.
Em todo caso, de maneira imperativa, se requer um esforço de pensá-la como uma prática
social imbricada em regimes hierárquicos de ordenamento da vida social, cujos efeitos se

13
Existem diferenças entre os registros disponíveis sobre a população deslocada na Colômbia. Os dois
principais produtores de cifras a respeito são o Governo Nacional e a ONG Codhes. A ONG inclui as pessoas
deslocadas desde o ano 1985, contabilizando 5,2 milhões até o ano 2012. Por sua vez, o governo totaliza 3,6
milhões no período compreendido entre o ano 2000 e o ano 2012.
14
São muitas as referências sobre o conflito social e armado colombiano. A permanente presença de um
estado de guerra, não declarado oficialmente, tem atravessado uma boa parte da produção das ciências sociais
no país, criando-se inclusive o apelativo de “violentología” para os trabalhos que abordaram diretamente “a
violência” na Colômbia como tema de estudo, assim como a sua relação com diversos aspectos da vida
social. São clássicos os trabalhos de Fals Borda, Umaña Luna y Guzmán (1964), Sánchez (1991), Bejarano
(1987), Pecáut (1987), entre muitos outros. Também existem trabalhos mais recentes como aqueles de
Fajardo (2002) e Machado (2004). A maioria desses trabalhos tem sido feita desde a ciência política ou a
sociologia, realizando geralmente análises macro. Porém, são menos expressivas numericamente as
etnografias que oferecem uma análise sobre a vivência desse conflito em contextos específicos e que se
ocupem de analisar as lógicas que ele encarna para seus habitantes nesses locais. A respeito disso, saliento,
como uma exceção, o trabalho de Marco Tobón (2008) sobre o conflito político armado no médio Rio
Caquetá. O autor oferece ainda uma útil classificação dos principais trabalhos realizados sobre o assunto.

21
inscrevem no mesmo universo que pretendem traduzir. As fontes disponíveis de estatísticas
de refúgio, por exemplo, são quase exclusivamente produzidas pelo sistema ONU,
geralmente por meio do Acnur15 e de suas ONGs associadas ou dos governos nacionais
com os que mantêm relação. Com a produção e o controle desses relatórios, é possível
ampliar o domínio de sua ação. Isso quer dizer que essa agência não age apenas sobre
grupos de pessoas, pensados como uma população específica, mas também sobre a
informação sobre elas.

Em termos foucaultianos (1976), poderíamos, inclusive, afirmar que essa elaboração


cuidadosa de indicadores populacionais é parte de um conjunto maior de saberes e práticas
que configuram um regime de verdade, capaz de produzir em si mesmo um corpo passível
de intervenção. Em outras palavras, um regime capaz de fazer com que um conjunto de
sujeitos possa ser pensado e tratado como um corpo social ou um “corpo-espécie”,
habilitando o desdobramento de um conjunto de práticas que buscam regular e decidir
sobre a vida e a morte não somente dos sujeitos individualmente mas também de
coletividades. Pensado dessa maneira, esse regime tem a capacidade de formar “un
dispositivo de saber-poder que marca efectivamente lo inexistente en lo real y lo somete en
forma legítima a la división de lo verdadero y lo falso” (FOUCAULT, 2007, p. 17). Alguns
autores posteriores, com forte inspiração foucaultiana, também têm apontado essa
dimensão, propondo analisar os mencionados procedimentos de cálculo e a elaboração de
estatísticas e índices como parte das técnicas e das tecnologias ativadas para a criação de
um espaço que possa ser pensado como um “problema social” (MITCHELL, 2002;
MILLER; ROSE, 2008), facilitando a delimitação de grupos que passam a ser vistos como
setores sociais nos quais se precisa e se justifica a intervenção.

Para esses autores, ademais, a introdução de especialistas, que, em nome da racionalidade e


da objetividade, se declaram capazes de medir a realidade e produzir indicadores
(MITCHELL, 2002, p. 82) ajuda não somente a que a informação produzida apareça com
um caráter de “verdade” mas também a separar esses números das pessoas as quais supõem
representar. Entre outros efeitos, essa separação permite evidenciar umas das
características do que Rose e Miller (2008, p. 26-34) têm chamado de o governo a

15
A maioria dos refugiados no mundo estão sob o regime do Acnur com a grande exceção dos refugiados
palestinos que são administrados pela United Nation Relief and Work Agency for Palestinian Refugee
(UNRWA), criada em 1949 pelas Nações Unidas.

22
distância. Ou seja, a ação sobre sujeitos e corpos sociais que não se encontram
necessariamente ao alcance geográfico, nem dos lugares nem das pessoas que atuam sobre
as vidas e sobre suas possibilidades de ação no mundo16.

À proposta foucaultiana da biopolítica, podemos acrescentar uma leitura, inspirada na


mesma fonte, sobre a naturalização e deshistorização de categorias populacionais por meio
de certos saberes que se presumem capazes de descrever a realidade social de maneira
racional, objetiva e universal (FOUCAULT, 1981). Conforme esse argumento, podemos
pensar que a criação estatística dos refugiados como um grupo populacional e seu
tratamento como um corpo passível de intervenção requereria não apenas do poder social e
político da agência que centraliza essa criação – o Acnur, e de seus agentes ou especialistas
– mas também de outras formas para conseguir que esses procedimentos de cálculo sejam
socialmente aceitos como “a verdade” sobre os refugiados.

A circulação dessas informações e sua iteração constante são, em parte, responsáveis desse
efeito de realidade sobre as pessoas, sobre os próprios números e sobre a interpretação com
que estes são apresentados, fazendo de seus produtores os detentores do conhecimento
sobre os refugiados no mundo. Contudo, o efeito de realidade que se produz com os
números é habitualmente potenciado com a apresentação de imagens e/ou depoimentos
comovedores de pessoas refugiadas, tal como aconteceu na maioria dos eventos que
acompanhei durante minha pesquisa de campo.

16
Para os autores Rose e Miller (2008), a proposta de governo a distância, inspirada na noção Latouriana de
“action at a distance” da conta de uma governamentalidade que facilita que os indivíduos governados tenham
a sensação e a convicção de que os seus comportamentos são o resultado da livre eleição. As racionalidades
econômicas e políticas que atuam nesse tipo de governo, para Rose e Miller (2008, p. 34), têm relação com
tecnologias de pensamento e intervenção que permitem realizar os cálculos em um lugar determinado e as
ações de intervenção em outro. Essa fórmula geralmente opera por meio de agências e de agentes que,
funcionando em rede, superam a institucionalidade do Estado. Essa rede de agências constrói problemas
mútuos, com um vocabulário e um destino comum de teorias, explicações e soluções (ROSE; MILLER,
2008, p. 35). Nas palavras dos autores: “We draw upon some recent work in the sociology of science and
technology in analysing these mechanisms, borrowing and adapting Bruno Latour's notion of ‘action at a
distance’ (cf. LATOUR, 1987b). We argue that such action at a distance mechanisms have come to rely in
crucial respects upon ‘expertise’: the social authority ascribed to particular agents and forms of judgment on
the basis of their claims to possess specialized truths and rare powers. We contend that the self-regulating
capacities of subjects, shaped and normalized in large part through the powers of expertise, have become key
resources for modern forms of government and have established some crucial conditions for governing in a
liberal democratic way” (ROSE; MILLER, 2008, p. 26).

23
Considero que, além do apelo à emoção do espectador (BOLSTANSKY, 1993), a
apresentação de depoimentos de pessoas classificadas como refugiadas reforça a
credibilidade social do Acnur, mostrando que essa agência não apenas produz números,
mas também pode mobilizar os corpos das pessoas para acompanhar esses eventos. Corpos
e presenças que se tornam numa espécie de prova da existência de um substrato material
sobre o qual são produzidos os dados oferecidos pelo Acnur e ainda sobre sua capacidade
de ação.

Finalmente, me parece sugestivo pensar a publicação de documentos estatísticos sobre


refugiados, com base em algumas das propostas, também inspiradas em Foucault, que
Edward Said ofereceu a respeito do que chamou o Orientalismo (1978). Isso porque
considero que não é somente uma “realidade” que nos é oferecida com os dados sobre o
refúgio mas também um discurso que constrói uma visão política específica sobre os
êxodos, as apátridas, os deslocamentos e as pessoas que atravessam a terra e as fronteiras.
Discurso e visão que, como mencionado, chegam a nós com um estatuto de verdade e
objetividade. Tal como sugere Said, para pensar o Orientalismo 17, existe uma relação de
poder que sustenta as expressões discursivas sobre um grupo e que permite que este seja
construído como a alteridade de um “nós”. Nessa relação de poder, resulta muito
importante a criação de uma base documental, seu armazenamento e arquivo, assim como
o gerenciamento cuidadoso de sua circulação. A criação de uma fonte primordial de
informação sobre os “outros”, permite que certos assuntos “não sejam um tema livre de
pensamento e de ação” (SAID, 1978, p. 16) de modo que as pessoas que a ele se
aproximarem tenham que, pelo menos, dialogar com essas visões e discursos hegemônicos
que tem construído a um determinado grupo/espaço em um “outro” categoricamente
diferente.
17
Edward Said nos oferece várias definições, não excludentes, de Orientalismo. Uma delas, a utilizada nesta
parte do texto, aponta que: “O Orientalismo pode ser discutido e analisado como a instituição organizada
para negociar com o oriente – negociar com ele fazendo declarações a seu respeito, autorizando opiniões
sobre ele descrevendo-o, colonizando-o, governando-o: em resumo, o orientalismo como um estilo ocidental
para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente. Descobri que, nesse caso, é útil empregar a noção
de discurso de Michel Foucault, tal como é descrita por ele nas obras Arqueologia do saber e Vigiar e punir,
para identificar o orientalismo. A minha alegação é que, sem examinar o orientalismo como um discurso, não
se pode entender a disciplina enormemente sistemática por meio da qual a cultura europeia conseguiu
administrar – e até produzir – o Oriente política, sociológica, ideológica, científica e imaginativamente
durante o período pós-Iluminísmo” (SAID, 1978, p. 15). Também considero interessante apontar que o autor
não defende que oriente seja meramente uma produção iconográfica e discursiva do ocidente, se não que
existe uma relação de poder que permite que uma construção discursiva sobre oriente vire sua representação
hegemônica, exercendo uma forte influência no pensamento de quem para adiante se aproximem a seu
estudo.

24
Assim, a essa primeira dimensão da criação de um “problema” por meio da elaboração de
números e fabricação material de objetos e espaços para sua reprodução, proponho
acrescentar mais uma. A produção desses dados implica necessariamente a criação de
certas categorias e de determinadas relações possíveis. Por exemplo, a categoria
“refugiados” e a relação entre “países expulsores” e “países receptores”. A criação e
circulação dessas categorias, como todo processo de codificação e promulgação,
necessariamente produz de maneira simultânea a exemplaridade e a exceção.

Tal como aponta ao respeito Tambiah (1985, p. 4), as classificações como planos
performativos e exemplares, inevitavelmente produzem anomalias, categorias liminares e
espaços difusos. Para Tambiah, essas outras categorias abarcam a dupla potencialidade de
serem vistas como anomalias que requerem correção ou como formas capazes de produzir
transformações criativas. Assim, na produção de estatísticas sobre refúgio, também são
produzidas outras categorias difusas como “não reconhecido”, “com necessidade de
proteção internacional”, “em situação análoga ao refúgio”, “solicitantes”, etc. Categorias
essas que dificilmente conseguem controlar, articular ou expressar todas as realidades
diversas que essas zonas difusas representam na vida das pessoas em contextos específicos.
Simultaneamente, a produção dessas categorias omite, em alguns espaços de enunciação, a
existência de outras tantas formas de vida no exílio que, segundo as codificações
administrativas dessas agências, não fazem parte do universo de classificação nem mesmo
nas zonas difusas.

Resulta interessante, como propõe Letícia Ferreira (2011), pensar nesses “outros” não
classificáveis como uma sorte de “resíduos” derivados dos mesmos processos que se
encarregam de classificar as histórias e os movimentos de pessoas. Mais sugestivo ainda é
o convite dessa autora a pensar que esses “casos que sobram” ou, no caso do refúgio,
aquelas pessoas que não se encaixam nas categorias, tornam-se em “outros” justamente
pela forma que suas histórias são “comunicadas, registradas e arquivadas” (FERREIRA,
2011, p. 257). Como mostrarei com mais detalhes nas partes seguintes, para ser
oficialmente reconhecido como refugiado não basta ter uma “história de refúgio”. É
necessário ativar os mecanismos burocráticos para alcançar tal reconhecimento e encaixar

25
nas categorias possíveis, por meio dos instrumentos administrativos dispostos para esse
propósito.

O que acaba sendo paradoxal no campo burocrático do refúgio é que muitas dessas “outras
categorias”, ao mesmo tempo que são necessárias para tipificar ao “refugiado”, tornam-se
potencialmente contaminantes dessa categoria. Assim, ao tempo que são produzidos esses
“resíduos” – como os chama Ferreira – existe um esforço para excluí-los, de tal forma que
o “refugiado puro” apareça em todo seu esplendor anômalo. Já que o refugiado é em si
mesmo pensado como anomalia da condição nacional dos sujeitos. Dessa forma, migrantes
que vão e voltam, viajantes desejosos de fortuna, perseguidos que não recorrem ao novo
Estado para sua proteção, deslocados por catástrofes naturais, ameaçados pouco
convincentes em sua narrativa, analfabetos burocráticos, etc. são a anormalidade
contaminante da anomalia pura do refúgio.

Conforme esse argumento, podemos pensar que os exercícios de codificação e


promulgação fazem parte do processo de produção da categoria “refugiado” com os dois
registros de construção de um problema que temos apontado até agora. Quer dizer que, em
primeiro lugar, os refugiados são pensados como um grupo populacional que, por sua
representatividade numérica e condições de vida, representa um problema social que deve
ser resolvido. Esse primeiro registro de problematização foi bem colocado por Abdelmalek
Sayad (1991), quem, a propósito da imigração, nos alertou sobre o fato de que a
investigação sociológica desse objeto aparecia como natural e evidente. Contudo, para o
autor, ela é em si mesma e, acima de tudo, uma investigação sobre a constituição da
imigração como um problema social (SAYAD, 1991, p. 62) e, nesse ponto, reside parte da
complexidade da construção do problema de investigação. Os discursos sobre a imigração
estão fadados, nos disse Sayad (1991, p. 14), a acoplar a imigração com uma série de
problemas, já que pareceria que a imigração somente existisse pelo fato dela dar
problemas.

Em segundo lugar, outro registro da problematização tem sido apontado quando


percebemos que “o refúgio” é construído como uma categoria que merece a intervenção,
como uma anomalia frente a uma categoria ideal. O refúgio, como categoria, torna-se desse
modo em uma anormalidade da categoria nacional. Essa última, ao ser referida como

26
categoria ideal ou normal, permite deixar inquestionada a ordem nacional do mundo e sua
consequente criação de fronteiras que impedem a livre circulação das pessoas. Os efeitos
desses exercícios ajudam a compor o que Lissa Malkki tem chamado a necessidade da
“intervenção terapêutica”, segundo a qual se considera que os refugiados são
necessariamente “um problema”, uma irregularidade da “ordem nacional das coisas”.
Conforme Malkki (1995, p. 8), quando se aborda os refugiados como objeto de estudo, há
uma tendência a localizar “o problema” no corpo e nas mentes das pessoas classificadas
como refugiados, e não na opressão política ou na violência que produzem os
deslocamentos de populações nos territórios.

A produção contínua da categoria do refúgio como uma condição anormal permite que os
refugiados sejam pensados como seres desprovidos de uma ordem ou à margem da ordem.
Como se um vácuo se estabelecesse na sua existência social, jurídica e política no
momento que acontece o movimento que os expulsa através das fronteiras imaginadas de
um Estado-nação. Essa visão autoriza o tratamento dos refugiados como sujeitos que
precisam ser acolhidos e restituídos a uma condição de normalidade, que possa restaurar
sua existência social. A restauração dessa existência é concebida de maneira ideal como
sendo uma restituição de sujeitos de direitos na ordem nacional das coisas por meio de uma
“nova” e “efetiva” cidadania18. Essa suposta reentrada restituidora implica estabelecer um
novo pacto com um Estado que se diz nacional e que se declara capaz de garantir o acesso
a essa ordem ordenante da Nação.

Vale a pena lembrar que a ideia do Estado como um aparelho capaz de produzir direitos e
bem-estar é, conforme Durkheim (1983), um dos elementos-chave que permite a formação
de um vínculo do Estado com o indivíduo. Essa seria, segundo o autor, uma das fontes de
ampliação das funções do Estado para o desenvolvimento individual, na que os direitos
passam a serem vistos como uma obra do Estado. Assim, nessa representação do refúgio e

18
Esse ideal que procura “restaurar” para os refugiados a cidadania perdida por meio de uma suposta
reentrada na ordem do nacional é geralmente, mesmo que não exclusivamente, pensado como ideal em
relação ao campo de refugiados. O campo de refugiados tem sido um lugar que alguns autores têm discutido
por meio da figura de “lugar de exceção” (MALKKI, 1995); (AGIER; 2006, 2003, 2002) a respeito da ordem
do nacional, ou bem por meio do conceito de liminaridade baseado na literatura antropológica sobre ritos de
passagem, tal como fora apresentada por Van Gennep (1969) e retomada por Turner (1974). Porém, a ideia
de espoliação, o trânsito e a restauração também é aplicada aos chamados “refugiados urbanos” que, no
linguajar do Acnur, são aqueles que não vivem em campos. Outros autores têm salientado a existência de
uma divisão mundial entre os refugiados que estariam protegidos por um “Estado-nacional” e aqueles que
não (HEIN, 1993).

27
de seu movimento de expulsão ou de saída como momento instaurador da ausência de
ordem, o Estado receptor é pensado e percebido como provedor por antonomásia da
cidadania, sendo capaz de restaurar o indivíduo em uma ordem de direitos. Porém, o
Estado, como administrador da cidadania, pode ser também a fonte do não pertencimento à
nação, tal como apontado por Judith Butler e Gayatri Spivak (2007).

Especialmente Butler coloca sob tensão as representações segundo as quais o refúgio é


caracterizado por uma ausência de ordem e aponta também a inconveniência de pensar o
movimento que implica o refúgio como um movimento que tem como ponto de partida
uma situação bem estruturada de forte ordem política e jurídica e que se desloca para uma
de abandono metafísico caracterizada pela ausência do poder estatal. O convite que faz
esse argumento é para advertir que as populações que se tornam refugiadas ou apátridas
estão o tempo todo sob o controle do poder do Estado. Isso porque o poder estatal não é
equiparável a suas leis e, em segundo lugar, porque a situação de refúgio implica a
existência de “um conjunto de poderes que produzem e mantém a situação de destituição,
espolio e de deslocamento” (BUTTLER; SPIVAK, 2007, p. 8).

Além disso, esse argumento afirma que existem pessoas que têm sido previamente
preparadas para seu espólio. Isso por meio dos efeitos sociais de categorias operacionais
como gênero, raça, classe e geração (a que podem ser acrescentadas militâncias, desejos,
desterros, corporalidades, etc.) que são constituintes da ordem da nação e do poder estatal.
Essa preparação prévia, por meio do exercício continuado do poder, permite produzir uns
sujeitos cujas vidas importam menos no país que os expulsa (BUTTLER; SPIVAK, 2007).
Esse processo é, a meu ver, fundamental para entender algumas das lógicas que são o
substrato da figura contemporânea de refúgio que está no cerne dessa reflexão.

Nessa ordem de ideias, a existência que está em jogo na arena do refúgio é uma vida
privada de valor, uma vida prescindível para o Estado expulsor. Essa vida, em minusvalía,
é a que será acolhida pelo Estado receptor para, idealmente, ser restituída a um estado de
direitos. Esse elemento colabora para o estabelecimento da relação assimétrica que se
entrava entre o solicitante de refúgio e o Estado a quem lhe pede proteção. Relação que, na
vida cotidiana, apresenta-se entre os solicitantes de refúgio e um amplo leque de agentes de
Estado. A ação sobre essas vidas precárias, como têm sido chamadas por Buttler (2006) e

28
Fassin (2010), inscreve-se no terreno que este último autor tem denominado dos
“sentimentos morais”. Para esse autor, esses sentimentos podem ser entendidos como as
emoções que “nos mobilizam diante do sofrimento dos outros e nos fazem desejar corrigi-
lo” (FASSIN, 2010, p. 8).

A ação sobre os outros sofrentes ativaria um vínculo entre emoções e valores, de modo que
a partir da experiência de seu sofrimento se desdobraria nosso sentido do bem: a
compaixão. Para que seja desdobrada, uma política dirigida aos mais despojados e
fragilizados – uma política da iniquidade – se requer, segundo Fassin, de um
reconhecimento dos outros como semelhantes, do reconhecimento de uma comum
humanidade. Nesse sentido, a política da compaixão é também uma política da
solidariedade. Então, é essa tensão entre iniquidade e solidariedade que se expressará nas
formas da relação social que estabelecem os “solicitantes de refúgio” e os “agentes de
Estado”, que, “para além de toda intenção dos agentes, faz da compaixão um sentimento
moral sem reciprocidade possível” (FASSIN, 2010, p. 11).

Na segunda parte, retomarei, com mais detalhe, essa construção da salvação de vidas como
instauradora de uma relação moral particular, tentando mostrar, como sugere Vianna
(2002, p. 61), que, quando se constrói uma imagem de “múltiplas precariedades”, as
soluções encontradas costumam assumir um caráter de redenção. Por ora, gostaria
simplesmente de apontar que, se a relação que se estabelece entre solicitantes de refúgio e
os agentes de Estado tem como premissa a ideia de espólio absoluto de uma das partes, o
gesto de restituição por meio do refúgio adquire características de grandiosidade. Para
além desse gesto humanitário e salvador do refúgio, qualquer outra coisa oferecida será
assumida como um ganho para quem nada tinha. Na gestão posterior dessas vidas, será
muito importante manter constantemente essa produção de precariedades, que, longe de ser
uma contingência da administração dos refugiados, se instaura como um elemento
intencional que obedece a razões políticas (FASSIN, 2010, p. 196).

Até agora, argumentei que a representação da salvação daquele que está à borda da
extinção colabora no engrandecimento moral do país receptor e instaura uma dívida de
caráter moral por parte do despossuído/restituído estabelecendo uma série de obrigações

29
entre as que se inclui o agradecimento19. Agora, proponho notar que, por meio dessa
relação entre “solicitantes”, “agentes de Estado”, “nacionais brasileiros”, “funcionários de
ONGs”, etc., se expressa a existência de uma relação coletiva maior, uma relação entre
Estados, no plural.

A linguagem do refúgio e suas diferentes formas discursivas fazem referência constante a


essa relação plural de Estados e a suas múltiplas possibilidades de articulação.
Particularmente, os valores de solidariedade, reciprocidade e responsabilidade conjunta dos
Estados em face do refúgio são constantemente acionados em documentos oficiais, leis,
declarações de agentes do Conare e do Acnur, textos de difusão das políticas a esse
respeito, eventos comemorativos, produções audiovisuais, etc. Algumas vezes se
estabelece uma comparação na qual o Brasil se apresenta como um país exemplar em
matéria de refúgio, como foi o caso de vários eventos que acompanhei. Por exemplo, nas
duas comemorações do dia mundial do refugiado – etnografadas durante a minha pesquisa
de campo – realizadas, uma em São Paulo e a outra no Rio de Janeiro, o representante do
Acnur elogiou a “avançada e pioneira legislação brasileira em matéria de refúgio”,
reiterando suas próprias declarações em outros espaços, na mídia e em outros documentos
do Acnur20.

19
Carolina Moulin apontou essa exigência de gratidão, valendo-se da teoria de Mauss sobre a dádiva. Para a
autora, o refúgio é percebido pelo Estado receptor como um presente que, em troca, faz duas exigências. A
primeira, de caráter político, consiste em que as pessoas se submetam às regras estatais formuladas para sua
recepção como refugiados. A segunda, de caráter moral, consiste na gratidão das pessoas para com aqueles
que a autora chama de “agentes soberanos” (2009, p. 8-9). Em palavras da autora: “Essa moralidade [...] se
reflete justamente nas práticas discursivas que equacionam a concessão da proteção humanitária como um
presente concedido pelos agentes soberanos às populações internacionalmente deslocadas. Esse sistema de
trocas obedece a uma lógica similar à do princípio da reciprocidade, mas que pode ser interpretada de forma
mais específica como uma instância da lógica de gratidão” (2009, p. 9).
20
Como outros exemplos desses elogios recebidos pelo “Brasil”, podem-se consultar alguns artigos que os
têm reproduzido em diferentes datas durante os últimos três anos:
AGÊNCIA BRASIL. Acnur elogia política brasileira para refugiados. Jornal do Brasil, 11 nov. 2010.
Disponível em: <www.jb.com.br/pais/noticias/2010/11/11/acnur-elogia-politica-brasileira-para-refugiados>.
Acesso em: 20 ago. 2012.
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Alto Comissário do ACNUR elogia posição do Brasil sobre refugiados.
Disponível em: <http://mj.jusbrasil.com.br/noticias/2791788/alto-comissario-do-acnur-elogia-posicao-do-
brasil-sobre-refugiados>. Acesso em: 20 ago. 2012.
O DIA. ONU parabeniza Brasil por medida em favor de refugiados. 9 nov. 2012. Disponível em:
<http://odia.ig.com.br/portal/mundo/onu-parabeniza-brasil-por-medida-em-favor-de-refugiados-1.512894>.
Acesso em: 20 ago. 2012.
Um capítulo do programa Cenas do Brasil: TVNBR. Refugiados, imigração e direitos humanos. YouTube.
Disponível em <www.youtube.com/watch?v=4kh0TJcepnk>. Acesso em: 20 ago. 2012.

30
Por vezes, fala-se desses valores, mas a ênfase é colocada na exibição das expressões de
“solidariedade brasileira” para com os países que enfrentam crises ou que recebem as
pessoas expulsas desses países em crise. Especialmente para o programa de
Reassentamento Solidário, costuma-se lembrar da “difícil situação do Equador” para
apresentar o comportamento solidário do Brasil que aceita “compartilhar” o número de
refugiados colombianos. O uso desse vocabulário para fazer referência aos refugiados,
junto com a obliteração da Colômbia nessa transferência21 de pessoas, reforça o argumento
segundo o qual as pessoas, e não as causas do deslocamento, são construídas como “o
problema” que deve ser não resolvido, mas compartilhado. Esse posicionamento pode se
exemplificar no seguinte trecho de uma entrevista que realizei com o ex-coordenador-geral
do Conare, na qual ele marca a origem do atual programa de Reassentamento Solidário
nesse plano de relação entre os Estados, especialmente com Equador, reiterando a
linguagem usada na Declaração e no Plano de Ação do México. Ademais, vale notar que
“o grande exemplo” solidário do Brasil se oferece levando em conta “suas possibilidades”:

Na verdade, o plano de Reassentamento Solidário é apresentado no Plano de


Ação do México pelo governo brasileiro, como um grande exemplo, perante a
quantidade de colombianos acolhidos pelo Equador. Não é? Então para de
alguma maneira compartilhar aquele número com o Equador, decide-se realizar,
levar adiante o programa de Reassentamento Solidário. Porque nesse momento o
Equador experimenta una quantidade entre 40 e 50 mil colombianos que ali
estão. E dentro das nossas possibilidades nós, estamos aí reassentando, todos os
anos, anualmente, um número de colombianos.

Algumas autoras têm apontado que tais valores, como solidariedade e generosidade, que
são comumente ativados a respeito das políticas chamadas de humanitárias, nas que se
inscreve o refúgio, encontram-se no terreno do vínculo agonístico dos Estados e fazem
parte de uma relação extensa de disputa de hierarquias entre eles22. Nessa disputa, os

21
O termo transferência é utilizado pelo próprio Acnur para explicar o funcionamento dos programas de
reassentamento que essa agência coordena em parceria com diferentes governos no mundo. Ver: Acnur.
Módulo Auto formativo: Programa de Aprendizaje de Reasentamiento Octubre, 2009.
22
O vínculo entre as políticas do refúgio no Brasil e as relações internacionais brasileiras tem sido, quase
exclusivamente, abordado a partir do Direito ou das Relações Internacionais. Em ditas áreas, destacam-se,
entre outros, os trabalhos de Jubillut (2007), Moreira (2012) e Moulin (2009, 2012). Ana Luiza Bravo e Paiva
explora também essa relação a partir de uma leitura sobre prestígio e reputação na qual, segundo ela:
“propõe-se, a partir da perspectiva teórica sobre reputação internacional, a análise da atual política de
refugiados brasileira como uma forma de projeção de poder” (2011, p. 1). Já desde a antropologia algumas
autoras têm explorado o assunto com uma proposta baseada na teoria de Marcel Mauss sobre a dádiva, que
sugere uma relação complexa de obrigações e reciprocidade entre Estados. Para Sonia Hamid, por exemplo:
“A dádiva-refúgio se apresenta como um meio propício para a construção de hegemonias regionais e globais,
criando vínculos diversos do país doador com a “comunidade internacional” da qual ele faz parte” (2012, p.
111). Por sua vez, Hamid inspira-se na leitura de Kelly Silva, quem sugere pensar o campo da ajuda

31
Estados procuram situar-se como países respeitosos e defensores dos direitos humanos.
Contudo, conforme Buttler (2007), a percepção do Estado, como aquele que garante os
direitos e que é administrador da cidadania, é só uma parte da equação. Para que essa
fórmula seja completa, é preciso lembrar que, como já foi apontado, o Estado também
pode ser a fonte da destituição de direitos e da proteção. O ex-coordenador do Conare, na
entrevista, referiu-se da seguinte maneira a esse duplo caráter dos Estados como protetores
e violadores dos direitos:

Muitas vezes nós temos a mania de dizer que os estados são os grandes
violadores dos direitos humanos, né? Mas também são os grandes defensores,
porque finalmente foram eles que criaram todo esse corpo normativo, esses
tratados internacionais, essas instâncias regionais de proteção, então os estados
simultaneamente são os grandes violadores e os grandes protetores dos direitos
humanos.

Nesse sentido, não basta reconhecer as pessoas como refugiadas. Para usufruir do prestígio
do doador, é preciso também garantir (sempre em termos ideais) que essas vidas sejam
mantidas a salvo e que sua restituição existencial ao regime da cidadania seja (ou pareça
ser) efetiva. No caso de não garantir a proteção dos refugiados, o Estado receptor se
deslizaria perigosamente para o lado condenável dos Estados que expulsam ou que não
conseguem cuidar dos cidadãos.

Justamente nessa tensão, me parece que reside uma das características das políticas de
refúgio no Brasil. Sua suposta generosidade e solidariedade com os estrangeiros,
constantemente autoproclamada, já lhe rendeu elogios por parte da ONU e benefícios
diplomáticos e políticos em suas relações internacionais23. Para sustentar essa imagem
generosa e solidária, procura-se promover as políticas de refúgio, preferir os processos que
permitam controlar o número e as características das pessoas recebidas e exibir, de maneira
seletiva, tanto as histórias de “integração exitosa” quanto as características dos processos e
as políticas a esse respeito. Pretendo mostrar, e espero que vá ficando claro ao longo do
texto, que a forma ideal que se persegue para o refúgio no Brasil é uma que, em primeiro
lugar, não acarrete grandes custos econômicos ou diplomáticos e, em segundo lugar, não

humanitária como um espaço no qual são criados importantes capitais políticos e amplas redes de hierarquias
e obrigações (SILVA, 2008).
23
Para aprofundar no tema do lugar ocupado pelo Brasil em diferentes momentos históricos a respeito da
política global de refúgio, assim como na sua própria produção textual sobre o assunto, pode-se consultar a
tese de Julia Bertino Moreira (2012). Para aprofundar diretamente sobre o assunto do autoelogio discursivo
do Estado brasileiro, a respeito do refúgio e da migração, pode ser consultada a tese de doutorado em
linguística de Rachael Anneliese Radhay (2006).

32
represente um problema em termos de risco de perder o prestígio de país receptor e
humanitário24, nem em termos de comprometer os interesses nacionais.

Nas seguintes partes da tese, tentarei mostrar que a recepção de nacionais colombianos,
especialmente daqueles que podem ser escolhidos25, apresenta-se, no campo do refúgio
contemporâneo brasileiro, como uma estratégia exitosa nessa busca de construção ideal do
refúgio. Pretendo mostrar que uma imagem de exemplaridade tem sido edificada ao
respeito do caso colombiano, apesar das tensões cotidianas entre as pessoas envolvidas nas
relações que configuram esse espaço de governanza26 e das contínuas inconformidades e
precariedades expressas pelos refugiados e os solicitantes de refúgio com os que estabeleci
relação para essa tese.

1.1. United Nations City

Antes de entrarmos nos meandros do refúgio de colombianos, gostaria de encerrar esse


segmento apresentando alguns aspectos do assunto dos números sobre o refúgio no Brasil.
O primeiro elemento que vale a pena salientar é que a informação sobre refugiados é
habitualmente produzida pelo Conare e circula privilegiadamente nos sites do Ministério
da Justiça (MJ) e do Acnur. Essa informação também é reproduzida pela rede de entidades,
ONGs e instituições que trabalham com migrantes e refugiados e por sua própria mídia.
Comumente também a mídia mais comercial reproduz (e, às vezes, engrandece) esses

24
Julia Bertino Moreira (2012) explora a política em relação aos refugiados no Brasil e realiza uma
interessante e extensa revisão de arquivos com documentos relativos ao tema. No arquivo do Itamaraty do
Ministério das Relações Exteriores do Brasil a autora encontrou o seguinte registro do ano 2007: “Quanto à
política brasileira, o foco era reassentar refugiados dentro das possibilidades do país, a fim de não
comprometer o êxito do reassentamento” (MOREIRA, 2012, p. 268). Os grifos são meus.
25
Mais à frente, na segunda parte da tese, explicarei as diferenças entre as duas formas de refúgio possíveis
que atualmente existem para colombianos no Brasil. Apontando uma diferença entre “refúgio por
elegibilidade” como um refúgio que se demanda e o “reassentamento solidário” como um refúgio que se
oferece e que permite a eleição dos candidatos.
26
Utilizo o termo governanza no sentido proposto por Teixeira e Souza Lima, compreendendo-o como um
“processo de gestão política que abrange não apenas as bases do exercício da autoridade política, mas
também o modo pelo qual se conduzem os assuntos de uma coletividade e os seus recursos” (2010, p. 55-56).
Para entender os processos de produção e as formas de gestão das populações consideradas refugiadas,
parece-me importante assumir teoricamente a governanza desde a perspectiva foucaultiana das tecnologias de
governo, que propõem os autores, que permite pensar como o processo de “invenção de segmentos sociais
específicos por dispositivos que se estatizam ao longo do tempo, ainda que não sejam exclusivamente
limitados aos exercícios de poder da chamada administração direta”. Essa leitura da governanza recolhe
também a proposta de Shore e Wright quem observa nessa forma de ação um complexo processo de
influência das pessoas para que contribuam no desenvolvimento de um determinado “modelo de ordem
social” (SHORE; WRIGHT, 1997, p. 5).

33
dados, frequentemente na forma de notas de imprensa, reportagens ou programas de
televisão.

É muito comum encontrar, nos sites e nos outros documentos produzidos pelo Conare, o
Acnur ou suas ONGs parceiras, dados com caráter aproximativo. Por vezes, acontece
inclusive que a mesma fonte oferece dados diferentes em datas não muito distantes no
tempo. Na página web do Acnur, por exemplo, foi publicado, no início do ano 2013, um
documento intitulado Refúgio no Brasil: uma Análise Estatística (2010-2012) que
informava o número total de 4.689 pessoas refugiadas. Pouco tempo depois, a publicação
on-line chamada O estrangeiro (na qual participam vários agentes que trabalham em
diversas instituições que atendem refugiados), publicou uma nota de imprensa 27 na que
destacava o caráter especulativo dos dados sobre refúgio no Brasil e continuava
informando que: “oestrangeiro.org requisitou esses dados junto ao Conare”, obtendo uma
tabela na qual se contabilizavam 4.227 pessoas refugiadas no Brasil e que o jornal on-line
publicou.

Outro documento com dados sobre refúgio apareceu no site do Ministério da Justiça em
abril de 2013. A informação disponível foi reproduzida por vários meios de comunicação.
O texto intitulado “Triplica o número de estrangeiros em busca de refúgio no Brasil”
afirmava que, para março de 2013:

[...] o Brasil contabiliza um total de 4.262 refugiados reconhecidos, sendo a


maior parte de angolanos (1.060), colombianos (738) e congoleses (570). Esse
total deve ser reduzido para 2.996 de refugiados, após a aplicação da cláusula de
cessação de refúgio para cidadãos de Angola e Libéria, implementada pelo
governo brasileiro desde 1º de junho de 2012.28

De fato, com a aplicação da cláusula de cessação de refúgio para os angolanos 29, o número
total de refugiados no Brasil diminuirá destacadamente. Porém, não parece haver acordo

27
LIMA, Rodrigo. Exclusivo: números atualizados dos refugiados no Brasil. O estrangeiro: Brasil país de
imigração. 9 jul. 2013. Disponível em: <http://oestrangeiro.org/2013/07/09/exclusivo-numeros-atualizados-
dos-refugiados-no-brasil>. Acesso em: 10 jul. 2013.
28
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Triplica o número de estrangeiros em busca de refúgio no Brasil. 26 abr.
2013. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={BB799FA1-9499-42CF-BA8D-
CDCB8FFB5A4F}&BrowserType=IE&LangID=pt-br&params=itemID%3D%7B60D6A533%2D9B
84%2D431A%2D9859%2D0A7710493F17%7D%3B&UIPartUID=%7B2218FAF9%2D5230%2D431C%2
DA9E3%2DE780D3E67DFE%7D>. Acesso em: 14 jul. 2013.
29
No dia 3 de julho de 2012, no portal web do Acnur, foi anunciado publicamente que: “O Alto
Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) anunciou a entrada em vigor cláusula de
cessação para refugiados de Angola e da Libéria. A cláusula está em vigor desde o último dia 30 de junho, e

34
entre os agentes que participam no mundo institucional do refúgio sobre a interpretação
dos dados nesse documento.

Por exemplo, no dia 1º de maio de 2013, a publicação on-line O Estrangeiro reagiu


novamente sobre a informação apresentada e publicou um artigo intitulado “O número de
refugiados no Brasil não triplicou... Diminuiu de 31%!”. O autor do artigo chamou a
atenção sobre algumas inconsistências na interpretação dos dados apresentados e criticou o
efeito magnificador que se pretendeu impor aos números de refugiados no Brasil. O
primeiro parágrafo desse artigo aponta:

A totalidade dos órgãos de imprensa do país (jornais impressos, sites de notícias,


canais de TV e rádio) ecoou a mesma notícia segundo a qual “o número de
refugiados no Brasil triplicou” ou que “o número de pessoas que pediram refúgio
ao Brasil aumentou quase quatro vezes”. O problema é que houve uma clara
amálgama entre o número dos beneficiados do estatuto de refúgio e o de
solicitantes. Ora, se considerarmos o ano de 2012, por exemplo, apenas 24% das
solicitações de refúgio foram deferidas, contra 76% rejeitadas! Falta informação
dos profissionais da comunicação ou busca inescrupulosa de manchetes
sensacionalistas?30

Parece-me que o exemplo citado mostra um dos possíveis efeitos de uma produção inexata
de números, que consistiria em permitir interpretações diferentes e até mesmo
contraditórias a partir dos mesmos dados. A obliteração da fonte que oferece cada dado, os
números discordantes e as omissões a respeito de como são feitas as interpretações,
permitem que estas sejam mobilizadas de maneiras muito diversas. Com os mesmos dados,
como se pode mostrar o número reduzido de refugiados, pode-se também produzir uma
imagem de excesso, que, habitualmente, é rapidamente reproduzida pela mídia.

Essas informações parciais também permitem que sejam privilegiados certos aspectos do
refúgio de caráter grandioso e sejam opacados outros de caráter escasso. Por exemplo,
enuncia-se muito frequentemente que o Brasil tem refugiados de 77 nacionalidades

foi adotada pelo Acnur com base na paz e na estabilidade alcançada naqueles dois países após sangrentas
guerras civis.” (Fonte: UNHCR ACNUR: Agência da ONU para Refugiados. Cessação para refugiados
angolanos e liberianos pode alterar perfil do refúgio no Brasil. 3 jul. 2012. Disponível em:
<www.acnur.org/t3/portugues/noticias/noticia/cessacao-para-refugiados-angolanos-e-liberianos-pode-alterar-
perfil-do-refugio-no-brasil>. Acesso em: 12 jul. 2013.)
30
LIMA, Rodrigo. O número de refugiados no Brasil não triplicou… diminuiu de 31%! O estrangeiro: Brasil
país de imigração. 1 maio 2013. Disponível em: <http://oestrangeiro.org/2013/05/01/o-numero-de-
refugiados-no-brasil-nao-triplicou-diminuiu-de-31>. Acesso em: 10 jul. 2013.

35
diferentes. O presidente do Conare da época referiu-se sobre isso da seguinte maneira em
um programa da televisão pública brasileira31:

[...] Por que o numero de refugiados no Brasil ainda não é tão alto? [...] é porque
é um gesto espontâneo. Toda pessoa que chega ao Brasil, e quer solicitar refúgio,
tem direito de fazer isso, mas nós estamos um pouco longe dos focos de conflito.
E o refugiado em geral é aquela pessoa que tem... ele está desvalido, ele está em
uma situação de drama social tão grande, que ele não consegue empreender uma
viagem intercontinental para buscar proteção no Brasil. A Classificação mais
comum do refugiado é aquela de quem sai do país pela fronteira. Sai a pé, sai de
veículos, mas sai num momento de desespero. E como essas crises estão longe
do território brasileiro, a língua é diferente e o Brasil não está envolvido em
conflitos, a tendência é que o número de refugiados não seja grande. Isso é
normal, mas veja que o número de nacionalidades: 77, num continente de 4500
pessoas é relevantísimo. Isso mostra que o Brasil pode receber refugiados de
qualquer parte do mundo. Pode vir um refugiado religioso, do Irã, pode vir um
refugiado étnico da Somália, pode vir um refugiado político, de Cuba. Qualquer
tipo de refugiado hoje o Brasil pode receber e pode integrar, porque como somos
um país multiétnico, o brasileiro recebe bem, integra bem o refugiado. Então
Brasil tem uma importância estratégica muito grande para a ONU e o número de
refugiados, sendo pequeno ou grande, não é o que mais importa nessa política.
(Cenas do Brasil TVNBR, 12 jan. 2012)

Escutei essas mesmas enunciações em muitos eventos que acompanhei durante minha
pesquisa de campo, nas entrevistas de agentes do Acnur ou do Conare e em vários dos
textos produzidos pela rede de ONGs que trabalham com refugiados. Muito
frequentemente também junto da menção das 77 nacionalidades diferentes, foram referidas
as diversidades da religião, de costumes e de raças das pessoas representadas por esse
número. Esse dado é exibido como prova da “capacidade e tradição de recepção do Brasil”,
do caráter multicultural da “Nação brasileira” e da “composição mestiça do povo
brasileiro”, como em diversas ocasiões escutei nesses encontros. Parece-me que essa
enunciação passa para o receptor a ideia de abundância, minimizando a percepção de
escassez do número total de refugiados. Inclusive, muitas vezes nos eventos em que
compareci, depois de haver apresentado o dado grandioso sobre a qualidade dos
refugiados, prescindia-se da apresentação de sua quantidade numérica.

Então, o dado das 77 nacionalidades é construído como relevante por meio de sua
qualificação como um valor, não dos refugiados em si, mas do “povo”, da “nação” e das
“políticas” brasileiras que promovem e acolhem esse tipo de encontros da diversidade e do
multiculturalismo. Uma das advogadas de Cáritas recriou, por meio da descrição de uma
31
Trata-se do programa “Cenas do Brasil” da TVNBR, dedicado ao tema do refúgio e emitido no dia 12 de
janeiro do ano 2012: TVNBR. Refugiados, imigração e direitos humanos. YouTube. Disponível em:
<www.youtube.com/watch?v=4kh0TJcepnk>. Acesso em: 20 ago. 2013.

36
cena que aconteceu no Centro de Acolhida para Refugiados, a ideia de que, nesses lugares
e por meio das práticas e dos processos do refúgio, se promove esse tipo de convivência
multicultural que expressaria o caráter das “nações unidas” e exemplificaria a capacidade
brasileira da convivência cordial e pacífica entre qualquer tipo de “diferentes”.

O outro dia foi uma situação que eu fiz questão de contar para a sociedade toda;
eu coloquei aqui naquela mesa para preencher os formulários de solicitação de
refúgio um descendente de origem árabe, um de origem judaica, outro de origem
cristã, outro de origem budista, outro que eu nem sei do que é que era... e eu
percebi que eles começaram a perguntar: “Ah, como que eu faço para preencher
isso aqui?” Um deles já estava lá na frente e outro veio para pedir ele ajudar ao
outro ai. E foi uma situação fantástica porque eles sabiam a origem deles e eles
sentaram naquela mesa e ali todos juntos para se ajudar e foi assim: “United
Nations City”.

Enfim, considero que, na produção do ideal do refúgio brasileiro como aquele que “não dá
problema”, dois elementos resultam muito importantes. Em primeiro lugar, como foi
mencionado, a autoproclamação da generosidade e os elogios recebidos, por parte do
Acnur e da ONU, por sua “avançada legislação sobre refúgio”, constantemente
mediatizados e enunciados nos diferentes encontros que são realizados com relação ao
tema. E, em segundo lugar, a manutenção de um reduzido número de refugiados,
acompanhado de uma interpretação dos dados a respeito que consiga diminuir a escassez e
consiga um efeito, às vezes de excesso – que justificaria uma intervenção corretiva – e
outras vezes de adequada e generosa abundância.

Enquanto redijo essa tese, está começando a ser feito um estudo para “traçar o perfil dos
refugiados no Brasil”, cujo responsável é o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea) e cujos resultados, segundo o site do Ministério da Justiça, deveriam ficar prontos
em 2014. O estudo foi apresentado como o resultado de um Acordo de Cooperação
Técnica (ACT) do Ipea com o Acnur e o Conare. Para além de seus possíveis resultados, o
processo em si mesmo resulta interessante para pensar que existe um esforço investido na
produção de informação sobre essa categoria populacional de refugiados e sobre o refúgio
em si mesmo. Na medida em que produzem dados unificados, me limito a escolher, entre
todos os ofertados, aquele consignado no documento recentemente publicado que aponta o
crescimento do refúgio no Brasil (4262). Isso porque, mesmo sendo o número mais alto,
continua representando um percentual muito baixo em relação ao número total de
refugiados no mundo. Subtraindo dele o número estimado de refugiados angolanos (1601),

37
cuja condição de refugiados cessará por determinação da ONU, teríamos um total de 3.201
pessoas refugiadas no Brasil. Desse grupo, 741 pessoas seriam colombianas, a maioria
chegadas por meio do programa de Reassentamento Solidário e outra parte por meio das
vias tradicionais de refúgio. Processos que explicarei na segunda parte da tese.

1.2. Um episódio disruptivo: um problema

Em agosto de 2012, quando se aproximava o final de uma de minhas etapas de pesquisa de


campo na cidade de São Paulo, a chegada de três famílias colombianas, solicitantes de
refúgio, transtornou os ânimos de várias pessoas que trabalham nas instituições que
atendem migrantes e refugiados no centro da cidade, assim como vários dos colombianos
refugiados ou solicitantes que, na época, moravam nos albergues dessas instituições ou
tinham outro tipo de relação com elas.

Mais especificamente, não foi a chegada de mais três famílias à enorme cidade paulistana,
o que causou a alvoroço. Sendo São Paulo a cidade que mais recebe solicitantes de refúgio,
poder-se-ia imaginar que a chegada de mais algumas pessoas não representaria um
acontecimento destacado, inclusive (ou talvez derive disso) porque o número de
solicitantes que anualmente recebe a cidade é muito pequeno comparado com o número
total de habitantes32. A presença dessas pessoas tornou-se perturbadora nesse contexto
institucional por algumas das características do grupo que chegou, pelas particularidades
da trajetória de sua viagem, pelo número de pessoas se deslocando juntas e pelas possíveis
consequências da relação entre esses elementos no desenvolvimento de sua historia na
cidade e no país.

Essas três famílias, sem vínculo parental entre si, viajavam juntas do Equador onde se
conheceram durante o processo pelo qual todas haviam sido reconhecidas como refugiadas
naquele país. O grupo entrou no Brasil pelo Sul, realizando uma solicitação de refúgio no
estado de Santa Catarina e, ao chegar a São Paulo, procuraram o Centro de Acolhida para

32
Segundo um documento publicado pelo Acnur, titulado Refúgio no Brasil: uma Análise Estatística (2010-
2012): “as solicitações de refúgio no Brasil são, em sua maioria, apresentadas em São Paulo (45% do total de
solicitações no período), seguido pelo Rio de Janeiro (20%) e Distrito Federal (14%)” (ACNUR, 2013, p. 2).
Se levarmos em conta que, segundo o mesmo documento, o número total de solicitantes entre 2010 e 2012
foi de 1.132 pessoas, a São Paulo teriam chegado então 595 solicitantes. Inclusive assumindo que todas as
pessoas que solicitaram refúgio em São Paulo tivessem permanecido na cidade, esse número representa
somente o 0,005% a respeito da população total da cidade que é de 11.253.503 habitantes, segundo os dados
do censo do ano 2010 realizado pelo IBGE.

38
Refugiados da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo (CARSP). Segundo a versão que dois
funcionários da instituição me contaram, a solicitação das famílias consistia em obter apoio
financeiro para alugar uma casa em São Paulo, pois não queriam morar em albergues. Ao
receber uma resposta negativa para esse primeiro pedido, as famílias solicitaram as
passagens para ir até Brasília, onde buscariam contatar “diretamente” o Conare e o Acnur.

O primeiro elemento considerado problemático pelas funcionárias com as quais falei a


respeito disso foi a quantidade de pessoas chegando juntas e o fato de que, no grupo,
houvesse um número importante de crianças e menores de idade. Nessas circunstâncias, as
famílias tinham de ser alojadas de maneira prioritária em um albergue “seguro”, lugares
escassos na cidade. Em segundo lugar, o fato de que eles já tivessem sido reconhecidos
como refugiados no Equador e agora estivessem solicitando refúgio novamente
representava um fator contrário à sua busca de refúgio no Brasil. Segundo umas das
advogadas da CARSP, eles dificilmente poderiam ser reconhecidos como refugiados no
Brasil e, ademais, já não poderiam receber “ajudas” materiais por terem-se beneficiado
previamente da assistência do Acnur.

Em terceiro lugar, segundo as funcionárias da CARSP que tiveram contato com eles e
também segundo a versão da administradora de A Casa do Migrante (albergue da
comunidade Scalabriniana onde foram recebidos), os “chefes de cada família” se
mostravam intransigentes, tinham rejeitado os encaminhamentos para serem atendidos no
hospital público e se queixavam continuamente da má qualidade da comida do albergue,
apesar de que uma das funcionárias lhes havia explicado que “todo brasileiro, rico ou
pobre, come arroz e feijão”. O episódio que mais incomodou as funcionárias, e que me foi
relatado como amostra do caráter das pessoas em questão, foi o fato de que a queixa das
pessoas incluiu que não tinham sorvete para dar às crianças.

Por sua vez, outros colombianos, que, por seu status de solicitantes de refúgio,
frequentavam a sede da CARSP, e alguns que, por diferentes razões, estavam alojados no
mesmo albergue, me relataram também várias desconfianças a respeito do grupo. Um
deles, Lucas, que tinha mais diálogo direto com a administração do albergue, e
reproduzindo as considerações das funcionárias, opinava que as famílias estavam sendo
orientadas por “mais alguém”. A suspeita era baseada em que lhe parecia que as famílias

39
tinham “informação demais” sobre os organismos de atenção aos que podiam recorrer, e
isso ativava também a desconfiança sobre sua “verdadeira condição” de refugiados. Além
disso, ele opinava que as pessoas queriam somente benefícios materiais, que queriam viver
assistidos a vida toda, e apontava o que ele achava como o mau uso que as famílias faziam
do dinheiro obtido. A opinião de Lucas era baseada no que ele considerava seu
conhecimento sobre comportamento das “verdaderas víctimas”, isso porque ele, segundo
me disse, era uma vítima e “sabia que cuando uno ha pasado por eso, en lo último que
piensa es en plata y lo que le importa es salir del hueco en el que está metido”. Ele achava
que “esa gente pide plata para todo”, e chegou à conclusão de que eles somente queriam
“sacar provecho de su situación”.

Para José Alberto, solicitante de refúgio, o incômodo com a chegada de “muitos”


colombianos consistia na possibilidade de que isso afetasse a decisão sobre sua própria
solicitação. Ele desconfiava que “o governo brasileiro pensasse” que estavam chegando
colombianos demais e que decidisse não receber mais pessoas. Também desconfiava de
que as “ajudas” que entregava a CARSP, que já lhe pareciam escassas, tornarem-se ainda
mais difíceis de obter ao serem divididas entre mais pessoas. Ele mesmo já havia morado
no Equador antes de vir para o Brasil e opinava que o problema do Equador era que estava
cheio de colombianos, por isso ele tinha decidido vir para o Brasil, que, em sua opinião,
“no es un país tan vecino”. Essa vizinhança relativa representava, para José Alberto, uma
garantia de um número menor de conterrâneos disputando a atenção e os apoios materiais
disponíveis. Essa opinião não era a primeira que eu escutara a esse respeito, outras pessoas
entrevistadas já haviam mencionado a abundante presença numérica de colombianos no
Equador ou Costa Rica, utilizando termos quase epidemiológicos do tipo “está infestado de
colombianos” ou “se plagó de colombianos”.

Um último solicitante com quem falei a esse respeito me contou seu receio pelo
comportamento agressivo de um dos homens do grupo do qual ele pensava que levava
consigo um punhal. A presença desse grupo de pessoas e, especialmente, o comportamento
desse homem não apenas ativavam nele as lembranças sobre as dinâmicas do conflito na
Colômbia e o medo que se acontecessem de novo as perseguições contra ele, mas que
podia, segundo ele, prejudicar a imagem dos colombianos perante as pessoas dos
organismos que atendem aos solicitantes de refúgio.

40
Finalmente, outro dos incômodos expressos pelas funcionarias das instituições foi que não
tinha sido possível obter “a história deles”. Com isso, as funcionárias referiram-se ao fato
de que as pessoas não tinham aceitado fazer a narração, que é requerida dos solicitantes de
refúgio como parte do processo de solicitação. Nessa narração, que abordarei em detalhe
na terceira parte da tese, pede-se que as pessoas relatem as razões pelas quais pedem
refúgio, os detalhes dos movimentos geográficos realizados previamente e vários aspectos
de sua vida pessoal e empregatícia. Eu também não consegui falar com as pessoas
integrantes dessas famílias, já que, uma vez que elas começaram a fazer parte da rede de
instituições que administram os programas de refúgio na cidade, a decisão de quando e
com quem podiam falar passou a ser mediada por essas instituições. Além disso, as
funcionárias da Casa do Migrante consideraram que era inconveniente que eu falasse com
eles antes que a própria instituição ou a CARSP conseguissem a narração esperada.

Resolvi começar a reconstrução dos meandros dos processos administrativos de refúgio no


Brasil com esse episódio por duas razões básicas. Em primeiro lugar, me parece que o
potencial disruptivo que ele condensa contribui para minha intenção de mostrar que a
preferência dos programas e as políticas de refúgio pelos refugiados que “não deem
problema” é um ideal pretendido. Trata-se, sobretudo, de um contínuo processo, de ações
constantes, e não de um estado definido dessas políticas ou desses programas. Essa busca
do modelo desejado não deve ser confundida com a realidade da interação entre diferentes
agentes de Estado e refugiados que, em diferentes escalas, parece se caracterizar por ser
uma relação problemática, por vezes mais ou por vezes menos tensa.

Em segundo lugar, me parece que esse episódio propõe para o leitor várias perguntas
possíveis sobre as políticas de refúgio no Brasil, surgidas a partir de um contexto
específico e de um caso concreto. Considero que é justamente nesses episódios que se
expressa a força processual das políticas de refúgio. Quer dizer que, em uma circunstância
específica, que gera uma possível ameaça ao modelo ideal do refúgio, é quando são
ativadas formas de ação, novas ou recicladas, preestabelecidas ou improvisadas, para
domesticar essas disrupções. Sobre o caráter e o conteúdo dessas formas de ação ou
interações, retornarei na segunda parte da tese. Por ora, gostaria de apontar que tais ações
são, a meu ver, tão importantes para entender a dinâmica das políticas de refúgio e a

41
formulação e reformulação dos programas em que estas se expressam, como são as
discussões de “alto nível” sustentadas em cenários multinacionais, ou nacionais, entre
técnicos especialistas do sistema ONU, diplomatas, políticos do conjunto de Estados, etc.

Episódios como o descrito foram colocando perguntas possíveis para essa investigação por
se tratar de momentos disruptivos de certa ordem administrativa idealizada, pretendida e
constantemente atualizada. Ordem que se torna indispensável para exercer um controle
disciplinar sobre as pessoas e seus movimentos, de modo que elas possam ser pensadas,
administradas e sentidas como refugiadas; e, concomitantemente, uma ordem
administrativa necessária para criar um efeito de controle soberano sobre as fronteiras
(imaginadas) do Estado e da Nação (igualmente conjeturais).

Chamo esse episódio de disruptivo porque, de fato, produz uma ruptura brusca tanto nos
processos e imagens quanto nas formas das relações sociais que usualmente são tecidas
entre as pessoas envolvidas no universo institucional do refúgio nas cidades incumbidas
nessa investigação. O Acnur e suas organizações parceiras, por exemplo, produzem
constantemente imagens de pessoas refugiadas que são apresentadas como êxodos grupais
em condições de miséria. Outras vezes, muito frequentemente de fato, o zoom é ativado
sobre mulheres acompanhadas de crianças pequenas sem mostrar nada ao redor, sem
contexto fotográfico (MALKKI, 1995, p. 10). Em alguns documentários e programas ou
notas de televisão consultadas para essa tese, outra forma muito comum e repetitiva
aparece nas produções audiovisuais; trata-se de uma voz em off que fala de alguma guerra,
da qual nunca se explicam suas causas ou o contexto, enquanto se mostram imagens de
destruição, pobreza, incêndios, êxodos massivos e, novamente, mulheres e crianças em um
ambiente de desolação. Logo em seguida, aparece o rosto, às vezes dissimulado pelos
efeitos visuais, de uma pessoa que dá seu depoimento na sua condição de “refugiada”33.

A propósito dessa produção iconográfica, Liisa Malkki (1995, p. 9-11) propõe que, se o
movimento de situar o problema no corpo do refugiado, e não nas causas do refúgio, pode
ser lido como um movimento de interiorização do refúgio no corpo dos sujeitos, existe
também um movimento de externalização. Por meio desse segundo movimento, os

33
Os documentários, os vídeos e as reportagens de TV consultados são apresentados no Anexo 3 com seus
respectivos links de acesso.

42
refugiados são percebidos como fora da ordem nacional das coisas, não apenas porque são
obliteradas as condições de injustiça que motivaram seu êxodo mas também porque são
pensados e produzidos como habitando um mundo diferente: “o mundo dos refugiados”.
Esse mundo, produzido principalmente em imagens, está geralmente no campo dos
refugiados, no campo de guerra ou em um lugar indeterminado, sem contexto, que parece
se caracterizar pelo estado indefeso (imagem privilegiada de mulheres e crianças).
Contudo, essa mesma cena provoca dificuldades para as agências que a produz quando,
como no episódio antes descrito, deixa de ser uma foto fixa de um cenário de guerra, toma
vida e se instala de maneira altiva e exigente nos escritórios das ONGs, de uma cidade do
Sudeste do Brasil, também demonstrando um inesperado poder de interlocução com outros
órgãos dos governos locais e saindo temporariamente de controle.

Além disso, não se espera que um solicitante de refúgio que recorre às instâncias (ou seus
intermediários), que, oficialmente, têm o poder de reconhecer a uma pessoa com tal status,
recuse entrar no processo preestabelecido. De modo que a negativa desse grupo de pessoas
de narrar sua história para a CARSP, apesar de estar apelando à proteção do Acnur e do
governo brasileiro, resulta em uma desobediência, ao menos, incômoda. Por outro lado, ser
refugiados reconhecidos no Equador e, mesmo assim, ser solicitantes de refúgio no Brasil,
sem ativar os mecanismos oficialmente estabelecidos para o deslocamento de refugiados
entre países diferentes, é também um elemento que põe sob tensão a delicada relação entre
soberania nacional e proteção universal dos direitos humanos, que está na base da
instituição moderna do refúgio.

Finalmente, parece-me que essa cena descontrolada nos informa sobre, ao menos, outros
dois aspectos interessantes para entender a dinâmica dos processos de solicitação de
refúgio e de administração de pessoas refugiadas. Em primeiro lugar, nos diz respeito ao
perigo que a desobediência cotidiana representa para os processos administrativos. Em
segundo lugar, nos informa sobre os significados que se encontram em disputa sobre a
mesma definição de refúgio em universos compartilhados de referência e de socialização.

Sobre esse primeiro aspecto, Adriana Vianna (2002) oferece uma leitura interessante em
sua tese de doutorado sobre os processos de guarda de menores. A autora, inspirada em
uma análise weberiana das formas de dominação, identifica uma tensão constitutiva entre

43
“administração” e “unidades domésticas” na qual se pretende que os menores sejam
imersos em configurações específicas de autoridade doméstica, o mais próxima possível a
um ideal estabelecido e, concomitantemente, busca-se impedir a transgressão de certos
limites para que a administração, como instância soberana e disciplinar, não seja
desautorizada (VIANNA, 2002, p. 41). Também no caso das pessoas que chegam
solicitando refúgio, espera-se e solicita-se que eles sejam autônomos, que não criem um
vínculo de dependência com as ONGs que os recebem, que se comportem como sujeitos
livres e autodeterminados e, simultaneamente, que, para obter os benefícios decorrentes
dessa condição, se acolham aos exercícios, aos ritmos e às disposições dos processos de
refúgio em suas diferentes etapas. A possibilidade de autoridade sobre suas próprias vidas
está em estreita relação com a obediência aos agentes, aos tempos e às formas dos
organismos que os administram e que lhes oferecem uma opção possível de existência.
Porém, a construção de uma autoridade legítima de governo sobre eles passa
ineludivelmente pela necessidade de produzir obediência por meio da criação de um
vínculo entre os interesses das partes envolvidas (WEBER, 1996, p. 696-700).

Tendo em mente esse elemento de risco de perda de autoridade e necessidade consequente


de obediência por meio de um vínculo específico, o segundo aspecto apontado toma um
sentido particular. Atentando para a definição que Florence Weber (2001, p. 485) oferece
de uma “cena social”, como um “universo de referência e socialização no qual a interação
adquire significado”, vemos como pessoas, objetos e relações comunicam coisas diferentes
segundo a configuração social na que se encontram interagindo. Este “marco”, como
chamado pela autora, inclui a fabricação de roteiros (“scripts”) que impõem significados
concretos às interações. Participar de certas cenas e seguir esses roteiros é parte
fundamental do processo administrativo de solicitação de refúgio. Tornar-se um refugiado
e ter a autoridade moral associada a esse status34, implica a subordinação a uma autoridade
administrativa por meio da construção mútua e representação constante de cenas sociais
nas quais essa autoridade adquire sentido, se expressa e se atualiza.

34
Ao longo da tese irei mostrando esse caráter moral e não só burocrático que encarna a categoria de
refugiado. Tal como tem sido proposto por Liisa Malkki (1995), considero que o refúgio não é somente um
reconhecimento legal, mas um status, uma condição social coletiva que engendra obrigações. Em palavras da
autora: “Being a refugee entailed prescriptions and prohibitions, duties and moral responsibilities. It was not
a mere label or legality; It was a status and a collective condition with its own moral weight” (MALKKI,
1995, p. 217)

44
Contudo, uma ressalva me parece necessária: mesmo que nas relações que se estabelecem
no processo de solicitação de refúgio ou de “integração a uma nova nação” se produzem
subjetividades particulares, há outros elementos precedentes que são fundamentais para
que essas relações possam se estabelecer. Assim como não há um vazio de poder de Estado
no momento de uma pessoa se tornar um refugiado, tampouco a expulsão de um lugar
pensado ou sentido pelos sujeitos como uma comunidade nacional implica uma perda das
ordens sociais de referência que constituem aos sujeitos. Isso quer dizer que as imagens
construídas especialmente para pensar os refugiados: seres humanos sofredores,
despossuídos de bens e relações e desprovidos de uma ordem política, se entrelaçam com
outros ideais sociais atravessados por relações de gênero, idade, classe, raça, geração,
militâncias e pertencimentos políticos, de ideias associadas às diferentes regiões de origem,
de ofícios e empregos, entre outras. As percepções dos agentes de Estado – e de outras
pessoas solicitantes ou refugiadas – sobre essas ordens expressas nos sujeitos também são
importantes na definição do formato da relação que estabelecem com eles e de alguns
tratamentos diferenciados. Ao mesmo tempo, são os motores de boa parte dos
comportamentos, dos juízos e das queixas de muitos dos solicitantes e refugiados a respeito
do comportamento de outros refugiados e dos agentes com quem se relacionam. Assuntos
esses que tentarei exemplificar e mostrar em detalhe nas seguintes partes da tese.

Como sugere o trabalho de doutorado de Vianna, dessa vez em relação com a discussão de
Durkheim sobre os problemas sociológicos relacionados com a moral, uma das
características desses fatos sociais reside na sua força de obrigatoriedade. Força que se
imprime por meio das recompensas ou castigos por seguir ou desobedecer aos princípios,
mas também por meio de “sua capacidade de engendrar regras e condutas vividas pelos
indivíduos no plano dos sentimentos” (VIANNA, 2002, p. 13). Assim, outra dimensão
profunda e menos utilitarista aparece com maior clareza quando se pensa na satisfação que
experimentam os sujeitos ao se adequar à norma ou, em palavras da autora, como “subsídio
da obrigatoriedade e do desejo de mover-se no mundo de forma moralmente correta”
(VIANNA, 2002, p. 195).

Considero que esse desejo de estar do lado “adequado” é muito útil para entender o
substrato moral das relações que são tecidas entre múltiplos “agentes de Estado”,
“solicitantes de refúgio” e “refugiados” e destes últimos entre si. Essas relações, é claro,

45
não são exclusivamente o exercício de um poder avassalador que desdobram de maneira
unidirecional os agentes que administram os programas de refúgio sobre os solicitantes ou
sobre os refugiados. Inclusive quando os itinerários burocráticos podem engendrar
profundos maus tratos e resultam tediosos e indesejáveis para as pessoas, a culminação do
processo com “bom sucesso” é um grande motivo de satisfação, como bem lembra
Herzfeld (1992). Ou seja, produzir conjuntamente com esses agentes, às vezes malvados,
seu reconhecimento como refugiados e a consequente investidura moral que a categoria
oferece é parte fundamental dessa restituição à ordem nacional por meio dos mecanismos
estatais.

Lembro, por exemplo, uma conversa com um homem que chegou por meio do programa
de Reassentamento Solidário e que já tinha três meses no país quando nos encontramos
pela primeira vez. Ele me expressava seu descontentamento com muitas das características
do programa, mas ao mesmo tempo sentia-se satisfeito sabendo que as agentes da ONG
que o administrava o avaliavam como “um caso bem-sucedido de integração”. Essa
avaliação era, para ele, uma importantíssima fonte de tranquilidade existencial no difícil
momento que ele estava vivendo. Talvez por isso, os solicitantes e refugiados com os quais
falei a respeito das famílias que chegaram juntas a São Paulo se sentiam, pela primeira vez,
mais do lado da CARSP do que desses conterrâneos em problemas.

Por último, nesse episódio, também resulta interessante a vontade expressa das pessoas de
falar “diretamente” com o Conare ou com o Acnur. Nesse desejo de obviar à CARSP,
parece-me que estão em jogo dois elementos. Em primeiro lugar, parece-me que a ONG é
percebida como sendo um lugar de simples “aplicação” de políticas cuja “racionalização”
encontra-se em outro lugar. Nesse lugar de “racionalidade”, os solicitantes parecem situar
o “centro” tanto de produção de políticas como de poder executá-las e transformá-las. Ir
até esse centro pode ter como propósito estabelecer relações “diretas” que lhes permitam
mobilizar esse poder em seu favor, prescindindo dos intermediários que seriam vistos
simplesmente como “maus executores”, geralmente acusados de corrupção ou ineficiência.
Nesse sentido, a relação com essa burocracia administrativa do refúgio é percebida, tal
como proposto por Herzfeld (1992, p. 122), sendo uma mediadora ineficiente (e
indiferente) das relações com um algo maior, um mal menor em nome do qual será obtido
o benefício de uma existência dentro do bem comum da nação. A respeito disso, resulta

46
interessante que o grupo de famílias que chegou não se recusa a ser refugiado ou a
estabelecer um pacto com o “Estado Brasileiro”, o que desejam essas pessoas é driblar as
intermediações corruptas que, em todo caso, reforçam a existência desse
sujeito/lugar/relação superior.

Em segundo lugar, considero que outra construção de “centro” está em jogo. Aqui, Brasília
e especificamente as sedes do Conare e do Acnur são percebidas como um lugar neurálgico
da rede de políticas e programas de refúgio. Ir até esse centro pode ter como propósito
acertar em um lugar que permita potenciar o efeito disruptivo. No trabalho de Sonia Hamid
(2012) sobre refugiados palestinos, por exemplo, a autora mostra, em detalhe, a força
desestabilizadora do acampamento que alguns refugiados palestinos mantiveram durante
meses em frente da sede do Acnur em Brasília35. Porém, os eventos descritos por Hamid
não parecem ser uma novidade se levarmos em conta os dados que Julia Bertino Moreira
(2012) reconstrói em sua tese. Na revisão que esta autora realiza de vários arquivos, pode-
se ver que não são inéditos os protestos de refugiados nem sua percepção como ações que
podem comprometer a imagem dos organismos e das políticas de refúgio.

Um dos fragmentos utilizados pela autora conta que, em 1984, um grupo de refugiados
vietnamitas ocupou, por mais de um mês, a sede do Acnur no Rio de Janeiro, tomando
alguns funcionários como reféns:

A Polícia Militar dispersou os manifestantes, recolhendo-os num albergue. A


maioria deles retornou a São Paulo, onde residiam, permanecendo alguns
vietnamitas no Rio de Janeiro, tidos como “componentes do núcleo mais
refratário daqueles que desejam ser reassentados nos EUA” (ARQUIVO DO
ITAMARATY, SECRETARIA DE ESTADO DAS RELAÇÕES
EXTERIORES, 1984f). O Escritório do Acnur voltou a funcionar, contando com
a proteção de uma viatura policial no local. Mas com a preocupação de que uma
nova manifestação pudesse perturbar os trabalhos e “comprometer a imagem dos
organismos da ONU representados no Brasil” (ARQUIVO DO ITAMARATY,
SECRETARIA DE ESTADO DAS RELAÇÕES EXTERIORES,1984f)
(MOREIRA, 2012, p. 167).

Também para o ano de 1987, a autora reconstrói a história de protesto de um grupo de 27


refugiados chilenos que também tomaram a sede do Acnur reivindicando a obtenção de

35
Julia Bertino Moreira, em sua revisão de arquivos, encontrou essa ideia do protesto perante a sede da ONU
como uma forma de episódios que poderiam comprometer a imagem dos organismos de refúgio e dos
processos que eles coordenam. Carolina Moulin (2009, 2011), por sua vez, analisou a forma do protesto dos
refugiados, baseada no acampamento palestino realizado em frente do Acnur e do Itamaraty, em Brasília,
durante vários meses, entre 2008 e 2009.

47
vistos para outros países. Resulta pelo menos interessante apontar que, nos três protestos
até agora mencionados, a reivindicação das pessoas é sair do Brasil e ir para outros países,
ativando, para tanto, a mediação do Acnur. Isso se dá de tal modo que os protestos não
apenas comprometem a imagem do Acnur mas também contradizem a enunciação
constante que fazem os agentes de Estado brasileiro sobre o caráter hospitaleiro e
acolhedor do país (RADHAY, 2006). As pessoas não estariam renunciando à possibilidade
de sua integração em uma nova comunidade, mas denunciando a incapacidade do Brasil e
do Acnur no Brasil para cumprir essa “teodiceia secular” (HERZFELD, 1992, p. 7), ao
mesmo tempo que reativam a burocracia desta última agência para conseguir um traslado e
uma posterior integração em outra comunidade nacional.

Em nenhum dos episódios reconstruídos por Bertino Moreira (2012), aparecem os


protestos como motivo para o traslado da sede do Acnur do Rio de Janeiro até Brasília.
Essa mudança é explicada em função da necessidade de maior proximidade para a
interação com os organismos de governo vinculados nas políticas de refúgio. Movimento
que, de todo modo, reforça essa ideia de uma centralização de agentes e órgãos decisórios.
Porém, segundo os dados etnográficos de Hamid, a decisão de mudar de bairro a sede do
Acnur em Brasília, teve relação direta com o acampamento de refugiados palestinos
(HAMID, 2012). Também durante minha pesquisa de campo, a ideia de evitar os protestos
em alguns lugares-chave foi expressa em várias ocasiões. Uma das funcionárias que
participa das reuniões do Conare me explicou que, em Brasília, não se faz reassentamento
de refugiados para “evitar pessoas protestando em frente dos órgãos envolvidos no refúgio
de pessoas no Brasil” e também evitar que essas imagens sejam mediatizadas
comprometendo a imagem dos programas.

Outras funcionárias e ex-funcionárias das ONGs locais das cidades de São Paulo e Porto
Alegre também replicaram essa ideia dos palestinos como “colocando em risco” os
programas de refúgio por meio dos protestos. A frequente comparação posterior com os
colombianos, ou com “o caso colombiano”, como costumam chamá-lo, relatava a
exemplaridade destes últimos. Não protestar e, especialmente, não protestar em Brasília é
um elemento-chave para ser um refugiado que não dá problema. De todo modo, como
elemento preventivo, em uma das cidades, foi decidido não dar aos refugiados o endereço
da ONG para evitar protestos na sede ou sua presença constante nela, reclamando serviços.

48
O contato com os refugiados nessa cidade se dá nas casas das pessoas refugiadas, nas sedes
de outras ONGs ou nas igrejas que trabalham com migrantes. Contudo, é a chamada
“dispersão territorial” a medida mais importante a esse respeito. Essa medida (que será
explorada em detalhe na segunda parte da tese) é uma estratégia utilizada no
reassentamento de refugiados colombianos por meio da qual se busca evitar o contato entre
as famílias, localizando-as em municípios diferentes e longe de outras famílias
reassentadas.

Em todo caso, a existência de uma cidade que centraliza boa parte dos órgãos de governo,
assim como a dinâmica das relações que os agentes estabelecem com ela e nela, reforça
essa suposta distinção entre “lugares para pensar” e “lugares para fazer”. Assim, resulta
mais fácil manter a ilusão de separação entre as competências de órgãos incumbidos no
refúgio e sustentar a percepção segundo a qual as relações estabelecidas com a parte
pensante têm mais peso que aquelas estabelecidas com a parte operante. Inclusive, muitas
vezes, se personalizam as cidades ou os organismos fazendo alusão a “Brasília”, “Acnur”
ou “Conare” como se fossem pessoas. Explorarei esse assunto com mais detalhe na
seguinte secção, por enquanto, apontarei que, para pensar as políticas de refúgio no Brasil,
é necessário desvendar um pouco os formatos dos programas e os espaços concretos onde
eles são desenvolvidos. Por isso, considero pertinente explicar, no segundo capítulo, um
pouco dessas relações constitutivas dos órgãos encarregados das políticas e dos programas
de refúgio.

49
2. Segundo Capítulo
Institucionalização contemporânea do refúgio
En Corumbá me dijeron: “usted en tres meses tiene una declaración con el
Conare” ¿Dónde está? A mí me han hecho hacer declaraciones aquí y allá pero
yo no sé quién es Conare ¿Por qué no me lo han presentado? (Entrevista com um
solicitante de refúgio)

Para pensar as práticas relativas à figura contemporânea de refúgio no Brasil, optei por
tomar como um ponto-chave de referência as políticas – e suas diversas práticas de
governo – que têm sido elaboradas, promovidas e reatualizadas, por meio da Lei nº
9.474/97 e seus desenvolvimentos posteriores. Reconhecendo, é claro, que existiram outros
momentos e tentativas anteriores de institucionalização do refúgio no país, como bem
informam alguns trabalhos que têm se ocupado de reconstruir parte desses processos
(SPRANDEL; MILESI, 2003; PAIVA, 2000), apontando inclusive momentos e tentativas
de institucionalização anteriores à declaração de Genebra e ao Estatuto dos Refugiados da
ONU.

Como parte dos instrumentos contemporâneos ativados para implementar no Brasil o


Estatuto dos Refugiados de 1951, criou-se o Comitê Nacional para os Refugiados
(Conare). Esse Comitê foi definido como um “órgão de deliberação coletiva no âmbito do
Ministério da Justiça” e é o encarregado de “analisar o pedido e declarar o reconhecimento
da condição de refugiado”. O Conare é também apresentado na lei, e por seus agentes nas
entrevistas, como o encarregado de “orientar e coordenar as ações necessárias para a
eficácia da proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados” (Lei nº 9.474/97, artigo
12, inciso IV).

O Conare foi referido em campo pelos agentes que administram o refúgio como uma figura
central e com amplo poder de decisão sobre as ações que devem ser tomadas e também de
criação de respostas sobre como agir em caso de dúvida. Muitos desses agentes
administradores fazem parte do Conare ou conhecem as pessoas que o integram. Algumas
vezes, referem-se a esse comitê como um todo e, outras vezes, somente por alguma de suas
partes constituintes. Essa dinâmica permite que os agentes, tanto como as partes que
compõem o Comitê, oscilem entre um fora e um dentro do mesmo, segundo o momento de
enunciação, o enunciador, as ações que estão sendo referidas ou o parceiro com quem as
inicie.

50
Por sua parte, paras as pessoas que se encontram como solicitantes de refúgio e para os
refugiados, não é sempre muito claro qual é a composição do Conare. Na maioria das
vezes, o contato direto dessas pessoas se estabelece com as funcionárias das Cáritas e com
a Polícia Federal. As Cáritas, algumas vezes, se apresentam e são referidas pelas pessoas
como Acnur, mas não assumidas como Conare, a Polícia Federal também não é pensada
como tal. Essa situação colabora com que o comitê apareça como uma figura distante, mais
coesa e, às vezes, humanizada, ao mesmo tempo que um bom grau de ambiguidade se
instala na compreensão das funções e dos poderes de ação de cada um dos integrantes e do
mesmo Conare.

Para auxiliar a compreensão de como é pensada e apresentada a conformação do Conare


por seus agentes constituintes, optei por um diagrama36 que foi elaborado pela
coordenadora do IMDH. Esse diagrama me foi apresentado durante os primeiros meses de
minha pesquisa de campo como parte da ajuda que a coordenadora dessa ONG,
gentilmente, me ofereceu para entender a estrutura do Comitê. Parece-me que este e outros
diagramas que utilizarei posteriormente, mais do que oferecer um contexto de leitura, são
em si mesmos textos que circulam entre os agentes incumbidos no refúgio de populações e
que, algumas vezes, são utilizados também para apresentar o Conare ante outros públicos.
Como textos comumente aceitados por esses agentes como fontes de informação
meramente descritiva, ajudam na construção de leituras e visões comuns entre as pessoas
que se relacionam com eles. Também me parece que, nesse caso, nos oferecem uma visão
da forma ideal na qual foi pensado o Conare que resulta muito útil para estabelecer visões
comparativas sobre sua forma operacional. No diagrama, o Conare aparece como uma
composição de clara divisão hierarquizada entre suas partes constituintes.

36
Esse diagrama da estrutura do Conare é uma versão do esquema originalmente elaborado pela Irmã Rosita
Milesi do Instituto de Migrações e Direitos Humanos, em formato de apresentação de slides. Agradeço por
todos os documentos e apresentações que a Irmã me facilitou para a compreensão do universo institucional
brasileiro do refúgio.

51
Diagrama 1

CONARE
Comitê Nacional Para Refugiados
(Órgão interministerial)

Presidência
ACNUR
Ministério da Justiça

Vice-presidência
Ministério de Relações
Exteriores

Ministério de
Departamento de Ministério da Ministério da Sociedade Civil
Trabalho e
Policia Federal Saúde Educação (CÁRITAS)
Emprego

A estrutura do comitê, apesar de sua disposição hierárquica no gráfico, foi pensada e


também apresentada como uma estrutura “tripartite”. Esse tripleto é formado por
representantes do governo brasileiro, representantes da “sociedade civil” e representantes
do Acnur. Esse formato de organização e de ação é o modelo sugerido pela ONU, não
apenas para as políticas relativas ao refúgio, mas de um amplo espectro de políticas sociais,
reguladas por outras de suas agências. A adoção efetiva desse formato, junto com outros
aspectos de sua legislação sobre refúgio37, tem representado, para o Brasil, elogios no
plano diplomático e político internacional, sendo apresentado pelo Acnur como o detentor
de “uma das políticas mais avançadas” em termos de proteção de refugiados (BARRETO,
2010; HAMID, 2012; LEÃO, 2010; MOREIRA, 2010; RADHAY, 2006; SPRANDEL;
MILESI, 2003).

A estrutura tripartite pode ser analisada à luz de alguns autores que têm estudado os
modelos de governança neoliberais, especialmente quando esse formato é focado na
análise da participação, tanto da chamada “sociedade civil” quanto de agências

37
Nos livros e documentos produzidos pelo Acnur, pelo Conare ou pelas ONG parceiras, assim como nas
alocuções públicas dos agentes que trabalham com refúgio, os aspetos da legislação brasileira que são
salientados como “vanguardistas”, além da adoção do modelo tripartite, são: a) a extensão da condição de
refugiado ao cônjuge, aos ascendentes e descendentes e aos outros membros do grupo familiar que dependam
economicamente do refugiado; b) a ampliação da definição de refugiado a quem tenha sido obrigado a deixar
seu país devido a “grave e generalizada violação dos direitos humanos”; c) o fato de não considerar a entrada
irregular do solicitante ao país como um elemento contra o seu processo; d) a providência de documentos de
trabalho para os solicitantes, mesmo antes de serem reconhecidos como refugiados; e) a adoção de uma
forma de seleção chamada fast-track para decidir sobre casos de reassentamento considerados urgentes.

52
transnacionais, dentro dos processos de formulação e implementação de políticas
governamentais. Por exemplo, Charles Hale (2002) tem apontado que, durante a última
década do século XX, deu-se, em diversos lugares do planeta, a emergência simultânea do
discurso multicultural e do projeto do neoliberalismo como processos mutuamente
constitutivos. As mudanças ativadas tanto pelo discurso multiculturalista quanto pelo
projeto neoliberal teriam favorecido processos de participação cidadã de novos setores
sociais nas funções que antes eram centralizadas pelo aparelho burocrático do Estado.

No contexto brasileiro e de sua relação com organismos internacionais ou transnacionais


de diversa índole, alguns trabalhos (BARROSO-HOFFMAN, 2009; CASTRO, 2009;
SOUZA LIMA, 2007; VALENTE, 2010) têm investigado justamente a existência de uma
dupla tensão. Em primeiro lugar, entre a ação do Estado como encarregado da definição
dar solução aos problemas da nação à que diz representar e a simultânea necessidade de
permitir e estimular a participação de diversos setores sociais nessas formas de governo.
Em segundo lugar, a tensão também se expressa na ideia de uma solução local (e, em certa
medida, “própria”) de assuntos que começaram a ser descritos como “problemas globais” a
partir dos anos 199038.

Por sua vez, Ferguson e Gupta (2002, p. 990) têm destacado que “a externalização das
funções do Estado nas ONGs e outras agências, é um elemento chave, não apenas da
operação dos Estados-nação, mas de um novo sistema de governabilidade transnacional”.
Os autores também apontam que as formas espacializadas por meio das quais tem sido
concebido o Estado têm colaborado para a criação de um espaço de agentes chamado de
“sociedade civil”. Espaço que é percebido e construído socialmente como pertencente a um
nível local, a partir do qual entraria em relação com agências supranacionais, percebidas e
construídas socialmente como integrantes de um nível internacional que engloba aos outros
planos (2002). Algumas das críticas que realizam esses autores coincidem com a proposta

38
Alguns desses trabalhos têm abordado tanto as alianças estratégicas entre setores sociais (BARROSO-
HOFFMAN, 2009) que acabam por questionar as ideias de unidade nacional; assim como diferentes tipos de
práticas administrativas acionadas sob a noção de “cooperação internacional” (VALENTE, 2010) como
formas de atuação em territórios estrangeiros que lhe permitem ao Estado a projeção de imagens positivas
sobre si mesmo. Em geral, os trabalhos salientam a complexidade que representa a análise das chamadas
“políticas públicas”, assim como a diversidade de agentes, interesses e planos envolvidos nessas formas de
governos e de criação de sujeitos a serem governados. Desafios nos quais o mesmo pesquisador encontra-se
envolvido (CASTRO, 2009), não só de maneira analítica mas política, levando em conta a participação, nem
sempre distanciada e nem sempre clara, dos estudantes, pesquisadores e universidades em essas práticas que,
segundo Teixeira e Souza Lima (2010), podemos chamar de governanza.

53
de Timothy Mitchell (1999, p. 81) sobre a existência de uma dificuldade analítica que se
apresenta ao estudar as relações entre o Estado (ou a comunidade de Estados) e a
sociedade. A dificuldade tem a ver com o que ele tem chamado de um “efeito de
separação”, que instaura uma percepção operativa de fronteiras bem-definidas entre a
sociedade, o Estado e o mercado. Parte do perigo residiria, segundo Mitchell, em que
tomemos por certa essa ficção e, a partir dali, construirmos nossas análises, em vez de
estudar como essa imagem de domínios separados chegou a se constituir e que efeitos a
manutenção dessa representação produz.

No contexto brasileiro, a adoção e o desenvolvimento de um modelo contemporâneo de


ação sobre o refúgio, com participação da chamada sociedade civil e de agências
internacionais, têm sido apontados por autores como característicos do período pós-
ditadura (ANDRADE, 1996; JUBILLUT, 2007; MOREIRA, 2012). Esse período é
usualmente destacado como o momento de inclusão de novos formatos e agentes de ação a
partir de amplos processos chamados de redemocratização do Estado. Teixeira e Souza
Lima salientam, por sua vez, a importância que a essas mudanças lhe outorgaram os
estudos e as preocupações das ciências sociais no período de final dos anos 1980 e
começos dos anos 1990 (2010, p. 62)39.

Para o caso específico das políticas de refúgio, podemos observar que, embora a
importância desse período de significativas mudanças nos formatos de governo e
governança, as relações com o âmbito internacional estiveram sempre presentes e, de fato,
foram uma característica constitutiva. Talvez nas políticas de refúgio, o vínculo (sempre
mutante) com a comunidade de Estados se apresente de maneira mais evidente do que em
outros espaços de governo de populações nos que também tem se dado a produção, em
vários níveis simultâneos, de grupos específicos como coletivos passíveis de intervenção.
Afinal, a figura contemporânea do refúgio é a imagem especular dos vários processos
planetários contemporâneos de constante formação e reformulação, às vezes mais violenta,
de espaços geopolíticos considerados comunidades nacionais. Além disso, o regime
internacional relativo aos refugiados nasce como um espaço vinculado à ideia de “direitos
humanos”, também estabelecida em nível global pelo regime da ONU. Sob a égide desse

39
Segundo os autores, os esforços concentraram-se na análise dessas conjunturas de crítica ao regime militar
“com o progressivo “arrefecimento” e a transfiguração do mesmo até o que se convencionou chamar de
“democratização” do país” (TEXEIRA; SOUZA LIMA, 2010, p. 62).

54
sistema, as pessoas apátridas e refugiadas do período pós-guerra passaram, segundo Arendt
(1998), a serem sujeitos de direitos, por meio das ferramentas oferecidas pelas normativas
internacionais sobre os direitos humanos.

No Brasil, as mudanças apontadas por vários autores em relação à época da ditadura


militar estão relacionadas justamente com o posicionamento e os discursos do Estado
brasileiro a respeito dos direitos humanos e da adesão aos princípios do direito
internacional humanitário (ANDRADE, 1996; JUBILUT, 2007; MOREIRA, 2012).
Contudo, considero que, no desenvolvimento das políticas de refúgio no Brasil, há tanto
rupturas quanto continuidades que permitem pensar as relações entre os integrantes desse
modelo tripartite com uma cronologia diferente. Ou seja, me parece que a relação entre ao
menos dois dos agentes atuais do campo do refúgio não é exclusivamente o produto do
auge participativo das etapas de redemocratização em vários lugares do mundo ou do
fortalecimento mais recente de externalização de funções do Estado como desdobramento
dos modelos neoliberais de gestão.

Assim sendo, proponho abordar alguns aspectos da relação entre esses agentes, antes
mesmo do processo de redemocratização, como continuidades que resultam importantes
para entender a estrutura atual desse modelo de ação no campo do refúgio brasileiro.
Concomitantemente, me interessa deixar algumas pistas sobre as tradições de pensamento
que, antes dos processos recentes de institucionalização do refúgio, permitiram um
tratamento diferenciado a algumas pessoas concebidas como não nacionais e produzidas
como refugiadas, já que considero que boa parte delas podem estar ativas nas relações
atuais, que são tecidas entre agentes de Estado e solicitantes de refúgio.

Durante a segunda metade dos anos 1970, ainda sob a ditadura militar, um vínculo parece
ter-se estabelecido entre o Acnur e a Cáritas, por meio das Cáritas arquidiocesanas do Rio
de Janeiro e posteriormente de São Paulo. Nessa época, segundo as publicações de alguns
de seus atores (ARAUJO SALES, 2010; ARNS, 2010) e as reconstruções realizadas por
vários autores (BARRETO, 2010; SPRANDEL; MILESI, 2003; MOREIRA, 2012), a
Cáritas do Rio de Janeiro começou um trabalho de recepção de refugiados, em sua maioria,
de países latino-americanos que também estavam sob regimes ditatoriais. O programa de
recepção posteriormente ampliou-se até a cidade de São Paulo. Para vários autores e

55
pessoas entrevistadas, o que começaria como uma resposta “humanitária” (ARAUJO
SALES, 2010, p. 62) a uma solicitação pontual realizada por um grupo de chilenos que
fugiam da ditadura de Pinochet, foi se tecnificando até dar origem a um trabalho
coordenado de recepção de pessoas no Brasil ou de apoio para seu reassentamento em
outros países40. Esse trabalho foi conjuntamente desenvolvido pela Cáritas com a
Comissão de Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Posteriormente, uma solicitação para que o Acnur se fizesse presente no Brasil foi ativada
pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Segundo a
reconstrução de arquivo que realizou Moreira, esse escritório que funcionava no Rio de
Janeiro também estava recebendo solicitantes de refúgio sul-americanos e “não tinha
condições de lidar com o problema” (MOREIRA, 2012, p. 116). A reconstrução completa
que realiza a autora sobre esse episódio é esclarecedora:

Como sua presença não era oficialmente reconhecida pelo governo brasileiro, o
Acnur passou a atuar utilizando-se do espaço institucional da outra agência do
sistema ONU, que se dispôs a cooperar [...]

O Acnur entendia que uma parceria com a Cáritas aliviaria o trabalho do PNUD
(Arquivo do Acnur). Em 1° de dezembro de 1976, representantes da agência da
ONU para refugiados e instituições da Igreja Católica se encontraram e
decidiram implementar um projeto de assistência em pequena escala. No início
do ano seguinte, selou-se o acordo em que a Cáritas Arquidiocesana foi
constituída como parceira operacional do Acnur e passou a receber fundos para
assistir os solicitantes de refúgio e refugiados no Brasil (Arquivo do Acnur).

Os convênios celebrados entre os atores não estatais tinham como intuito,


portanto, viabilizar os programas de atendimento aos refugiados no país
(ARQUIVO DO Acnur, Idem, CNBB, Idem, PNUD).

Essa tarefa assumida durante uma época especialmente agitada na experiência social e
política brasileira é atualmente invocada por vários dos atores relevantes no espaço
institucional do refúgio, não apenas para reconhecer a experiência histórica da Cáritas, mas
também uma consequente perícia técnica para continuar com o trabalho até hoje.

40
As pessoas recebidas naquela época, conforme os textos consultados e as pessoas entrevistadas, eram a
maioria militantes políticos que se opunham aos regimes ditatoriais imperantes em vários países latino-
americanos. A recepção deles em território brasileiro era pensada como transitória, como uma ponte para
chegar até um país mais seguro. Essa transitoriedade respondia, em boa parte, ao perigo de serem
perseguidos pelos militares da ditadura no Brasil ou de serem entregues aos governos de seus países de
origem. São hoje bem conhecidas uma série de operações conjuntas entre os corpos de inteligência militar
brasileiros com aqueles dos outros países que, na época, também tinham ditaduras militares, destacando-se
entre eles a chamada “Operación Cóndor”, que contou com coordenação e amplo apoio norte-americano.

56
[...] e a sociedade civil que é o parceiro histórico: as Cáritas Arquidiocesanas de
São Paulo e Rio de Janeiro representam à sociedade civil nesse sentido porque
são os trabalhadores históricos com os refugiados aqui no Brasil. Na década de
70, desde os anos 70 quando chegavam todos os nossos vizinhos latino-
americanos aqui, né? Chilenos, argentinos e todos esses, pois foram as Cáritas
que abriram suas portas para recebê-los. Então a sociedade civil no Brasil é um
dos únicos lugares onde tem direito a voz e voto no comitê de elegibilidade e a
representação é da Cáritas Rio e São Paulo por conta de essa vertente histórica.
(Coordenador do Conare)

Muitas outras vezes, durante a minha pesquisa de campo, essa história foi referida como o
começo da recepção de refugiados no Brasil, apesar de que várias investigações e
publicações, como as realizadas por Seyferth (2011, 2000, 1997), ou a reconstrução
histórica que realizou Moreira (2012), mostram diferentes momentos em que houve
recepção de estrangeiros na condição de refugiados. Nas épocas de pós-guerras europeias,
por exemplo, o assunto da recepção de refugiados esteve fortemente governamentalizado e
era pensado como uma política de Estado (SEYFERTH, 1996). Inclusive, conforme Milesi
e Andrade (2010, p. 27), durante os anos de 1970 e 1980, ainda na ditadura militar, o
governo brasileiro recebeu dois grupos de refugiados, os primeiros vietnamitas e depois
um grupo de 50 familias Baha’í. Esses dois grupos, como mostram os autores, não eram
percebidos pelo Ministério de Relações Exteriores como um risco para a política brasileira,
ao contrário do que acontecia com os refugiados latino-americanos41. É certo que,
eventualmente, esses episódios podem aparecer nas declarações de agentes de governo
para sustentar uma suposta hospitalidade histórica brasileira para com os refugiados.
Contudo, quando se pensa nas origens dos programas contemporâneos de refúgio, ou seja,
na história recentemente institucionalizada do assunto no Brasil, é a atuação da igreja
católica, especialmente da Cáritas, a que aparece como um relato fundador.

A história sobre as ações da Cáritas e da CNBB durante a ditadura militar é também


referida para dotar ao trabalho da instituição, às pessoas pioneiras e até ao trabalho atual de
um conteúdo moral particular. A decisão de acolher refugiados em meio à repressão da
ditadura parece engrandecer mais ainda esse trabalho, usualmente apresentado como um

41
É interessante pensar, à luz das experiências etnográficas e da análise de casos concretos, os princípios que
a intervenção humanitária, por meio de suas agências transnacionais, postula como fundamentos de suas
intervenções e de suas ações. Entre esses fundamentos, a suposta neutralidade política do refúgio se vê
seriamente contestada no momento de “territorializar” as populações. O Acnur, por exemplo, não pode
“salvar” refugiados senão for por meio da localização deles em um determinado território pensado como
nacional e regido por princípios políticos que, por sua vez, politizam o espaço internacional de relação com
outros Estados. A respeito disso, Fiona Terry (2002) oferece uma leitura crítica de vários dos princípios que
essas agências formulam como sendo a base de sua ação humanitária.

57
“gesto” humanitário. Embora realizando o trabalho conjuntamente com o Acnur e estando
envolvido o PNUD, órgãos que se presumem de intervenção “objetiva” e “competência
técnica”, a leitura que me foi apresentada por vários atores coincide com que a tecnificação
do processo de acolhida de refugiados tem como ponto de partida a coragem e a bondade
dos cardeais católicos que começaram a recepção. Ou seja, as explicações acerca do
porquê a Cáritas é a representante da chamada “sociedade civil” no Conare e do porquê
realiza o trabalho de recepção de refugiados encontram-se moral e tecnicamente contidas
nesta história fundacional que circula entre os diversos agentes e espaços contemporâneos
do refúgio no Brasil.

Esse mito fundacional me foi contado pelo então coordenador do Conare, pelas
coordenadoras dos centros de recepção de solicitantes de refúgio das Cáritas e algumas de
suas funcionarias, pelos coordenadores e ex-coordenadores das ONGs que administram o
programa de Reassentamento Solidário, pelas diretivas de outras ONGs que trabalham com
refugiados, e também o encontrei reproduzido em alguns textos de caráter acadêmico, teses
e dissertações, especialmente de ciência política e direito sobre o tema do refúgio
(CALASANZ PACHECO, 2008; FISCHEL DE ANDRADA; MARCOLINI, 2002;
JUBILUT, 2003; MOREIRA, 2012). Parece-me interessante pensar esse relato fundador à
luz das análises propostas por Weber (1982, p. 341) sobre os tipos de autoridade, em que
destaca que, com frequência, “um grupo herói” ou uma “seita heroica” apelam à autoridade
carismática que lhes confere um mito fundacional para reafirmar sua situação de poder.
Parece-me que, junto com a autoridade legal, conferida pelo novo marco governamental de
ação sobre o refúgio que instaurou a Lei nº 9.474/97, a Cáritas também mantém uma
autoridade sobre as práticas do refúgio que derivam não apenas de uma leitura moral de
bondade e entrega sobre suas ações, mas também de um forte vínculo afetivo com os
demais agentes envolvidos na comunidade à que ela pertence.

Entre todas as versões desse relato fundacional, uma delas, que me foi apresentada de
maneira esquematizada por uma funcionaria de Cáritas, parece-me interessante para
elucidar sua capacidade operativa. Essa narração destaca a recepção de exilados políticos
durante os anos de 1970 e 1980 como o momento em que começa a recepção de refugiados
no Brasil e utiliza essa história como uma forma não problemática de explicar o papel e a
importância atual da Cáritas. O relato tem o tom quase de uma apresentação institucional, e

58
a funcionária que a narra com muita propriedade, mesmo trabalhando faz muitos anos com
a Cáritas, é relativamente nova no trabalho com refugiados:

Então, Ángela, a Cáritas é uma organização ligada a Igreja Católica, ela está em
mais de 100 países do mundo. Aqui no Brasil também tem e a Cáritas
Arquidiocesana de SP, dentre seus programas de ação, suas atividades, ela tem o
Centro de Acolhida para Refugiados. Esse trabalho começou há muitos anos, há
33 anos atrás, mais de 33 anos. Começou na época em que a gente estava em
plena ditadura. Esse trabalho começou com um grupo, depois Dom Paulo pediu
que a Comissão de Justiça e Paz assumisse, e depois ele pediu que a Cáritas
assumisse. Quando começou esse trabalho, eram refugiados políticos
estrangeiros, na época da ditadura. Em que ele abrigava, escondia, né? A essas
pessoas, na sua casa, nas igrejas, tanto aos políticos perseguidos aqui, quanto aos
estrangeiros.

A reconstrução que fazem os agentes do vínculo entre a Cáritas e o Acnur coincide nessa
associação histórica desde a década de 1970 e em um posterior reajuste a partir das
mudanças nas relações com o governo brasileiro. Para eles, se durante a ditadura, o
trabalho de recepção de refugiados do Acnur e a Cáritas fez-se apesar do governo, nos anos
posteriores se começaria paulatinamente um trabalho de refúgio juntamente com o
governo, especialmente na década de 1990, quando começou um novo período de
institucionalização do tema do refúgio no Brasil após a promulgação da Constituição de
1988.

Algumas leituras feitas na perspectiva das Relações Internacionais ou o Direito


(MOREIRA, 2012; JUBILLUT, 2007) apontam que, a partir o governo Sarney, as relações
internacionais brasileiras orientaram-se para a busca do fortalecimento de uma reputação
de defesa dos direitos humanos. A ratificação de pactos e convenções internacionais, assim
como o reconhecimento de organismos multilaterais42 seriam eventos emblemáticos nesses
processos que procuravam a relegitimação internacional. Os assuntos relativos aos
refugiados seriam discutidos dentro e fora do Brasil, como parte da pauta geral dos direitos
humanos, especialmente depois da Declaração e do Programa de Ação, resultantes da
Conferência Internacional de Viena em 1993, que foi promovida pela ONU. De fato, para
Jubillut (2007), a lei brasileira de refúgio foi uma derivação do Programa Nacional de
Direitos Humanos de 1996. Assim, a promulgação da atual lei de refúgio (Lei nº 9.474/97)
foi resultado de vários processos simultâneos de mobilização internacional da ONU, do
reposicionamento político e diplomático brasileiro no cenário internacional, de mudanças
42
Durante o governo Sarney, foram ratificados o pacto internacional de direitos civis e políticos, o pacto
internacional de direitos econômicos, sociais e culturais e a convenção contra a tortura.

59
nas formas de governo no nível interno e de uma forte mobilização de alguns setores
sociais, para conseguir uma legislação específica para os refugiados e para modificar o
estatuto do estrangeiro, que, para a época, regia os assuntos relativos ao refúgio com
poucas menções concretas a esse respeito.

Com a posterior institucionalização do refúgio desde sua regulamentação atual, a Cáritas


começou a tecer novas relações a partir dos fios comuns de seu trabalho anterior. Uma das
advogadas descreveu esse processo marcando uma transformação do trabalho da Cáritas de
uma “vocação”, descrita como uma militância, para um trabalho “institucional
humanitário” por meio do reposicionamento de sua relação com o Acnur e com o governo.
Tudo isso apesar de que, na época inicial, a Cáritas também recebia assessoria e recursos
da agência internacional, e a mudança no formato de atuação deveu-se mais à reformulação
de sua relação com o governo central:

[...] Porque ainda antes de que o Brasil tivesse uma lei de refúgio o instituto de
refúgio no país era feito pela igreja [...] A igreja se tornou parceiro natural por
um percurso, um acúmulo, uma vocação. [...] Avaliar isso hoje é muito diferente,
mas acho que tem um percurso. Aí quando se instituiu mesmo o refúgio em 1997
(a lei do refúgio), é criado o Conare, o Acnur reabre o escritório no Brasil e tudo,
aí acho que o setor de atendimento da Cáritas aos refugiados tornou-se mesmo
uma instituição, mais instituição, menos como uma militância da igreja e mais
como um trabalho humanitário ligado ao Acnur, que ai já existe um convênio
institucionalizado, recursos do Acnur, do Ministério da Justiça.

O caso do trabalho desenvolvido por essa organização pode ser lido como um exemplo de
dois processos, aparentemente contraditórios, acontecendo simultaneamente. Em primeiro
lugar, significou um “processo de estatização de poderes dispersos em aparelhos não
governamentalizados” (SOUZA LIMA, 1995), de modo que a atuação dessa organização,
assim como suas relações com os outros atores definidos na lei, passaram a ser
enquadrados dentro das políticas do Estado brasileiro sobre os refugiados e a vincular-se à
gestão central do governo43. Ao mesmo tempo, deu-se uma espécie de descentralização de
algumas das funções que se presumiam como responsabilidade do Estado, por meio de

43
Abram de Swaan (1992), na sua análise a respeito do desenvolvimento de medidas de assistência, faz
referência ao processo de crescimento na escala de coletivização dessas medidas até o ponto delas serem
consideradas nacionais e obrigatórias. Nesse processo de aumento de escala, o autor aponta que: “Estas
medidas fueron haciéndose más colectivas cuando los beneficios que reportaban a los usuarios individuales
empezaron a depender menos de su contribución, y más de su situación, valorada en términos de algún
programa de asistencia. Por último, el Estado, o algún organismo público, fue haciéndose cargo de tales
medidas, dotándolas de la autoridad necesaria para exigir su cumplimiento y del aparato burocrático que se
necesitaba para su puesta en práctica” (1992, p. 16).

60
“convênios” com ONGs e outras agências que se encarregariam desde então (tal como
antes) da atenção à população refugiada, mas, dessa vez, dentro desse novo marco de ação
governamental.

Com essa leitura, me interessa retomar as propostas de Souza Lima (1995, 2012) sobre o
que ele tem chamado “poder tutelar” em seus trabalhos e suas análises das ações do poder
estatal no Brasil sobre os povos indígenas e sobre seus territórios. O autor procura
descrever formas de ação, que mesmo podendo ter origens não estatais, em um momento
determinado, se condensam em “um centro social e geográfico de poder imaginado como
nacional” (SOUZA LIMA, 2012, p. 799). Segundo o autor, essa concentração, como no
caso descrito de Cáritas, é dirigida por especialistas em “imaginação e administração de
coletividades” (Ibidem). No caso que interessa nessa reflexão, o comando de especialistas
chegou por meio de agências transnacionais como o Acnur, cuja competência e construção
prévia como autoridade o autorizavam para a formação de quadros profissionais e agentes
capacitados para a tarefa de criar e administrar refugiados. Essa nova competência
administrativa, conforme a proposta de Souza Lima, permite um exercício de soberania
sobre os territórios de um Estado que se diz nacional, já que, com a produção e
administração dos refugiados, cria-se concomitantemente a fronteira que se deseja
proteger. Tudo isso por meio de dispositivos que não necessariamente exigem um grande
investimento em recursos humanos ou materiais.

De fato, a participação de ONGs da chamada “sociedade civil” tem desempenhado um


papel central assumindo alguns dos compromissos sociais derivados da recepção de
refugiados e, além disso, boa parte de seu financiamento e planejamento tem se deixado
nas mãos do Acnur. No universo brasileiro do refúgio, essa isenção de responsabilidades
pareceria não haver debilitado o poder estatal nesse espaço de gestão de populações, nem
ter afetado a percepção das pessoas nele envolvidas acerca do Estado como um agente
político concreto. Ao contrário, esse formato de ação pareceria alimentar a percepção
comum do Estado “como uma estrutura diferente das agências e das estruturas na
sociedade nas quais opera” (ABRAMS, 1988:80), apontando, como propõe Abraams, que
as formas e os exercícios das práticas políticas são os que, em grande parte, permitem tal
caracterização.

61
Contudo, um alto grau de ambiguidade e de confusão existe entre aquilo que os agentes do
refúgio consideram e apresentam como sendo o Estado e aquilo que consideram e
apresentam como sendo o governo brasileiro, assim como entre os sentidos de
pertencimento estatal e governamental de cada uma das partes integrantes do Conare. Isso
sem mencionar a ambiguidade entre “práticas do governo” e “práticas de governo”. Às
vezes, resulta inclusive complicado para alguns agentes explicar de maneira clara quem é
quem nessa organização tripartite:

[...] Não é que a Sociedade Civil tenha que estar apartada do Estado, não, a
sociedade civil também é Estado. E isso é uma coisa que eu defendo muito no
Conare também, muitas vezes a Sociedade Civil fala que o Conare decide que...,
Não! não é o Conare somente que decide, eles também são Conare. Quer dizer,
aqui o único que pode de fato decidir somos nós, aqui da parte da técnica tem um
voto, quem tem voto são vocês e o Estado e também o Acnur que oficialmente
não tem voto, mas tudo mundo escuta, né? (Coordenador do Conare)

Considero que essas confusões e deslizamentos não são meras imprecisões discursivas, me
parece que elas são ambiguidades experimentadas pelos agentes envolvidos no refúgio e
que, afinal, resultam muito úteis para configurar “uma série de maneiras precisas de
governar e umas instituições correlatas a elas” (FOUCAULT, 1979, p. 21). Essas
confusões e deslizamentos se mostram como causa e consequência da dificuldade de
entender que essas práticas de governança, que conformam “uma sujeição politicamente
organizada”, são em si mesmas processos de estatização e não ações diretas de um agente
político chamado Estado (ABRAMS, 1988, p. 63).

Assim sendo, me interessa pensar que a interação entre as partes constitutivas da atual
institucionalidade do refúgio no Brasil e a ilusão de suas fronteiras bem definidas, assim
como sua ambiguidade simultânea, permitem uma determinada maneira de organizar as
práticas políticas e de criar a ilusão de uma res pública, de um comum interesse da
sociedade brasileira e dos refugiados que nela serão restituídos como sujeitos de direito
(ABRAMS, 1988; HERZFELD, 1992). Essa teodiceia secular, como a chamou Herzfeld,
justifica a criação e ajuda à configuração de um espaço de produção e gestão de
“refugiados”. Para entender esse espaço de produção e administração, volto na proposta de
governança como “um processo de gestão política que inclui não apenas as bases do
exercício de autoridade pública, mas também a forma pela qual são conduzidos os assuntos
de uma coletividade e seus recursos” (TEIXEIRA E SOUZA LIMA, 2010, p. 56). Pelo
anterior, considero necessário focar um pouco na análise do tripartitismo que foi proposto

62
como formato exemplar de participação e que tem se consolidado como um modelo de
ação sobre o refúgio e os refugiados.

2.1. A forma triádica

E esse tripartitismo, vai dizer: Estado brasileiro, Sociedade Civil Organizada e


Comunidade Internacional através do Acnur, eu acho que é o segredo da chave
do êxito de tudo esse trabalho brasileiro de acolhida aos solicitantes de refúgio e
aos refugiados. (Coordenador do Conare)

As relações entre os três atores do tripartitismo do refúgio brasileiro são, é claro, muito
mais complexas do que tem sido apontado até aqui e, nessas relações, há outros atores,
mediadores e eventos importantes. Não pretendo fazer uma história nem das relações, nem
do formato de ação. Porém, a leitura que aqui proponho visa introduzir vários elementos
das relações existentes nessa institucionalidade contemporânea do refúgio, que, por meio
da investigação, pude ir traçando e que serão importantes para os desdobramentos
posteriores do texto. Interessa-me, com isso, tentar compreender, como sugerem Teixeira e
Souza Lima (2010, p. 71), o exercício da administração pública tanto do ponto de vista do
gerenciamento da vida social quanto do ponto de vista das técnicas constitutivas do próprio
Estado como “centro ideal da administração e da governança”.

Antes de continuar, me parece pertinente esclarecer que assumo, para efeitos descritivos,
que as três partes integrantes do Conare são: 1) os representantes da Cáritas, do IMDH44 e
da Asav45, chamados na esfera institucional do refúgio como “sociedade Civil
Organizada”; 2) os representantes do escritório do Acnur no Brasil, eventualmente
chamados de “Comunidade Internacional”; e 3) os representantes de diversas instâncias do
governo brasileiro, que, muito frequentemente, são chamados de “Estado”. Como
mencionado, esses deslizamentos nas formas de apresentar discursivamente às partes

44
A ONG, pertencente à rede mundial de ONGs da Igreja Scalabriniana, chamada Instituto de Migrações e
direitos Humanos (IMDH) participa também nas reuniões do Conare. Sua participação é definida, pelos
representantes do governo brasileiro, como sendo de caráter “consultivo” e, nessa medida, do mesmo tipo de
participação do Acnur que tem voz, mas não voto. O IMDH também cumpre, em alguns casos, as funções de
recepção e atendimento aos refugiados na cidade de Brasília. Durante a pesquisa de campo, a importância
dessa ONG e de sua coordenadora foi se mostrando com muita clareza, de modo que me ocuparei mais
adiante de explicar seu caráter sui géneris, pois, mesmo participando do Conare em tanto que sociedade
Civil, a participação dessa ONG tem importantes diferenças a respeito da representação que realiza a Cáritas.
45
Essa ONG atua como mandatária do Acnur e como representante da Sociedade Civil no Conare para os
processos de reassentamento, enquanto a Cáritas se ocupa dos processos relacionados com o refúgio por
elegibilidade.

63
integrantes são muito importantes na produção de um espaço de administração de pessoas.
Nesse sentido, proponho ao leitor prestar atenção a cada vez que eles aparecerem.

Visando fortalecer a leitura desse modelo tripartite como a expressão de umas formas
particulares de relação entre seus agentes, proponho, em vez de pensá-lo como uma
composição de três elementos, seria mais produtivo abordá-lo como uma síntese dinâmica
de três relações:

Cáritas – Acnur // Acnur – Governo brasileiro // Governo brasileiro – Cáritas

Essa leitura de inspiração simmeliana sugere que, em uma relação diádica, quando entra
um terceiro sujeito/elemento, se produz uma mudança radical na interação. Conforme o
autor, isso acontece porque, na relação diádica, é mantido um alto grau de individualidade
que impede que possa se falar estritamente da existência de um grupo. A existência de um
grupo supõe que há um resultante substancialmente diferente das partes ou dos elementos
que compõem a interação. Com a introdução de um terceiro na interação, então, se produz
uma síntese grupal que ganha uma existência para além das partes ou dos elementos que a
integram. Além disso, a introdução de um terceiro elemento em uma relação diádica
multiplica as opções de interação entre os membros constituintes (SIMMEL, 1964).

O resultado de um formato de tríade ajuda a explicar, ao menos em parte, o caráter


ambíguo do Conare e de algumas de suas funções e competências. As partes constitutivas
do Conare ocupam posições diferenciadas a depender de sua relação com cada um dos
outros dois membros e do tipo de ações que sejam promovidas junto com eles. A Cáritas,
por exemplo, é a representante da “sociedade civil” e, como tal, tem voz e voto no Conare.
Porém, a Cáritas é, ao mesmo tempo, a representante do Acnur no Brasil. Os funcionários
da Cáritas não são funcionários do Acnur, mas existem convênios que aproximam
intimamente a seus funcionários. Por exemplo, os advogados de Cáritas, que são indicados
pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), segundo o perfil estabelecido para esse
trabalho, são quem realizam uma das entrevistas do processo de solicitação de refúgio. Em
algumas ocasiões, esses mesmos advogados participam dos processos de discussão dos
pedidos de refúgio junto com outros membros do Conare. A esse respeito, uma das
advogadas comentou:

64
O que acontece, por exemplo, é que no Grupo de Estudos Prévios 46 existe uma
discussão, vamos dizer, mais técnica sobre os casos. Então dessa reunião do
GEP, participam os advogados da Cáritas do Rio e de São Paulo, do IMDH de
Brasília, do próprio Conare e está aberto para todos os membros do Conare. Mas
efetivamente só vão representantes do Ministério de Relações exteriores e da
Policia Federal.

Nessa explicação, a advogada expressa certo grau de externalidade em relação ao Conare.


Veja-se que ela disse “do próprio Conare”, quando, a princípio, o Comitê é formado
também pelos representantes da Cáritas. Nesse caso, essa posição contextual e a relação
diferenciada com o Ministério da Justiça lhe permite à Cáritas estar, por vezes, dentro e,
por vezes, fora desse Comitê. Por outro lado, essa situação também tem a ver com a
relação igualmente multifacetada que a Cáritas estabelece com o Acnur. Lembremos que
esse último tem caráter de “convidado” e que a Cáritas, às vezes, atua “como se fosse”
delegada desse organismo. Parece-me que, até o momento, podemos falar de pelo menos
uma dupla existência para a Cáritas nessa tríade, na qual ela é ao mesmo tempo “sociedade
civil” e mandatária do Acnur no Brasil. Uma situação similar apresenta-se com a ONG
Associação Antonio Vieira (Asav), que, por vezes, faz de representante da “sociedade
civil” no processo de seleção de refugiados a ser reassentados no Brasil, sendo,
simultaneamente, representante do Acnur (MOREIRA, 2012).

Por sua parte, a Cáritas também estabeleceu umas relações particulares com o governo
brasileiro por meio da figura de convênio, entendida aqui, conforme Barroso-Hoffman
(2009, p. 75), como um instrumento político-administrativo que permite – e, às vezes,
estimula – interpretações ambíguas sobre as competências do Estado e os deveres da
“sociedade civil” e o “terceiro setor” no âmbito das políticas públicas. Esse formato
específico de operação colabora para que existam outras formas de ser percebidas como
“estando dentro” ou como “estando fora” do Conare. As advogadas da Cáritas, algumas
delas pagas com a verba governamental destinada a esse convênio, recebem e assessoram
aos solicitantes e refugiados, acompanham o processo de solicitação e realizam a mediação
entre o solicitante e os órgãos governamentais que devem ser ativados para implementá-lo.
Inclusive, são elas quem os assessoram no processo para recorrer da decisão do Conare no

46
O Grupo de Estudos Prévios é um grupo de discussão prévio â reunião do Conare onde são apresentadas e
discutidas as solicitações que serão aprovadas o rejeitadas oficialmente durante a planária. A dinâmica e a
constituição desse Comitê serão explicadas em detalhe na segunda parte da tese.

65
caso de que essa seja negativa. Nesse último caso, a Cáritas, representada pelas suas
advogadas, faz parte do processo de recorrer uma decisão que ela mesma propôs,
independentemente de seu parecer sobre cada caso examinado.

O anterior significa que a Cáritas teria outra existência nessa tríade, atuando também como
mediadora entre os solicitantes e outros organismos que integram o Conare, por exemplo,
com a Polícia Federal, dando um encaminhamento para que o solicitante acione a
solicitação formal de permissão de estadia no Brasil. Também é mediadora entre o Conare
e os postos da Polícia Federal nas cidades onde atua. Nesses casos, comunica e pede ao
Comitê para elaborar e enviar as permissões de emissão de todos os documentos que a PF
expede para os solicitantes e refugiados.

Cáritas também aciona os Ministérios e a Secretaria de Educação, Saúde e Trabalho, ou os


órgãos competentes em cada cidade, para tramitar a documentação necessária no acesso
aos serviços públicos de educação, saúde e emprego. Os agentes e as oficinas dos órgãos
governamentais mobilizados em cada cidade, para esses casos da documentação e acesso a
serviços, não são os mesmos que, como delegados, fazem parte e participam no Conare.
Ali também reside uma das características da constituição multifacetada desse comitê.

Um fragmento de uma entrevista que realizei com uma das advogadas da Cáritas, é
interessante a respeito desse caráter múltiplo do Conare; nela este comitê aparece pelo
menos com duas facetas possíveis. Em primeiro lugar, como um órgão administrativo
diferenciado dos outros membros que o integram e encarnado em um “agente
entrevistador” que realiza uma ação que se supõe objetiva e desvinculada dos outros
membros. Em segundo lugar, aparece como um exercício deliberativo conjunto em que a
existência mesma do comitê é possível somente por meio dessa atuação coletiva:

Aí tem que pensar que existe uma diferença: uma coisa é o Conare como órgão
administrativo que faz entrevista e um parecer e o parecer é assinado por alguém.
E a plenária do Conare. Na plenária, existem vários membros, inclusive a Cáritas
e ali é que se faz o julgamento. E nesse julgamento eles levam em consideração o
parecer da Cáritas (da Sociedade Civil) e o parecer do Conare. (Advogada da
Cáritas)

No Conare, aliás, o governo brasileiro está representado por agentes de diversos órgãos
governamentais que não necessariamente coincidem em suas avaliações e seus juízos sobre

66
o dever ser da instituição do refúgio no Brasil. Durante minha pesquisa de campo, vários
funcionários de ONGs e do Acnur coincidiram em afirmar que a Polícia Federal tem uma
postura mais rígida e defensora da segurança nacional, enquanto que o representante do
Ministério da justiça, que preside o Conare, foi-me apresentado como um defensor dos
direitos humanos e um líder dos processos qualificados como “mais vanguardistas” no que
diz respeito à legislação. Para ele, o foco das políticas de refúgio deveria ser o da proteção
“humanitária”, uma visão na qual coincide com os representantes do Acnur, da “sociedade
civil” e dos representantes dos ministérios integrantes.

Essa divergência complica ainda mais as interações da tríade, nesse caso justamente pela
relação entre os diversos representantes do governo e seus posicionamentos sobre o
refúgio. Como visto, apesar das diferenças expressas entre o Departamento de Polícia
Federal (DPF) e o Ministério da Justiça (MJ), uma é parte constitutiva do outro. Isso quer
dizer que a Polícia Federal é um “órgão específico singular” do Ministério da Justiça, de
modo que as ações da PF nas fronteiras ou em seus escritórios, assim como seus
posicionamentos públicos a respeito da migração e do refúgio, também são
posicionamentos e opiniões do Ministério da Justiça.

Nesse sentido, parece-me necessário iniciar dois caminhos diferentes para tentar dar conta
dessa relação complexa. Em primeiro lugar, considero que, ao nos referirmos à postura de
alguns dos delegados do DPF e a alguns dos representantes dos ministérios, estamos
efetivamente diante de posicionamentos diferentes a respeito de como deve ser entendida a
“nação brasileira”, de qual deveria ser o tratamento dado às pessoas consideradas pelos
marcos e processos administrativos do Estado como estrangeiras e de qual é o papel
desempenhado pelo discurso das normativas internacionais de proteção aos “direitos
humanos” tanto no posicionamento do Brasil como um Estado dentro da comunidade
global de Estados quanto no tratamento oferecido a suas populações consideradas
nacionais.

Essas diferenças são reafirmadas no espaço existencial de alguns agentes do refúgio, por
exemplo, com a enunciação de seu compromisso ético com ideais democráticos e com a
evocação de suas histórias pessoais ou familiares de exílio, muitas delas engendradas na
repressão da ditadura militar brasileira. As análises e investigações que se realizem aos

67
processos nos que esses agentes com visões contrárias interagem não devem por isso, a
meu ver, obliterar essa importante diferença. De fato, é a defesa dos direitos humanos e da
democracia liberal – que inclui ideais de transparência, eficiência e participação –, a qual
oferece a possibilidade mesma da crítica – embora seja restrita –, que seria impossível se o
modelo de ação estivesse plenamente construído sobre as bases restritivas da segurança
nacional. Os efeitos das formas de governo que resultam dessas relações complexas não
poderiam ser entendidos considerando que as práticas de governo e a racionalidade que as
sustenta são meramente repressivas. Não apenas porque, como já disse, para a construção
de um espaço de produção e gestão de refugiados se necessita a participação ativa e
desejosa das pessoas construídas como tal, mas também porque a preocupação pelo
sofrimento dos sujeitos e a mobilização coletiva para aliviar sua dor, são processos
profundamente sentidos como emoções e práticas morais bondosas, motivadas por boas
intenções de ação reparadora sobre condições consideradas injustas (BOLTANSKY, 1993;
FASSIN, 2010; SAYAD, 1991).

Em segundo lugar, como outra via de análise, proponho simultaneamente levar em conta
que a existência dessa relação contraditória que contrapõe soberania nacional à
universalidade dos direitos humanos, pode tornar-se uma maneira efetiva para explicar as
contradições e o suposto “mau funcionamento” dos processos e das práticas burocráticas.
Por um lado, porque uma das partes pode ser acusada de implementar práticas que
resultam contrárias à visão política da outra ou que dificultam seu trabalho. Por exemplo, a
constante queixa da Polícia Federal sobre a abertura irresponsável das fronteiras para os
estrangeiros que alguns membros do Conare estariam facilitando por meio do discurso da
defesa dos direitos humanos. Situação que, aliás, lhes impediria aos agentes federais
exercer um controle mais severo sobre os territórios, sobre as pessoas e sobre seus
trânsitos. Por outro lado, também funciona como explicação na medida em que muitos dos
problemas de funcionamento em relação aos documentos, vistos, tempos de espera,
processos de reconhecimentos, etc., encontram uma justificativa suficiente nesse repertório
interno de mútuas acusações (e desobrigações) que tem como base a contradição das partes
(HERZFELD, 1992, p. 46). Enquanto alguns representantes dos ministérios e a Cáritas
acusam a Polícia Federal de querer impedir a entrada de refugiados obstaculizando os
trâmites e submetendo-os a tratamentos agressivos, os agentes da Polícia Federal nos
postos burocráticos acusam a Cáritas de dilatar os processos, de não ser clara a respeito dos

68
limites de suas competências, e ao Conare de não realizar pontualmente os
encaminhamentos, de não formar e informar a tempo das novidades aos agentes, etc.

Também entre a Cáritas e o Acnur, parceiros históricos, existem tensões e acusações de ter
visões diferenciadas. Apesar dessas duas instituições, apresentadas por seus agentes como
o dueto defensor da forma mais extensiva possível de direitos para os refugiados, algumas
divergências a respeito apareceram durante minha pesquisa de campo. Por exemplo, um
representante do Acnur e a coordenadora do programa de reassentamento da mesma
agência estiveram interessados em falar comigo a respeito de minhas percepções sobre a
Cáritas. Eles ficaram sabendo de minha investigação por meio de um refugiado
colombiano que eu conheci durante a minha pesquisa de campo e que eles acham que é um
representante legítimo dos refugiados.

Na conversa que mantive com os agentes do Acnur, eles expressaram sua preocupação pela
visão moralizante cristã que algumas funcionárias da Cáritas puderam estar empregando,
como critério de seleção e de tratamento diferenciado com os refugiados. Também
expressaram que “os juízos sobre os comportamentos morais das pessoas não fazem parte
dos critérios do Acnur”, mas continuaram me explicando que, no Brasil, pela competência
técnica e pelo peso que tem a igreja católica, é impossível pensar nesse trabalho sem
recorrer às instituições católicas e mais especificamente à Cáritas. Em todo caso, eles
opinaram que eu “não deveria acreditar em todas as queixas dos solicitantes e refugiados,
me instruindo, além disso, sobre as formas que as pessoas despossuídas “utilizam o tempo
todo para se fazerem de vítima diante de quem puder lhes ajudar de alguma maneira”. A
conversa encerrou com a sensação, da minha parte, de que novamente as falhas dos
processos de reconhecimento de refúgio eram localizadas em “outras” das partes
constitutivas e nunca na parte da tríade representada pelos agentes com quem eu
conversava.

Tudo isso sem esquecer as mútuas acusações que também circulam entre a Cáritas e o
governo, nas quais este último é acusado de destinar muitos poucos recursos para o
atendimento dos refugiados, ser pouco eficiente na análise dos casos e utilizar visões muito
restritivas no momento de realizar as entrevistas de seleção e a análise das solicitações.
Essas explicações, sempre deferidas, do “mau funcionamento” são válidas – pelo menos,

69
na maioria das vezes – como explicações para as pessoas submetidas à burocracia que
terminam criando sua própria versão sobre os “maus” e os “bons” agentes.

O caso de uma família colombiana que chegou ao Rio de Janeiro como solicitante de
refúgio e que eu recompus a partir do relato de várias pessoas é ilustrativo a respeito da
construção desse repertório de explicações acerca das dificuldades burocráticas. Estando
em uma situação econômica muito difícil, a família conseguiu um lugar para se hospedar
em um bairro de ocupação na zona norte da cidade. Quando contataram a Cáritas, as
funcionárias da instituição lhes encaminharam à Polícia Federal de onde foram devolvidos
sem conseguir ativar a solicitação. Na Polícia Federal, foram informados que, devido à
entrada em vigor do acordo de circulação do Mercosul entre Brasil e Colômbia47, eles já
não poderiam pedir refúgio, mas deveriam ativar a solicitação de um visto por meio do
referido acordo. Um trâmite que não era por eles desejado e para o qual não tinham
consigo a documentação necessária. A notícia foi um duro golpe para a família, não
somente por não conseguir fazer a solicitação de refúgio mas também porque, no
deslocamento de todos os integrantes da família, do bairro de habitação até o escritório da
Policia Federal, localizado no aeroporto internacional da cidade, tinham gastado perto de
R$ 100 (cem reais), comprometendo sua possibilidade de alimentação e hospedagem nos
dias seguintes.

Quando o porta-voz da família informou à Cáritas sobre o acontecido, as funcionárias da


ONG opinaram que era uma situação lamentável e acusaram a Polícia Federal de estarem
maltratando e desinformando aos solicitantes. A solução proposta pela Cáritas foi enviar as
pessoas de volta para o escritório da Polícia Federal, mas, dessa vez, acompanhadas por
outra solicitante de refúgio que iria assessorá-los com a língua portuguesa e com os
trâmites. As funcionárias também informaram à família que a Cáritas tem recursos muito
limitados e que não poderiam cobrir os custos do transporte até o escritório da Polícia
Federal.

A mulher que foi eleita como acompanhante dessa família tinha, na época, poucos meses
morando no Brasil, havia tomado somente algumas aulas de português e, como era de

47
Trata-se do “Acordo de Residência e Livre Trânsito dos países membros do Mercosul” que será abordado
com mais detalhe na segunda parte da tese.

70
supor, desconhecia boa parte dos processos de solicitação de vistos ou de refúgio. Contudo,
o fato de ter chegado à casa da filha dela, que mora no Brasil há vários anos, lhe permitiu
chegar com melhores condições ao país do que a maioria dos solicitantes mais
empobrecidos e sem redes prévias. Então, ela aceitou o pedido da Cáritas de acompanhar à
família. Ela concordou com que seu processo de integração era muito bom, como falavam
as funcionárias da ONG, e isso a colocava no lugar de quem tem a capacidade de ajudar os
outros; essa condição a agradava e, segundo ela, a ajudava no seu processo de adaptação ao
país. Ela também me contou que se sentia na obrigação moral de “colaborarles en lo que
se pueda porque en la Cáritas me han apoyado mucho”. Por exemplo, a ONG havia
estendido o tempo de apoio econômico que ela recebia desde sua chegada; esse arranjo,
segundo recomendação das funcionárias da Cáritas, devia ser reservado porque nem todas
as pessoas recebem esses desembolsos financeiros.

Em qualquer caso, a intermediação dessa solicitante não surtiu nenhum efeito positivo, e a
Polícia Federal manteve-se firme a respeito da decisão de não ativar a solicitação de
refúgio. Não serviram de nada, nem as tentativas de explicação dessa intermediária
informal, nem o pranto em que finalmente caiu o homem “chefe de família”, segundo me
contou sua própria acompanhante. Tempo depois quando coversei com algumas das
funcionárias da ONG, elas confirmaram sua preocupação pela atitude da Polícia Federal e
estavam considerando “ir elas mesmas até o escritório da Policia Federal para averiguar o
que estava acontecendo”, mas antes era preciso “resolver muitas outras coisas”. Segundo
as funcionárias me explicaram, a equipe de trabalho tinha sido reduzida por problemas
orçamentários do Acnur, e o convênio com o Ministério da Justiça não era o bastante para
atender todas as necessidades do programa de recepção de refugiados.

Dessa forma, nessa situação – além das mútuas inculpações entre as partes constitutivas da
institucionalidade do refúgio para explicar as dificuldades experimentadas pelos
solicitantes –, outro elemento muito importante cobra relevância: a contínua referência e
exibição da precariedade, acompanhada da arbitrariedade e da contingência como critérios
aplicados na distribuição dos recursos (FASSIN, 2000, p. 127). Não ter recursos, ter muito
trabalho, ter pouco pessoal, depender de convênios com instituições sem capital, etc., são
situações constantemente evocadas pelos agentes da tríade para explicar as demoras, a falta
de intervenção, as restrições nos benefícios oferecidos, etc. As vidas dos solicitantes não

71
somente são assumidas como vidas precárias pelos mecanismos de espoliação, que foram
discutidos no começo dessa parte da tese, mas também são continuamente inscritos no
território da falta. Confeccionar um espaço de governo de refugiados e performar ao
próprio refugiado passa indefectivelmente pela elaboração desse mal-estar constante do
precário.

Embora muitas vezes as explicações oferecidas pelos agentes a respeito dos problemas
sejam aceitas pelos solicitantes, outras vezes essas têm efeitos diferentes daquele da
desculpa pretendida. Por exemplo, algumas funcionárias da Cáritas acusam os agentes da
Polícia Federal de estarem impondo a visão de segurança nacionalista deles e impedindo as
pessoas de solicitarem refúgio. Ao fazer isso, as funcionárias buscam também eximir sua
própria responsabilidade em relação às dificuldades do processo de solicitação. Porém,
muitos dos solicitantes e refugiados com os quais eu falei tinham mais queixas sobre o
atendimento recebido em Cáritas do que sobre o atendimento nos escritórios da Polícia
Federal.

Supõe-se que nem sempre uma posição “mais hostil” para com os estrangeiros se traduz
em maus tratos ou ineficiência nos procedimentos, nem mesmo uma posição “mais
hospitaleira” se traduz em mais eficácia nos procedimentos ou em uma relação mais
cordial com os solicitantes ou refugiados. Um fragmento de uma longa entrevista com um
solicitante condensa várias das inconformidades que escutei de muitas outras pessoas. Para
esse solicitante, tudo no Brasil ia bem, o contacto com a Polícia Federal havia-se
apresentado como mais um passo – nada problemático – na sua viagem e na sua entrada no
território brasileiro, até que ele encontrou-se com a Cáritas, que descreve como um
obstáculo:

Yo llego inicialmente a Corumbá que es el primer Estado de Brasil, después de


Bolivia. […]. Allí en Corumbá me presento ante las autoridades que se llaman
Policías Federales, allí me dan un protocolo provisorio por 15 días, pero es un
protocolo de ese estado. Allí me encaminhan48 los padres para llegar a Sao Paulo

48
Em muitas das conversas e entrevistas que mantive com solicitantes e refugiados, assim como com outros
colombianos em outras situações migratórias, foi notória a utilização de palavras em português no meio de
um dialogo em espanhol. Não terei o tempo de explorar os debates que existem a respeito da linguagem, a
migração, a tradução e a recomposição das relações das vidas dos migrantes. Porém, considero interessante
apontar a recorrência de algumas palavras do vocabulário administrativo que foram rapidamente
incorporadas pelas pessoas, inclusive por aquelas que não falam português. Uma dessas palavras é
“encaminhamento” que, muitas vezes, é mesmo conjugada em espanhol. Outras frequentemente utilizadas

72
[…] Entonces me vine para acá con toda mi familia y aquí troque la
documentación porque no sirve, que es lo que dicen las autoridades. Trocamos la
documentación que es el actual protocolo que tengo. Muy motivados, muy
contentos en Brasil, nos habían recibido muy bien y nos habían atendido muy
bien […] Cuando yo ya llego a Cáritas, ya es otro proceso, ya es otra limitante,
ya es otro obstáculo, llamémoslo así. En vez de ser Cáritas una solución para mí,
es un obstáculo, yo le llamaría obstáculo. Una valla alta, alta, inmensa, grande,
donde yo voy corriendo tranquilamente y se me presenta un obstáculo. Me dice
PARE, STOP, no puede seguir. ¿Por qué? porque son parsimoniosos, lentos,
paupérrimos en la atención y son demasiado lentos. Esa lentitud se transfiere, esa
lentitud se representa en que vuelvo a quedar otra vez en el abismo. Porque
dependo de Cáritas para actualizar mi protocolo, dependo de Cáritas para
actualizar mi cartera de trabalho.

Se a Cáritas ou as ONGs que trabalham com reassentados são referidas com mais raiva
pelos refugiados e solicitantes, não é porque seja somente lá onde eles se sentem
maltratados. De fato, como tem sido apresentado, as respostas contraditórias, os trâmites
desnecessários e os tratamentos agressivos nos postos da Polícia Federal são
frequentemente narrados pelos solicitantes. Quando me foram contadas, essas experiências
chegaram a ouvidos sensibilizados porque o tratamento hostil nos escritórios da Polícia
Federal não é reservado exclusivamente para os refugiados, ao contrário, muitos outros
estrangeiros temos experimentado uma boa dose de “atendimento policial”. Claro,
atendimento que é sempre mediado por marcadores sociais que são lidos de maneira
diferencial pelos agentes da Polícia Federal como o gênero, a cor da pele, a nacionalidade,
o pertencimento suposto de classe, a maior ou menor habilidade com a língua portuguesa,
etc., e que engendram tratamentos mais ou menos hostis. Considero que a especial
indignação das pessoas com as ONGs corresponde, em grande parte, às expectativas
diferenciais que se estabelecem com esses dois tipos de “agentes de Estado”, ambos
integrantes do Conare.

Enquanto presume-se que a Polícia Federal é uma força de “segurança nacional” e que a
ela lhe corresponde cuidar do controle de entrada, permanência e saída de estrangeiros, as
ONGs, ao contrário, são percebidas como locais de ação humanitária. A expectativa sobre
esses locais estaria então no registro compassivo da “assistência” e não no registro
repressivo da “vigilância”. Talvez por isso, as expressões de impotência e desespero que as
pessoas experimentam na Polícia Federal transformam-se rapidamente em decepção por
não contar com o apoio dos agentes das ONGs. Ao mesmo tempo, a responsabilidade do

são “carteira assinada”, “rua”, “protocolo”, “aluguel”, “bolsa”. Nas citações, deixarei essas palavras como
foram utilizadas e conjugadas por meus interlocutores, indicando-as em itálico.

73
que acontece é transferida para um lugar maior e mais poderoso de gestão que permite
presumir que os funcionários da Polícia Federal tanto como aquelas das ONGs, não
resolvem os problemas não porque não querem, mas porque não podem. O poder das ações
desses agentes e, portanto, o poder que elas exercem sobre as ações dos refugiados é
percebido como emanando de uma fonte maior e de difícil acesso:

Estoy muy decepcionado de todo esto, y sobre todo de esa gente de allá [las
funcionarias de la ONG que lo recibió], tan despreocupada, en fin, escribí para
todo mundo hoy ¡Me gustaría tanto poder hablar con la gente de Brasilia, o
hablar con alguien importante sobre todo! (Juan Felipe, refugiado reassentado)

O trecho acima é parte de um e-mail que recebi de um refugiado reassentado que


precisava, pela primeira vez, renovar sua permissão de prazo de estadia depois de dois anos
de ter chegado ao Brasil e que teve sérios problemas com a papelada para fazê-lo. Depois
de ativar infrutuosamente a Cáritas da cidade para onde ele se mudou e de ir pessoalmente
à Polícia Federal para tentar pedir a renovação por conta própria, decidiu escrever uma
mensagem conjunta dirigida ao Ministério da Justiça, à ONG que o tinha recebido, à
Caritas e a mim, que tinha também infrutuosamente tentado lhe ajudar no processo:

Boa tarde.
Preciso muito da ajuda de vocês para resolver esta situação, na verdade, até o dia
de hoje 22/08/2013 não consigo realizar renovação de meu documento pelas
razões abaixo relacionadas.
Já fiz todo o que foi recomendado, e entre ligações a Caritas, Conare e Antonio
Vieira, ninguém me da uma resposta positiva sobre o assunto.
Com todo respeito, quando uma pessoa chega ao Brasil nas minhas condições,
não é para permanecer um ano só, em um ano não acaba ou se define a vida de
um refugiado neste país, é precisamente em um ano, onde sua vida realmente
começa.
Obrigado pela atenção costumeira.
Juan Felipe

As escusas e acusações circulares são frequentemente ativadas, deixando os solicitantes e


refugiados confundidos a respeito da origem dos problemas. É nesse momento que muitos
deles decidem se comunicar “diretamente com o Conare” ou diretamente com “Brasília”,
espaços de gestão que resultam personificados nesses movimentos. Nos casos das pessoas
que têm a informação de contato, que sabem quais são as partes envolvidas no Conare e
que dispõem de meios para fazê-lo, elas geralmente decidem comunicar-se
simultaneamente com todas as partes incumbidas. Com esse movimento, está não apenas
se personificando o Conare mas também está se reforçando a existência desse espaço

74
conjunto de gestão, dessas práticas de governança constituídas comumente pelas partes
envolvidas e que todas essas dinâmicas descritas ajudam a manter.

Finalmente, cabe apontar também que o Ministério da Justiça é apresentado pelos agentes
da tríade como a “vanguarda da defesa humanitária” só de maneira relativa se comparada,
por exemplo, com a visão de algumas das advogadas da OAB. Como representantes do
Acnur, algumas delas expressaram sua preocupação pelo caráter restritivo do exercício de
alguns dos agentes entrevistadores que envia o Conare. Segundo elas, prima nessas
entrevistas um caráter policiesco no caso de alguns dos agentes. Uma das advogadas
afirmou que a Cáritas (como mandatária do Acnur) e os agentes entrevistadores do Conare
têm uma visão diferente sobre como deveria ser compreendido o processo de
reconhecimento de refúgio:

A diferença que existe entre nossa perspectiva e a do Conare começa, por


exemplo: Os entrevistadores do Conare eles tem uma perspectiva que é fazer a
distinção entre o migrante e o solicitante de refúgio. Então eles vão investigar
qualquer informação que possa levar a que se trate de um migrante e não de um
refugiado. Para nós aqui, claro que essa distinção ela é parte do nosso trabalho,
mas o que nos interessa desde o inicio é saber sobre o fundado temor. Então por
exemplo, a gente não trabalha mais sobre uma categoria que se usava em
elegibilidade que é a categoria de credibilidade, o seja se a narrativa que o
solicitante faz se ela é crível, o seja se ela parece verdadeira ou não. Isso implica
em muitas diferenças, entre isso que a gente faz e o Conare. Por exemplo, se eu
estou fazendo uma entrevista e eu percebo que no depoimento desse solicitante
ele comete uma contradição, por exemplo, ele disse uma data e depois no meio
ele disse outra data. Isso impõe para mim um desejo de perguntar sobre essa
contradição: “Olha, eu vejo uma contradição, como é que você explica?” Ele
deve ter a chance de explicar qualquer contradição porque tudo que ele disse
pode ser usado ao seu favor ou contra. Não é essa perspectiva quando o Conare
faz entrevista, para eles, se ele se engana significa que ele está mentindo, se ele
está mentindo significa que ele é um migrante e se ele é um migrante ele não
recebe refúgio.

Essa diferença salientada no trecho citado resulta especialmente interessante se comparada


com os já mencionados elogios públicos que o Acnur tem feito da legislação brasileira49 e
particularmente desse formato de gestão tripartite. Se todo o processo de reconhecimento
de refúgio, segundo os agentes do governo brasileiro, está orientado por uma “legislação
progressista e de vanguarda”, baseada na proteção dos direitos humanos, e se a maioria de

49
Ver por exemplo:
JORNAL DO BRASIL. Acnur elogia política brasileira para refugiados. 11 nov. 2010. Disponível em:
<www.jb.com.br/pais/noticias/2010/11/11/acnur-elogia-politica-brasileira-para-refugiados>. Acesso em: 20
jul. 2013.
UNHCR ACNUR: Agência da ONU para Refugiados. O Acnur no Brasil. Disponível em:
<www.acnur.org/t3/portugues/informacao-geral/o-acnur-no-brasil>. Acesso em: 23 abr. 2012.

75
seus agentes está comprometida na defesa dos ideais do direito internacional humanitário,
resultam inquietantes o descontentamento constante dos solicitantes, o reduzido número de
refugiados reconhecidos e as múltiplas dificuldades burocráticas e sociais que enfrenta esse
grupo de pessoas no país.

Parece que a síntese da tríade Conare é, apesar da maioria de seus agentes e partes
constitutivas, tão defensora dos direitos humanos como aguda em seu caráter seletivo e
restritivo. Isso, insisto, para além das características dos elementos que a integram e,
especialmente, para além das intenções individuais e subjetivas dos agentes que a
conformam. Esse caráter duplo é possível precisamente porque o status do refúgio está ele
mesmo baseado num sistema moral de distinção de pessoas, na produção de categorias
puras e na depuração dos possíveis contaminantes. Descartar os “resíduos contaminantes”,
para retomar a proposta de Ferreira (2011), tem como objetivo permitir que, perante o
sofrimento e a espoliação das pessoas que atravessam as fronteiras, a resposta socialmente
aceita no nível mundial seja reconstruir moralmente seu sofrimento em forma de refúgio e,
dessa maneira, poder legitimar também – e especialmente – à sociedade de recepção (DAS,
1997b, p. 564-565), criando, simultaneamente, as fronteiras desse Estado que se declara
capaz de receber e restaurar.

Parece-me que, nessas práticas de governança relativas ao refúgio no Brasil, tanto a


produção constante de precariedade quanto a exclusão cuidadosa das categorias
contaminantes aparecem como outras das características instituidoras da produção do
refúgio e dos refugiados. Essas características podem ser lidas como desdobramentos ou
aprofundamentos das formas para manter a imagem exitosa, generosa e solidária do
refúgio no Brasil, que foram elencadas no começo do texto. Para compreender a existência
e a particularidade dessas características, é preciso perceber que, apesar das contradicções
internas das partes integrantes da tríade, elas fazem parte de algo comum, integram um
exercício particular de poder.

Nesse exercício de poder, a forma triádica, com todas as tensões e supostas contradições
até aqui assinaladas, é muito importante para o estabelecimento desse vínculo que Souza
Lima (2012, p. 785) chamou de submissão/proteção. Por meio da relação entre as três
partes, o Estado aparece como uma totalidade que tem o saber e o poder para resolver as

76
situações que – em uma escala percebida como um plano local – os refugiados, os
solicitantes e mesmo os agentes de estado experimentam. A forma triádica permitiria a
cada um de seus integrantes aparecerem como agentes neutrais, arbitrar nas disputas ou
tirar proveito do conflito, sem comprometer com nenhuma delas a ilusão do Estado como
centro exemplar da governança (SIMMEL, 1964; SOUZA LIMA, 2012, p. 795-796).

2.1.1. A tríade em seus agentes localizados

Antes de abrir o texto com as minúcias dos processos de refúgio no Brasil, gostaria de
apontar outros aspetos que considero importantes, entre outras coisas, para relativizar
precisamente essa ideia de Brasil como unidade e, com ela, a de Brasil como um “país de
refúgio”. Estou me referindo ao número restringido de agentes que compõem o universo
institucional do refúgio e à centralidade de algumas cidades brasileiras nas ações que
realizam, especialmente de Brasília, onde se encontram vários e importantes espaços de
decisão. Parece-me necessário lhe dar um lugar à reflexão sobre esses assuntos, na medida
em que eles ajudam a salientar que o trabalho de campo que deu origem ao presente texto
realizou-se nos estados que formam um eixo bastante particular na composição regional
brasileira: o eixo Centro-Sul-Sudeste.

Não sobra dizer que, se a investigação tivesse sido levada a cabo, por exemplo, na região
Norte, onde há um número significativo de colombianos entrando pela fronteira
amazônica, outras necessidades analíticas e outras características poderiam surgir em
relação à análise da instituição de refúgio no país. Se a natureza restrita da pesquisa
doutoral não me permitiu dar conta dessa possível linha de fuga, as outras cidades que
foram incluídas, foram-se mostrando como lugares-chave para entender como se constrói e
se faz um esforço para manter a imagem idealizada do refúgio da que tenho falado até
agora.

A primeira cidade que apareceu com importância, desde o começo da pesquisa, na


produção da figura contemporânea do refúgio foi Brasília. Porém, falar em Brasília como
um dos locais-chave da pesquisa e da compreensão do campo não significa que eu assuma
que é somente no Distrito Federal onde são “pensadas” as políticas e onde são “geridos” os
programas de recepção e atendimento de refugiados. Ao contrário, como tenho apontado
previamente, o trabalho de campo tem mostrado que, nos locais concretos de interação

77
entre diversos agentes de Estado e os solicitantes de refúgio ou refugiados, são produzidas
continuamente mudanças, não somente nos programas e nas políticas mas também nas
racionalidades que os orientam e os produzem (MITCHEL, 1999). Dessa forma, as
indagações se orientaram mais a pensar, além da separação geográfica e a concentração de
organismos decisórios, quais são os elementos que contribuem na produção desse efeito de
centro exemplar pensante. Do mesmo modo, também comecei a me interrogar sobre a
maneira na qual algumas caraterísticas dessa construção de centralidade são transladadas a
outras cidades para mediar a relação entre agentes de Estado e solicitantes de refúgio.

A centralização dos lugares “poder” e sua separação desempenham um papel-chave em


vários aspectos. Em primeiro lugar, criam uma diferenciação dos sujeitos que, fisicamente,
podem e “devem” ter acesso, ocupar ou fazer uso desses espaços. Lembremos, por
exemplo, as decisões de levar algumas das sedes dos organismos de decisão para Brasília
com o intuito de “melhorar a comunicação” com outras instituições e órgãos
governamentais, além de solucionar o problema das pessoas protestando na frente delas 50.
Já dentro da cidade, há a necessidade de “proteger” algumas sedes da possível aparição
reivindicativa das populações sobre as quais atuam. Por exemplo, a sede original do Acnur,
órgão-chave no nível mundial nas políticas de refúgio, foi transladada para um exclusivo
setor do Distrito Federal, na parte posterior de um centro comercial com uma forte
vigilância desde a entrada, sendo colocado, além disso, um requisito extra de identificação
fotográfica e digital de segurança caso as pessoas quisessem ter acesso aos escritórios51.

Essa dinâmica pode ser desestimulante para alguém cuja situação no país não esteja
totalmente resolvida em termos de permissão de estadia e vistos ou, simplesmente, para
alguém que sinta que sua presença pode ser lida pelos seguranças como “perturbadora” ou
“ameaçadora” na ordem social daquele local. De fato, a sede do Acnur está longe de ser
um lugar frequentado por grupos ou indivíduos reconhecidos como refugiados ou

50
Esse ideal pretendido de afastar alguns espaços das pessoas e de seus protestos apareceu várias vezes nas
conversas com funcionários de ONGs ou do governo. Entretanto, eles mesmos reconheciam que, hoje em dia,
é mais difícil manter essa distância com as pessoas que, de diversas maneiras, procuram e conseguem chegar
até o Distrito Federal e realizar acampamentos e outros tipos de protesto.
51
Essa característica não parecem ser uma exclusividade do Acnur-Brasil. As sedes dessa agência, em outros
países, também estão localizadas em setores exclusivos e vigiados das respectivas cidades. No Equador,
segundo me contaram algumas pessoas reassentadas, a vigilância que impossibilita a entrada dos refugiados é
ainda mais evidente que no Brasil. Nas palavras de uma das pessoas referidas: “[...] Allá ni pensarlo, a uno le
tocaba hablar con HIAS porque el Acnur es inaccesible, eso parece blindado, con escoltas y todo” (Sandra).

78
solicitantes. Já tenho mencionado que a decisão de levar a sede do Acnur para esse local
tem relação com o protesto em forma de acampamento realizado por um grupo de pessoas
de origem palestina (HAMID, 2012). Segundo o que eu consegui perceber em campo, essa
estratégia de mudar a sede de local foi complementada com uma reserva, pelo menos
parcial, na circulação dos números telefônicos, endereços e nomes dos agentes
responsáveis dos diferentes setores do Acnur.

O Conare também não recebe, nos seus escritórios, as pessoas solicitantes ou refugiadas.
Como foi apontado anteriormente, isso faz parte das funções das ONGs que representam a
“sociedade civil” e que têm sido contratadas com esse propósito. Assim, em Brasília, o
atendimento às pessoas é realizado, geralmente, na sede das ONGs parceiras,
especialmente na casa onde funciona o IMDH, localizado num bairro popular da periferia
no norte da cidade. Por sua vez, esse bairro pode ser desestimulante para alguns dos
agentes de Estado cuja presença poderia ser pouco habitual nesse setor da cidade ou para
quem a reputação de periculosidade do bairro lhes faça temer pela sua segurança.

Outras vezes, especificamente no caso dos refugiados reassentados, os funcionários evitam


receber as pessoas nas sedes das ONGs e preferem ir até as casas delas. Uma ex-
funcionária do programa de Reassentamento Solidário comentou-me, numa entrevista, que
o endereço da ONG não era oferecido aos refugiados porque “[...] como a sede da ONG
em Campinas é muito elitizada, então as assistentes iam até as casas”. Essa disposição dos
locais do refúgio que excluem boa parte dos refugiados de alguns espaços e desestimulam
a presença de alguns funcionários de outros contribui na criação de uma imagem de
campos afastados entre a racionalização das políticas de refúgio e a execução das mesmas.
Simultaneamente, são mecanismos que se acomodam nas desigualdades sociais
preexistentes e as reproduzem no processo da suposta restituição de pessoas à vida cívica.

Contudo, longe de ser um lugar de atendimento apenas, algumas das ONGs, como o
IMDH, são espaços muito importantes na dinâmica nacional do refúgio e nas decisões que
orientam as ações ao respeito. O IMDH é uma organização pertencente à Igreja
Scalabriniana, é uma das representantes da chamada “sociedade civil organizada” e
participa ativamente da estrutura tripartite do Conare como representante da Sociedade
Civil e como ONG conveniada com o Acnur e o Governo. Segundo o coordenador do

79
Conare, “[...] o Instituto de Migrações e Direitos Humanos tem status consultivo especial
diferenciado, semelhante ao do Acnur que tem voz, mas não tem voto [...]”. A diretora do
IMDH foi quem indicou as ONGs que atualmente se ocupam de implementar o programa
de Reassentamento, assim como alguns dos funcionários que, na época do meu trabalho de
campo, ocupavam cargos de importância para esses programas no Acnur. Além disso, essa
Irmã é uma figura-chave na articulação dos diferentes planos de ação e facetas do Conare e
mais extensamente do campo no Brasil.

A Irmã diretora do IMDH tem uma longa experiência de trabalho no tema do refúgio e a
migração. Ela foi uma figura-chave no lobby que permitiu a aprovação da Lei nº 9.474/9752
e é frequentemente consultada por funcionários de outras ONGs da rede ampla de
assistência dessas populações. Em algumas ocasiões, enquanto eu conversava com ela,
também foi consultada por funcionários de governo ou do Acnur. A Irmã pode ser
entendida como uma mediadora, no sentido proposto por Wolf (1969) para esse termo,
pois ela circula e conecta espaços (ministérios, sedes de ONGs nacionais e estrangeiras,
sedes de organismos internacionais, igrejas, casas de famílias refugiadas, etc.), criando
relações entre eles e, ao mesmo tempo, novas formas possíveis de interação. A presença
dessa mediadora no universo institucional do refúgio também pode ser lida como uma
lembrança viva e permanente das origens não necessariamente estatais do exercício de
poder sobre as populações. Nesse caso, o poder da igreja católica e sua gestão sobre os
corpos e os movimentos das pessoas que saem de – e entram nos – territórios, os cruzam e
os apropriam.

Não é à toa que a apresentação da rede de instituições que pertencem à igreja Scalabriniana
no Brasil, que trabalham preferencialmente com migrantes, utilizem sua própria imagem
do refúgio que se remite à história bíblica da fuga dos pais humanos de Jesus, o filho de
Deus. A imagem que está em várias das sedes dessa rede de instituições em diversas
cidades e que circula também como capa de livros, marcadores de página e outros
materiais de papelaria e apresentações de eventos, é a imagem de José e Maria – grávida
ou com o filho no colo – fugindo num jumento de Belém para salvar a vida do “salvador”
da humanidade. Essa imagem remete para outra construção possível da comunidade de

52
O relato detalhado de como foi o processo de mobilização para conseguir a aprovação da lei no Senado é
reconstituído pela mesma autora em coautoria com Cesar Andrade (2010).

80
integração para os refugiados, na qual as fronteiras dos Estados-nação contemporâneos são
uma imposição de soberania que violenta a comum humanidade dos filhos de Deus e seus
direitos, de origem divina, sobre a terra e os territórios. Os agentes com a investidura do
poder religioso, segundo essa leitura – e só segundo ela – teriam inclusive maior extensão e
mais capacidade de inclusão do que as agências transnacionais como o Acnur. Enquanto
essa última só pode operar baseada no marco da comunidade global de Estados, o trabalho
de recepção de migrantes e de proteção de refugiados que as redes multinacionais católicas
têm feito é apresentado por seus agentes como uma ação muitas vezes levada a cabo apesar
desse marco.
Imagem 1

Outro dos aspectos que se derivam da condensação geográfica de alguns espaços tem a ver
com essas redes e conexões entre agentes que realizam alguns mediadores, como a diretora
do IMDH. Existe uma proximidade (física e social) dos lugares e das pessoas que têm
poder de influência nas políticas nacionais sobre refúgio. Tal proximidade dos lugares e
das pessoas facilita a circulação dos funcionários entre a estrutura tripartite, ocupando
diversos cargos e, geralmente, fazendo uma carreira profissional que começa nas ONGs e
continua até alguns dos órgãos do governo nacional ou do Acnur. Como causa e como
efeito, o “saber que permite a ação”, para utilizar os termos de Teixeira e Souza Lima
(2010), está concentrado em um numero reduzido de agentes.

81
Alguns dos funcionários do Acnur que encontrei em Brasília, por exemplo, começaram sua
carreira profissional em ONGs parceiras da ONU e foram se destacando até serem
contratados pelos órgãos internacionais que trabalham sobre migração e refúgio. Também
alguns dos funcionários de governo que entrevistei tinham ocupado cargos na diplomacia
internacional desses organismos antes (e/ou depois) de ocupar cargos de governo 53. A
maioria dos diferentes agentes que entrevistei se conhecem pessoalmente, compartilham
espaços de sociabilidade e, de fato, alguns deles só aceitaram falar comigo como resultado
de uma mediação de amizade com as pessoas que me ajudaram na entrada ao campo em
Brasília.

Também é possível perceber uma circulação de agentes em comum entre outros espaços
conectados com essa rede institucional do refúgio. O exemplo mais evidente é aquele das
universidades e a produção de textos sobre o tema. Nesse caso, profissionais das áreas de
Direito, Relações Internacionais e Psicologia, que têm trabalhado na Cáritas ou nos
escritórios do Acnur e do Conare, são, em grande medida, os produtores da bibliografia
disponível sobre o tema, segundo tem sido apontado por algumas autoras (SPRANDEL;
MILESI, 2003). Além disso, com contadas exceções, são essas mesmas pessoas as que
promovem a introdução do tema nas cátedras universitárias e são as encarregadas de
ministrá-las. Também são agentes dessa rede os que estabelecem o contato com o grupo –
também limitado – de pessoas que, nas cidades estudadas, trabalha com migração e
refúgio, pessoas essas que são entendidas como uma rede extensa de organizações da
sociedade civil, tal como será discutido no final deste capitulo.

Além disso, alguns funcionários da tríade Conare, especialmente aqueles que estão na
faceta “sociedade civil”, fazem parte de grupos ou organizações que se caracterizam por
uma posição crítica ante certos aspectos restritivos das políticas de refúgio. Desse modo,
dentro do espaço comum de uma mesma rede de agentes encontra-se o planejamento dos
programas, a implementação das disposições e a elaboração das críticas. Essa dinâmica
descrita auxilia ainda a formação de um grupo restrito de especialistas sobre o tema e
favorece a existência de pessoas que são em si mesmas quase instituições, pois elas detêm

53
Não encontrei em campo o movimento contrário, quer dizer, desde o governo ou o Acnur até as ONGs.
Considero que se trata de trajetórias profissionais ascendentes que ilustram, por sua vez, a percepção social
hierarquizada dos componentes dessa estrutura tripartite.

82
a memória dos programas e estão fortemente treinadas num saber-fazer específico que tem
se desenvolvido para os processos de refúgio.

2.2. Eixo Sul-Sudeste

A circulação de agentes entre essa rede descrita significa, muitas vezes, a circulação de
pessoas por diversas cidades. Porém, outras tantas permanecem fixas durante anos nos
locais de recepção de refugiados. Esse último é o caso das coordenadoras dos programas
de recepção de refugiados no Rio de Janeiro e Porto Alegre, que, pela sua experiência
local, também têm se convertido em funcionárias-chave nesse saber-fazer do refúgio. O
conhecimento das condições locais dos municípios e das cidades de um determinado
estado parece ser altamente valorizado, na medida em que há permitido o
“aperfeiçoamento” e adequação dos programas tal como propostos pelo Acnur. Além
disso, têm permitido também a elaboração de Planos e Comitês Estaduais de atendimento
aos refugiados com características próprias nas cidades com maior índice de recepção de
refugiados. No desenho desses planos e comitês, os funcionários e ex-funcionários do
universo institucional do refúgio em cada uma das cidades têm desempenhado um papel
preponderante.

Mais à frente será discutida, com maior detalhe, a razão pela qual o Conare decidiu
trabalhar com ONGs de recepção de refugiados espontâneos nas cidades de São Paulo, Rio
de Janeiro, Brasília e Manaus. Por enquanto, concentrarmos no Programa de
Reassentamento Solidário será mais útil para entender a eleição de algumas cidades como
lugares para o refúgio. Originalmente, o Programa de Reassentamento Solidário foi
projetado para receber pessoas em três estados: Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e
São Paulo. Com o tempo, o programa sediado em Natal encerrou, e a ONG que o
coordenava desvinculou-se dessa estrutura institucional. A coordenadora de outras das
ONGs ainda ativa, que implementa o programa em outro estado, tem algumas explicações
a respeito:

No momento em que vem essa comissão [de seleção] para o Brasil, a gente já vai
conversando sobre os casos, a gente já vai vendo: “olha, esse aqui é o perfil,
olha, essa aqui é uma família com muitas crianças”. Então, Rio Grande do Norte
quando tinha uma ONG lá, aí as famílias não iam muito lá por questão da
educação lá, porque a saúde lá é mais complicada e já tem muitas dificuldades. E
então nós não vamos agregar mais uma família lá para passar dificuldades.
Então, se passam a quem tem um acesso melhor que é Rio Grande do Sul e São
Paulo, que tem a questão mais estruturada da saúde e da educação. Então, esse é

83
o tipo de avaliação que se faz [...] Se avalia que, por exemplo: uma mulher chefe
de família com filhos; se avalia onde é que tem projetos. Aqui têm bastantes
projetos para mulheres chefes de família, porque, além do projeto nosso, nós
buscamos condições políticas, sociais de serviços, outras ONGs que de apoio
para essa família, se ela quiser, né?

Uma das ex-coordenadoras do Programa de Reassentamento Solidário em outro dos


estados onde o programa está ainda ativo também explicou o encerramento do programa de
reassentamento em Natal por razões similares:

[...] No caso, por exemplo, no grupo de Natal; eles saíram depois que eu saí, já aí
eu não sei o que houve para eles saírem, mas tinham dificuldades maiores de
integração, a expectativa, por exemplo, em relação ao retorno de trabalho em
ganhos. Então, eles tinham muitas dificuldades nesse nível de avançar mais.
Porque o Nordeste também tinha, agora eu acho que não tem tanto como tinha
antes, também uma demanda social e tal. Pode ser que seja isso daí.

Nesses critérios de avaliação dos lugares de acolhida, aparece, mais uma vez, a ideia de
receber as pessoas conseguindo que os problemas que usualmente lhes são associados aos
migrantes e refugiados (SAYAD, 1991; MALKKI, 1995) possam ser contornados para que
a sua presença não cause problema. As cidades são avaliadas em termos de infraestrutura
de serviços que possam evitar a precarização social dos refugiados, que mesmo assim
acaba por acontecer em muitos casos. Os lugares também são avaliados segundo sua
suposta capacidade de acolhida. Essa última não somente avaliada em termos de
necessidade de mão de obra, opções de moradia, saúde, educação, etc., mas especialmente
pelo caráter “acolhedor” das pessoas e das comunidades.

A respeito disso, é também interessante o diálogo com a diretora da outra ONG que
coordena o Programa de Reassentamento Solidário, que salientou o elemento quantitativo
como fundamental para conseguir um “bom reassentamento” ou, melhor, para que o
refúgio não seja um problema:

[...] [o Brasil] é um país que, ao contrário do Equador, tem muita população preta
e, além disso, um histórico de migração que conformou o Brasil [...] alemães,
poloneses, italianos, japoneses, portugueses... Assim que ser colombiano não
afeta muita coisa. Se a gente já teve até um monte de Bolivianos. Agora, que
causa curiosidade pela diferença, sim. Não pela questão do preconceito, mas pela
curiosidade do mesmo processo do refúgio [...] Agora, é entendível o que
acontece no Equador, porque uns quantos colombianos tudo bem! Mas 60.000?
Já é complicado.

84
A mesma explicação, baseada na capacidade do “povo brasileiro” – do Sul e do Sudeste –
de receber e integrar pessoas estrangeiras devido a seu histórico de migração e a seu
“caráter multicultural” me foi oferecida e reafirmada em outro momento pela segunda das
coordenadoras ativas. Porém, não somente as coordenadoras atuais defenderam essa visão,
também nas minhas conversas com uma ex-coordenadora do programa esses elementos
apareceram como a razão pela qual o reassentamento se faz nessas regiões:

O Brasil, sobretudo nesse eixo Sul e Sudeste, eu acho que a gente tem uma
formação do povo já que dá facilidade para isso. Você não tem um preconceito
das pessoas, não tem [...] Mas quando eu falo assim: mais o eixo Sudeste é no
sentido mais dessa história do idioma que as pessoas querem ajudar tanto que até
termina atrapalhando porque de aí eles [os refugiados] se acomodam e tal. E
também assim, a gente tem uma mistura mais forte de integração nessa região
aqui, São Paulo, Minas, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, que você tem muita
migração e, então, você tem muita mistura de raças. Então, não tem dificuldade,
eu acho que preconceito, e esse negócio não é dificuldade. No Sul, eu não sei,
mas eu acredito que não tenha, pelo menos eu nunca ouvi os meus colegas falar.
(Ex-coordenadora do Programa de Reassentamento Solidário)

Considero que, na conversa com uma das coordenadoras, ela condensou os três elementos
ligados às cidades como espaços de refúgio que foram constantemente salientados por
outros agentes. Além disso, esses elementos foram apresentados como métodos-chave para
conseguir a “integração exitosa” das pessoas e, portanto, para o sucesso dos programas e
da instituição do refúgio de modo geral. Alguns desses elementos já haviam aparecido na
discussão e revelam-se com mais evidência nesse vínculo com os estados e municípios.
Trata-se de um número controlado de pessoas que ingressam, a capacidade de escolher os
lugares para a “integração” delas e a potencialização discursiva da capacidade de acolhida
das comunidades, ativando um histórico de migração que se presume também exitoso e
cordial. É ativada também uma leitura comunitarizante da “nação brasileira” que tem sido
muito bem criticada por alguns autores por meio de análises de diversos processos de
migração (SEYFERTH, 1996; LESSER, 2000). Segundo essa imagem hiperbolizada de
Brasil, existiria um Sul brasileiro civilizado e desenvolvido cuja capacidade de receber
refugiados estaria, em boa medida, baseada na sua origem de uma migração, miscigenada,
amavelmente assimilada e, mesmo assim, multicultural.

[...] aí então nós começamos a redesenhar o nosso programa aqui brasileiro e –


dentro do brasileiro – o regional; porque o programa do Rio Grande do Sul é
diferente daquele do Rio Grande do Norte, São Paulo. Porque quem já conhece
um pouquinho o Brasil já sabe que aqui existem vários países ao mesmo tempo,
e aí muitas vezes até nosso dialeto é diferente, então são realidades diferentes
que acho que, no trabalho, tem que ser levado em conta. Porque não é a mesma
coisa, não é. Aqui no Acnur Rio Grande do Sul, há cidades muito bem

85
desenvolvidas na área da saúde, educação, projetos sociais, adaptação, que não é
a mesma condição do que em São Paulo, no centro do Brasil. Não é nem porque
é melhor nem porque é pior, senão porque é diferente. Aqui nós somos a maioria
filhos de migrantes, então nós encontramos, principalmente nas cidades do
interior do estado do Rio Grande do Sul, muita acolhida e muita solidariedade
para receber os refugiados. Então, nós começamos com um projeto aqui na
região de Porto Alegre e ampliamos para mais 15 cidades no Rio Grande do Sul,
cidades de pequeno e mediano porte, exatamente para aproveitarmos da melhor
forma de tudo o potencial local e também não criar um grande impacto, porque
imagina tu botar 50 pessoas numa cidade de 20.000 habitantes ou 30.000
habitantes, imagina o estresse que isso pode causar.

2.3. Os outros da “sociedade civil”

Apesar da centralidade que temos descrito de algumas ONGs nesse formato de ação
tripartite das políticas contemporâneas de refúgio no Brasil, existem outras organizações
que fazem parte importante. Algumas delas são, de fato, decisivas para o desenvolvimento
dos programas de refúgio. Já tem sido mencionado o caso do IMDH cuja coordenadora foi
uma das férreas promotoras da Lei nº 9.474/97 e participa ativamente da vida institucional
que tem sido descrita. Porém, na vida cotidiana dos solicitantes e refugiados, existem
outras ONGs e pessoas determinantes. Também no universo discursivo do Conare,
aparecem comumente essas organizações, grupos de pessoas, instituições, etc.,
apresentadas e compreendidas como “a sociedade civil”. Por isso, considero necessário
desmembrar um pouco essa noção que foi aparecendo, sempre de maneira diferenciada, no
discurso institucional do refúgio nas cidades onde realizei a pesquisa.

Quando os agentes envolvidos nesse mundo institucionalizado falam da participação da


“sociedade civil” nas intervenções públicas (eventos comemorativos, programas de
televisão, oficinas de trabalho, seminários, entrevistas, etc.) ou nos textos que são
produzidos sobre o tema (livros, relatórios, notas de imprensa, propaganda etc.) estão
aludindo a, pelo menos, quatro coisas diferentes. Em primeiro lugar, “sociedade civil”
pode referir-se à Cáritas que é a organização não governamental que participa do processo
de recepção e seleção de refugiados e que tem voz e voto durante as reuniões plenárias do
Conare. Geralmente, esse é o uso dessa noção quando são apresentados o formato tripartite
e a lei brasileira de refúgio. A Cáritas também é, como temos visto, a protagonista da
história contemporânea do refúgio que, em alguns casos, permite sua construção como uma
prática nascida da sociedade por oposição a uma prática surgida do Estado.

86
Em segundo lugar, “sociedade civil” pode aludir de maneira pontual às outras instituições,
também confessionais, que participam tanto da implementação dos programas de
reassentamento quanto do Grupo de Estudos Prévios54 que é realizado antes da reunião
plenária do Conare para discutir as solicitações de refúgio. Nesse caso, a sociedade civil
faz alusão ao IMDH, à Asav e ao CDDH, e eventualmente também à Cáritas ou a cada
uma dessas organizações separadamente. Nesses casos, a utilização da noção depende, em
grande medida, do programa ao qual se esteja fazendo referência (refúgio por elegibilidade
ou reassentamento). A utilização nesse caso também vai depender do lugar de enunciação.
Em Porto Alegre, por exemplo, dentro das políticas estaduais ou municipais para
refugiados, a primeira referência à “sociedade civil” será a Asav, ONG conveniada com o
Acnur e com o governo brasileiro. A mesma coisa acontecerá em Guarulhos com o CDDH.

Em terceiro lugar, “sociedade civil” pode aludir ao conjunto de organizações, na maioria


confessionais, mas não exclusivamente, que trabalham com populações migrantes e
refugiadas. Nesse caso, existe uma ampla rede coordenada pela Igreja Scalabriniana que
inclui paróquias, centros de estudos e pastorais para migrantes em diferentes estados e
cidades do Brasil. A representação dessa rede em São Paulo funciona sob o nome de
Missão Paz e compreende o Centro de Estudos Migratórios, o albergue A Casa do
Migrante e a pastoral do migrante. Em Porto Alegre, essa igreja está representada pelo
Cibai Migrações (Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios) da Igreja de Pompeia, e no
Rio de Janeiro o trabalho é feito na paróquia de Santa Cecília e São Pio X.

Também existe uma organização não confessional que trabalha especificamente com
refugiados: o Instituto de Reintegração do Refugiado (Adus). Essa ONG, que tem poucos
anos de funcionamento, vem tentando disputar espaços de gestão de refugiados com as
ONGs confessionais que têm convênios com o Acnur e o governo. Mesmo que seu
coordenador tenha conseguido realizar alguns projetos de tipo audiovisual em parceria com
o Acnur, a maior parte do trabalho é feito com pessoal voluntário. Essa característica não é,
porém, exclusiva dessa ONG e não obedece somente à ausência de recursos
governamentais ou do Acnur para seus projetos. O trabalho voluntário também é utilizado

54
O Grupo de Estudos Prévios (GEP), tal como foi apontado na nota de rodapé 46, é um grupo de discussão
prévio à reunião plenária do Conare, no qual são apresentados e discutidos os pedidos que serão aprovados
ou rejeitados oficialmente na planária. A dinâmica e a constituição desse grupo serão explicadas
detalhadamente na segunda parte da tese.

87
pelas ONGs que recebem verba do governo e do Acnur, e desse voluntariado depende boa
parte dos serviços que são oferecidos aos solicitantes e refugiados. De maneira mais ampla,
como veremos, esses voluntários também são contados dentro do espaço concebido como a
“sociedade civil”.

Em São Paulo, também há outras organizações que trabalham com a questão migratória de
maneira mais ampla, como é o caso do Instituto de Direitos Humanos e Cidadania (IDHC)
e, mais recentemente, da ONG Aprendiz. Algumas dessas organizações, ocasionalmente,
se articulam ao redor de publicações e grupos informativos ou de discussão, como é o caso
do O estrangeiro55 ou do Jornal Conexão Migrante56. Também existem grupos de pessoas
que trabalham em associações segundo seu país de procedência ou o país de procedência
de seus pais, como é o caso da Associação de Residentes Bolivianos (ADRB). Vale a pena
esclarecer de que estou incluindo, nessa lista contingente, apenas aquelas organizações e
grupos que ativei para o trabalho de campo ou que apareceram com mais frequência nos
textos, nos documentos, nos eventos e nas entrevistas.

Em quarto lugar, “sociedade civil” pode estar referindo outro tipo de instituições e
organizações que não trabalham exclusivamente sobre o tema da migração ou do refúgio,
mas que, de alguma maneira, atuam ou se relacionam com eles. Esse é o caso da OAB, que
ocupa um lugar de destaque por sua relação com o Acnur na indicação de advogados para
os programas. Além disso, a OAB inaugurou em algumas cidades, comissões de
refugiados, exilados e proteção internacional como parte de sua própria estrutura. Nos
estados nos quais têm sido criados “Comitês Intersetoriais para o atendimento de
Refugiados”, especificamente São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, além da OAB,
outros setores são incluídos nesse rótulo de “sociedade civil”.

Em São Paulo, por exemplo, é incluída a chamada “Red S” do grêmio do comércio: Senai,
Senac e Sesc. Em outras cidades, outras associações de comerciantes, empresários e
profissionais também são aludidas. Alguns acordos de atendimento médico também foram
estabelecidos com centros de saúde, como o Instituto de Psiquiatria (IPq) e o Hospital das
Clínicas em São Paulo e algumas consultas privadas em Porto Alegre. A Cáritas, em São

55
O ESTRANGEIRO: Brasil país de imigração. Disponível em: <oestrangeiro.org>.
56
DIREITOS SOCIAIS. Jornal Conexão Migrante. Disponível em:
<www.direitosociais.org.br/author/jornal-conexao-migrante>.

88
Paulo, realizou acordos com programas de formação em Relações Internacionais das
universidades Rio Branco e Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) para que os
estudantes colaborassem na busca de informação sobre os lugares de origem dos
solicitantes de refúgio. A Universidade Federal de São Carlos oferece, por sua vez, um
processo seletivo especial, com reserva de vagas para pessoas refugiadas.

Essa forma mais geral de referir-se à “sociedade civil” inclui também agentes menos
articulados à chamada “rede de proteção” dos refugiados. É o caso das igrejas locais
(muito frequentemente protestantes), congregações religiosas nos bairros, grupos culturais,
associações de vizinhos e mesmo indivíduos que, atuando como “doadores”, passam a
serem considerados parte dessa categoria.

A preeminência de instituições ligadas à igreja católica que trabalham com migrantes e


refugiados e que têm distintos tipos de relação com o governo nacional tem ocultado a
presença e a ação de instituições e agências ligadas a outras igrejas. Durante meu trabalho
de campo, as pessoas relataram, por exemplo, ter recebido apoio e suporte financeiro de
igrejas cristãs não católicas (protestantes históricas e neopentecostais) assim como de
comunidades muçulmanas ou mesquitas nos bairros de recepção. Outras pessoas aludiram
à intermediação de instituições ligadas com essas igrejas, atuando como formas
alternativas de circulação, refúgios não oficializados com os Estados, ou proteção que
também não ativava os mecanismos internacionais da transferência de pessoas. Porém,
essas igrejas não costumam ser referidas nesse nível de “sociedade civil” que estou
descrevendo. Quando elas são mencionadas pelos agentes da tríade – e poucas vezes são –
elas são inscritas num plano muito geral que corresponderia a uma forma de extensão do
termo “sociedade civil” até variados e dissimilares setores sócias.

Esse nível mais capilar de concepção da “sociedade civil”, que geralmente é referido pelos
agentes no nível municipal, foi destacado pelos coordenadores dos programas. Para eles, os
serviços que são conseguidos através de esses grupos ou pessoas representam uma
contrapartida significativa com a qual a “sociedade civil” estaria contribuindo com os
programas de refúgio:

E a gente desenvolveu o programa em parceria com a Cáritas diocesanas. Eles


ajudavam a acompanhar as famílias, paróquias que podiam dar o suporte,

89
voluntários que podiam dar o suporte. Ou seja, isso significou que, depois de um
ano de trabalho, a gente percebeu que, dos recursos que o Acnur repassava para
fazermos o trabalho, a gente conseguia um 70% a mais, a partir do apoio local
com a integração no serviço público de saúde, com o apoio das paróquias, com
apoio das comunidades, com apoio das famílias. A gente tinha algumas
assistentes sociais nas localidades que faziam o acompanhamento, mas assim, o
mais sistemático de documentação de acompanhamento a PF tudo. (Ex-
coordenadora do Programa de Reassentamento Solidário)

Então, por exemplo, cada consulta com psicólogo que nós conseguimos é
normalmente 130 ou 140 uma consulta com psicólogo, e a gente consegue
negociar com clínicas ou pessoas por R$ 50, e isso já é um ganho aí. Esse é um
ganho indireto de recursos, essa é nossa contrapartida para o orçamento do
Acnur, então quase que hoje o orçamento do Acnur que a gente recebe, a gente
quase que consegue mais de 50% daquele valor em outros serviços tanto da
sociedade civil como de governos e iniciativa privada onde a gente consegue
bastante apoio. Então, o que melhorou nesse meio tempo? Nós conseguimos
muitos mais parceiros para melhorar muita coisa. Então assim: a cidade é
solidária com o reassentamento, então hoje nós temos assim, se o Acnur tiver
mais recursos para receber mais pessoas, nós teríamos certamente mais
capacidade, bem maior, porque nós temos parceiros que nos ajudam nisso.
(Coordenadora da ONG de Reassentamento Solidário)

Existe também uma quinta opção, geralmente ativada num plano maior de referência; quer
dizer quando se faz alusão ao “Brasil” no plano dos Estados, é possível encontrar a ideia de
“sociedade civil” como abarcando as quatro opções anteriormente elencadas. Essa
categoria enunciada nesse plano, às vezes, cobra outra dimensão sendo facilmente
substituída pela “nação brasileira”, também frequentemente qualificada como acolhedora,
multicultural e oriunda da migração.

Finalmente, aquela que em campo é referida como “A Academia” também aparece como
ator, relevante e ambíguo. Na percepção de diferentes agentes e na sua própria
apresentação de sim, essa “Academia” oscila entre o fora e o dentro, não somente do
universo institucional do refúgio mas dos diversos rótulos de “sociedade civil” que têm
sido propostos. Porém, considero importante salientar que nem todas as práticas
profissionais das pessoas que, de alguma maneira, apoiam os processos de refúgio são
consideradas práticas acadêmicas nesse universo. Proponho que somente aquelas que
conseguem inscrever sua “competência profissional num espaço de ação política”
(FASSIN, 2010, p. 125-127) são concebidas como um ator acadêmico que participa das
práticas e dos processos do refúgio.

Alguns autores que têm se ocupado de estudar as dinâmicas dos pedidos de asilo na França
(D’HALLUIM, 2012; FASSIN, 2010) ou na Inglaterra (GOOD, 2006) mostram a

90
centralidade que algumas profissões adquirem nesses processos. A competência dos
médicos como profissionais capazes de ler no corpo do solicitante tanto as marcas da
tortura quanto a correspondência delas com o relato que conta como é que essas marcas
foram ficando tem sido apontado por Fassin (2010). Junto com ele, outros autores apontam
a criação de um espaço “psi” que permitiu a configuração do sofrimento traumático e
habilitou a inscrição da autoridade experta psiquiátrica nos processos políticos de
reparação às “vítimas” ou de concessão de refúgio (KLEINMAN; DAS & LOCK, 1997;
DAS, 2003; FASSIN; RECHTMAN, 2007).

No caso pesquisado por Good na Inglaterra (2006), com solicitantes de refúgio de origem
Tamil de Sri Lanka, a participação de profissionais inclui a presença “experta” da
antropologia. Segundo o trabalho do autor, as decisões de refúgio no modelo inglês estão
baseadas em uma interpretação não somente da “verdade” contida no corpo ou na psique
do sujeito, mas no território geográfico do qual ele fugiu. O antropólogo então é ativado
como experto sobre um lugar e como o profissional capaz de oferecer uma visão objetiva
sobre os possíveis conflitos ou dinâmicas que fundamentam, ou não, o temor de
perseguição do solicitante. Essa consideração das circunstâncias do país de origem do
solicitante está baseada no modelo técnico que o Acnur sugere como base para os
processos de refúgio no nível mundial. Porém, sobre esse pacote de instruções e sugestões,
cada país pode realizar adaptações, leituras e apropriações.

No caso brasileiro, a adoção dessa armação técnica teve desdobramentos diferentes.


Embora as circunstâncias do país que expulsa sejam levadas em conta, não é um
antropólogo ou um sociólogo o profissional ativado para realizar o laudo ou dar uma
opinião experta. As próprias advogadas que entrevistam o solicitante são as encarregadas
de buscar, via internet, a informação sobre o lugar de banimento. A leitura do lugar de
expulsão pode ativar inclusive os profissionais das Relações Internacionais que se
presumem capazes de interpretar politicamente as informações sobre a realidade social de
qualquer país e região do mundo. Essa relação e os processos que ela implica serão
discutidos detalhadamente na terceira parte da tese. Interessa-me, por enquanto, apontar
que, no universo institucional do refúgio no Brasil, são essas as competências profissionais
que têm um lugar de destaque e poder sobre os processos, os corpos e a “verdade” dos
solicitantes de refúgio e refugiados.

91
De maneira menos evidente nos processos legais de reconhecimento, mas não menos
legitimada ou poderosa, aparecem os profissionais da psicologia e da psiquiatria. Na
medida em que é assumido que o sujeito refugiado é um sujeito sofrente e que esse
sofrimento deixa marcas (KLEINMAN; DAS; LOCK, 1997; DAS, 2003; FASSIN;
RECHTMAN, 2007), esse conhecimento experto é presumido não somente como capaz de
aliviar a dor mas também de colaborar na produção da “verdadeira” história de cada
sujeito, contribuindo assim no processo de seleção dos “verdadeiros refugiados”. De outra
parte, o espaço considerado humanitário – no qual é inscrito o refúgio – está baseado, entre
outras características, na ideia de aliviar o sofrimento (MLAKKI, 1995; FASSIN, 2010;
AGIER, 2006) e já que o sofrimento psíquico é assumido como uma realidade
incontestável, a presença de profissionais capazes de o “tratar” vira um requisito dos
programas humanitários.

Todos esses profissionais, como foi anteriormente apontado, são também produtores de
bibliografia sobre o refúgio e catedráticos sobre o assunto. Quando as pessoas se
desvinculam dos cargos oficiais de trabalho nas instituições que integram a tríade do
refúgio, a invocação de sua presença remete não ao espaço universitário no qual
geralmente atuam, mas a seu papel de “acadêmicos”. Considero que isso obedece, em
parte, a ideia de que muito mais do que “a universidade” é “a academia” que pode ser
construída como um agente extrapolítico e neutral com a capacidade de fazer críticas
objetivas e leituras analíticas das realidades sociais e políticas. No discurso dos agentes de
Estado, essa academia inclui também antropólogos e sociólogos somente de maneira
pontual e sempre com reservas.

Parece-me que, ao contrário do que foi apontado por Good (2006) para o caso inglês, no
caso brasileiro a competência profissional sociológica ou antropológica não é percebida
como coconstituinte das políticas e programas de refúgio. Parece-me que a presença de
antropólogos nesse espaço institucional é inesperada e, até certo ponto, indesejada. Nos
diálogos que mantive com os diversos agentes da tríade Conare, os começos da conversa e,
às vezes, toda ela, estavam marcados pela antecipação das críticas que eles consideravam
que eu tinha sobre os programas. Nesse sentido, apesar de apresentar a “academia” como
um espaço não político, considero que a antecipação das críticas, o receio com algumas

92
profissões e a escolha da participação privilegiada de outras, reconhece, nos profissionais
atores capazes de disputar significados, de modificar ações e de levar à arena dos debates
públicos, informações e formas de ação que têm se mantido circulando dentro de um
número muito restrito de pessoas e campos profissionais.

Agora, depois de ter discutido, nesta primeira parte, os elementos que considerei relevantes
para os diferentes planos de construção e compreensão do refúgio como um problema,
darei a continuação, na segunda parte da tese, para discutir, detalhadamente, os processos
que levam uma pessoa ou um grupo de pessoas ser reconhecido como refugiado. Para
tanto, começarei primeiro com uma descrição das interpretações que os agentes do refúgio
realizam sobre as causas do deslocamento dos solicitantes colombianos de refúgio e que
serão fundamentais para compreender a dinâmica concreta das interações.

93
SEGUNDA PARTE. Processos, interações e locais de fixação

3. Terceiro capítulo
As guerras e os refúgios, o político e o humanitário
[...] é verdade que muitas dessas pessoas são do interior da Colômbia das regiões
onde tem conflito, mas essas pessoas já passaram pelo Equador, e aí o perfil
delas já foi mudando. Elas vão virando vendedores ambulantes, pequenos
artesãos, domésticas, pessoas dedicadas à construção civil. E é gente que se
sujeita a qualquer desses trabalhos. Então, quando eles chegam ao Brasil, uma
grande parcela de colombianos já tem essas características. (Coordenador de uma
das ONGs de Reassentamento Solidário)

A elegibilidade e o reassentamento são duas formas diferenciadas de refúgio. A primeira


delas consiste na recepção de pessoas que, uma vez em território brasileiro, solicitam seu
reconhecimento como refugiadas. O reassentamento, ao contrário, é um programa de
“transferência de pessoas” proposto pelo Acnur e que consiste em oferecer um segundo
país de asilo a sujeitos ou famílias previamente reconhecidos como refugiados em outro
país. Essa “transferência” é proposta como uma “solução duradoura” para os refugiados
que, segundo o vocabulário e as categorias do Acnur, não tenham conseguido “se integrar
exitosamente” no primeiro país de asilo (ACNUR, 2011). Entre essas duas formas de
refúgio, uma importante diferença é evidente: enquanto o refúgio por elegibilidade é
solicitado pelas pessoas, o reassentamento lhes é oferecido.

Na vida cotidiana das interações burocráticas entre agentes de Estado, oficiais do Acnur e
solicitantes ou refugiados, o oferecimento do reassentamento e a demanda de refúgio são
mais nuançadas. Alguns refugiados, por exemplo, buscam ativamente serem eleitos como
candidatos a reassentamento e alguns estrangeiros são orientados a solicitar refúgio,
quando os agentes envolvidos na rede de atendimento a migrantes os consideram
“elegíveis”. Dessa diferença, que podemos chamar “refúgio à demanda” e “refúgio à
oferta”, desdobram-se outras singularidades importantes em cada uma dessas formas, nos
processos de seleção e atenção das pessoas e, por conseguinte, na vida de quem a elas se
acolhem.

A existência dessas duas formas de refúgio e suas diferenças é, além disso, muito
importante para entender a relação entre as políticas de refúgio no Brasil e a situação dos
deslocados e os refugiados colombianos. Ou melhor, são importantes para entender que a

94
interpretação que os agentes da governança do refúgio realizam dos colombianos
desterrados e a relação que se estabelece entre eles colaboram na configuração de uma
forma particular de refúgio como instituição política e social contemporânea no Brasil.

Um dos desdobramentos dessas formas diferenciadas de refúgio é que os refugiados por


elegibilidade, chamados no Brasil “refugiados espontâneos”, representam um vínculo entre
os governos brasileiro e colombiano, que se presume e é apresentado como um vínculo
entre Estados-nação. Pelo contrário, os reassentados encarnam um vínculo entre os
governos brasileiro e equatoriano57 que é apresentado como uma ação que se desenvolve
em um “espaço humanitário” (AGIER, 2006; FASSIN, 2010; MALKKI, 1995; TERRY,
2002). A natureza desses dois laços é também díspar na medida em que, ao receber
reassentados colombianos procedentes de Equador, as autoridades brasileiras constroem
uma imagem de solidariedade com o governo e a sociedade equatorianos, que têm recebido
o maior contingente de deslocados da Colômbia. Em contrapartida, ao receber refugiados
colombianos “espontâneos”, as autoridades brasileiras reconhecem, de certa maneira, a
incapacidade do Estado colombiano de cuidar de seus nacionais assim como fazem um
reconhecimento, mesmo que indireto, da existência de refugiados de um conflito.

Durante a primeira fase da minha pesquisa de campo, alguns agentes de governo e das
ONGs que trabalham com refugiados expressaram sua convicção sobre a melhoria da
situação da Colômbia em matéria de “proteção aos cidadãos e garantia de seus direitos
humanos”. A maioria dos agentes citaram as então recentes declarações do presidente da
República da Colômbia, que reconheceu, oficialmente, a existência de um “conflito
armado” no país58. Apesar da aguda situação de enfrentamento social e violência armada

57
Nos primeiros grupos de colombianos que chegaram ao território brasileiro por meio do programa de
Reassentamento Solidário, havia algumas pessoas e famílias procedentes da Costa Rica. Atualmente, a
seleção de refugiados colombianos que serão reassentados no Brasil é realizada somente no Equador.
58
Em maio de 2011, Juan Manuel Santos, presidente da República da Colômbia, reconheceu, publicamente, a
existência de um “conflito armado”. Esse reconhecimento contradizia a visão oficial de seu predecessor, que
limitava a confrontação presente no país a uma “ameaça terrorista”, referindo-se particularmente à presença
de guerrilhas de esquerda e, geralmente, ignorando os grupos paramilitares de direita e o Exército nacional
como importantes atores da confrontação armada. A declaração do presidente Santos foi sustentada em razão
da necessidade de incluir o conceito de “conflito armado” na chamada “Lei de Vítimas” que, durante a época,
estava se discutindo no Senado colombiano para reconhecer e reparar as pessoas “vítimas da violência”. O
propósito de tal reconhecimento, segundo informou a imprensa na época, era “evitar que na reparação às
vítimas se filtrassem pessoas afetadas pela “delinquência comum”. Com essa declaração, o presidente Santos,
apesar de ter sido o ministro da defesa do ex-presidente Álvaro Uribe, quis distanciar sua imagem pública do
halo militarista de seu predecessor e restaurar as relações com os países vizinhos. Meses depois ele aceitaria

95
presentes na Colômbia há mais de meio século, essa era a primeira vez que um presidente
reconhecia oficialmente sua existência59. A partir dali, uma série de atos que podemos
pensar como perlocucionários, quer dizer, atos que foram conseguidos por meio do dito
(AUSTIN, 1962), foram se acionando em diferentes escalas e afetando diferentes assuntos;
um deles foi precisamente o refúgio de colombianos no Brasil, por meio dos mecanismos
convencionais de elegibilidade.

A declaração do presidente colombiano, somada à relação diplomática dos estados,


propiciou, segundo as autoridades do refúgio, uma orientação pela qual já não era mais
possível pensar a situação colombiana como um cenário de “grave e maciça violação dos
direitos humanos”, de modo que os solicitantes deveriam demonstrar que não puderam
encontrar um lugar seguro em seu país, antes de buscar refúgio no Brasil. Além disso,
segundo essa orientação, era necessário extremar os mecanismos e os filtros de seleção dos

também inaugurar uma mesa de diálogos com a guerrilha das Forças Armadas Revolucionarias da Colômbia
(FARC). Ver artigos:
EL ESPECTADOR. Santos reconoce conflicto armado y Uribe lo controvierte. 4 maio 2011. Disponível em:
<www.elespectador.com/noticias/politica/articulo-267421-santos-reconoce-conflicto-armado-y-uribe-
controvierte>. Acesso em: 30 set. 2013.
NOTIMÉRICA.COM: noticias sobre a América. Santos reconoce que hay un “conflicto armado” en
Colombia. Bogotá, 5 maio 2011. Disponível em: <www.notimerica.com/colombia/noticia-colombia-santos-
reconoce-hay-conflicto-armado-colombia-20110505080144.html>. Acesso em: 30 set. 2013.
SEMANA. ¿Qué significa el reconocimiento del conflicto armado por parte del Gobierno? Disponível em:
<http://m.semana.com/nacion/articulo/que-significa-reconocimiento-del-conflicto-armado-parte-del-
gobierno/239313-3>. Acesso em: 30 set. 2013.
PARRA, Nelson Enrique. ‘No habrá reconocimiento político para terroristas’: Mindefensa. El Tiempo, 4
maio 2011. Disponível em: <www.eltiempo.com/politica/ARTICULO-WEB-NEW_NOTA_INTERIOR-
9275121.html>. Acesso em: 30 set. 2013.
59
Utilizo “conflito” e “conflito armado” como categorias nativas, pois com esses termos é habitualmente
referida à situação de confrontação na Colômbia nos meios universitários, político partidários, nos meios de
comunicação e no linguajar dos organismos internacionais de assistência humanitária. Porém, considero
necessário salientar as controvérsias que existem sobre esse termo e que também apareceram durante minha
pesquisa. Por exemplo, para algumas pessoas refugiadas que entrevistei, assim como para vários militantes
da esquerda colombiana, se deveria falar em “conflito social, político e armado”. Para eles, essa ordem dada
aos adjetivos que acompanham a palavra “conflito” lembra que a origem da confrontação armada é a
confrontação social e não ao contrário. Ou seja, a primeira, entendida como desigualdade social, acúmulo de
terras em mãos de poucos, marginalização nacional de amplos setores, perseguição à oposição políticas e
variadas formas e pobreza, são, entre outras, as causas e não as consequências do “conflito armado”.
Algumas pessoas que entrevistei durante meu trabalho de campo (estudantes colombianos no Brasil,
militantes de partidos de esquerda, refugiados e solicitantes) também salientaram sua inconformidade
inclusive com o termo “conflito” que, cunhado desde a ciência política, tem servido para evadir o uso da
palavra “guerra”. Esta última, segundo eles, seria mais apropriada para dar conta da grave e instável situação
social e política da Colômbia nos últimos anos, assim como a preferência dos governos nacionais pelo
tratamento militarista da situação. Para outras pessoas refugiadas, ao contrário, para além da discussão sobre
os pesos políticos diferenciados de um ou de outro conceito, a palavra utilizada para descrever a situação no
país é “violência”. Termo que também é amplamente usado nos meios de comunicação e nos espaços de
alocuções políticas e que nas últimas décadas serviu inclusive para criar diferenciações discursivas entre
sujeitos, usando, por exemplo, a categoria “os violentos”.

96
solicitantes colombianos de refúgio, levando conta dos esforços do governo desse país em
reconhecer o conflito e, por conseguinte, procurar soluções a respeito. Em palavras do
coordenador do Conare da época:

[...] [Colômbia] ela requer do todo o apoio da comunidade aqui da América do


Sul, e há reconhecimento de que a Colômbia está enfrentando, com todas as suas
forças, essa situação. O próprio governo colombiano, recentemente, reconheceu
a existência do conflito. Isso é importante para a aplicação de todas essas formas
de proteção da pessoa humana. Então, há um reconhecimento por parte dos
estados vizinhos que a Colômbia faz um esforço para sair adiante. E claro que a
apreciação aí dos diferentes atores pode ser diferente.

[...] A experiência colombiana é avaliada, no caso do refúgio, caso a caso. Quer


dizer: o Estado brasileiro não considera que hoje impera, na Colômbia, um
estado de grave e generalizada violação dos direitos humanos. Nós não tratamos
os casos colombianos à luz do inciso III do artigo 1º da Lei. Aquele que trata de
grave e generalizada violação dos direitos humanos. A aplicação é do inciso I à
luz dos causais clássicos do refúgio. Né? Os casos colombianos são analisados
individualmente. Há bolsões de segurança na Colômbia, cidades que são seguras,
essa estrutura é analisada. Colômbia está em processo de se encontrar, não é? E
há todo um esforço nesse sentido, e o Brasil então ele analisa individualmente
cada uma das solicitações de refúgio que vêm da Colômbia.

A propósito do mesmo tema, alguns funcionários do Acnur opinaram que essa mudança no
discurso público colombiano ia afetar diretamente a taxa de reconhecimento dos
solicitantes espontâneos de refúgio. Especialmente porque as declarações públicas se
acompanhavam, segundo eles, de uma campanha diplomática com emissários encarregados
de convencer aos governos de outros países sobre a efetiva transformação em matéria de
proteção aos direitos humanos e reparação às pessoas afetadas pelo conflito60. O
representante do Acnur no Brasil, em uma conversa informal comigo, expressou sua
preocupação a respeito disso, dizendo que “A missão diplomática da Colômbia no Brasil
está convencendo de que há uma melhora na situação da Colômbia, levando a taxa de
elegibilidade quase a 0% e pressionando a repatriação dos refugiados”. Tudo isso apesar de
que a informação que ele recebia do país, por meio das ONGs parceiras, afirmava que a
situação de violência, deslocamento e violações maciças dos direitos humanos não haviam
melhorado.

60
Essas missões diplomáticas por meio das quais se estaria efetuando a promoção da melhoria nas condições
do conflito colombiano foram mencionadas por várias pessoas em campo; notadamente, no caso citado, pelos
funcionários do Acnur. Porém, essa informação não está disponível nos documentos públicos do Acnur, e as
pessoas que a referiram não especificaram datas ou funcionários encarregados do assunto. Considero
interessante levar em conta essa informação desde dois pontos de vista. Em primeiro lugar, como uma
informação que circula no mundo institucional do refúgio e que ajuda a tencionar as relações entre os
diferentes atores que o integram. Em segundo lugar, como uma informação que não é registrada de maneira
escrita e que, pela sua oralidade e pouca precisão, permite um jogo maior de ambiguidades. Esse assunto será
abordado detalhadamente na terceira parte da tese.

97
Não só o representante do Acnur foi crítico com essa imagem de um “conflito controlado”
e uma “melhoria” na situação das pessoas no meio da confrontação armada. Um dos
sacerdotes da Missão Paz que trabalha com migrantes opinou que essas declarações do
presidente colombiano tinham “desqualificado o refúgio no Brasil”, oferecendo mais
argumentos ao Acnur para começar a encerrar suas ações na região e “deixando nas mãos
da ‘sociedade civil’ toda a responsabilidade da atenção aos refugiados”. Isso porque,
segundo ele, desde 2000, o Acnur vinha repetindo que a única razão para ter um escritório
na América Latina era a situação de conflito na Colômbia. Outra funcionária de uma ONG
parceira do Acnur também controverteu essa aposta diplomática do presidente colombiano:

É uma propaganda muito bem colocada que a gente vê por meio dos relatos das
próprias pessoas que chegam para nós recentemente e também de outros que já
estão há mais tempo, mas que se comunicam com seus parentes e por eles
sabemos que a melhoria é muito propaganda, muita coisa governamental que faz.
Obviamente que estão de continuar com um conflito invisível e também dizendo
que não há nada grave e que não sei o quê e não sei quê... Mas as pessoas que
sofrem a violência sabem contar muito bem que não é bem assim.

Apesar dessas visões críticas sobre a suposta melhoria da situação sociopolítica na


Colômbia, o posicionamento oficial do Conare foi o refinamento da seleção de refugiados
espontâneos e concentrar o trabalho nos reassentados. Assim foi explicado pela funcionária
do Acnur responsável pelo programa de Reassentamento Solidário no Brasil: “enquanto a
leitura da situação pode prejudicar o reconhecimento de refugiados espontâneos, o
reassentamento não se vê em nada comprometido”.

Grande parte dessa dinâmica descrita, me parece, está relacionada com a ideia que se tem
condensado no governo contemporâneo de populações construídas como vítimas, segundo
a qual a recepção de refugiados não é um gesto político, mas um gesto que deve ser,
sobretudo, humanitário. As tentativas de separar essas duas formas de ação, de mostrá-las
como âmbitos realmente diferenciados, promovem a leitura das ações humanitárias como
baseadas na necessidade de remediar a dor dos sofrentes ou de salvar suas vidas no sentido
mais básico da vida biológica61. Nem o perigo para algumas formas específicas de
existência política nem as causas que originam os sofrimentos ou o perigo de extinção são

61
Tanto o despojo das pessoas por meio de mecanismos que permitem contemplá-las não como seres
políticos, mas como pura biologia sofredora, quanto as análises dessas ações chamadas humanitárias têm sido
abordadas com nuances diferentes por autores da filosofia e das ciências sociais. Para aprofundar, ver:
AGAMBEN, 1998; AGIER, 2006; FASSIN, 2010; MALKKI, 1995.

98
necessariamente contempladas pelas ações humanitárias que se concentram na salvação,
presumida como uma dádiva suprema, das “vidas nuas” (AGAMBEM, 1998).

A neutralidade do gesto humanitário, como diz Fiona Terry (2002), tem sido construída e
justificada por meio da necessidade que as frações em contenda nos conflitos percebam aos
organismos de “intervenção humanitária” – especialmente às missões médicas e de entrega
de insumos básicos – como agentes que não interferem a favor ou contra nenhuma das
partes62. Essa característica, supostamente, garantiria a permissão de entrada até os locais
onde se encontrarem as vítimas. Porém, com a premissa de que também os Estados, e não
só as agências supranacionais, empreendem ações humanitárias, essa ideia da neutralidade
foi se expandindo ainda como um adjetivo para qualificar as gestões dos Estados e seus
governos sobre as populações assumidas como vítimas, dentro ou fora de suas fronteiras.

Segundo Terry, “humanitarian actions in the post-Cold War period has been transformed
from a tool with which governments pursue foreign policy objectives to a tool with which
to avoid foreign policy engagement” (2002, p. 219). Aprofundando a crítica que esta e
outros autores realizam sobre essa pretendida neutralidade das ações humanitárias63,
poderíamos notar que a neutralidade do humanitário, como argumento da ação e como
princípio moral que a sustenta, é uma poderosa arma de gestão política nas relações
externas dos Estados contemporâneos, assim como em suas políticas internas de recepção e
tratamento diferenciado dos refugiados. A preferência brasileira por empreender ações
sobre os refugiados que já estão no Equador parece mostrar sua preferência pelas figuras

62
Para Fiona Terry, a criação de um “espaço humanitário” afastado da ação política se constrói por meio de
uma suposta obrigação dos organismos internacionais de não tomar posição nas contendas. A autora explica,
além disso, que os princípios de neutralidade e independência “(are) an indispensable condition to ensure that
humanitarian action is exclusively concerned with the welfare of humanity and free of all political, religious,
or other extraneous influences […] They aim to create a “humanitarian space” in war that is detached from
the political stakes of the conflict. The term “humanitarian space” was been used to invoked a “space
separated of the political” […] (2002, p. 19). No mesmo livro, a autora critica essa divisão do humanitário e
do político mostrando, com diversos exemplos, a impossibilidade de sua separação na prática e as diversas
implicações políticas das ações ditas humanitárias, salientando, além disso, que “(…) humanitarian actors
must recognized that their action and their inaction have important consequences for the people in whose
name they intervened” (2002, p. 216). A proposta da não ação como uma forma de posicionamento e
intervenção política será especialmente cara para a linha argumentativa do texto. Porém, mais do que pensar
os limites entre o humanitário e o político, assumo que existe um governo humanitário, no sentido proposto
por Didier Fassin (2010). Isso quer dizer que essa ação humanitária é claramente um exercício de governo
político no sentido amplo do termo, entendido não só como o exercício e as disposições dos diversos sistemas
políticos contemporâneos mas também como as variadas técnicas e dispositivos destinados a “conduzir a
conduta dos homens”, tal como proposto por Foucault (2007).
63
Ver: AGAMBEN, 1998; AGIER, 2003; BUTLER, 2006; FASSIN; RETCHMAN, 2007; WEISSMAN,
2003.

99
humanitárias de salvação das vítimas. Tudo isso reforçado pelo fato de que o
reassentamento é apresentado como uma ação apolítica e solidária com o Equador que
busca ajudar a solucionar uma crise humanitária.

A decisão de não aplicar o conceito de “grave e generalizada violação aos direitos


humanos” no momento de avaliar as solicitações de refúgio dos colombianos é
apresentada, pelas autoridades do Conare, como uma consequência das ações que o
governo colombiano estaria realizando para solucionar o conflito. Supõe-se que essas
ações, além de garantir a aplicação de mecanismos de proteção e garantia dos direitos
humanos na Colômbia, garantiriam também a existência de “zonas seguras” dentro do
território nacional onde as pessoas poderiam se refugiar internamente. Do mesmo modo, a
leitura realizada por alguns agentes do Acnur, que se mostraram mais críticos sobre a
suposta melhoria na situação colombiana, terminou apontando ao governo colombiano
como o responsável de diminuir a taxa de elegibilidade de refugiados, deixando os
organismos brasileiros encarregados da seleção isentos de responsabilidade a respeito
disso.

Porém, algumas informações precedentes sobre o tratamento dispensado ao assunto dos


refugiados colombianos são interessantes para nuançar a afirmação segundo a qual a
“mudança” no panorama político colombiano seria a única razão de peso para esse
refinamento dos processos seletivos. Anos atrás, entre 2007 e 2008, algumas notas de
imprensa64 falavam da migração colombiana afirmando que o número de refugiados
poderia chegar a 17.000, caso todas as pessoas que tinham fugido do conflito e entrado ao
território brasileiro tivessem sua situação reconhecida. Contudo, durante os anos 2011 e
2012, a versão a respeito do fluxo de colombianos era outra. O coordenador do Conare
afirmou que a distância entre zonas colombianas em conflito e a fronteira brasileira, assim
como o fato de ser uma fronteira de “difícil acesso” eram as principais razões:

64
Ver artigos:
GLOBO.COM. Brasil é principal destino dos refugiados colombianos. 3 mar. 2008. Disponível em:
<http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL334606-5598,00-brasil+e+principal+destino+dos+refugiados+
colombianos.html>. Acesso em: 30 set. 2013.
BBC BRASIL.COM. Brasil poderia ter 17 mil refugiados colombianos. 20 jun. 2007. Disponível em:
<www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/06/070619_refugiadosbrasil_pu.shtml>. Acesso em: 30
set. 2013.

100
Eu: E vocês estimam que, além do programa de reassentamento e do refúgio
comum, exista um número importante de colombianos entrando pelas fronteiras?

Coordenador: Não, esse fenômeno não é grande. A fronteira brasileira é de


difícil acesso. E não há uma mobilidade exagerada para o Brasil, né? A
mobilidade está para o Equador.

Eu: Por quê?

Coordenador: Pelo mapa do conflito. O que corrobora essa tese do Estado


brasileiro de que não há uma grave e generalizada violação dos direitos
humanos. O mapa do conflito colombiano que está mais focado e que os vai
expulsando para a fronteira com o Equador.

Essa mesma explicação, baseada na distância de “focos de conflito” e o “difícil acesso” ao


território brasileiro pela Amazônia, foi arguida, várias vezes, por outros agentes do refúgio
para explicar, por exemplo, o baixo número de refugiados. Porém, outras versões da época
apontaram que havia uma quantidade importante de colombianos desterrados se
mobilizando em direção ao Brasil pela fronteira norte:

La diáspora de los colombianos que huyen de la guerra se expande a Brasil y


recibe la solidaridad de éste y de los países del Cono Sur, mientras Ecuador y
Venezuela siguen soportando la mayor parte de la carga, según la oficina de la
ONU para los refugiados (Acnur). Entre 14.000 y 15.000 colombianos se
desplazaron a pueblos brasileños fronterizos a causa del conflicto interno, en un
período aún no determinado, dijo Philippe Lavanchy, director para las Américas
del Acnur, en entrevista en la localidad ecuatoriana de Lago Agrio (norte).
“Hemos notado que hay gente que está saliendo para Brasil y ese sería un
fenómeno nuevo. Enviamos una misión a la frontera que visitó la Amazonia
(brasileña), adonde han llegado unos 14.000 ó 15.000 colombianos”, señaló.
(Noticia de prensa, Diario El Universo de Ecuador, 13 de marzo del 2007) 65

Algumas das informações posteriormente produzidas pelo Acnur a respeito desse


movimento maciço da época afirmavam inclusive que esses trânsitos constituiriam uma
“ameaça para a estabilidade da região”:

La ampliación del conflicto, desde las regiones centrales de Colombia hasta las
zonas fronterizas más remotas, ocurrida en las últimas tres décadas constituye
una amenaza para la estabilidad regional. En el 2006, más de 11.000
colombianos solicitaron asilo en los países vecinos. Pero se calcula que esta cifra
representa sólo una pequeña fracción del estimado medio millón de colombianos
que han huido de su país a causa de la violencia y las violaciones a los derechos
humanos. En su mayoría estas personas han huido de esta situación hacia
Ecuador, la República Bolivariana de Venezuela, Panamá, Costa Rica y,
recientemente, a la remota región del Amazonas en Brasil. Cerca de 20.000
colombianos, muchos pertenecientes a grupos indígenas, viven en situación de

65
EL UNIVERSO: Noticias del Ecuador y del mundo. Brasil también acoge a refugiados colombianos.
13 mar. 2007. Disponível em: <www.eluniverso.com/2007/03/13/0001/8/673E2CF3603048B5836322654
11056E3.html>. Acesso em: 30 set. 2013.

101
refugiados en el Amazonas brasileño, aunque la mayoría no ha solicitado asilo
por temor a ser deportados o a sufrir discriminación. (ACNUR, 2009)66

Segundo uma ex-funcionária da Cáritas, que, na época dessas notícias, trabalhava com o
programa de Reassentamento Solidário, a opção das autoridades brasileiras foi apoiar com
doações destinadas a programas humanitários nas regiões colombianas da fronteira. Isso
com o intuito de ajudar a criar condições que permitissem o retorno ao território
colombiano das pessoas que já se encontravam no Brasil e de desestimular o movimento
migratório de outras. Nesse caso, “o humanitário” requer – ou se expressa – como um
cálculo de contenção, a procura da medida justa que conjure a potencialidade de uma
“crise” engendrada nos excessos incontroláveis. A ação referida também foi resgatada por
Moreira (2012), que conta que essa estratégia baseou-se em outro programa derivado do
Plano de Ação do México, chamado “Fronteiras Solidárias”67. Poucos anos depois, entre
2009 e 2010, seria assinado um “acordo de segurança na fronteira” procurando “blindar” a
fronteira para combater a delinquência nessa região68.

Outras medidas, orientadas a controlar a entrada e a quantidade de pessoas pelas fronteiras


norte do país foram implementadas, por exemplo, por meio de acordos com o governo de
Haiti sobre a quantidade de vistos “humanitários” que o governo do Brasil outorgaria,
anualmente, para os nacionais desse país. Em alguns casos, chegou a se sugerir, por parte
dos governos estaduais, a necessidade do “fechamento das fronteiras” para controlar “a

66
ACNUR 2009. Programas y Estrategias del Acnur en 2008-2009. Disponível em:
<www.acnur.org/paginas/?id_pag=7754>. Acesso em: 30 set. 2013.
67
Moreira (2012, p. 239) afirma que: “Havia uma preocupação regional com esse grupo, estimando-se que
20 mil colombianos estivessem em situação de refúgio na Amazônia, na zona fronteiriça entre Brasil e
Colômbia. A maioria deles se inseria na categoria de deslocados internos, tendo em vista a dificuldade de
transpor as fronteiras, em função de impedimentos geográficos e do conflito desencadeado com as FARC
(Forças Revolucionárias Colombianas). O governo brasileiro, em parceria com o Acnur, passou a se voltar
igualmente para essa população, com base no Programa Fronteiras Solidárias O apoio político prestado
pelo governo brasileiro ao colombiano se fundava no “esforço de amenizar os males decorrentes do grave
conflito interno”, no âmbito regional (Arquivo do Itamaraty, Embaixada Brasileira em Bogotá, 2003)”.
68
Nas notícias que circularam sobre a assinatura desse acordo não se explicitou qual “lado da fronteira”
estaria se blindando. Em todo caso, é sugestiva a visão de uma fronteira permeável que necessita ser
controlada que, em grande parte, contradiz a ideia de uma fronteira que, por sua condição selvagem, seria
“naturalmente” inacessível. Para consultar as noticias sobre o acordo, ver:
REUTERS. Colombia y Brasil negocian acuerdo de seguridad fronteriza. El Tiempo, 24 jun. 2011.
Disponível em: <www.eltiempo.com/archivo/documento/CMS-9716804>. Acesso em: 13 maio 2014.
EL ESPECTADOR. Colombia busca ampliar acuerdo militar con Brasil. 25 ago. 2009. Disponível em:
<www.elespectador.com/articulo157894-colombia-busca-ampliar-acuerdo-militar-brasil>. Acesso em: 13
maio 2014.

102
crise” da migração haitiana69. Em todo caso, o número oficial atual de refugiados
colombianos reflete que essas pessoas, noticiadas cinco anos atrás, não foram reconhecidas
com o status do refúgio.

Recapitulando alguns elementos dessas duas situações, podemos ver que, no lapso de cinco
anos, houve uma transformação importante na leitura da situação colombiana. Em 2007,
falava-se de um número elevado de colombianos penetrando as fronteiras nacionais
brasileiras e reconhecia-se um recrudescimento no conflito que teria afetado as regiões de
fronteira com o Brasil. Em 2011, ao contrário, a versão da situação que me foi oferecida
foi a de uma fronteira brasileira quase inviolável, longe dos focos de um conflito contido
em zonas colombianas afastadas do Brasil e uma mudança na posição governamental
colombiana a favor da solução do conflito. Em palavras do coordenador do Conare,
“Colômbia está[ria] em processo de se encontrar”.

Perante a transformação substancial na interpretação das condições sociopolíticas na


Colômbia e do posicionamento governamental, chama a atenção que a resposta brasileira
tenha sido quase a mesma. Em ambas as situações, optou-se pelo oferecimento de ajuda
humanitária para os países e as regiões vizinhas, auxiliando o atendimento dos deslocados
em outros países e impedindo a entrada maciça ao solo brasileiro. Em ambos os momentos,
além disso, privilegiou-se o desenvolvimento do programa de Reassentamento Solidário, e
não a recepção de solicitantes espontâneos. Isso quer dizer que, em qualquer caso, optou-se
por empreender as ações que mais facilmente possam ser lidas como humanitárias,

69
A solicitação feita ao governo federal pelo governo do Acre de fechar a fronteira do estado foi noticiada
em vários jornais nacionais. Ver, por exemplo:
ÉBOLIO, Evandro. Acre quer fechar fronteira para evitar excesso de haitianos no Brasil. O Globo. 15 jan.
2014. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/pais/acre-quer-fechar-fronteira-para-evitar-excesso-de-
haitianos-no-brasil-11309952>. Acesso em: 2 fev. 2014.
AGÊNCIA ESTADO. Secretário do Acre propõe fechar fronteira temporariamente para conter haitianos.
Ultimo Segundo. 15 jan. 2014. Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2014-01-15/secretario-
do-acre-propoe-fechar-fronteira-temporariamente-para-conter-haitianos.html>. Acesso em: 2 fev. 2014.
E outros meios de notícias internacionais:
TELESUR: La Señal Informativa de América Latina. Brasil contempla cerrar frontera con Perú por
migración haitiana. Disponível em: <www.telesurtv.net/articulos/2014/01/15/brasil-podria-cerrar-frontera-
con-peru-por-migracion-haitiana-4646.html>. Acesso em: 2 fev. 2014.
A reposta negativa do governo federal, baseada na “tradição de acolhida do Estado Brasileiro”, foi menos
difundida, mas circulou em alguns médios informativos. Ver, por exemplo:
SARTORATO, Diego. Brasil não vai fechar fronteiras para restringir entrada de haitianos. Rede Brasil Atual.
22 jan. 2014. Disponível em: <www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2014/01/brasil-nao-vai-fechar-
fronteiras-para-impedir-entrada-de-haitianos-797.html>. Acesso em: 2 fev. 2014.

103
evitando aquelas que se inscrevem diretamente dentro do marco das relações políticas
antagônicas com o governo da Colômbia ou seus aliados.

Dentro do marco exposto, há varias vantagens para o governo do Brasil que se derivam
desse movimento de delicada tensão entre a ação, a não ação e a ação indireta. A vantagem
mais evidente é que, ao privilegiar o programa de Reassentamento Solidário, as
autoridades brasileiras são livres de eleger previamente o perfil dos reassentados, isso sem
contar com que a maioria dos custos do processo de reassentamento é, atualmente, paga
com dinheiro do Acnur. Além disso, como esse programa não é uma obrigação baseada na
adesão a normativas internacionais, cada país que “oferece” reassentamento pode
estabelecer também o número de pessoas que serão recebidas, assim como os lugares onde
serão localizadas, numa sorte de economia da “ajuda”. Ao contrário, com os refugiados
espontâneos é mais difícil controlar completamente a quantidade de solicitações ou os
locais de entrada e instalação, fazendo necessário um esforço maior para o registro,
administração e gestão dessas pessoas.

Como foi discutido na primeira parte da tese, saber escolher os locais é indispensável para
manter uma imagem ideal do refúgio de populações. A decisão das partes integrantes da
tríade do refúgio no Brasil de não localizar as pessoas em algumas áreas rurais brasileiras e
de encerrar o programa de reassentamento no Rio Grande do Norte foi argumentada, em
boa parte, com a impossibilidade de oferecer condições “adequadas para a integração”.
Essas condições são elencadas em termos de escassas redes de apoio, infraestrutura
precária, baixa oferta de serviços e possibilidades mínimas de emprego. Porém, os
problemas de acesso e uso da terra, de permanência em condições seguras em suas
propriedades, as possibilidades de sobrevivência de pequenas unidades de produção rural,
a garantia de segurança alimentar, entre outras, são condições similares às que, muitas
vezes, provocam o êxodo das pessoas na Colômbia, para além da existência frontal de
ameaças e espólio, das quais de fato o Brasil também não está isento. Em caso que esses
riscos se concretizaram ao reassentar famílias refugiadas, o Estado brasileiro poderia se
deslizar no plano internacional do lugar de doador poderoso e generoso para aquele de
incapaz ou espoliador cúmplice de poderes ruralistas.

104
Levando em conta essas características, não surpreende que as políticas contemporâneas do
refúgio no Brasil tenham se baseado num formato urbano de recepção de refugiados
espontâneos e reassentados, concentrando, para isso, seus pontos de atendimento e seus
recursos em algumas das cidades do Sul e do Sudeste. Nessa medida, a gestão das pessoas
e sua produção como refugiadas passa pelo estabelecimento de lugares precisos, a maneira
de postos administrativos que concentram aos sujeitos administráveis em algumas zonas e
criam uma relação particular entre eles e os territórios por meio dessas fixações
geográfico-administrativas, tal como exposto por Souza Lima em seus trabalhos sobre o
poder tutelar (1995, 2012)70. Essa proposta também nos lembra da ideia dos “encontros
com o Estado” da qual nos fala Trouillot (2001, p. 126), encontros nos quais se reconhece
o Estado em seus efeitos. Nesse caso, na medida em que a ação do Estado sobre as
populações em êxodo só se materializa como tal quando ela se decanta por meio da fixação
dos sujeitos que serão produzidos como refugiados por meio dessas e outras tecnologias de
governo.

As práticas de seleção de candidatos, especialmente dos reassentados, estão orientadas para


um perfil de solicitante que possa ser facilmente “integrável” às dinâmicas citadinas,
particularmente nas cidades dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul
e, em menor medida, Brasília. Só mais recentemente, foi habilitado, em convênio com
Cáritas, um escritório em Manaus para o atendimento de solicitantes de refúgio e
refugiados. Segundo os agentes do refúgio, a inauguração do escritório amazônico
obedeceu, sobretudo, à “chegada maciça” de haitianos nos últimos anos. Contudo, o fluxo
de colombianos representa também um importante percentual nas estatísticas oferecidas
pelo Acnur (2013).

Também em Manaus ou Tabatinga, o perfil dos solicitantes recebidos é majoritariamente


caraterizado, pelo Acnur e Cáritas, como urbano. Segundo os agentes desses orgãos, o
Amazonas seria, para a maioria dos refugiados, simplesmente uma etapa da rota do êxodo.
As populações que não se encaixam nesse perfil são tratadas ou administradas por meio de
outros mecanismos de ação humanitária diferentes do refúgio ou apresentadas como casos
70
Doravante, e sem citar em cada oportunidade ao seu autor, utilizarei este conceito proposto por Souza Lima
(1995, 2012), para me referir tanto aos lugares que concentram geograficamente o atendimento dos
refugiados quanto ao vínculo particular entre sujeitos e territórios que esta prática permite, como uma forma
muito particular de administração de populações que inclui esforços de sedentarização e o deslocamento de
agentes administradores até os locais de fixação.

105
excepcionais: como aconteceu, por exemplo, em 2007, com a chegada maciça de
populações deslocadas, de maioria indígena, a Tabatinga e a outros municípios brasileiros.

A produção de refugiados segundo esse modelo de ação humanitária precisa que eles
possam ser fixados a lugares definidos previamente pela administração do refúgio. Esse
aspecto ficará mais claro no momento de entrar nos detalhes dos processos de refúgio que
descreverei a seguir, porém, o evoco aqui para salientar que a concentração de programas e
ações de refúgio no Sul e no Sudeste brasileiros está baseada em uma determinada
interpretação de nação à qual idealmente os refugiados devem ser “integrados”.

Já foi apontado que a imagem construída sobre alguns estados brasileiros, como locais para
a integração exitosa, opera na definição dos espaços e de algumas formas de interação
entre agentes de Estado, solicitantes e refugiados colombianos. Agora, parece-me
pertinente apontar que também algumas imagens sobre a Colômbia e, em particular, sobre
sua “guerra”, colaboram na criação de tipos ideais de refugiados. Com base nesses tipos e
no nível de desajuste entre o modelo e a história concreta, parece serem julgados os relatos
das pessoas e sua presença em território nacional.

Para que essas imagens virem efetivamente uma exegese operante que classifica e organiza
as pessoas, é preciso tanto uma interpretação da dor dos outros quanto uma diferenciação
entre o mundo político e o mundo econômico. Os eventuais pontos de conexão entre o
econômico e o político devem, além disso, ser previamente aprovados pelas autoridades do
refúgio. O afastamento desses dois planos tem de ser total no caso dos refugiados
espontâneos, pois um “verdadeiro” refugiado não pode ser um migrante econômico. Pelo
contrário, no caso do reassentamento, esses registros podem se misturar, na medida em que
o programa considera o fracasso da inserção econômica das pessoas no primeiro país de
refúgio como uma das causais válidas para sua transferência para outro país.

Das declarações públicas dos funcionários do Conare, e de modo geral, da rede ampla de
agentes que trabalham com o refúgio, parece transparecer sua convicção sobre a existência
de dois tipos supostos de guerra na Colômbia, muito frequentemente alimentada pelas
fotografias, pelos mapas, pelos quadros de dados, etc., produzidos pelo Acnur e por suas
agências parceiras. Tanto as narrações quanto os documentos atuam como criadores de

106
imagens alegóricas, como performances quase sempre narrativas, mas muito amiúde
também visuais, que vão condensando e dando forma a esses elementos com os quais se
criam as duas representações referidas. O primeiro tipo é uma guerra com mecanismos
individualizantes por meio dos quais cada sujeito é ameaçado em virtude da sua história
pessoal. Para alguns agentes de refúgio – que têm mais proximidade e informações sobre a
história política de Colômbia e que acompanham de maneira constante as denúncias de
organismos defensores dos direitos humanos –, a ameaça que recai sobre esses sujeitos é,
quase sempre, percebida como uma resposta às opiniões ou militâncias políticas deles e,
em menor medida, às suas opções ou aos seus pertencimentos de gênero. Essa forma de
guerra e esse perfil pretendido de refugiado são muito parecidos com aqueles com os quais
são apresentadas as histórias dos exilados políticos das ditaduras continentais dos anos
1970 e 1980. A presença no Brasil de vários opositores políticos dos últimos governos
colombianos e o número cada vez maior de líderes sociais, sindicalistas e professores
perseguidos, encarcerados ou mortos (cuja informação é facilmente encontrada na internet)
ajudam a alimentar essa primeira leitura.

Ainda no primeiro tipo de guerra; para outro amplo setor de agentes de refúgio, nos quais
estão incluídos muitos dos funcionários da rede ampla de ONGs que trabalham com
migrantes e refugiados, essa guerra individualizante é obra das guerrilhas. Para esse grupo
de agentes que tem a versão dos meios mais comerciais de comunicação, o conflito na
Colômbia seria exclusivamente provocado pela presença de grupos guerrilheiros cuja
existência estaria diretamente relacionada com a produção e a comercialização da cocaína.
Para esses agentes, as ameaças sobre os sujeitos são o resultado de extorsões econômicas,
antes do que de perseguições políticas. Com a versão pouco esquadrinhada de uma
presença “narcoterrorista” na Colômbia, todos os atores da confrontação e suas diversas
motivações ficam subsumidos nela. Em vários seminários ou encontros organizados por
essa rede ampla de ONGs, alguns dos funcionários chegaram a falar em “paramilitares das
Farc”, juntando, em um mesmo grupo, dois exércitos que, no espaço público, se definem
antagonicamente pelo seu posicionamento político, seu acionar militar e sua relação com
as elites nacionais, entre outros aspectos.

Em qualquer desses casos, com a condensação desse “primeiro tipo de guerra”, chega-se a
um perfil idealizado de solicitante do qual supõe-se que pode aportar provas da

107
perseguição da qual foi objeto, se não é que seu próprio corpo torturado vira uma prova-
chave no sentido proposto por Fassin e Retchman (2007). Além disso, esse tipo ideal de
refugiado é pensado como um sujeito com alguns capitais que lhe permitiriam ser
facilmente “integrável” à vida social e econômica do país nos espaços urbanos onde
supostamente seria possível garantir sua segurança vital e sua proteção social. Se, além
disso, o refúgio em outro país significa, para esse sujeito, uma degradação nas suas
condições sociais, econômicas ou simbólicas, com mais razão, será percebido como um
refugiado “verdadeiro”. Isso porque teria exorcizado o fantasma do migrante econômico
que assombra por trás de cada solicitante de refúgio, ameaçando contaminar essa figura de
proteção. Esse tipo de guerra e esse tipo de refugiado parecem constituir o ideal do refúgio
por elegibilidade no qual “a história do fundado temor de perseguição” é um elemento
medular no processo de seleção.

Em segundo lugar, a guerra acirrada, que desindividualiza e extermina ou desterra


maciçamente, é também constantemente evocada pelos agentes do refúgio. De fato, é
comumente esse o tipo de guerra que é midiatizado com imagens desoladoras de
bombardeios, espólio e êxodos coletivos, como uma explicação para a existência de
refugiados no território brasileiro71. Um dos problemas com essas imagens, tal como foi
salientado por Jayawardena (1995, p. vii), não é que não sejam verdade, é que não são
apropriadas para descrever o “gotejamento de pessoas” em países europeus ou Estados e
Canadá. Nada muito afastado do que poderíamos dizer para o caso brasileiro e sua
recepção filtrada e dosificada de refugiados, apesar das imagens de deslocamentos maciços
e guerras. Porém, essas imagens não só remitem ao caráter maciço do êxodo, mas também
a seu caráter precário.

Duas performances narrativas utilizadas por funcionárias diferentes, mas ambas vinculadas
com as ONGs que administram o programa de Reassentamento Solidário me pareceram
indicadoras dos recursos com os quais essas alegorias da precariedade são produzidas pelas
pessoas. A primeira delas comparava uma família colombiana, que chegou com os
primeiros grupos de pessoas transferidas do Equador, com a imagem dos Retirantes
Nordestinos:

71
Ver anexo 3.

108
[…] Assim, uma simplicidade, a menininha segurava uma bonequinha, mas era
uma bonequinha tão feinha, tão sujinha, tão velinha que era um retrato... Aqui do
Brasil, um retrato de um retirante nordestino. Essa família era o retrato. Ela não
cortava o cabelo há muitos anos, era tudo bagunçado, o menino analfabeto com
16 anos, eles analfabetos, uma família muito, muito, muito, muito simples.

A repetição desse excesso de simplicidade me parece muito útil para exemplificar não só a
percepção subjetiva desses agentes sobre uma suposta precariedade, mas a forma em que
narrativamente essa percepção é transformada, por meio de estratégias discursivas como as
repetições ou as hipérboles, em uma imagem de carência e despojo. A segunda alegoria
que gostaria de usar como exemplo a reconstruo aqui a partir das notas de campo que
realizei de uma conversa que mantive com uma funcionária do Programa de
Reassentamento. Na conversação, a funcionária comparou uma família colombiana, que
chegou por meio do programa, com uma “família africana” associando, no mesmo fio
discursivo, a cor da pele, a precariedade e a quantidade de integrantes do grupo que ela foi
receber no aeroporto:

[…] Ella quiso saber entonces si en Colombia hay muchos negros y yo le


respondí que sí y le di algunos datos. Debo decir que yo describiría a Paloma
como una mujer negra y pensé que su interés por el tema era derivado de su auto-
reconocimiento como una persona afro. Cuando ella continuó la conversación
pensé que tal vez su interés tuviera bases diferentes. Ella me contó, que aunque
en general ella se encarga de otras actividades en la ONG, a veces también recibe
a las personas. Ese fue el caso de una familia de colombianos que ella fue a
recibir junto con una de las asistentes sociales al aeropuerto. Cuando ella, que
estaba esperando la salida de los viajeros, vio aparecer a una familia “muy
negra” y “muy grande”, como con cuatro niños y con “poquísimo equipaje” y
“en una situación…” pensó que era una familia africana; dijo. (Notas de campo)

Essas percepções das agentes de refúgio podem ser entendidas seguindo a Lugones (2012,
p. 113) como esquemas interpretativos – em seu caso das administradoras judiciais – que
são determinantes no curso e nos efeitos dos exercícios de poder sobre as pessoas
administradas. Tudo isso, apesar de que essas imagens discursivas e gráficas, que circulam
como causa do refúgio, não têm, na maioria das vezes, uma tradução numérica ou estética
equivalente na recepção de refugiados. Essas imagens72 vão se converter, sobretudo, em

72
A fotografia (imagem 2) foi reproduzida por vários meios de comunicação, tanto por portais internacionais
ou brasileiros de notícias quanto por diários locais equatorianos e colombianos entre 2011 e 2012 para
ilustrar notícias sobre refugiados colombianos. Ver:
LA OPINIÓN. Aumenta llegada de desplazados colombianos a países vecinos. 23 mar. 2011. Disponível em:
<www.laopinion.com.co/demo/index.php?option=com_content&task=view&id=369976>. Acesso em: 21 de
setembro de 2013.
TERRA. Colombia lidera la lista mundial de desplazados y refugiados. 16 fev. 2011. Disponível em:
<www.terra.com.co/noticias/articulo/html/acu39457-colombia-lidera-la-lista-de-desplazados-y-refugiados-
en-el-mundo.htm>. Acesso em: 21 de setembro de 2013.

109
uma das ferramentas para construir esses sujeitos como vítimas despossuídas sobre as
quais a ação humanitária deve ser ativada. Contudo, para o caso colombiano, essa ação não
é aquela da recepção maciça, mas sim aquela da seleção pausada e refinada das pessoas
que já tenham chegado a outros países e que tenham sofrido transformações prévias.

Imagem 2

Assim, o perfil ideal que produz esse segundo tipo de guerra é aquele do reassentado como
uma dupla vitima – especificamente de uma vitima despossuída – primeiro do conflito e
depois da não integração no primeiro país de refúgio. Sua vida continua ainda em risco no
país no qual procurou proteção, mas sua passagem pelo Equador, supõe-se, foi
modificando sua vida até adaptá-la a um perfil urbano como aquele das cidades de
acolhida. É nesse momento que poderá ser “transferido” ao Brasil para “integrar-se
exitosamente” nos locais destinados para isso. Considero que o drama coletivo e de
urgência dos deslocamentos maciços na Colômbia é transformado no Brasil, por meio de
vários fatores como o tempo e os mecanismos de seleção, em um reassentamento
controlado de núcleos familiares ou de indivíduos urbanos e idealmente “integráveis”.
Nesse caso, importa menos a história do “fundado temor de perseguição” e, ao contrário, é
central conhecer as causas da “não integração exitosa” no primeiro país de refúgio, assim
como o “perfil favorável” à integração no Brasil.

ANUNDIS.COM. El desplazamiento forzoso en Colombia: una verdad que nos averguenza. 30 maio 2012.
Disponível em: <www.anundis.com/profiles/blogs/el-desplazamiento-forzoso-en-colombia-una-verdad-que-
nos>. Acesso em: 21 de setembro de 2013.

110
O assunto dos tempos do refúgio e os pressupostos ideais dessa pretendida integração serão
discutidos detalhadamente na quarta parte da tese. Por ora, exporei a seguir os processos e
as formas da interação que permitem que uma pessoa – ou um grupo de pessoas – seja
reconhecida ou não como refugiada ou como reassentada em território brasileiro.

111
4. Quarto capítulo
Os processos

Yo si me encontré el otro día en la clase de portugués con uno que había llegado
por ese programa ¿Es de protección a testigos?, bueno ese programa. Pero él me
dio un teléfono y siempre contesta la esposa y él nuca pasa. ¿Si no quería hablar
con uno para qué me daba el teléfono? ¿O debe ser por lo del programa no?
Como es un programa de protección, será que no quiere que nadie sepa o que se
está escondiendo. (Agustín, refugiado colombiano)

4.1. Refúgio por elegibilidade

4.1.1. Segundo a lei

Como já foi apontado, os indivíduos ou grupos de pessoas que, por iniciativa própria,
apelam aos convênios internacionais e são reconhecidos como refugiados, são chamados
“refugiados espontâneos” pelos agentes brasileiros. Essa forma de nomear destaca o caráter
não planejado desse tipo de solicitações e a consequente imprevisibilidade de sua chegada.
A partir do momento que as solicitações de refúgio são oficialmente aceitas, e antes de
serem reconhecidas, as pessoas passam a ser chamadas “solicitantes”.

Mais do que um programa especial de refúgio, o “refúgio por elegibilidade” é a adoção e


adaptação das normativas internacionais sobre proteção de pessoas e o processo mesmo
que leva ao reconhecimento, ou não, de um sujeito ou um grupo como refugiados73.
Mesmo que existam na Cáritas serviços de atendimento a refugiados que, algumas vezes,
são chamados “programa de assistência e integração social”74. A ordem oficial que é
especificada para o refúgio por elegibilidade começa na Polícia Federal como o órgão
encarregado de receber a solicitação e ativar o processo. Continua com o encaminhamento
das pessoas à Cáritas, onde elas se beneficiariam dos serviços sociais oferecidos, passa ao
Conare como órgão deliberativo, e termina novamente com a Polícia Federal, que é

73
O fato de haver maior interesse no processo de seleção das pessoas do que no seu atendimento posterior foi
apontado por algumas autoras (MOREIRA, 2012; JUBILLUT, 2007) como uma amostra da insuficiência de
políticas públicas para os refugiados e, de modo mais amplo, à população migrante em general. Moreira, por
exemplo, sugere levar em conta a distinção entre “regulation policy” e “immigrant policy”, apontando que o
Estado brasileiro tem privilegiado uma política de regulação migratória que controla a admissão de
estrangeiros, em detrimento de uma política em relação a essas pessoas depois de sua entrada ao território
nacional (2012, p. 28).
74
Esses “programas” incluem: 1) assessoria jurídica para iniciar o processo de solicitação ou para apresentar
um recurso caso de ser negado; 2) fornecimento eventual de roupa, produtos de higiene ou dinheiro,
entregues sob o título de “ajuda humanitária de emergência”; 3) cursos básicos de português e assessoria nos
trâmites relativos à documentação requerida para o acesso a serviços de saúde, educação e trabalho; 4)
atendimento psicológico e psiquiátrico.

112
encarregada de comunicar a decisão ao solicitante, que tem o direito de recorrer, em caso
de resposta negativa.

Segundo a lei, esse processo começa e termina com a ação de uma força de segurança que
é a Polícia Federal e tem um intermédio social e humanitário, representado pela Cáritas. O
quadro resumido do procedimento segundo a Lei nº 9.474/97 (ver quadro 1) permite
identificar essa sequência ideal de etapas, na qual também são mencionados os benefícios
em termos de documentação e serviços que são oferecidos para os solicitantes. Às pessoas
que consigam ativar a solicitação de refúgio lhes é entregue um “protocolo” 75 que funciona
como documento de identidade e que dá acesso ao SUS, à rede de ensino público e permite
tramitar outros documentos importantes para a vida empregatícia e civil brasileira como o
CPF e a carteira de trabalho.

O acesso que as pessoas têm a esse tipo de documentos, inclusive estando na fase de
solicitantes, ainda sem o status de refúgio reconhecido, é amplamente apreciado pelos
agentes do refúgio e apresentado como uma característica exemplar da legislação
brasileira. Essa característica costuma ser comparada com legislações de outros países que,
em relação a esse aspecto em particular, tem adotado uma legislação mais restritiva. Além
disso, existe uma coincidência entre as partes constitutivas do Conare em que o acesso ao
trabalho é um dos pontos mais importantes para o sucesso das políticas de refúgio
brasileiras76 e que esses documentos lhes oferecem aos solicitantes a possibilidade de
trabalhar legalmente, promovendo sua independência financeira desde o começo do
processo. Da ativação do processo na Polícia Federal até a resposta definitiva do Conare,
não há um limite de tempo claramente definido. Porém, os diferentes agentes de Estado
entrevistados calcularam – em média – um ano.

75
Esse protocolo é um papel retangular que contém uma foto e os dados básicos do solicitante, o número do
“processo” de sua solicitação e o carimbo do DPF que é quem o emite. O protocolo dos solicitantes de
refúgio não apresenta grande diferença com relação ao dos outros estrangeiros. No entanto, neste inclui-se a
palavra refugiado, categoria que também será incluída em seu RNE quando este documento seja emitido.
Atualmente, algumas ONGs, advogados da OAB e outros setores sociais que militam na causa de migrantes e
refugiados, conseguiram que os órgãos do governo federal incumbidos aceitassem a retirada dessa palavra
que na vida cotidiana das pessoas se traduz em dificuldades para conseguir empregos e outro tipo de
discriminações.
76
Aprofundarei, na quarta parte da tese, na seção dedicada à “integração local”, na ideia defendida pelos
agentes do refúgio segundo a qual o trabalho, a língua e a escola, são os três pilares do êxito do refúgio.

113
Quadro 1
Do Procedimento
Art. 17. O estrangeiro deverá apresentar-se à autoridade competente e externar vontade de solicitar o
reconhecimento da condição de refugiado.
Art. 18. A autoridade competente notificará o solicitante para prestar declarações, ato que marcará a data de
abertura dos procedimentos.
Parágrafo único. A autoridade competente informará o Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados - Acnur sobre a existência do processo de solicitação de refúgio e facultará a esse organismo a
possibilidade de oferecer sugestões que facilitem seu andamento.
Art. 19. Além das declarações, prestadas se necessário com ajuda de intérprete, deverá o estrangeiro
preencher a solicitação de reconhecimento como refugiado, a qual deverá conter identificação completa,
qualificação profissional, grau de escolaridade do solicitante e membros do seu grupo familiar, bem como
relato das circunstâncias e fatos que fundamentem o pedido de refúgio, indicando os elementos de prova
pertinentes.
Art. 20. O registro de declaração e a supervisão do preenchimento da solicitação do refúgio devem ser
efetuados por funcionários qualificados e em condições que garantam o sigilo das informações.
Da Autorização de Residência Provisória
Art. 21. Recebida a solicitação de refúgio, o Departamento de Polícia Federal emitirá protocolo em favor do
solicitante e de seu grupo familiar que se encontre no território nacional, o qual autorizará a estada até a
decisão final do processo.
§ 1° O protocolo permitirá ao Ministério do Trabalho expedir carteira de trabalho provisória, para o exercício
de atividade remunerada no País.
§ 2º No protocolo do solicitante de refúgio serão mencionados os menores de quatorze anos.
Art. 22. Enquanto estiver pendente o processo relativo à solicitação de refúgio, ao peticionário será aplicável
a legislação sobre estrangeiros [...]
Da Instrução e do Relatório
Art. 23. A autoridade competente procederá a eventuais diligências requeridas pelo Conare, devendo
averiguar todos os fatos cujo conhecimento seja conveniente para uma justa e rápida decisão, respeitando
sempre o princípio da confidencialidade.
Art. 24. Finda a instrução, a autoridade competente elaborará, de imediato, relatório, que será enviado ao
Secretário do Conare, para inclusão na pauta da próxima reunião daquele Colegiado.
Art. 25. Os intervenientes nos processos relativos às solicitações de refúgio deverão guardar segredo
profissional quanto às informações a que terão acesso no exercício de suas funções.
Da Decisão, da Comunicação e do Registro
Art. 26. A decisão pelo reconhecimento da condição de refugiado será considerada ato declaratório e deverá
estar devidamente fundamentada.
Art. 27. Proferida a decisão, o Conare notificará o solicitante e o DPF, para as medidas administrativas
cabíveis.
Art. 28. No caso de decisão positiva, o refugiado será registrado junto ao Departamento de Polícia Federal,
devendo assinar termo de responsabilidade e solicitar cédula de identidade pertinente.
Do Recurso
Art. 29. No caso de decisão negativa, esta deverá ser fundamentada na notificação ao solicitante, cabendo
direito de recurso ao Ministro de Estado da Justiça, no prazo de quinze dias [...]
Art. 30. Durante a avaliação do recurso, será permitido ao solicitante de refúgio e aos seus familiares
permanecer no território nacional, sendo observado o disposto nos §§ 1º e 2º do art. 21 desta Lei.
Art. 31. A decisão do Ministro de Estado da Justiça não será passível de recurso, devendo ser notificada ao
Conare, para ciência do solicitante, e ao Departamento de Polícia Federal, para as providências devidas.
Art. 32. No caso de recusa definitiva de refúgio, ficará o solicitante sujeito à legislação de estrangeiros, não
devendo ocorrer sua transferência para o seu país de nacionalidade ou de residência habitual, enquanto
permanecerem as circunstâncias que põem em risco sua vida, integridade física e liberdade, salvo nas
situações determinadas nos incisos III e IV do art. 3º desta Lei.

114
4.1.2. As formas de (inter)ação: “o processo” segundo os agentes do refúgio,
os solicitantes e os refugiados

Algumas variações importantes em relação a esse processo oficial, que já foi descrito, me
foram apontadas pelos solicitantes e também pelas funcionárias das ONGs que são quem,
usualmente, têm o primeiro contato com as pessoas. Falo em funcionárias em feminino por
várias razões. Em primeiro lugar, porque em contraste com a presença majoritária de
homens no Conare e na Polícia Federal, nas ONGs de fato existe uma maioria de agentes
mulheres e a generalização do feminino me permite um pouco de anonimato paras as
pessoas entrevistadas, especialmente para os poucos homens que lá trabalham. Em
segundo lugar, porque há algo que, nesse trabalho de administração, é percebido como a
execução de uma razão de Estado que se encontra em outro lugar – Brasília ou o Conare ou
o “Estado” etc. Os trabalhos de Vianna (2002) e de Lugones (2012) têm assinalado a
importância de levar em conta essa presença do feminino nos lugares da administração,
não apenas como uma variável que cria um tipo particular de relação com os
administrados, mas como uma manifestação da divisão arquetípica do mundo social entre o
feminino e o masculino, tal como aponta Vianna inspirada por Bourdieu (VIANNA, 2002,
p. 278).

Nesse sentido, o trabalho de “administração” adquire um duplo sentido de governar e de


fornecer, com o qual pode ser entendida essa palavra, ou seja, tanto do exercício de
governo sobre as populações construídas como refugiadas quanto do exercício da
economia doméstica dessa razão pública. Tratar-se-ia de uma sorte de domesticidade
deixada nas mãos de uma administração com forte presença feminina que cuida da
despensa (os subsídios financeiros, a roupa, a comida). Esse cuidado é fundamental no
exercício de “fazer viver” aos potenciais futuros filhos da nação, inclusive se encarregando
de identificar aos legítimos (refugiados) dos ilegítimos (migrantes econômicos, turistas,
viajantes etc.) e protegendo os bens que, por direito (internacional humanitário), lhe
corresponderiam aos primeiros. A importância dessas funcionárias no curso do processo de
cada um dos solicitantes pode começar a ser percebida quando, na apresentação dos
procedimentos descritos na lei, se contempla ou se contrasta com aquela que realizam os
diferentes agentes da tríade.

115
Um dos diagramas de fluxo elaborados pela diretora do IMDH de Brasília77 ajuda perceber
a forma em que os agentes encarregados da administração dos refugiados apresentam os
procedimentos (ver diagramas 2 e 3). Nesses diagramas, observa-se um maior
protagonismo das ONGs no que tange ao papel desempenhado pela Cáritas no processo de
solicitação. Particularmente, destaca-se o papel das advogadas que realizam, como
representantes do Acnur, uma entrevista com os solicitantes que objetiva determinar se se
trata de um caso de fundado temor de perseguição. Se nos diagramas e nas declarações dos
agentes de refúgio, a entrevista que a Cáritas faz é apresentada como “complementária”, na
prática, ela se revela fundamental dentro do processo global de solicitação de refúgio.

Diagrama 2

Estrangeiro em solo brasileiro


Solicitação de Refúgio

FORMAL COMPLEMENTAR

Departamento de
Cáritas
Policia Federal

Questionário e Questionário e
Termo de declarações entrevista

CONARE

77
Na primeira parte desta tese, eu propus que esses quadros elaborados e que circulam entre os agentes do
universo institucional do refúgio sejam entendidos e lidos como textos e não como mero contexto, na medida
em que eles produzem e reproduzem ideias comuns sobre o refúgio e ajudam na consolidação de um corpus
documental institucional sobre os processos e sobre os agentes neles concernidos.

116
Diagrama 3

Documentos no CONARE

Comunicação ao ACNUR

Entrevista / CONARE

G.E.P. Grupo de estudos previos


Apreciação do caso pelo G.E.P composto por: MJ + MRE
+ ACNUR + DPF e Sociedade Civil

Decisão Plenária do CONARE

DEFERIDO INDEFERIDO

A Cáritas não só aparece com maior protagonismo nos diagramas, seu trabalho é
referenciado de maneira central também pelos solicitantes e refugiados assim como pelos
outros agentes que intervêm nos processos. Todos eles coincidem na importância da
entrevista com essa ONG e em que realmente é em seus escritórios onde começa o
procedimento de solicitação e onde se dá a maior quantidade de encontros entre as pessoas
e “o Estado” por meio, precisamente, dos funcionários dessas organizações. Um dos
agentes da Polícia Federal, encarregado de tomar as declarações dos solicitantes para ativar
“oficialmente” o processo, apontou, com claridade, essa característica:

[...] Eles passam primeiro no Cáritas (sic), voltam no Cáritas, aí o pessoal do


Cáritas pega e já marcam, na verdade, eles nem consultam a gente se tem vaga
ou não. Eles têm a agenda deles lá e eles sabem que sempre vai ter alguém aqui
para atender. Eu até entrei em contato com eles para falar isso, porque eles vão
marcando na cabeça deles, na verdade, eles marcam dois na parte da manhã e
dois na parte da tarde. Porque esse é o padrão deles [...] Por exemplo, esse
nigeriano que saiu daqui agora estava marcado de acordo com Cáritas para as 3
horas, mas a Cáritas marcou sem saber se tinha ninguém aqui, sem saber qual é
que é a circunstância, qual é que é a situação. Porque muitas vezes a gente sai
para participar de operação na rua, não só de estrangeiros, mas operação de
qualquer outra delegacia do prédio e não tem ninguém aqui [...] Aí, Cáritas vai,
vê qual é que é o caso do estrangeiro que aparece lá, se é condição de refúgio ou
se não é caso de refúgio e (então) é caso de vir aqui e fazer uma regularização
comum e aí eles marcam. Eles fazem uma carta de encaminhamento; Cáritas,
encaminhando ao estrangeiro para cá. (Agente da Delemig da PF)

As funcionárias da Cáritas e alguns agentes do Conare comentaram que não se trata de


uma variação do processo oficial, se não de “algo circunstancial” que faz com que os

117
solicitantes entrem primeiro em contato com as ONGs. Apesar da complementaridade que,
para o processo de refúgio, representam estas duas instancias diferenciadas (Polícia Federal
e Cáritas), a leitura de algumas das advogadas da Cáritas aponta os aspectos positivos
dessa possibilidade de um primeiro contato com a ONG antes do que com a polícia.
Segundo as advogadas, isso permitiria que as pessoas se deparassem primeiro com uma
organização civil e de caráter “humanitário”, antes de recorrer à Polícia Federal, que é um
órgão de segurança. Ainda segundo as advogadas, o fato de que o processo de refúgio por
elegibilidade estabeleça a um órgão de segurança como o encarregado do primeiro contato
com os solicitantes pode desestimular o pedido, intimidar as pessoas e provocar versões
parciais nos relatos dos fatos que os levaram a solicitar proteção.

Entretanto, esse caráter “humanitário” que guia as ações, não só da Cáritas mas também
dos processos de refúgio de maneira geral, inclui um cálculo de contenção. Ou seja, a
salvação de algumas vidas, consideradas como refugiadas, inclui necessariamente a recusa
da entrada e permanência de outras, especialmente quando a imagem ideal do refúgio
brasileiro passa pela necessidade de medir a qualidade e a quantidade das pessoas que
serão reconhecidas. Assim, “o humanitário” não é só a “parte social do atendimento” mas
também esse jogo complexo e esse ajuste permanente entre, de uma parte, “os serviços de
acolhida e a defesa dos direitos humanos” e, de outra, os cálculos de contenção e as
medidas para filtrar os indesejados. Em ambas as tarefas Cáritas e suas funcionárias
desempenham importantes funciones e não só na parte da acolhida, como frequentemente é
apresentado seu próprio trabalho por essas funcionárias.

Talvez por isso a crítica que defende um tratamento mais orientado para o social e menos
para a segurança nacional enfrenta desconfianças por parte dos próprios solicitantes. Para
eles as demoras no atendimento em Cáritas, e por consequência a tardança em serem
encaminhados à PF, dificultam seus processos de documentação e representam muitas
vezes obstáculos para gerir sua solicitação. A relação com o pessoal da Cáritas foi referida,
pela maioria dos solicitantes, como uma interação tensa, na qual se misturam as
inconformidades por não receber apoios materiais com as dificuldades para realizar
oportunamente os trâmites de documentação.

118
A soma desses aspectos é interpretada por muitos solicitantes, segundo um deles me disse,
como uma tentativa de “desanimarnos para que uno desista de pedir refugio”. José
Alberto, outro solicitante, chateado pela falta de atendimento e apoios materiais em
Cáritas, comparou os deveres que têm o Acnur e o “Estado brasileiro” com os solicitantes e
refugiados com a responsabilidade de um homem de cuidar e responder economicamente
por sua esposa e seus filhos. Essa formulação foi muito interessante para refletir sobre a
maneira que é percebida a ação das funcionárias da Cáritas e contraposta com os “deveres”
protetores do Estado de acolhida ou do Acnur como responsáveis dos refugiados. Para José
Alberto, a má administração da Cáritas faz com que o “Estado” apareça como um
irresponsável, como um provedor que faltou no cumprimento de seus deveres com sua
“namorada”, sua “mulher” e seus “filhos”, ao mesmo tempo que sugeriu que é preferível
não ser recebidos se o país de acolhida não tem condições de apoiá-los. Em uma forma de
desafio à masculinidade do Estado que devia ser seu protetor:

[…] ¿Es un compromiso?, Si no, no nos reciban, si no díganme: “no, no, vea,
chao, mejor no ingresen a este país porque no tenemos ayudas y no tenemos
como sostenerlos, primero vamos a solucionar los problemas de nuestro país”. Y
listo, yo no vengo, no entro. Yo no puedo tener una novia, una mujer y no
cumplirle, yo no puedo tener unos hijos y no cumplirles, sería un irresponsable.
En este momento el Acnur es un irresponsable. Porque no mira las consecuencias
que una persona puede sufrir aquí, el daño moral que le están haciendo a una
persona no lo mira el Acnur. Aquí, aquí en Brasil he visto compañeros míos
locos que “moravan” conmigo, locos en la “rua” en la calle tirados. Y si usted es
testigo vámonos para allá afuera para la calle y verá un ucraniano que está loco,
perdido, inmerso en el alcohol y las drogas ¿por qué? porque Cáritas no le ayuda
a solucionar un problema […]

O local onde começa o processo (e onde, de fato, se dá uma boa parte da relação entre
solicitantes e agentes de Estado) não me parece um dado menor. Tal como foi apontado
nos capítulos precedentes, virar um refugiado ou passar a ser considerado como integrante
de “outra” categoria é um resultado dos mesmos procedimentos que se ocupam de
classificar as histórias e os movimentos das pessoas. De fato, encaixar ou não nas
categorias, ser ou não reconhecido como refugiado ou virar “outro”, segundo a proposta de
Ferreira (2011, p. 257), é possível precisamente por meio das formas nas quais as histórias
das pessoas são “comunicadas, registradas e arquivadas”. Comunicar a própria história na
Cáritas implica oferecer uma versão de si mesmo para as pessoas que serão
simultaneamente as mediadoras com outros agentes, as encarregadas de avaliar os
solicitantes para decidir a entrega de benefícios financeiros e materiais e de assessorar e

119
apoiar os solicitantes no acesso aos demais serviços sociais, incluindo o recurso perante
uma possível resposta negativa do Conare.

Aquilo que é explicado em Cáritas, em termos de “circunstâncias” que levam a alguns


solicitantes a passar primeiro por seus escritórios, se apresenta, na prática, como um
requisito sem o qual é impossível iniciar o processo de solicitação de refúgio nas cidades
onde elas agem. As pessoas dificilmente são atendidas na Polícia Federal sem um
encaminhamento de Cáritas, e a intermediação dessa ONG vira indispensável para que os
solicitantes possam interagir com os órgãos governamentais concernidos no refúgio e, de
fato, para conseguir acesso a qualquer um dos benefícios sociais. Uma mulher refugiada,
há vários anos no Brasil, por exemplo, opinou, ao se lembrar de sua interação com a ONG,
que a “Cáritas le informa a las personas solamente una parte de sus derechos y eso lo
hacen para mantener el poder sobre las personas, porque es poder lo que ejercen sobre
uno con sus tales ‘encaminhamentos’”.

Outras pessoas também se queixaram do tratamento recebido na instituição, interrogando a


razão pela qual elas não podiam fazer a papelada diretamente nos escritórios da Polícia
Federal ou dos outros organismos concernidos nos processos de documentação, para poder,
segundo elas, agilizar os tempos do processo. Efetivamente, os “encaminhamentos”,
presentes em tantos cenários burocráticos de diversa índole, aparecem com clareza no
universo institucional do refúgio, especificamente em essa relação com as ONGs que
administram os programas e aos sujeitos como formas de controle. Segundo a fórmula
foucaultiana de poder (1998), os “encaminhamentos” seriam uma ação que controla as
possibilidades de ação dos sujeitos administrados, mais por meio da administração de suas
possibilidades no mundo e menos pela violência direta. De fato, as funcionárias da Cáritas
me apresentaram os “encaminhamentos” como uma forma de proteger os refugiados
solicitantes do preconceito, do desconhecimento e do mau atendimento dos funcionários de
outros organismos. Assim, a linguagem que é mobilizada para o exercício de poder por
meio do controle minucioso das ações dos outros é aquela da proteção e do cuidado.

Porém, nas minhas conversas com as pessoas solicitantes ou refugiadas, o lado social e
humanitário da recepção e “acolhida” que Cáritas deveria representar era, ao contrário,
percebido, na maioria das vezes, como um poder controlador e repressivo. A tensão

120
expressa entre compaixão e repressão, ou aquilo que Fassin chamou de uma “repressão
compassiva” (2010, p. 173) parece estar presente o tempo todo no processo de
elegibilidade e, especialmente, na relação com as ONGs católicas com quem os solicitantes
têm contato direito.

A “repressão compassiva” poderia ser pensada como o correlato de uma equação que tenta
se equilibrar entre o controle da migração baseado em critérios de segurança nacional e a
proteção às pessoas perseguidas baseada nas premissas do humanitário. Correlato também
da tensão entre a solidariedade que reconhece no outro sofrente uma comum humanidade e
a desigualdade que permite a ação para o outro precário e despossuído (Fassin, 2010).
Contudo, parece-me que essa busca de equilíbrio e o esforço dos atores sociais envolvidos
no refúgio de populações em distinguir esses dois lados da equação e de se posicionar num
deles pode nos informar sobre as características mesmas do humanitário. Este parece estar
constituído pelas duas facetas em questão: segurança/proteção; repressão/compaixão. Ou
seja, a ação humanitária do refúgio encarna em si mesma e requer, para sua
implementação, tanto do reconhecimento do outro sofredor quanto dos mecanismos que o
filtram e o produzem como um sofrente muito particular e que, portanto, deixam de fora
outro contingente de pessoas.

De outra parte, no espaço administrativo do refúgio, existe outro aspecto que tende ainda
mais essa relação nervosa entre facetas aparentemente contraditórias, pois os agentes da
tríade, especialmente as funcionárias das ONGs, pareceram se encontrar perante um
paradoxo manifesto entre um atendimento baseado na caridade e um atendimento baseado
na assistência social. Isso se trataria de um ato de bondade ou do cumprimento dos direitos
dos refugiados? As características dessa relação, como diz de Swaan (1992, p. 10), estão
presentes nas interações de muitas das instituições, especialmente católicas, que, ao longo
do século XX, assumiram o controle e a intermediação com as “perigosas populações
despossuídas”. Procedimentos esses que, segundo o autor, primeiro estiveram baseados na
vigilante construção social da caridade e, por essa via, da institucionalização da assistência
social à que, paulatinamente, o Estado foi dotando de um aparato burocrático para sua
posta em prática como um assunto público de grande escala (DE SWAAN, 1992, p. 16).

121
No momento de me explicar o tipo de “ajudas” que eram entregues aos solicitantes e
refugiados, assim como os critérios para essa entrega, uma das assistentes sociais de
Cáritas manifestou sua inconformidade com o fato de que algumas pessoas reclamaram
esses apoios financeiros ou materiais em termos de direitos. Por sua vez, as reclamações
que escutei dos solicitantes mais conhecedores do funcionamento administrativo das
agências de refúgio baseavam-se naquilo que eles consideravam o caráter público dos
dinheiros doados pelos estados, com os quais são financiados os programas do Acnur. Essa
leitura chocava muito a assistente social da Cáritas quem numa entrevista manifestou que:

[...] eu não sei de onde tiram eles que a ajuda financeira é um direito [...] a ajuda
financeira não é um direito, é uma ajuda humanitária, ninguém tem direito
nenhum de receber. Isso é uma ajuda humanitária, então você não tem direito
nenhum, nós estamos dando porque nós avaliamos que você precisa dessa ajuda.
(Assistente social da Cáritas)

Essa forma de concepção do humanitário que recicla a linguagem da compaixão,


apresentando os eventuais benefícios financeiros em termos de ajuda, despolitiza também
os sujeitos fazendo que seu atendimento se reduza à salvação de sua existência física,
quando os agentes a consideram “vulnerável” ou em “risco”. Os direitos civis e,
especialmente, os direitos políticos, que são alardeados nas políticas de refúgio no plano
diplomático, não são alentados nesse tipo de relacionamento direto com os refugiados e
solicitantes. A ajuda humanitária encontra-se mais perto da ideia da caridade, que, como
afirma de Swaan (1992, p. 15), não deve ser entendida “como um sentimento pessoal ou
como uma disposição individual, mas como uma expectativa de inclinações similares entre
membros de uma mesma coletividade”.

Nessa leitura proposta, a caridade não tem o simples propósito de aliviar o sofrimento do
despojado, e sim reduzir os riscos de que sua condição faça dele um potencial perigo para a
tranquilidade de quem possua os recursos. Sendo assim, a caridade é também uma forma
de gestão coletiva do risco social que engendram os despossuídos que, por meio de sua
coletivização e burocratização, tem sido legitimada como uma ação pública de assistência
social, conservando, porém, os roteiros cristãos que estão na sua origem (DE SWAAN,
1992, p. 14). Então, a compaixão pelo outro sofredor (FASSIN, 2010) e a caridade como
forma de gestão coletiva do perigo que ele engendra (DE SWAAN, 1992) encontram um
interessante ponto de união nas relações diretas entre solicitantes e agentes de refúgio.

122
O fato de que a equipe de funcionárias da Cáritas tenha a autoridade de avaliar e decidir
quem precisa de “ajuda”, assim como o tipo de benefícios e sua quantidade, reforça a ideia
de alguns solicitantes de que eles estão submetidos à vontade dessa equipe. Assim,
desdobram-se vários efeitos. Em primeiro lugar, que a demora nos documentos,
encaminhamentos e atendimento também seja percebida como uma decisão discricionária
das funcionárias. Essa primeira consequência é reforçada pelas notórias diferenças entre os
tempos de espera78 dos solicitantes para os diversos trâmites e a maior facilidade de alguns
deles para ter acesso aos desembolsos financeiros. Outro efeito que se desprende dessa
situação consiste nas constantes queixas sobre “a falta de profissionalismo das
funcionárias”, suspeitas de desvio de verba e a permanente comparação entre a renda das
funcionárias e a das pessoas assistidas. A avaliação do uso do dinheiro inclui apontar o
custo de alguns objetos das sedes de Cáritas, como os “computadores novos” e o comparar
com a demora dos processos e a insuficiência de recursos para o atendimento das pessoas,
como a falta de água ou as cadeiras quebradas na sala de espera.

Um fragmento de uma entrevista com José Alberto, o mesmo solicitante de refúgio que
citei anteriormente, reúne vários dos elementos mencionados e outros que também podem
ser pensados como possíveis desdobramentos dessas formas de interação entre solicitantes,
refugiados e funcionárias de Cáritas:

[…] Si ese ucraniano se llega a morir, si le llega a pasar algo na rua, si le da


hipotermia, ¿de quién es la responsabilidad? Del Estado brasilero que lo recibió
y lo tiene aquí. Del Acnur por no haberlo encaminhado profesionalmente, porque
cuando uno no hace un trabajo bien, se llama qué: No ser profesional. Y yo les
digo señores, con todo el respeto que se merecen, ¿dónde está el código y la ética
profesional? ¿Dónde está la balanza de la justicia?

[…] Esto se lo dije a la abogada, a la doctora de Cáritas y no pasó nada. Al


Acnur y no pasó nada. Le pido zapatos para los hijos míos que están en el
deporte, que están sacando medallas: “No, no le puedo dar porque es que hay que
darle a todo el mundo, le damos estas si quiere y si no, no”. O sea que aquí no
califican y juzgan a las personas por su desempeño, por su trabajo, por sus
funciones, por sus características. Aquí no hay un seguimiento: Esa persona llegó
hace seis meses, ¿cómo era antes y cómo es ahora? No hay un seguimiento, eso
es un proceso, de adaptación, de aprendizaje, de socializarse con un mundo que
él no conocía, con otra cultura; saber quién es qué está haciendo, un seguimiento.
¿Dónde está ese seguimiento del Acnur? o para bien o para mal ¿dónde está?
Sólo te cierran las puertas, solo te dicen: está fechado, sólo te dicen: “Venga na
segunda féira, 4° feira, 5° feira”, sólo me dicen “No hay, no hay, no hay, no
hay”. Mira, mi madre tiene dos meses vencido el protocolo, mi madre de 65 años
tiene vencido el protocolo hace dos meses. Y ¿por qué no se lo han renovado?:

78
Na última parte da tese, dedicada aos tempos e à integração, realizarei uma discussão mais detalhada sobre
as diferentes temporalidades dos processos de refúgio, incluindo uma reflexão particular sobre a espera.

123
Por falta de profesionalismo en el Acnur, en Caritas. Eso se llama ser
incompetente. En estos momentos mi mamá está ilegal y mi mujer está ilegal
[…]

Usted, que está haciendo una investigación ¿Usted me cree?, ¿Usted me cree?
Entonces, qué tengo que hacer yo para que me crean en el Acnur. Yo quisiera
que me muestren las estadísticas de las ayudas. No en un papel, porque yo ya sé
que es manejar doble contabilidad, yo ya sé qué es justificar fondos sin fondos.
Porque yo soy periodista y también he investigado, yo sé qué es la doble moral,
pero yo les hago una pregunta señores: ¿Acaso se puede jugar con la moral de las
personas, con la vida de las personas? Que es lo que está haciendo en Acnur y es
lo que está haciendo Caritas: Jugando con la vida de las personas.

Uma das queixas presentes nesse fragmento é o fato das funcionárias não levarem em
conta o desempenho e as características das pessoas. A falta de profissionalismo das
funcionárias não se limita à ineficiência na gestão dos trâmites, mas especialmente à
maneira como elas ignoram tanto as medalhas que os filhos esportistas estão ganhando
quanto as características particulares de sua história no Brasil. José Alberto não está
conseguindo uma avaliação positiva do comportamento de sua família, que ele considera
meritório, ou seja, alguma coisa está falhando na interação com os agentes que lhe impede
de obter as condições favoráveis que poderiam se derivar de seu “bom comportamento”, ou
em palavras de Vianna, de sua “obediência a preceitos moralmente valorizados” (2002, p.
196)79. A falha na valorização de seu caso o localiza, além disso, no lugar do sujeito sobre
quem recai a desconfiança. Não é sem razão que José Alberto me pergunta com insistência
se eu acredito em suas palavras, em sua narração, em sua história, que são os elementos
que ele tem para construir sua credibilidade.

Em nossas conversas, José Alberto manifestou reiteradamente que ele é “un buen
ciudadano, un buen elemento”, apontando que é por causa disso que ele tem se submetido
a todo esse processo de solicitação e aos seus tempos. Segundo ele, “los malos elementos”
teriam desistido há muito tempo e não se importariam de ficar de maneira ilegal no país.
Há, nesse caso, uma persistência em uma causa que parece impossível e um empenho
particular em demonstrar que ele é realmente um refugiado e também uma “buena

79
Essa construção de sujeitos morais e, em particular, de relações nas que está em jogo tanto o poder de
mando quanto o poder de obediência, é apresentada em palavras da autora da seguinte maneira: “A
autoridade extraída das ações moralmente corretas pode ser tomada como tributária não simplesmente do
poder de mando mas também, paradoxalmente, do que se poderia qualificar como o poder da obediência, ou
seja, a autoridade obtida a partir dos esforços em conseguir ser percebido como alguém que traz para seu
comportamento e para o que se poderia chamar ainda um tanto imprecisamente de sua imagem social –
objetivada em uma certa reputação, por exemplo – os benefícios de obedecer a preceitos sociais moralmente
valorizados” (VIANNA, 2002, p. 196).

124
persona” e, dessa maneira, se afastar de quem estaria no país para delinquir ou
simplesmente de quem não obedece às normas e não ficaria constrangido moralmente por
permanecer como ilegal80.

Se levarmos em conta, então, tanto o poder de obediência quanto a caracterização


humanitária da entrega de apoios financeiros, que despolitiza essa ação, podemos perceber,
como propõe Fassin, que “celles et ceux qui font l’objet de l’attention humanitaire savent
bien que l’on attend d’eux l’humilité de obligé plutôt que la revendication d’un avant-
droit” (FASSIN, 2010, p. 11). Por conseguinte, mostrar-se agradecido, saber obedecer e
estar disposto a levar o processo seguindo os ritmos, as estéticas e as etiquetas
estabelecidas pelas autoridades do refúgio e reformuladas junto com elas, vai performando
ao solicitante exitoso e, portanto, ao futuro refugiado. Para que os marcos que permitem
essa forma de relação social existam, sejam efetivos e legítimos, os solicitantes devem
produzir uma imagem cuidadosa de si mesmos nos termos em que foi proposto por
Goffman na sua obra sobre a apresentação de si na vida cotidiana (GOFFMAN, 1985).
Além disso, as funcionárias devem mostrar que sabem ser profissionais, que estão
dispostas a escutar todas as solicitações com equanimidade, que têm a capacidade e a
disposição para valorizar as histórias de cada pessoa e que têm as competências técnicas e
morais para julgar seus comportamentos em prol da diferenciação entre aqueles que serão
aceitos como refugiados e aqueles que terão sua solicitação indeferida.

Existe uma mútua constituição do comportamento de todos os sujeitos que fazem parte, e
fazendo parte criam aquilo que estou chamando de o processo de solicitação. Tanto os
múltiplos agentes de Estado quanto os solicitantes e refugiados reconhecidos, os
funcionários de ONGs e os outros sujeitos que possam alterar, de maneira mais ou menos
drástica, os acontecimentos e a relação entre as partes, constroem uma configuração
especial e dinâmica. Conforme Elías (1994), em uma configuração social, todas as partes
compreendidas agem levando em conta os comportamentos e ações dos outros.

80
Essa forma de ação por meio da mobilização pública dos comportamentos, moralmente construídos como
exemplares, está presente e delicadamente trabalhada no texto de Vianna e Farias (2011, p. 98) no qual
mostram como a perseverança da mãe, interpretada no espaço e na ação públicos, vira a prova da
exemplaridade moral do filho morto pela polícia, entre outras coisas, porque “Mãe de traficante não fica
lutando por justiça”.

125
A simples decisão de que o porteiro do prédio onde funciona a Cáritas em São Paulo
começasse a “colaborar” no processo de “filtrar” as pessoas que procuravam atendimento
gerou um intenso desconforto entre alguns solicitantes que não concordavam com o fato de
ter de explicar para o porteiro as razões da visita e, além disso, ter de se submeter ao
critério dele para serem recebidos. Esse evento específico, no qual um sujeito foi dotado
com um poder particular (e, às vezes, percebido como ilegítimo) gerou muito mais
descontentamento que a habitual falta de atendimento. O evento, claro, não está
compreendido nem registrado, nem explicado na lei, mas foi determinante para que alguns
solicitantes decidissem interpor queixas formais sobre “o processo”, desistir e procurar
outras redes de apoio na cidade ou modificar as estratégias de relacionamento com as
funcionárias da Cáritas.

As modificações nas maneiras de se relacionar com as funcionárias e outros agentes do


refúgio são também formas de ação que influenciam, marcadamente, os processos por
meio dos quais uma pessoa vira refugiada, assim como o status que sua condição,
reconhecida ou não, lhe oferece. Edna, por exemplo, que chegou grávida ao Brasil junto
com seu marido, sua filha, sua irmã e dois sobrinhos, decidiu continuar com a solicitação
de refúgio mesmo que o nascimento do filho em território brasileiro lhe permitiria pedir a
residência permanente para ela e seu esposo. Porém, continuar com o processo e insistir em
ser reconhecida como refugiada não quer dizer, para Edna, submeter-se exatamente às
condições que Cáritas oferece, que incluem desde o uso obrigatório dos encaminhamentos
para acionar outros órgãos ou instituições até a mobilização e a expectativa de certo tipo de
emoções positivadas, como o carinho e a gratidão dos solicitantes para com as pessoas
encarregadas de sua recepção:

Yo detesto a esas mujeres, ninguna sirve para nada, son inhumanas. Porque creen
que uno viene es a quitarles o a pedirles. Si uno viene es porque existen unos
tratados. Ellas no se meten en la cabeza que ese trabajo lo tienen es porque hay
refugiados, si no hubiera refugiados ellas no tendrían ese trabajo. Porque el
Acnur y esa Cáritas existen es por los tratados que existen, por los conflictos
armados que hay en diferentes países […] porque es que creen que cuando uno
viene a otro país como refugiado es que tú estabas en tu país como un muerto de
hambre y noooo, no es así […] A mí no me han dado nada, yo no he recibido ni
una moneda de esa gente, ni una moneda he recibido yo. Lo único que me dieron
fue un mapa mal hecho para llegar al albergue del Padre Mario. A mí Marcela
[una asistente social de Cáritas] me abrió los ojos y me dijo: ‘esas ayudas aquí no
existen, esas ayudas ni aquí, ni en ninguna parte de Brasil existen’. Y eso es
mentira, nosotros sabemos. […] Pero yo a ellas les hablo como si nada, porque
ellas dicen que el que se ponga de rebelde ellas ya saben quién va a ser refugiado
y a quien no le van a dar el refugio. Entonces yo ni alego con ellas, agacho la

126
cabecita y a todo digo: si, si; si, si. Porque ellas son bien malas. (Entrevista con
Edna y su familia)

Para Edna, não ter recebido apoio financeiro da Cáritas lhe confere uma dignidade especial
e engrandece ainda mais seu processo, porque, em grande parte, ela está conseguindo “sin
las ayudas que otros si han tenido”. Além disso, como no caso de Edna, outras pessoas
com as quais falei preferiram achar outras redes de apoio e limitar todo o possível seu
contato com a Cáritas e, especialmente, com as funcionárias a quem ela chama de “las
demonias”. Não se trata de desconhecer o poder que essa instituição tem sobre suas vidas,
a própria Edna diz que elas podem obstaculizar sua solicitação. Trata-se especialmente de
um desafio às formas mais pontuais de poder, ao exercício cotidiano da autoridade.

Essa forma de atuar de Edna poderia ser pensada como uma sorte de “obediência
insubmissa”, que acha o modo de se relacionar diferentemente com as funcionárias,
dizendo a tudo que sim e evitando a confrontação direta, enquanto, ao mesmo tempo,
desatende as orientações delas, abre mão dos encaminhamentos com os quais as
funcionarias de Cáritas reafirmam seu poder de gestão perante outras instituições e, além
disso, mobiliza outras estratégias para garantir sua sobrevivência sem os apoios financeiros
da ONG. Se o não fazer das funcionárias é uma forma efetiva de gestão, o não fazer dos
administrados resulta também desestabilizador para o cumprimento das cenas e o
desenvolvimento das relações que atualizam o processo de solicitação.

Nessa forma de ação, não existe um peso tão forte da obrigação moral da gratidão e nem
mesmo um apelo constante aos serviços que presta a instituição. Além disso, no discurso
público que as pessoas expressam perante outras redes, outros solicitantes ou outras
autoridades, essa obediência insubmissa deixa claro que as relações harmoniosas com os
agentes de refúgio não são sempre o resultado do sucesso dos programas e da boa acolhida
que fazem dos solicitantes. Essas relações são também o produto de um esforço bem
planejado das pessoas para não entrar em confrontação direta com esses diversos agentes a
quem reconhecem como sujeitos com poder sobre uma parte de suas vidas.

Assim, a proposta simmeliana, a propósito das formas de ação social como relações nas
que a reciprocidade e o cálculo entre as ações dos outros e os próprios desejos são de vital
importância (SIMMEL, 1971, p. 111), pode ser outra via para entender, ou melhor,

127
reforçar, que o processo de solicitação é um agir conjunto e contínuo que performa tanto ao
refugiado quanto se performa a si próprio. As formas de ação social recíproca, lembra o
autor, não são meros comportamentos dos sujeitos perante os outros. Para que a relação
entre esses comportamentos subjetivos gere ações, quer dizer, para que exista interação,
deve haver uma dimensão simbólica incumbida, isto é, formas de pensamento e de prática
que sejam recíprocas. O refúgio como status político e moral é um marco comum entre
agentes do refúgio e solicitantes que permite que seja estabelecida a interação. Todos
concordam que o refúgio tem um valor e só assim sua transação tem sentido (WEBER,
2010, p. 372).

Desse modo, não existe um repertório limitado e totalmente controlável de formas


recíprocas de ação, e sim um esforço constante por parte dos agentes de Estado envolvidos
na tríade do refúgio para controlar tanto as interações (tipos de encontros, peso diferencial
das emoções envolvidas, margem de existência para as disputas, adequação a estéticas e
etiquetas próprias, etc.) quanto alguns dos resultados finais dessa transação (salvaguarda
do valor outorgado ao refúgio, proteção da imagem profissional das funcionárias, reforço
das competências técnicas adquiridas durante o processo de cada solicitante, etc.). Nesses
esforços, é fundamental para os agentes conseguir administrar ou justificar todas as ações
que possam parecer um acaso, subjetivas e, portanto, susceptíveis de serem renegociadas,
especialmente aquelas que, como no caso dos benefícios financeiros, concentram as
maiores tensões na interação.

Segundo me foi explicado por uma das advogadas de Cáritas, existe uma orientação do
Acnur segundo a qual os benefícios financeiros devem ser entregues aos solicitantes que as
advogadas consideram que vão ser aceitos como refugiados81. Essa orientação já presume
que vários dos solicitantes não receberão suportes econômicos e, novamente, que é
competência das profissionais das equipes de atendimento saber identificar os receptores
legítimos das “ajudas” no meio do conjunto total de solicitantes. Isso quer dizer que certo

81
Julgando pelos tempos extremadamente diferentes que cada etapa do processo de solicitação implica para
os solicitantes, pareceria que existe também um esforço maior de atendimento e velocidade no processo
global daqueles que as autoridades do refúgio (especialmente as advogadas da Cáritas e as entrevistadoras do
Conare) consideram “elegíveis”. Algumas pessoas refugiadas manifestaram essa impressão, porém nenhum
dos agentes da tríade expressaram que dita prática fosse implementada.

128
descontentamento e algumas reclamações são esperados desde o começo do processo82.
Porém, as diretoras dos centros de acolhida de Cáritas insistem que as relações entre a
equipe de funcionárias e as pessoas atendidas são cordiais e que: “Nós não temos
problemas…, assim, algumas pessoas se alteram, não? É ser humano, seja refugiado, seja
estrangeiro ou o que for, mas tudo que dá para a gente apaziguar, que dá para a gente
trabalhar, sem problema nenhum de violência”.

Também em alguns seminários que Cáritas organizou, ou naqueles onde participaram


algumas de suas funcionárias em parceria com outras organizações da rede de apoio a
migrantes e refugiados, foi central essa visão cordial e de uma relação afetuosa com os
solicitantes. A mesma coordenadora citada anteriormente afirmou que essas relações
obedecem a que “a prioridade é acolher e saber acolher, quer dizer, acolher bem” –
palavras reproduzidas quase exatamente igual na Cáritas do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Porém, como já foi discutido, outras opiniões apareceram durante meu trabalho de
pesquisa. Em outras entrevistas com alguns solicitantes, essas funcionárias, longe de serem
referidas com carinho, foram divididas entre as que “por lo menos son amables e intentan
ayudar e aquelas que son groseras y odiosas”. Essas últimas são imitadas, ridicularizadas e
acusadas de tratar as pessoas como se elas estivessem pedindo esmola.

Nas cidades nas quais entrevistei solicitantes, também encontrei pessoas que foram
rapidamente atendidas, beneficiadas com apoios financeiros e que manifestaram seu
beneplácito com as formas do processo de solicitação em suas diferentes etapas. Mesmo
quando algumas dessas pessoas opinaram que outros solicitantes não foram bem atendidos,
na maioria das vezes, terminaram culpando-os por isso. Os solicitantes “não exitosos”
apareceram como culpados de sua própria sorte, acusados de mentirosos ou oportunistas
desmascarados pela eficácia do processo; ou então, desajeitados e preguiçosos que, por
conta dessas características, não levaram adiante cada etapa como “seria devido”. Contudo,
os solicitantes ou refugiados “exitosos” também não referiram a relação com as

82
A respeito disso, é interessante a análise que realiza Lugones sobre o fato de que as ações das
administradoras incluem o não fazer. “Lo que se toma” tanto quanto “lo que no se toma” são abordados pela
autora como exercícios de gestão por meio dos quais se decide a conversão de uma história em um processo
ou sua existência sob outras formas administráveis ou não (LUGONES, 2012, p. 108). A autora aponta
também a forma em que as administradoras avaliam a necessidade e capacidade supostas das pessoas tanto
para priorizar seu atendimento quanto para considerar qual a história deve virar um processo e qual não deve
virar.

129
funcionárias de Cáritas, ou com a instituição, como uma relação afetuosa ou mediada por
sentimentos positivos de apreço e simpatia. Coisa que sim aconteceu quando eles falaram,
por exemplo, de alguns albergues onde moraram, dos professores de português ou das
assistentes sociais e funcionárias de outras instituições da sociedade civil ampla.

A construção de uma imagem pública de si que realiza a Cáritas, por meio de suas
funcionárias, privilegia certos aspectos de sua relação com os solicitantes e refugiados,
escolhendo entre o repertório de emoções mobilizadas nessa interação, aquelas que se
aproximam do espaço afetivo do carinho e da proteção. Tentando, além disso, restringir a
interação com os outros solicitantes aos scripts previamente planejados para o processo,
por mais tensos que esses possam resultar, numa sorte de esforço por definir previamente
as gramáticas possíveis da resistência (FOUCAULT, 1988, p. 5-6). Por essa via, as
moléstias experimentadas pelos solicitantes não beneficiados de suporte financeiro ou
celeridade no atendimento são apresentadas como parte esperável do processo e, em todo
caso, como circunstâncias facilmente controláveis. No fim das contas, a lógica mesma do
refúgio sugere que não receber a todo mundo como refugiado é uma garantia de que o
processo funciona, permitindo o reconhecimento somente dos “verdadeiros refugiados”.

Entretanto, mais uma vez aparecem formas alternativas com as quais os sujeitos agem ante
a adversidade dos processos que os afetam. Formas que não excluem ou não são
contraditórias com aquelas da interação face a face que estabelecem com as funcionárias
em diálogos, entrevistas, consultas, etc. Por exemplo, é comum que as pessoas recusem
permanecer no lugar de “despossuídos administrados” e mobilizem, como cidadãos de
direitos, órgãos públicos ou privados de vigilância, controle e denúncia. Ativar as redes
sociais que lutam pesa defesa e ampliação dos direitos dos migrantes ou, apelar – ou
ameaçar com apelar – às chamadas “vias de fato”, foram estratégias e formas de ação
constantemente referidas pelas pessoas. Santiago, por exemplo, queixou-se, em alguns
momentos, dizendo que, para ser atendido, tinha-se que “llegar gritando y amenazando
con llevar las cámaras de algún noticiero, pero como uno llega tranquilo y bien educado,
a uno sí no le dan nada”. Aqui, ao contrário da obediência insubmissa pela qual optou
Edna, foram a reclamação em voz alta, a ameaça de escândalo e a confrontação direta as
que parecem funcionar, segundo Santiago.

130
Alguns refugiados, que já levam vários anos no Brasil, narraram episódios nos quais a
tensão entre solicitantes e funcionárias de Cáritas foi mais intensa em sua expressão.
Segundo o relato de um deles, um grupo de pessoas que levava meses esperando por
diferentes tipos de resposta a diferentes solicitações, cansados de não obter soluções e dos
“maus tratos”, quebraram alguns objetos de uma das sedes de Cáritas e tentaram passar
pela força até os escritórios das funcionárias. Segundo o relato, tratava-se de um grupo
particular de refugiados que ela nomeou como “os africanos” 83. Como ela afirmou: “los
africanos se pusieron furiosos y quebraron varias cosas, hasta unos televisores o un
televisor viejo que tenían en esa época, fue después de eso que ellos mandaron colocar esa
puerta, esa reja que más parece de una cárcel”.

Essa porta a qual a narração se refere introduziu, com a sua pequena janela de atendimento,
um umbral de comunicação, dotando de uma materialidade especial essas percepções dos
solicitantes e refugiados que parecem se condensar na separação “elas” e “nós” e que
definem boa parte das relações entre as pessoas envolvidas. Essa pequena janela também
marcou, com mais claridade, um afora e um adentro, como detalhadamente foi analisado e
descrito por Lugones, por meio do que a autora chama de “topografía clasificatoria
marcadora de posiciones y pertenencias” (2012, p. 86), que fazem das entradas e saídas
uma “parte operativa y productiva” das relações e interações que dão vida ao processo de
solicitação (op. cit., p. 81). Como a autora descreveu para os corredores do Tribunal de
Menores de Córdoba, também na Cáritas, a espera nos corredores ou nas salas exteriores
constitui um modo de gestão efetivo, um sutil mecanismo cotidiano de controle temporal
que, recorrentemente, (op. cit., p. 82) marca o tempo por meio das dinâmicas desses
agentes de Estado.

83
Os solicitantes e refugiados colombianos com quem falei se referem aos outros grupos de refugiados
utilizando seu lugar de origem suposto. Assim, falam em “haitianos”, “latinos” e “africanos”. Esse último
grupo inclui muitas pessoas negras de diferentes origens. Algumas vezes efetivamente de países africanos e
outras vezes não. Os africanos não negros são referidos com outros nomes que podem ser o gentílico do país
de origem. Sobre esse assunto, voltarei em detalhe na quarta parte.

131
Imagem 3

Centro de Acolhida para Refugiados

Essas esperas e esses tempos de incerteza, sem saber se serão atendidos ou não, ou se o
atendimento resolverá seus problemas, são junto com a falta de assistência financeira as
queixas mais comuns dos solicitantes. Esperar, voltar no dia seguinte, ligar antes de ir ou ir
depressa são ações especialmente difíceis de cumprir ou suportar para as pessoas que
vivem muito longe dos escritórios de Cáritas, que têm trabalhos com horários estritos ou
que não moram nas mesmas cidades onde existem esses postos administrativos de
refugiados.

4.1.3. “O processo” no espaço: os postos administrativos

Jonathan chegou ao Brasil em junho de 2012, foi recebido na casa de uma parente que
havia chegado alguns anos atrás por meio do programa de reassentamento. Essa parente e
sua família tinham sido localizadas em uma cidade pequena no estado de São Paulo e,
apesar de a cidade lhes parecer isolada, sem oferta de centros universitários e sem opções
de trabalho para suas orientações profissionais, decidiram ali permanecer. Segundo me
explicaram, tinha sido tão duro “recomeçar”, fazer redes e ter algo de estabilidade

132
econômica que não queriam ariscar tudo isso com uma mudança de cidade. Além disso, as
cidades capitais lhes resultam caras, eles não têm fiadores e temem piorar sua situação
financeira. Então, depois de ter chegado à mesma cidade onde sua família tinha sido
“reassentada” anos atrás e assessorado por seus parentes, Jonathan foi até o escritório da
Polícia Federal do local. Lá foi orientado a procurar atendimento em uma delegacia que
tratava de assuntos migratórios (Delemig) localizada em outro município do estado, mais
ou menos a 50 km de distância. Na Delemig, foi informado que deveria entrar em contato
com Cáritas na cidade de São Paulo para poder ativar o processo de solicitação.

Ir até a sede de Cáritas na capital do estado era mais complicado para Jonathan. A distância
supera os 150 km, e isso aumentava, notoriamente, as despesas de transporte e o tempo de
deslocamento. Ele então decidiu solicitar informação por telefone antes de ir à sede. A
resposta telefônica que recebeu lhe informava que a Cáritas só atendia pessoalmente.
Finalmente, Jonathan decidiu ir até a sede da ONG no centro de São Paulo, viagem que, a
partir desse momento, teria de fazer repetidamente. Primeiro, foi pedir informação, e no
mesmo dia, lhe solicitaram contar para as funcionárias as razões para pedir refúgio; depois
voltou para buscar o encaminhamento de Cáritas para ser atendido na Polícia Federal.
Posteriormente, foi levar a cópia da declaração que tinha feito na Polícia Federal com a
qual tinha ativado o processo de solicitação. Tempo depois, foi retirar a carta mediante a
qual o Conare autorizava a emissão de seu protocolo e, quando eu lhe conheci, ainda
estava esperando a marcação da data para realizar “a entrevista” com a advogada de
Cáritas.

A primeira vez que falamos, Jonathan já estava cansado das viagens até o centro de São
Paulo, preocupado pela falta de dinheiro para pagar essa e outras despesas e pelo tempo
que tinha passado sem ter documentos que lhe permitissem procurar emprego ou ter a
certeza de que poderia permanecer no Brasil. “¿Cómo hacen las personas que no tienen
familia acá, que no conocen a nadie?” Perguntou-me a parente que o recebeu durante uma
conversa coletiva que tivemos na sala de sua casa. Para esse momento, o protocolo de
Jonathan tinha expirado e na Cáritas não lhe informavam uma data possível para obter uma
autorização do Conare para a renovação do documento.

133
Vários meses depois de nossa primeira conversa, Jonathan decidiu renunciar à solicitação
de refúgio, com a qual continuava tendo muitos percalços, e optou por pedir um visto por
meio do Acordo de residência do Mercosul84, que entrou em vigência entre a Colômbia e o
Brasil pouco tempo depois de sua chegada e cujo trâmite também não está isento de
complicações burocráticas. Em uma conversa mais recente com Jonathan, ele me contou
que está pensando em estudar uma carreira universitária e que, para isso, pensa que será
preciso morar em uma cidade com melhores ofertas educativas. Falta ainda resolver todos
os assuntos de validação de diplomas que, já sem surpresa, ele sabe que não será tarefa
fácil.

Assim como no caso de Jonathan, um número importante de solicitantes de refúgio e


refugiados mobilizam outras redes de pessoas ou instituições, diferentes da Cáritas, para
sobreviver no Brasil durante e depois do processo de solicitação. Porém, “o processo” está
inextricavelmente ligado a essas ONGs. Se é verdade que algumas pessoas conseguem
ativar a solicitação nas unidades da Polícia Federal em cidades onde não há presença da
Cáritas, de qualquer modo, serão registradas e cadastradas em uma unidade de Cáritas que
trabalhe em convênio com o Acnur.

Quem está em Minas Gerais [por exemplo] Chegou em Minas, pediu refúgio,
não há um [escritório] em Minas Gerais, então essa... A gente tem se dividido
assim, tem uma divisão assim... Não é regional, mas vamos dizer assim; São
Paulo cuida de: 1. São Paulo, 2. Rio Grande do Sul, 3. Minas Gerais, 4. Espírito
Santo... Depois você me cobra para eu te passar direitinho quais são os estados 85.
Manaus tem alguns, Brasília tem outros, Rio tem outros e eu acho que Espírito
Santo também é do Rio, alguma coisa assim. Então têm alguns estados, então ele
pede refúgio, na PF de Minas Gerais ou de lá onde ele está, a PF manda para o
Conare falando: “olha essa pessoa está aqui e está pedindo refúgio”. O Conare
manda para nós a declaração dele e a documentação e o caso queda registrado
como cadastrado em São Paulo. Quer dizer, ele tem direito a ficar aonde ele

84
Trata-se do Acordo de Residência e Livre Trânsito dos países membros do Mercosul. Para ativar os
benefícios do acordo, as pessoas devem solicitar um visto em seu país de origem ou nas Delegacias da PF
que atendem migrantes (Delemig) e pagar as taxas estabelecidas. Em caso de serem aceitas, as pessoas terão
um visto com permissão de trabalho e validade de dois anos prorrogáveis. O Acordo já tinha sido assinado
pelo governo brasileiro, chileno e peruano e, em 2012, foi assinado pelo colombiano. Porém, várias pessoas
que tinham tentado ativar tal acordo, nos primeiros meses de sua vigência, foram informadas, em diferentes
Delemig, sobre a suposta inexistência desse tratado. Pouco tempo depois, as queixas seriam diferentes, pois,
segundo alguns funcionários de ONGs e alguns estrangeiros, as Delemig não estavam recebendo mais
solicitações de refúgio apresentadas por colombianos, alegando que eles poderiam recorrer ao Acordo do
Mercosul.
85
Segundo a informação do site da Cáritas Brasileira, a divisão de regiões episcopais por Dioceses e
Arquidioceses dos estados de Rio de Janeiro e São Paulo, onde a pesquisa foi desenvolvida, é: a) Região Sul
e Sudeste: São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul; b) Região Leste: Rio de Janeiro, Minas
Gerais e Espírito Santo. (Fonte: CÁRITAS BRASILEIRA. Regionais e Entidades-membro. Disponível em:
<http://caritas.org.br/rede-caritas/regionais-e-entidades-membro>. Acesso em: 15 maio 2014.)

134
quiser no Brasil só que há um local, um estado em que ali concentra o cadastro
dele, o que ele precisar. Si está em São Paulo, fica mais fácil ele recorrer aos
serviços outros de apoio que a gente tem. Quem tá longe também, mas já é mais
complicado ser entrevistado, fazer uma visita e tal, mas a maioria do caso de São
Paulo está em São Paulo. (Coordenadora do Centro de Acolhida para refugiados
da Cáritas)

No fragmento citado, assim como nas conversas com agentes de Estado, foi reiterado que
as pessoas têm o direito à livre mobilidade pelo território brasileiro e que o cadastro dos
processos dos solicitantes não os obriga a se deslocarem de localidade. Contudo, as
histórias das pessoas parecem contradizer essa suposta inocuidade do local de registro de
seu processo para suas vidas. Como no caso de Jonathan e de outras pessoas que conheci
em campo, a focalização dos locais de administração implicou a necessidade de ir até lá. O
registro e o cadastro funcionam como formas de fixação das pessoas e essas ações
repercutem em suas possibilidades e suas opções de mobilidade pelo território brasileiro.

Eu: No caso do refúgio espontâneo também têm colombianos chegando no Rio


Grande do Sul?

Agente de refúgio 1: Tem, tem bastante. Mas foi neste ano que começou.

Agente de refúgio 2: Porque antes a gente não tinha notícias e, neste ano, por
exemplo, já são 20 casos, pelo menos de solicitantes de refúgio no Rio Grande
do Sul, e muitos vieram porque tinham algum parente reassentado aqui; então
acontece esse movimento agora, desse ano para cá, né, antes não tinha muito.
Antes vinham para passear e depois iam embora, ou também acontece que o
solicitante de refúgio ia para a Polícia Federal e aí então eles lhe dão o telefone
da igreja de Pompeia, só que aí os padres ai não têm muitos recursos, é só o
recurso que a Cáritas do Rio grande do Sul tem para o solicitante de refúgio;
então muitos deles viajavam para São Paulo, para receber algum beneficio lá.
Então aqui não tinha muito casos, porque a pessoa não tinha como subsistir aqui.
Agora quando eles já têm algum reassentado, a situação já é diferente, aí pegam
e incluem essa família no trabalho deles, é o caso da xxxxx. (Entrevista com
duas agentes do programa de Reassentamento Solidário)

Nos casos em que o deslocamento até Cáritas não foi pedido pelos agentes de Estado ou
não foi cumprido pelos solicitantes, estes não conseguiram se beneficiar de nenhum dos
“programas sociais de atenção” que o governo diz oferecer para solicitantes e refugiados.
Benefícios que se oferecem somente nos estados onde funcionam os escritórios de atenção
aos refugiados das ONGs parceiras e exclusivamente para as pessoas que entram nos
cenários dessas interações diretas, que já foram descritas. Em algumas regiões do país, têm
sido criados Comitês estaduais ou intersetoriais para população refugiada86 que declaram

86
Ver: Para São Paulo, o Decreto nº 52.349, de 12 de novembro de 2007, o qual institui o Comitê Estadual
para Refugiados (CER) e dá providências correlatas. Para Rio de Janeiro, o Decreto n° 42.182, 11 de
dezembro de 2009, cuja composição foi designada pela Resolução n° 231, 22 de março de 2010, da

135
como objetivo a gestão de benefícios sociais para os refugiados em parceria com a
sociedade civil ampliada. Porém, a existência desses comitês coincide com os estados em
que também há presença de Cáritas. Mais uma vez, é reforçada a focalização do
atendimento em algumas cidades e, especificamente, nas sedes físicas de Cáritas, que,
vistas à luz desses dispositivos de distribuição espacial, podem ser pensadas como “postos
administrativos” de refugiados.

Retomando, mais uma vez, o conceito de poder tutelar formulado por Souza Lima,
podemos pensar algumas de suas características presentes nos esforços realizados pela
administração do refúgio – no seu sentido duplo de governo e fornecimento. Em primeiro
lugar, para “capturar” populações errantes e vinculá-las de maneiras precisas a territórios
igualmente determinados. Em segundo lugar, para “mediar” sua inserção em uma
comunidade local, mas que se apresenta como nacional (SOUZA LIMA, 2012). Por meio
dessas formas de poder tutelar, os agentes que administram o refúgio e os refugiados
buscam apresentar e relacionar cada sujeito com a comunidade nacional e “inseri-lo, pois,
na esfera da memória, resolvendo de certo modo neste plano, e ainda que apenas nele, o
problema dos limites e da forma de seu pertencimento à naçaõ ” (SOUZA LIMA, 2012, p.
803).

Essa forma regionalizada de atendimento foi explicada em função da concentração do


número de solicitantes e refugiados. Segundo os agentes de Estado nas cidades onde há
maior número de solicitações e de refugiados reconhecidos, existiria também uma ONG
em convênio com o Acnur e o Conare. Contudo, como visto, a explicação contém ao
mesmo tempo uma parte da causa. Mesmo que algumas cidades capitais atraem grande
parte das populações migrantes por causa de sua oferta de emprego e serviços, a
focalização dos postos administrativos de refugiados contribui para que as pessoas
prefiram ou devam se estabelecer perto dos lugares de atendimento.

Vários dos solicitantes com os quais falei no albergue A Casa do Migrante, localizado a
poucas quadras da sede de CARSP, expressaram a necessidade de permanecer perto dessas

Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro. Em 2012, foi criado
também um Comitê de Atenção a Migrantes, Refugiados, Apátridas e Vítimas do Tráfico de Pessoas
(Comirat) no Rio Grande do Sul e atualmente são tomadas providências para a possível criação de um comitê
similar no estado do Amazonas.

136
organizações, pelo menos durante os primeiros momentos do processo. Santiago, por
exemplo, que chegou ao Brasil em maio de 2012 e que, em agosto, ainda não tinha
conseguido seu protocolo de solicitante, me disse que ele estava apenas aguardando o
protocolo para poder ir para outro estado procurar emprego. Segundo ele, havia mais
possibilidades de emprego em outros estados, mas, enquanto ele não tivesse o protocolo –
e com ele a chance de obter uma carteira de trabalho – dependia da hospedagem no
albergue e dos tíquetes de ônibus fornecidos na Cáritas para poder realizar os trâmites. Do
mesmo modo que Santiago, outras das pessoas que encontrei em São Paulo decidiram ir à
cidade não apenas porque tinham ouvido falar das possibilidades de emprego nessa grande
urbe ou porque acreditassem que é mais difícil serem encontrados por seus perseguidores
numa grande cidade, mas também porque sabiam da existência de uma instituição
representante do Acnur que, segundo eles, podia ajudá-los no processo de solicitação e,
além disso, lhes oferecer algum tipo de apoio econômico.

Existe outra importante justificativa ativada pelos agentes de refúgio, e especialmente pelas
funcionárias de Cáritas, para explicar a intermediação dessa ONG no processo de
solicitação; trata-se da “entrevista complementária”. Somente os solicitantes que vão até as
sedes de uma ONG parceira do Acnur realizarão uma entrevista com suas advogadas, os
outros somente serão entrevistados pela “entrevistadora oficial” do Conare. Ocupar-me-ei
dos detalhes dessa entrevista na terceira parte da tese; por enquanto, é suficiente com
apontar que essa entrevista é apresentada pelas advogadas de Cáritas como uma entrevista
com a “sociedade civil” e defendida como um processo mais detalhado, menos policialesco
e tecnicamente melhor realizado que aquela entrevista que faz uma agente do Conare,
chamada no diagrama do IMDH “a entrevista formal” (Ver diagrama 2).

Desse jeito, a intermediação da Cáritas que, para alguns solicitantes, é lida como uma
obrigação árdua, para as advogadas de Cáritas representa, ao contrário, benefícios para as
pessoas e justifica os esforços cotidianos que eles devem fazer para ir até seus pontos de
atendimento, lembrando-nos da fórmula da teodiceia secular de Herzfeld (1992). Assim,
em nome do papel favorável que, na decisão final, pode desempenhar, essa entrevista
torna-se outra importante justificativa da intermediação da Cáritas. Porém, também essa
ordem de causalidade pode ser repensada. Isso porque as “oficiais entrevistadoras” do
Conare, que, na época da minha pesquisa, eram somente três (incluindo aquela designada

137
para o programa de reassentamento), realizam sua “missão de entrevista” e o exercício
mesmo de entrevistar nas sedes de Cáritas que atendem migrantes.

Tudo isso quer dizer que a concentração de solicitantes que se produz ao redor de Cáritas é
aproveitada e estimulada pelos agentes do Conare. A concentração de pessoas em um
mesmo local facilita a realização de várias entrevistas por dia e evita o deslocamento das
agentes para outros lugares da geografia nacional. Assim sendo, inclusive aos solicitantes
que não estiverem previamente em contato com Cáritas lhes poderá ser pedido comparecer
aos escritórios no momento da realização da “entrevista formal”. Segundo a informação de
várias agentes do Conare e até mesmo de uma das entrevistadoras da época, nas regiões
onde não há concentração de refugiados não é realizada a “missão de entrevista” com
frequência ou realiza-se uma entrevista telefônica. Essa última, geralmente curta, foi
mencionada por algumas pessoas entrevistadas como sendo decepcionante por não ter
podido narrar todo o acontecido ou por ter esquecido coisas que, portanto, não ficaram
registradas no seu “processo”, passando a impressão de que teriam poucas chances de
serem eleitas.

4.1.4. O final do processo?

Como visto, o contato com as ONGs que, em parceria com o Acnur e com o Ministério da
Justiça, recebem os solicitantes e atendem os refugiados é uma parte neural do processo de
refúgio por elegibilidade. Os agentes dessas organizações, que fazem parte da tríade da
governança do refúgio, são, para as pessoas administradas, a cara visível simultaneamente
do Estado brasileiro, do Acnur e da sociedade brasileira. Daí que seja pertinente salientar
que “o processo”, como sugere seu nome, é dinâmico. É uma construção que vai cobrando
vida e sentido à medida que vá sendo estabelecida, encenada, ensaiada, improvisada,
modificada e aperfeiçoada. Porém, para que essas ações recíprocas (interações) sejam
efetivas, ou seja, para que a governança funcione, certas fixações são requeridas. Por isso,
o processo é também a pasta que contém os documentos, a transformação da narração oral
em texto escrito, as características dos sujeitos transformadas em formulários e a fixação
dos refugiados em postos administrativos.

Se as funcionárias da Cáritas são percebidas como as representantes da tríade, sendo a


totalidade e suas partes ao mesmo tempo, esse caráter representativo constitui uma base da

138
certeza que as pessoas têm sobre a existência de um poder superior que realmente decidirá
sobre sua sorte (ABRAMS, 1988; HERZFELD, 1992). Por isso, o encontro com a
entrevistadora do Conare, sem cuja gestão “oficial” o processo não pode se realizar, é
também experimentado pelos solicitantes como um momento muito importante. O tempo
de espera para que essa entrevista aconteça, que é de vários meses, é experimentado como
um tempo incompleto; é um tempo em aberto já que ainda não estão cumpridos todos os
passos requeridos para que possa se avaliar seu pedido.

Quando, enfim, o momento do encontro é marcado, o Conare chega encarnado em “oficial


entrevistadora”, usualmente jovem, mulher e branca. A entrevista, e particularmente o
tempo de duração, foi vivido por algumas pessoas como decepcionante, especialmente
depois da larga espera. Inclusive algumas funcionárias da Cáritas brincaram a respeito da
duração da entrevista que a agente do Conare realiza, aproveitando uma das minhas
perguntas. Eu queria saber se a entrevista do Conare era mais extensa que aquela realizada
pela advogada da Cáritas, e a formulação que eu fiz em português resultou estranha e
propícia para uma piada:

Eu: A entrevista do Conare é a mais demorada?

Advogada: Demorada para acontecer [Risos junto com a assistente social] Está
demorando, no mínimo, um ano e está sendo discutida essa situação no Conare.
São só três entrevistadores para o Brasil inteiro.

Segundo essas funcionárias, poucas “missões de entrevista” são realizadas em cada cidade
no percurso de um ano, algumas vezes são realizadas cada dois meses, e, às vezes, o
intervalo é maior. As funcionárias da Cáritas calculam que, em um mesmo dia, uma
“oficial entrevistadora” realiza de seis a oito entrevistas. Assim, segundo a advogada “A
entrevista da Cáritas é a mais longa, a do Conare depende de cada oficial, mas é mais
curta, e a da PF é bem pequena”.

Quando são completados todos os passos dessa primeira etapa do pedido de refúgio, o
processo (entendido aqui como a pasta que contém todos os documentos e todas as
narrações do solicitante) entra na lista de espera para ser avaliado. A primeira avaliação
ocorrerá no GEP e, finalmente, será tomada a decisão definitiva em uma reunião plenária
do Conare. Escrevo esses últimos dois passos propositalmente em tempo futuro, já que
estão efetivamente separados do momento em que as primeiras entrevistas com a Cárias e a

139
Polícia Federal são realizadas, assim como do momento da chegada do “processo” aos
escritórios do Conare em Brasília.

Nessa parte do processo, o GEP aparece como um momento muito particular. A reunião
desse grupo, que ocorre previamente à plenária do Conare, não aparece na Lei nº 9.474/97
e também não é mencionada nas apresentações oficiais que, eventualmente, fazem os
agentes do Conare para falar sobre os procedimentos de refúgio. O GEP também não
aparece nos sites do Acnur, do MJ ou do DPF como parte dos procedimentos para a
decisão. Contudo, é nessa reunião que são decididas boa parte das solicitações.

As advogadas da Cáritas e a diretora do IMDH me explicaram sua importância e seu


funcionamento. Ao GEP, chegam os “processos” dos solicitantes que já têm sido
entrevistados tanto pela entrevistadora do Conare quanto pelas advogadas da Cáritas. Cada
entrevista produziu um parecer sobre o pedido, parecer que pode ser positivo ou negativo.
Quando os dois pareceres coincidem, o caso não tem discussão e passará à plenária do
Conare somente para que a decisão seja oficializada. Se existir discordância, ao contrário,
se tentará chegar a um acordo. Cada uma das pessoas que elaboraram o parecer (as
advogadas ou seus representantes) argumentará sua decisão. Somente quando o acordo não
é conseguido, o caso será novamente discutido na plenária do Conare.

As características dessa reunião implicam que, pelo menos, dois membros das ONGs que
representam a chamada “sociedade civil” estarão pressentes. Além disso, a discussão das
solicitações durante o GEP permite que as advogadas das ONGs argumentem a favor dos
solicitantes que elas consideram casos de refúgio, em vez de simplesmente submeter os
casos à votação na plenária. Segundo a diretora do IMDH, essa etapa da decisão é a que
permite afirmar o caráter “verdadeiramente tripartite” do processo de refúgio. De outro
modo, segundo ela, o processo aconteceria segundo foi estipulado na lei. Ou seja, com
somente um voto da “sociedade civil”, em comparação com os cinco votos que teria “o
Estado” por meio de seus representantes no Conare: Ministério da Justiça (MJ), Ministério
das Relações Exteriores (MRE), Departamento de Polícia Federal (DPF), Ministério da
Educação (MEC), Ministério da Saúde (MS), Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).

140
Essa apreciação é interessante se levarmos em conta que, segundo as advogadas da Cáritas,
as entrevistadoras do Conare costumam dar mais pareceres negativos do que elas. Nessa
etapa concreta, a imagem coesa do Conare se dilui de forma que podem ser vistas com
mais clareza as relações, às vezes, antagônicas, que o constituem. “O Estado” aparece,
nesse momento, como representado pelos delegados de diversas instâncias de governo e se
exprimindo com um caráter mais irredutível e relutante para com os refugiados. Por sua
vez, a “sociedade civil”, que desempenha simultaneamente o papel de representante do
Acnur, aparece como mais aberta e receptiva, sendo paradoxalmente parte fundamental
desses “processos de formação de Estado” (ELIAS, 2006).

Finalmente, depois da reunião planária do Conare, a decisão será comunicada ao


solicitante. Em caso de resposta positiva, a pessoa será oficialmente reconhecida como
refugiada. Caso contrário, o solicitante terá o direito de recorrer da decisão, em cujo caso o
recurso será avaliado pelo Ministério da Justiça, tomando uma decisão que é considerada
definitiva. Na imagem seguinte, com a qual continua a apresentação elaborada pela
diretora do IMDH, chama a atenção que a comunicação final ao solicitante aparece como
responsabilidade conjunta do Acnur e da Polícia Federal.

Diagrama 4

DEFERIDO INDEFERIDO

Notificação ACNUR/DPF
ao solicitante

Não apresenta
RECURSO
recurso

Ministério da
Justiça
FIM

Decisão final

O fato de que a Cáritas, como representante do Acnur, apareça no quadro como


encarregada de comunicar a decisão ao solicitante tem mais relação com o que me foi
descrito pelas pessoas. Assim, a lei estabelece que, uma vez publicada a decisão no Diário
Oficial da União, será o DPF o encarregado de comunicar o solicitante e, supostamente,

141
em caso de negação do pedido também seria a PF a encarregada de pedir para o solicitante
abandonar o país. Porém, os agentes das ONGs afirmaram que as pessoas são comunicadas
pela Cáritas e, em vez de serem obrigadas a deixar o país, são orientadas a buscar outro
tipo de alternativas para permanecer nele. Ora recorrendo a decisão, ora ativando o acordo
do Mercosul. Os agentes envolvidos com o refúgio coincidiram ao afirmar esse
comportamento como rotineiro, entre outras coisas, pela adesão do Brasil ao princípio de
não refoulement87. Também coincidiram no fato de que a Polícia Federal não está na “caça
às bruxas”, referindo-se, com essa expressão, que as expulsões de estrangeiros sem
documentos não são especialmente frequentes, nem o objetivo principal da PF. Isso apesar
do posicionamento contrário do DPF, como membro do Conare, sobre a permanência de
estrangeiros “ilegais”.

De qualquer forma, a decisão, favorável ou não, está longe de ser o “final” como é
apresentado no diagrama que me foi oferecido. Em primeiro lugar, porque para continuar
sendo um refugiado é preciso cumprir periodicamente com a renovação do prazo de estadia
e esperar vários anos para conseguir a residência permanente. Assim, o vínculo com a
Cáritas se mantém, pelo menos durante os primeiros anos de refúgio ou os primeiros
meses, em condição de estrangeiro para o caso dos solicitantes não reconhecidos como
refugiados. Em segundo lugar, o processo continua porque as pessoas reconhecidas que
decidem usar outros mecanismos para permanecer no Brasil entram num novo caminho
burocrático no qual sua história precedente como solicitantes pode desempenhar um papel
preponderante. E, finalmente, porque a ideia de um “processo” que começa com uma
solicitação e termina com um reconhecimento é apenas uma construção idealizada dentro
do campo do refúgio. A vida das pessoas, seus movimentos, seus desejos e suas
necessidades de ficar ou partir estão somente assumidas fragmentariamente nesse percurso.
Um recorte temporal, que recorta também o sujeito de alguns aspectos de sua história e de
suas relações para ficar somente com outros, dificilmente dá conta da complexidade
existencial e da profundidade temporal desse longo momento na vida das pessoas. Para
muitos dos homens e das mulheres que conheci, a solicitação de refúgio no Brasil era mais
uma etapa para ir para outros lugares. Para outros, ao contrário, o Brasil era o último

87
Este princípio, que faz parte dos instrumentos e das normativas internacionais, impede que um solicitante
de refúgio seja enviado de volta a qualquer país onde sua vida corra risco.

142
destino possível. E, claro, muitas outras pessoas conhecidas decidiram ficar, ir e vir, sair e
entrar, sem ativar nenhum dos mecanismos oficiais.

4.2. Refúgio por Reassentamento

4.2.1. Escolher e transferir: a salvação das vidas

À diferença do refúgio por elegibilidade o refúgio por reassentamento é um programa,


previamente desenhado e estabelecido pelo Acnur, como uma das três soluções duradouras
que esse órgão oferece para os refugiados no mundo. As duas primeiras soluções,
consideradas prioritárias, são a “repatriação voluntária” e a “integração local no primeiro
país de asilo”. O programa é implementado, segundo apontam os documentos do Acnur
(2009, 2011), com Estados que aceitem e que estejam em capacidade de receber os sujeitos
– indivíduos e famílias – que não possam permanecer no país onde estão como refugiados.

Assim, no reassentamento, diferentemente do que acontece com os refugiados


espontâneos, não são os sujeitos os que chegam ao Brasil e solicitam ser reconhecidos. Ao
contrário, o Acnur identifica previamente pessoas refugiadas em outros países e as
apresenta como candidatas para serem reassentadas ante as autoridades dos Estados que
tenham implementado o programa. Desse jeito, o programa de Reassentamento é
considerado uma oferta, e não um direito, daí que cada Estado seja soberano para decidir o
perfil das pessoas que receberá, assim como de aceitar ou recusar os candidatos
apresentados pelo Acnur.

Essa característica contribuirá para aumentar a tensão entre direitos e compaixão (FASSIN,
2010) ou assistência e caridade (DE SWAAN, 1992) que já foi referida como uma das
marcas das interações entre agentes de Estado e refugiados. Um dos fragmentos do
documento do Acnur chamado “Módulo Autoformativo: Programa de Aprendizaje de
Reasentamiento” resume muito bem esse caráter de oferta que tem o programa e também
ilustra o cuidadoso controle que é exercido sobre as possibilidades de mobilidade dos
refugiados, apontando que o reassentamento dos sujeitos dependerá não somente de serem
aceitos em outro país, mas também da vontade do primeiro país de asilo de permitir a saída
deles, lembrando-nos o efeito de “espacialização” do qual fala Trouillot (2001, p. 126), que

143
junto com outros efeitos de Estado88, nos permitiria identificar em ação o poder estatal
sobre os sujeitos, neste caso em êxodo:

El reasentamiento no es un derecho y los Estados no tienen obligación alguna de


aceptar el reasentamiento de refugiados. La posibilidad de que los refugiados
sean reasentados depende de los criterios de admisión del tercer Estado, así como
de la voluntad del país de asilo de permitirles salir. El reasentamiento es, por
definición, una importante herramienta para repartir la carga y la responsabilidad
de los Estados (ACNUR, 2009, p. 18)

O programa de Reassentamento Solidário no Brasil é financiado pelo Acnur e tem uma


contrapartida em serviços gerida pelas ONGs que “implementam” o programa por meio da
mobilização de diferentes setores nos estados ou municípios onde existe. No caso
brasileiro, além disso, o programa foi orientado aos refugiados latino-americanos e assim
foi registrado na Declaração e no Plano de Ação do México que lhe deu existência ao
formato contemporâneo de reassentamento no país. Apesar da notável exceção que
significou o reassentamento de um grupo de famílias palestinas (HAMID, 2012), o
programa no século XXI tem se concentrado na recepção de colombianos. O Plano de
Ação do México afirma que essa decisão foi tomada levando em conta “a situação dos
refugiados colombianos” e a “carga” que estava assumindo Equador (ACNUR/IMDH,
2012). Assim, foi reafirmado que o programa no Brasil seria proposto como uma ação de
solidariedade e responsabilidade compartilhadas, lembrando, mais uma vez, o apelo
constante aos valores generosos do comportamento do Brasil na relação plural de Estados:

[...] O Governo da República Federativa do Brasil propôs a criação de um


programa de reassentamento regional para refugiados latino-americanos,
marcado pelos princípios de solidariedade internacional e responsabilidade
compartilhada [...].

O Conare, como órgão governamental, é responsável por oficializar a aceitação dos


candidatos a reassentamento. Segundo a Lei nº 9.474/97, que regulamentou o

88
Trouillot (2001) propõe assumir que o poder do Estado não tem fixação nem teórica nem histórica e,
portanto, os trabalhos que procurem entender esse poder deveriam interrogar o Estado para além do
empiricamente evidente, particularmente para além das instituições governamentais. Para o autor, a atenção
deveria ser colocada nos múltiplos locais onde os processos e as práticas estatais são reconhecidos por meio
de seus efeitos. Trouillot propôs então levar em conta pelo menos quatro efeitos que mantêm e reproduzem
esse poder, em boa parte, dos Estados-nação contemporâneos: um efeito de isolamento que atomiza os
sujeitos modelados para o governo como parte de um público; um efeito de identificação que realinha as
subjetividades atomizadas em coletivos dentro dos quais se reconhecem como iguais; um efeito de
legibilidade entendido como a produção de uma linguagem e um conhecimento específicos para o governo
(com suas consequentes ferramentas teóricas e empíricas) que classificam e regulam coletividades; e um
efeito de espacialização mais claramente relacionado com a produção de limites e jurisdições (TROUILLOT,
2001, p. 126-128).

144
reassentamento, antes de discutir os casos na sua reunião plenária, o Conare envia um
grupo de pessoas ao país onde estão os refugiados e realiza uma entrevista que será a base
para tomar a decisão de aceitar ou não a candidatura deles. Essa viagem foi referida pelos
agentes de Estado como a “Missão de seleção”. Essa “missão” é integrada por um
representante de cada um dos componentes da tríade do refúgio (governo brasileiro,
sociedade civil, Acnur). Durante o encontro ou previamente, é apresentado aos candidatos
um vídeo informativo sobre o Brasil com o qual se procura, segundo os agentes: “lhes
apresentar o país onde irão morar de uma maneira realista para não criar falsas expectativas
e, ao mesmo tempo, lhes mostrar as qualidades da sociedade brasileira”.

Depois, os agentes da “Missão de seleção” voltam ao Brasil e, em Brasília, durante a


plenária do Conare, decide-se aprovar ou não o reassentamento das pessoas entrevistadas,
levando-se em conta, para isso, o parecer dos representantes das ONGs administradoras,
que serão as encarregadas de receber as pessoas nos municípios por elas selecionados
dentro dos estados de sua competência. Em caso positivo, o Acnur ficará responsável por
comunicar a decisão às pessoas e de coordenar, conjuntamente com as ONGs, a viagem de
instalação delas.

Antes de serem reassentadas, as pessoas deverão assinar um documento no qual declaram


conhecer as características do programa e cumprir com suas normas. Documento no qual,
entre outros compromissos, aceitam informar e pedir permissão para realizar movimentos
migratórios, especialmente quando esses envolvam viagens para o exterior, e não regressar
ao seu país de origem sem a permissão e a intermediação da tríade da governança. Esse
processo de Reassentamento Solidário foi esquematizado pela diretora do IMDH em outro
fluxograma que também me ofereceu durante minha pesquisa de campo para me
familiarizar com os processos:

145
Diagrama 5

Reassentamento no Brasil
Processo de elegibilidade

Refugiado reconhecido Pelo ACNUR, pelo primeiro


país de asilo ou por ambos

Apresentação dos casos ao


Brasil

Vídeo Informativo

Missão comissão brasileira


/Entrevistas
DEFERE
Decisão em reunião
INDEFERE
plenária do CONARE
PENDENTE

As pessoas que chegam como refugiadas reassentadas têm os mesmos benefícios de


documentação que os refugiados espontâneos. Porém, o programa de reassentamento como
um “programa estruturado de transferência de refugiados” (ACNUR, 2009) prevê outros
benefícios durante um período que oscila entre seis meses e um ano. Durante esse período,
com o orçamento do programa, é pago o aluguel de uma moradia, os serviços básicos de
água e luz e também um desembolso mensal em dinheiro para a pessoa reassentada,
acrescentando um percentual adicional por cada um dos membros do “núcleo familiar” que
lhe acompanhe89.

Para a época da minha pesquisa, só permaneciam ativas duas ONGs de reassentamento.


Uma em Rio Grande do Sul, a Asav e outra no estado de São Paulo, a ONG CDDH. Essas
são as ONGs parceiras do Acnur que são apresentadas como “implementadoras” do
programa de Reassentamento Solidário. Por meio de parcerias com outras instituições ou
com as comunidades locais, as ONGs conseguem outros serviços para os reassentados
como cursos de português, atendimento psicológico, empregos, cursos técnicos, doações de
moveis e roupas, etc. Às vezes, a depender do município de reassentamento, a rede de
instituições ativada coincide com aquela que faz o atendimento dos refugiados

89
Não tive acesso à informação exata dos valores dos desembolsos mensais segundo os agentes
administradores. Porém, as pessoas reassentadas falaram que recebiam valores que oscilavam entre R$ 300
(trezentos reais) e R$ 400 (quatrocentos reais) mensais para uma pessoa só e entre R$ 900 (novecentos reais)
e R$ 1.200 (mil e duzentos reais) para uma família de quatro pessoas.

146
espontâneos. De fato, assim que terminado o período contemplado pelo programa, os
sujeitos passam a ser regidos pela legislação relativa aos refugiados espontâneos e demais
estrangeiros e, muitas vezes, devem ativar as redes de organizações que recebem esses
refugiados para poder solicitar documentos, permissões de viagem ou algum tipo de
benefício social.

Segundo me foi explicado por agentes do Conare, o “Estado Brasileiro” decidiu não
estabelecer um número fixo de cotas para o reassentamento. Essa decisão é uma daquelas
frequentemente citadas em seminários, artigos de imprensa, comemorações e outros atos
públicos para caracterizar a legislação brasileira como “generosa e vanguardista”. A
decisão de quantas pessoas serão recebidas, segundo a lei, é tomada de maneira
“tripartite”:

A definição dos termos do projeto vigente e da quantidade de pessoas que


poderão ser reassentadas no Brasil a cada ano decorrerá de deliberação tripartite
entre o Conare, o Acnur e as organizações da sociedade civil implementadoras
do Programa.

Porém, nas falas dos agentes, essa decisão sobre a quantidade não parecia ter uma
explicação coincidente para todos. As justificações e mútuas inculpações sobre a pouca
quantidade de pessoas reassentadas circulam entre as partes constitutivas dessa interação
triádica, funcionando como um mecanismo de transferência de responsabilidades e
simultaneamente como uma salvaguarda dessa síntese dinâmica, como visto na primeira
parte da tese.

Quando lhes perguntei aos agentes do Acnur sobre a quantidade de pessoas recebidas, eles
responderam que essa decisão é soberana do Estado brasileiro; quando perguntei ao
coordenador do Conare, ele respondeu que isso dependia dos recursos disponíveis do
Acnur que é o financiador do programa, assim como da capacidade de recepção das ONGs
que o implementam. As coordenadoras e ex-coordenadoras das ONGs opinaram que elas
teriam a capacidade de receber mais pessoas, porém que seria preciso contar com recursos
permanentes e suficientes do Acnur, assim como o apoio econômico do governo brasileiro
e seu compromisso em “fortalecer políticas públicas para os refugiados”, de modo que
fosse possível ampliar a capacidade de recepção.

147
A agente do Acnur, encarregada do programa de reassentamento no Brasil na época desta
pesquisa, me explicou que o governo brasileiro não estabelece uma cota de pessoas a
serem recebidas. Porém, trabalha com uma meta de 60 pessoas por ano, de modo que é
solicitado ao Acnur que seja pré-selecionado 20% a mais de candidatos, tomando como
base a meta de seleção. Essa agente do Acnur, que tinha previamente trabalhado com a
“sociedade civil”, também opinou que, para o Brasil, 60 pessoas por ano não é muito e, ao
contrário: “o ganho político é bom, tem significado [para Brasil] uma cadeira no conselho
de segurança da ONU”. Essa afirmação que salienta o “baixo custo” que representa o
programa de reassentamento para o governo brasileiro foi também apontada pelo
representante do Acnur. Numa conversa, ele afirmou que “Al reasentamiento solidario hay
que ponerle comillas porque los Estados no ponen dinero. Todo lo dejan en manos del
Acnur. El Estado sólo pone su territorio y su hospitalidad”. Na mesma conversa, ele ainda
opinou que:

Brasil es un país emergente como jugador internacional, no sólo en lo económico


sino en lo humanitario; eso es una ventaja comparativa de Brasil ante la opinión
pública, pero si no lo hace efectivo queda como un fanfarrón. Pero no quiere
asumir este costo, sólo algunos sectores, pero terminan perdiendo los sectores
que sí quieren asumir este costo. (Delegado do Acnur no Brasil, notas de campo)

Em qualquer caso, a diferença da recepção maciça de refugiados colombianos que tem


ocorrido no Equador, no Brasil a recepção é mantida sob controle e em relação direita com
aquilo que os membros da tríade denominam como a capacidade de recepção. A resposta
de uma ex-coordenadora do programa foi eloquente a respeito dessa decisão, assim como
do critério de medida na entrada de refugiados que representa uma garantia de êxito para o
programa:

Desde o início, a gente sempre apresentou a nossa capacidade de atendimento,


isso acho que foi uma coisa boa. A partir de nossa capacidade de receber é que o
governo autorizava a vinda [das pessoas]. Acho que isso aí era uma coisa que
funcionava bem. Eu nunca recebia aqueles que eu não queria. Talvez, o único
problema para nós foi que nós não tivemos muita opção em relação aos
palestinos. (Ex-coordenadora de reassentamento)

Especialmente quando o reassentamento de colombianos foi comparado com aquele das


famílias palestinas – pelos diversos agentes que nele interviram e inclusive por outros que
chegaram depois – apareceram narrações de êxito associadas ao primeiro grupo. Às muitas
e muito diferentes explicações de tipo culturalista, segundo as quais a proximidade – rara
vez explicada – dos colombianos com relação aos brasileiros facilitaria o processo de

148
“integração no Brasil”, se soma a ideia de que receber poucos, planificar sua chegada e
saber eleger o perfil daqueles que serão “integráveis”, são chaves para o bom
desenvolvimento do programa.

Finalmente, existe também um processo especial dentro do reassentamento que é chamado


de fast-track. O tratamento rápido que refere esse processo consiste em receber, sem uma
entrevista prévia, os solicitantes em condições “urgentes” de reassentamento. Quando me
foi apresentado pelos agentes, o fast-track foi descrito como uma “particularidade do
processo brasileiro que constitui mais uma mostra de sua avançada legislação de refúgio”
orientada às pessoas cuja vida está em “risco iminente”. A diferença com o processo
habitual de reassentamento consiste no fato de que as pessoas não têm que aguardar para
serem entrevistadas durante a Missão de Seleção, que ocorre geralmente uma vez por ano.
A pasta com seus documentos e com a exposição do caso por parte dos agentes do Acnur é
enviada por meio eletrônico e discutida na plenária do Conare. Nesses casos, a condição
para aceitar a viagem das pessoas depende da unanimidade dos votos dos membros
representantes na plenária.

A análise de todo o processo de reassentamento, mas espacialmente desse mecanismo de


ação rápida, permite identificar alguns dos valores associados com essa prática de
“transferência de pessoas”. Em primeiro lugar, a ideia de urgência que é ativada em alguns
casos e em outros não nos interroga sobre quais condições de vida são consideradas razões
válidas para tirar rapidamente uma pessoa de uma situação entendida como perigosa e
quais as razões que permitem deixar as outras pessoas cuja situação é assumida como parte
da penosa e cotidiana condição de milhares de pessoas. Também ativa a pergunta sobre o
que caracterizaria as pessoas que são presumidas como necessitadas de salvação imediata,
enquanto outras poderiam continuar esperando por sua salvação ou permanecer no meio da
situação que se apresenta como uma “crise humanitária” no Equador. Alba, uma mulher
que chegou por meio do programa de reassentamento em 2012, disse:

[…] Ellos te ven muy mal, tu marido sin trabajo, tu hija muriéndose y bajando de
peso. Pero eso no es el motivo para sacarte de Ecuador, porque eso es la vida
cotidiana de todos en Ecuador. La familia y los niños eran importantes pero
solamente cuando se corre peligro, cuando nos volvieron a amenazar con
matarnos […].

149
Os ritmos e as causas da extinção da vida física – e não da vida civil ou política – parecem
combinar-se com a avaliação dos sujeitos sofrentes e com a “capacidade de acolhida” do
país, que depende, por sua vez, do perfil desejado para a integração exitosa na “nação
brasileira”. Essa pode ser a equação primária da ação do Reassentamento no Brasil.
Contudo, existem outros elementos que resultam igualmente importantes nessa fórmula. O
fato de que o reassentamento seja apresentado como uma oferta colabora com o
estabelecimento de relações de gratidão das pessoas que presumem ou sentem que foram
escolhidas e salvas no meio de um purgatório de sofrentes. Por meio desse mecanismo, a
dívida suposta do refugiado é mais evidente ainda que no caso dos refugiados espontâneos,
para quem o refúgio, em ultima instância, é um apelo à legislação internacional e pode ser
pensado, com um pouco menos de dificuldade, como uma ação inscrita no plano dos
direitos.

Algumas das pessoas que trabalham, ou trabalharam, como agentes das ONGs que
participam da seleção – que são ONGs de alguma maneira vinculadas à igreja católica –
expressaram seu incômodo com o nome geralmente utilizado: Missão de Seleção.
Particularmente, dois religiosos católicos e dois agentes “laicos” da rede de ONGs
manifestaram sua moléstia com essa imagem de escolha de pessoas. Porém, é efetivamente
a prática cometida durante essa viagem e durante os processos posteriores de avaliação dos
casos na reunião plenária do Conare. Essa imagem de salvação de corpos e de almas
sofrentes no meio de um abismo confuso de seres condenados, que irremediavelmente nos
remete à iconografia cristã do purgatório, lembra também alguns dos princípios do que
Foucault (1988) chamou de poder pastoral.

Em primeiro lugar, indicou Foucault, para além da instituição eclesiástica, podemos


enxergar o Estado como uma moderna matriz de individualização ou como uma nova
forma de poder pastoral (1988, p. 6). Continua o autor elencando algumas características
desse poder pastoral do Estado como uma forma de poder cujo objetivo principal é garantir
a salvação individual no outro mundo, como um poder que deve estar disposto a se
sacrificar pela salvação do rebanho, que, além disso, não se preocupa somente com a
coletividade, mas também com o indivíduo, e, finalmente, que não pode ser exercido sem
conhecer o pensamento das pessoas, sem explorar suas almas, sem fazer que elas revelem
seus segredos mais íntimos (FOUCAULT, 1988, p. 7).

150
O “outro mundo” no qual serão salvos os elegidos na Missão de Seleção é o Brasil, um
país que, no seu discurso humanitário contemporâneo, se apresenta como um Estado-nação
com a vontade e a capacidade de se sacrificar ao tomar conta de alguns indivíduos para
salvar a região (América Latina) do “problema dos refugiados” colombianos. O reduzido
número de reassentados colombianos no Brasil, se comparado com os altos números de
refugiados colombianos no Equador, é habitualmente justificado precisamente apelando à
capacidade de tomar conta de cada um dos indivíduos e não só da gestão coletiva. “Cada
família que se integra com sucesso no Brasil”, disseram alguns dos funcionários
entrevistados, “é uma grande vitória para o programa de proteção de refugiados e para o
Brasil”. Finalmente, aos sujeitos que serão protegidos lhes é solicitado, em troca, oferecer
a verdade sobre si mesmos em múltiplos e repetidos exercícios de narração e reconstrução
de suas histórias como refugiados, assim como a expressão sincera de “sua verdadeira
vontade de se integrar” e a demonstração contínua dessa sinceridade por meio de suas
ações.

Para melhor entender a forma que esse tipo de poder se exprime nas relações das pessoas
reassentadas, considero esclarecedora a leitura proposta por Vianna (2002) a respeito do
exercício desse poder pastoral na produção de processos de individualização e não somente
de subjetivação. Para a autora, a leitura do poder pastoral proposto por Foucault permite
pensar essas ações não como uma imposição unilateral de formas repressoras, mas como
uma “produção de soluções administrativas” que operam graças à existência de interesses
mútuos em “níveis diferenciados de autoridade” (VIANNA, 2002, p. 42). A virtude da
obediência de cada ovelha do rebanho, lembra a autora nessa leitura foucaultiana, é
também uma virtude do pastor, conseguida mais pelo conhecimento “não de ovelhas
genéricas, mas do estado de cada ovelha” (VIANNA, op. cit., p. 43).

Desse modo, a oferta realizada pelo governo brasileiro por meio do Acnur torna-se
simultaneamente numa oferenda de salvação inestimável e num exercício individualizante
que, graças a esse movimento e aos interesses compartilhados com cada sujeito, também
dota de valor à história passada e à “nova vida” de cada um dos reassentados. De outra
parte, essa dádiva é difícil de retribuir para quem é construído como um sujeito que perdeu
tudo. Os sujeitos se vinculam então numa relação recíproca de intercâmbio, na qual eles

151
têm menos a oferecer e se obrigam a retribuir em gratidão manifesta por meio de seus atos
no país que lhes acolheu, assim como a redobrar sua obediência perante a autoridade que
dotou de um significado especial sua própria história de êxodo e/ou sofrimento.

Dessa forma, esses mecanismos de seleção vinculam-se de maneira íntima com os desejos
e a necessidade de reconhecimento dos sujeitos que, muitas vezes, encontram, na
aprovação de seu caso, uma forma efetiva de dotar sua dor e seu sofrimento de um valor
especial por meio da redenção implícita nesse ato de seleção. O fato de que outras pessoas
certifiquem a existência e a gravidade do próprio sofrimento permite pensar e reafirmar
que a dor tem valido a pena, que a história própria de sofrimento é importante para outros e
que esses outros confiam na possibilidade do final da história de dor. Uma das pessoas que
chegou por meio do programa de reassentamento e que foi avaliada por meio de fast-track
contou parte de seu processo salientando alguns desses elementos:

Juan Felipe: […] Entonces ya ellos comenzaron a agilizar y cuando ya ellos me


dijeron, en junio recuerdo que me llamaron y me dijeron: “vamos a enviar el
caso para ver si lo aprueban virtualmente. Pero entonces 5 personas de Brasil van
a evaluar su caso y las cinco tienen que decir que sí. Si una dice que no, usted
tiene que esperar hasta agosto o septiembre que venga la misión de Brasil”.

Yo: Ah! ¿O sea que en tu caso ellos hicieron lo que ellos llaman un Fast-Track?

Juan Felipe: ¿Fast-track? O sea, ¿rápido, quickly? Ah, sí, hicieron conmigo algo
así como quickly. Pero no te imaginas esos quickly para mí como eran porque
eran días y días y días y no me decían: “la respuesta” y ya pasaban ocho días y
yo, y mi cabeza iba a explotar porque yo pensaba: ¿Y qué tal que de las cinco
diga una que no? Todo el tiempo en Ecuador estuve ¿y qué tal? y ¿será que sí y
será que no? Todo el tiempo estuve allá en ese dilema desde que llegué hasta el
final, hasta que ya... yo recuerdo que cuando yo recibí la visa estaba saliendo del
Ministerio y yo estaba muy contento porque pues era después de tanto que yo
lloraba de la felicidad, de todo, después de tanto tiempo por lo menos ver
cristalizado algo, sabía que eso iba poder adelantar muchas vainas. Cuando ella
me llama y me dice: “Brasil aceptó, Brasil aceptó”. Yo recuerdo que fue una
explosión porque yo lloraba, yo no sabía qué hacer, yo brincaba, yo no sabía, fue
un momento demasiado... porque eran dos situaciones muy buenas para mí ese
día, por una parte me habían dado la visa y por otra parte era que personas que
no lo conocen a uno digan sí, y las cinco dijeron sí. Y yo luego conocí a personas
acá de esas que dijeron que sí, entonces dijeron que si porque creen en el caso,
porque creen que es viable el proceso de adaptación de la persona en Brasil. Y yo
luego entendí porque dijeron que sí... dijeron que sí por muchas cosas, entonces
yo bueno listo...

Para Juan Felipe, o processo que lhe foi exigido para ser reassentado torna-se uma batalha
pessoal em uma vitória que vai construindo sua história como um processo exitoso. Mais
ainda, o fato de que os agentes envolvidos na seleção tenham aprovado sua transferência,

152
do Equador até o Brasil, representa, para ele, a concessão de um status especial para sua
dor. Desse modo, seu sofrimento reconhecido somado à avaliação positiva de sua
capacidade de integração é convertido numa motivação pessoal que lhe faz parte ativa e
desejosa dessa “solução duradoura do reassentamento”.

4.2.2. Uma oferta secreta e os contornos do desejo

As razões para realizar um reassentamento que estão elencadas nos documentos do Acnur
e que também me foram expostas por seus agentes no Brasil podem se resumir em três
grandes linhas: a) a continuação ou reativação da perseguição que motivou a saída do
primeiro país de origem ou uma nova perseguição; b) o fracasso na integração
socioeconômica que coloque em risco a supervivência; c) a presença de doenças que não
possam ser tratadas no primeiro país de refúgio e que representem um rico para a vida. No
Brasil, contudo, as pessoas com doenças que precisam de tratamentos de alto custo não são
consideradas como candidatas a reassentamento, com exceção das pessoas vivendo com
HIV que, segundo explicou o coordenador do Conare, têm sido incluídas dentro do “perfil”
para o programa brasileiro:

O programa, ele tem dado uma atenção especial a mulheres chefes de família,
né? Com crianças e ultimamente o Acnur nos tem pedido [oferecer] o
reassentamento a colombianos portadores do vírus do HIV. Aliás, nós temos esse
vírus também. Por conta do atendimento médico [que se encontra aqui] que não
é encontrado nos outros países da região [...] pelo reassentamento nós recebemos
alguns casos de refugiados colombianos que, por serem portadores do vírus HIV,
têm a integração mais dificultosa em outros Estados.

As pessoas com outro tipo de doenças podem, segundo as autoridades brasileiras do


refúgio, serem reassentadas em países que tenham condições de tratamento e sistemas de
saúde que permitam seu “adequado atendimento”. De fato, habitualmente, os países de
reassentamento eram os países que se consideram “desenvolvidos”, segundo a notável
separação discursiva que sobreveio como prática e efeito no nível mundial depois da era
Truman (ESCOBAR, 1998). Antes da implementação do programa em alguns países da
América Latina, como Brasil e Chile, os únicos países onde existia reassentamento eram os
chamados países ricos. A lista dos principais inclui Estados Unidos, Austrália, Canadá,
Suécia, Noruega, Nova Zelândia, Finlândia, Dinamarca, Países Baixos, Reino Unido e
Irlanda. Alguns governos brasileiros já tinham aceitado a transferência de refugiados
durante os anos 1970 e 1980 (MILESI; ANDRADE, 2010, p. 27) e firmado um Acordo
Macro com o Acnur para implementar o programa (SAMPAIO, 2010; JUBILUT, 2010;

153
PONTE NETO, 2003; HAMID, 2012). Porém, foi realmente a partir da Declaração e Plano
de Ação do México, em 2004, e sua posterior regulamentação por meio da Lei 9.474/9790,
que o reassentamento no Brasil adquiriu os contornos contemporâneos.

O fato de que o reassentamento seja um programa “oferecido” e que habitualmente tenha


sido realizado em países “desenvolvidos” parece ter gerado vários efeitos na percepção
dessa ação de “transferência de pessoas”. Por exemplo, ativou uma suspeita por parte dos
funcionários do Acnur, segundo a qual os refugiados teriam assumido que o
reassentamento é um prêmio e não uma estratégia de proteção para algumas pessoas. A
possibilidade de que o desejo de ser transferido para um país “desenvolvido” levasse os
refugiados e os funcionários da rede de atendimento a negociar o reassentamento,
materializou-se em ações e dispositivos para evitar o que chamaram de “a fraude do
reassentamento”. A ideia de ir morar em determinados países, especialmente aos países
“desenvolvidos” ou ricos, também apareceu no relato que me fez Francisco sobre sua
própria experiência de refúgio. Nesse caso, porém, ele apontou que são os mesmos
organismos internacionais de proteção os que fazem essa leitura do mérito e do prêmio e os
que estabelecem, desse modo, um tipo de relacionamento particular entre as pessoas a
serem refugiadas ou reassentadas e os locais que, supostamente, lhes corresponderiam ou
mereceriam:

Francisco: […] yo vivía dentro de una de las casas de Brigadas Internacionales de Paz.
Y si yo tenía que salir por Bogotá, porque no me dejaban moverme por Colombia,
siempre andaba con alguien de Brigadas Internacionales de Paz al lado mío, que
supuestamente así me protegían y no me mataban. En ese tiempo ellos decidieron que lo
mejor para mí era sacarme del país.

Yo: ¿ellos te preguntan o te sugieren a cuál país ir, ellos te dicen que vayas a ese país?

Francisco: Ellos sentían que me estaban dando un premio, pero en ningún momento me
preguntaron y las posibilidades que yo tenía eran restringidas, además lleno de
amenazas, sabiendo que me estaban buscando y con un proceso todavía en curso.
Porque me habían quitado era la orden de arresto, de cárcel, pero el proceso seguía
andando y a pesar de que tenía más de 200 pruebas a favor que se habían constituido, la
fiscalía no respondía. Y a pesar de que por toda la presión internacional se había dicho
que la fiscalía debía parar el proceso, aún así no respondía. Entonces por eso lo que me
decían, el análisis que me hacían de la situación que yo tenía, era que yo tenía que salir
del país. Y ahí deciden mandarme para Ginebra. Ahora, para un defensor de derechos
humanos irse para Ginebra era el premio de toda una vida de defensor de los derechos

90
No seu artigo 46, a referida lei estabeleceu que “O reassentamento de refugiados no Brasil se efetuará de
forma planificada e com a participação coordenada dos órgãos estatais e, quando possível, de organizações
não governamentais, identificando áreas de cooperação e de determinação de responsabilidades”.
Posteriormente as regras do programa seriam especificadas na lei por meio da Resolução Normativa nº 14, de
27 de dezembro de 2011.

154
humanos. Y a mí me pusieron todo en las manos, y la idea era que organizara mi vida
allá, que hiciera un buen trabajo, el trabajo lo hice, hice las cosas que tenía que hacer
pero a nivel personal el vacío era muy grande, la soledad la ruptura en cuanto proyecto
de vida […]

Em relatos das pessoas e narrações dos agentes, foi aparecendo a ideia de que os
funcionários das organizações de proteção são quem autonomamente devem tomar a
decisão do local onde serão transferidas as pessoas. A busca ativa de um traslado por parte
dos sujeitos engendra desconfianças. As diretrizes da “política antifraude” podem ser
encontradas, por exemplo, na publicação do Acnur chamada Política y directrices de
procedimiento: para abordar los fraudes de reasentamiento cometidos por refugiados
(ACNUR, 2008). Segundo contaram alguns reassentados ao longo da pesquisa, o Acnur,
além da implementação da política antifraude, também restringiu a circulação da
informação sobre o programa, procurando que “se enteren de su existencia solamente las
personas que ellos quieren”.

Em uma conversa com as agentes de uma das ONGs que administram o programa no
Brasil, o caráter seleto do público e da informação transmitida foi enunciado como um
fator-chave para o êxito do programa. De fato, o excesso de informação que engendrou a
chegada dos palestinos foi apresentado como inconveniente91. Contudo, ao comparar essa
situação com o caso colombiano, mais uma vez, apareceu uma avaliação positiva, desta
vez, referida ao controle da informação. A restrição da informação que funciona como uma
forma de proteger o programa foi enunciada como uma proteção para os reassentados,
levando em conta a origem do conflito, sem explicar exatamente qual seria a ameaça.
Como veremos mais adiante, segundo os mesmos agentes, o conflito colombiano não tem
se manifestado no Brasil graças à boa seleção de refugiados:

Agente de reassentamento 1: Porque um dos marcos do programa foi a chegada


dos palestinos, porque até então o programa estava meio que [tímido], então nós
trabalhamos com sigilo, porque a própria origem do conflito não dava para dizer
para a TV que nós estávamos recebendo colombianos. Nós passamos anos
trabalhando em trabalho de formiguinha, discreto. Quando a chegada dos
palestinos, aí a coisa sim ficou diferente, nós tivemos que trabalhar advocação
até porque era um grupo de cinquenta e poucas pessoas porque o impacto disso
era inevitável e ainda mais quando o conflito estava em alta lá no Iraque.

91
O reassentamento de um grupo de famílias de origem palestina e, especialmente, o protesto que algumas
pessoas do grupo realizaram em forma de acampamento em frente da sede do Acnur em Brasília chamou a
atenção da mídia sobre o programa de Reassentamento Solidário que, segundo seus agentes, até esse
momento, tinha se mantido sob sigilo, controlando sua exposição pública. Mais detalhes desse assunto foram
abordados na primeira parte da tese de doutorado de Sonia Hamid (2012).

155
Agente de reassentamento 2: É porque no Rio Grande do Sul tem a maior
comunidade palestina do Brasil, são 20.000, então tinha uma mobilização da
comunidade também, não tinha como abafar isso.

Agente de reassentamento 1: Aí, junto com o palestino, óbvio que a gente tinha
que responder perguntas que vinham com a questão colombiana. Então, nós
somos mais conhecidos pela questão do reassentamento palestino, mas isso não
atrapalhou o trabalho com os colombianos porque a gente continuou mantendo
tudo mundo sigiloso e pedindo para eles separar, uma coisa é uma coisa e outra
coisa é outra coisa. Mas é claro que agora é mais difícil porque a referência para
refugados e reassentamento somos nós, e antes a gente conseguia fazer um
trabalho com uma divulgação muito pontual, muito objetiva e muito direcionada,
só para quem a gente precisava e para quem nos poderia dar alguma coisa. Então
a gente fazia a divulgação com prefeituras, com empresas, com parceiros diretos.
(Funcionárias de uma ONG de reassentamento)

Também dentro dos espaços administrativos de ONGs e governos locais, que trabalham
com migrantes e refugiados, a circulação da informação sobre o Programa de
Reassentamento é bastante controlada. Em alguns espaços de tipo universitário ou nas
comemorações do dia do refugiado que acompanhei, o programa foi brevemente
mencionado por delegados do Acnur ou do Conare, dentro da apresentação geral das
políticas de refúgio no Brasil. Porém, nos seminários, nas palestras e em outro tipo de
encontros da rede ampla de ONGs que acompanhei ao longo da pesquisa, o programa de
reassentamento não foi apresentado e, às vezes, nem sequer foi mencionado. Os agentes
que administram o programa também não participaram desses encontros.

Esse caráter secreto ou sigiloso do reassentamento foi defendido pelos agentes das ONGs
implementadoras, argumentando várias razões que podem ser agrupadas em três: a) o
caráter protegido das pessoas (cuja informação é em si mesma um “segredo” do qual o
Acnur é o detentor); b) a inconveniência de que os refugiados espontâneos conheçam os
benefícios que recebem os refugiados reassentados; c) a salvaguarda da opção mesma do
reassentamento. Para alcançar esses objetivos, procura-se que somente aquelas pessoas
envolvidas na tomada de decisões fiquem sabendo do programa e blindá-lo tanto de
possíveis criticas quanto da possibilidade de ser reclamado pelas pessoas refugiadas como
um direito.

Na equação mediante a qual o Acnur seleciona as pessoas que serão reassentadas pareceria
que o desejo dos sujeitos devesse ser anulado; ou melhor, anular a capacidade de ação
derivada do desejo dos sujeitos. Desejar ser transferidas para um determinado país e

156
empreender ações para consegui-lo parece uma ação desestabilizadora para um programa
que age por meio da imagem segundo a qual as pessoas estão na beira da morte e teriam
perdido sua vontade para decidir o local onde querem viver. A ação salvadora que trabalha
por meio da criação de imagens de múltiplas precariedades (VIANNA, 2002) que
produzem um sujeito que perdeu tudo – como os refugiados – assume que eles estão num
determinado lugar contra a sua própria vontade, tendo perdido até a capacidade de decidir
autonomamente sobre seu próprio futuro e se limitando à sobrevivência.

Segundo esses princípios que sustentam a ação do reassentamento, o critério para a


mobilidade dos refugiados não pode ser o desejo e a vontade das pessoas, senão a
autoridade do Acnur, baseada na sua competência técnica, para salvar os sujeitos que se
tornaram meramente vítimas. Penso isso à luz das propostas críticas que Adriana Pscitelli
realizou à noção de tráfico de pessoas e, especialmente, aos processos de vitimização das
trabalhadoras sexuais. Esse movimento de vitimização, construído de maneira especular
com a criminalização de vastos espaços de encontro e intercâmbio sexual, colabora na
anulação do desejo e da capacidade de decisão das pessoas que fazem parte dos “mercados
do sexo” e, simultaneamente, polariza as possibilidades de existência dos sujeitos. Segundo
essa lógica, ou se é vítima ou se é criminal, sem zonas intermédias e sem a possibilidade de
criar outros lócus sociais para o desejo das pessoas (PISCITELLI, 2013).

No caso do refúgio e da gestão do Acnur sobre os sujeitos construídos como refugiados,


grande parte desse poder de definir os contornos da vontade e do desejo dos sujeitos se
baseia, como visto na primeira parte da tese, em que esse organismo se apresenta e se
constrói a si mesmo como o detentor do saber e da verdade dos refugiados no mundo.
Portanto, esse organismo também se apresenta e age como o detentor da autoridade sobre
essas “populações” e sobre as ações tecnicamente mais apropriadas para sua salvação.

Apesar das restrições na informação, muitas das famílias com as quais falei, quando
souberam da existência do programa, procuraram ativamente serem reassentadas. Beatriz e
Rafael, um casal que chegou junto com seus dois filhos no primeiro grupo de colombianos
reassentados, descreveram, por exemplo, a forma que ele teve de ir a “amenazar al Acnur
con hacer un escándalo internacional”, contando de suas precárias condições de vida
como refugiado para conseguir ser reassentado. Para outras pessoas, as tentativas de serem

157
aceitas como candidatas a reassentamento não se deram por meio de ações diretas de
confrontação. Muitas delas narraram que alguns funcionários das ONGs parceiras do
Acnur ou das chancelarias lhes falaram sobre a existência do programa, lhes
recomendando ao mesmo tempo “no digan que ya ustedes saben y mejor cuenten bien la
historia para ser selecionados” e, especialmente, lhes recomendaram não dizer como eles
haviam obtido a informação.

Uma via comum descrita por várias famílias foi a busca de atendimento psicológico nos
serviços assistenciais das ONGs parceiras do Acnur. Foi “contándole el drama a la
psicóloga” que o Acnur os reconheceu como candidatos ao reassentamento, me disseram
Sandra e Silvio. Nesse caso, “fazer com que o Acnur faça”, deixando-o acreditar que foi
decisão soberana dele, parece ter sido a forma de ação mais recorrente das pessoas com as
quais falei. Outras, ao contrário, nunca souberam do programa até o dia que lhes foi
“oferecido”.

Apesar das múltiplas formas pelas quais as pessoas terminam sabendo da existência do
programa, é claro que existe um esforço por reservar a informação sobre a sua existência.
O caráter sigiloso do programa de Reassentamento Solidário é um “ato consciente e
voluntário de ocultação” (SIMMEL, 2009, p. 226) de informações sobre si mesmo e de
circulação voluntária de fragmentos sobre sua existência, mas que, para existir, precisa de
uma suposta totalidade subjetiva das pessoas que elegem como reassentadas. Enquanto o
programa pode ocultar informações e se fracionar entre aquilo que de si mesmo diz e
aquilo que não, ao candidato, ao contrário, nessa relação, lhe é exigido entregar
completamente “sua história” e “toda a verdade” sobre ela. História que também é
presumida como uma unidade reconstituível por meio da narração e que resulta
indispensável para que o programa possa continuar existindo como uma opção de salvação
para alguns.

Várias dessas características sobre o segredo serão abordadas com mais detalhe no capítulo
dedicado às narrativas. Contudo, discutirei aqui os processos de reassentamento a partir da
possibilidade de conhecimento do “outro” nas relações sociais, apontadas por Simmel
(2009) como elemento-chave no estabelecimento da confiança. O desequilíbrio no
conhecimento recíproco entre reassentados que sabem pouco do programa e o programa

158
que sabe muito deles colabora a criar mal-estar e desconfiança nas pessoas refugiadas. O
sigilo do programa que os agentes do Acnur e do Conare apresentam como um mecanismo
de proteção para os refugiados é, muitas vezes, percebido pelas pessoas como uma forma
de evitar a vigilância pública sobre os recursos econômicos envolvidos ou sobre suas
próprias condições de vida no país ao qual foram transferidas. Especialmente quando a
percepção de sua própria situação é de precariedade no meio do reassentamento, enquanto
as funcionárias, que os recebem e servem de intermediárias, são percebidas como pessoas
endinheiradas, e sua fortuna é vista como procedente do salário que recebem pela gestão da
pobreza dos próprios reassentados.

Um homem jovem, que chegou por meio do programa em 2010, se queixava do que ele
considerava “un ejército de funcionarios, para atender tan pocas personas y finalmente
dejarlas abandonadas a su suerte”. Para ele, mesmo que a razão básica do sigilo não fosse
evitar o controle financeiro do programa, essa se tornava uma consequência possível.
Segundo afirmou, “una vez las personas llegan acá, nadie sabe para donde se las llevan,
qué es lo que les están dando y cómo están”. Beatriz e Rafael também mencionaram essa
dificuldade para saber sobre os outros reassentados e mesmo para obter informação sobre
algumas pessoas com as quais eles já tinham travado uma amizade no primeiro país de
refúgio e que, ao chegar ao Brasil, não conseguiram localizar novamente. Segundo esse
casal, eles queriam saber da sorte de uma mulher que chegou doente ao Brasil, mas as
funcionárias da ONG que administra o programa negaram-se a lhes dar informação.

A realização do meu trabalho de pesquisa também esteve marcada pela enunciação desse
caráter secreto do programa que se baseia, segundo os agentes do refúgio, na proteção das
pessoas e da informação sobre elas. “São pessoas protegidas”, foi a explicação frequente
que me deram para não facilitar meu contato com elas. Contudo, como evocado, considero
que essa proteção e o manto de sigilo que cobre alguns programas – concebidos ou
apresentados umas vezes de Estado, outras vezes de governo – tem mais relação com o que
Abrams apontou como o zelo extremo com que “las agencias protegen instintivamente la
información sobre ellas mismas” (2000, p. 81). Para o autor, esse comportamento é uma
mostra de que aquilo que nos é apresentado como “setor público” é na verdade “un sector
privado cuyos conocimientos no deben hacerse públicos”, constituindo o obstáculo

159
imediato mais evidente “para cualquier estudio serio sobre el estado”, fazendo que a
pesquisa se choque contra “el mundo del secreto oficial” (ABRAMS, 2000, p. 82)92.

No universo institucional brasileiro do refúgio, supõe-se que essa proteção da informação e


dos dados cobre também os refugiados espontâneos, e, efetivamente, Cáritas não me deu
informação sobre as pessoas que administra. Porém, encontrar-me com elas foi uma tarefa
relativamente fácil. Contatei muitas das pessoas, com as quais conversei, por meio das
minhas redes pessoais ou indo até os locais de atendimento da Cáritas, de outras ONGs e
albergues onde elas se hospedam. Depois, as mesmas pessoas foram me conectando com
outras pessoas e redes de refugiados. De qualquer forma, as pessoas foram autônomas na
sua decisão de falar ou não comigo, me convidar para suas casas, aceitar minha companhia
para fazer trâmites, etc., sem intervenção das instituições que lhes atendiam.

Ao contrário, a informação sobre as pessoas reassentadas foi muito difícil de conseguir e


sempre intermediada (pelo menos, nos primeiros contatos) por funcionários ou ex-
funcionários das ONGs que administram o programa. A ONG de Porto Alegre enviou
meus dados para algumas pessoas que eles selecionaram previamente e entre as quais
algumas aceitaram falar comigo. Por meio dessas pessoas e de alguns refugiados
espontâneos, consegui fazer mais contatos. Opostamente, a administração da ONG de
reassentamento do estado de São Paulo somente permitiu que fosse feita a ponte com uma
mulher que tinha chegado recentemente.

A entrevista com essa mulher teve de ser realizada na sede da ONG e com a presença de
duas funcionárias na sala ao lado. Quando pedi a intermediação da ONG para que mais
pessoas soubessem da minha pesquisa e tiveram acesso aos meus dados, a resposta da
ONG foi negativa, argumentando que eles “já tinham aberto uma família” e que
consideravam isso “suficiente”. Aleguei sobre o suposto “caráter público” do programa,
mencionei o Plano de Ação do México que insta às organizações envolvidas a promover e

92
Esse argumento de Philip Abrams é produtivo para pensar o próprio trabalho de pesquisa como uma forma
de encarar, enfrentar e entender os mecanismos por meio dos quais o Estado torna-se essa presença mística e
incompreensível que é como se apresenta. Na versão original em língua inglesa do mesmo artigo citado,
Abrams sugere que: “In other words it remains reasonable to assume that the state as a special separate and
autonomous entity is really there and really powerful and that one aspect of its powerfulness is its ability to
prevent the adequate study of the state. We seem to have evidence that the state itself is the source of the
state’s ability to defy our efforts to unmask it” (ABRAMS, 1988, p. 63).

160
colaborar com “trabalhos acadêmicos” sobre refúgio e argumentei sobre a liberdade das
pessoas para falar com quem elas quisessem. Consegui que a direção aceitasse enviar meus
dados de contato por correio eletrônico para os reassentados, pedindo aos interessados em
falarem comigo que me contatassem. Dois dias mais tarde recebi a resposta definitiva
segundo a qual “infelizmente ninguém estava interessado em participar da pesquisa”.
Quando lhes perguntei às famílias que, por outras vias, pude contatar depois, me disseram
nunca ter recebido essa mensagem com meus dados ou informação sobre a minha pesquisa.

Alguns funcionários e ex-funcionários do programa aceitaram me contatar com algumas


pessoas. Uma ex-agente de refúgio, que me ajudou no processo, opinou que era normal que
as funcionárias não dessem a informação porque “assim é cobrado deles”. Porém, disse
que ela já não tem obrigação nenhuma com o programa, de forma que, para ela, o contato
que estava me ajudando a fazer era com conhecidos e amigos, e não com refugiados. Essa
descrição da relação dessa ex-funcionária é muito sugestiva a respeito de como a mudança
no posicionamento do sujeito na interação pode também transformar a percepção do outro.
De agente de refúgio que trabalha com refugiados, ela passou a ser uma pesquisadora
universitária que ajuda a outra a entrar em contato com pessoas conhecidas e amigos. Essas
pessoas apareceram então, por meio dessa via, já sem o velo do sigilo sobre suas vidas
protegidas e com a liberdade de decidir se queriam contar, mais uma vez, sua história para
uma antropóloga “paisana”. As informações sobre minha vida que eu lhes ofereci, ou que
as pessoas me pediram, foram chave para que elas pudessem me localizar num lugar social
compreensível e decidir conversar comigo sobre a base de um nível elementar, mas
importante, de confiança.

As tentativas de “proteger” as pessoas, que parecem tentativas de “proteger” o programa,


são evocadas como uma das razões para que o reassentamento seja feito em municípios
distantes uns dos outros, evitando que várias famílias fiquem morando juntas em lugares
considerados pequenos. Para isso, a justificativa usada é um suposto medo dos
colombianos de permanecer junto com outros conterrâneos e as desconfianças entre as
pessoas, derivadas da guerra prolongada na Colômbia. Essa estratégia, chamada de
Dispersão Territorial, também é evocada como uma forma de diminuir o que
alegadamente seria um impacto nas comunidades de acolhida ao receber estrangeiros e
impedir a criação de guetos, segundo a expressão usada por vários agentes:

161
[...] Eu não sei. Sabe? Eu não sei se fica uma desconfiança do tipo: quem será o
outro colombiano que também está lá? E, na verdade, eu também não acho uma
boa ideia, até porque eu acho que atrapalha a integração; se você resolveu vir pra
cá, geralmente o reassentado vem com família, então assim... Ele já tem o
suporte da família, mas ele precisa se integrar na sociedade brasileira, ele precisa
falar em português, aprender português, conhecer as coisas daqui do Brasil, então
não é muito legal ficar muito em gueto. Eu não acho legal, eu já também ouvi
falar que eles não gostam, e eu dou apoio nisso. A estratégia é a dispersão.
(Agente entrevistadora do Conare)

Somado ao caráter sigiloso da informação, esse mecanismo de dispersão colabora para que
as pessoas tenham pouco contato com outros compatriotas e, especialmente, com outros
refugiados. A estratégia funciona também para garantir que as pessoas reassentadas
cheguem a lugares com baixo ou nulo percentual de solicitantes espontâneos e refugiados,
evitando que comparem os benefícios entre uns e os outros ou que se espalhe a informação
sobre a existência do programa de reassentamento.

Talvez com o programa de Reassentamento Solidário fique mais clara a tentativa de


vincular populações errantes a determinados territórios, como visto antes em relação aos
postos administrativos de refugiados. A ONG encarregada de reassentamento funciona
como um centro ou posto administrativo, ao redor do qual são escolhidas cidades satélites
onde serão localizadas as pessoas, suficientemente perto para exercer um controle
cuidadoso de alguns aspectos de suas vidas no Brasil. Nas cidades ou nos municípios mais
distantes desse centro, é contratado um agente de integração local que, em representação
da ONG, será o encarregado de mediar entre os reassentados e a comunidade de acolhida,
colaborando para sua inserção laboral, educativa e cidadã e lhes ensinando os princípios
básicos da integração na vida da nação brasileira.

Os lugares escolhidos para o reassentamento e os dados de contato das pessoas são um


bem de propriedade do Acnur e de suas ONGs parceiras. Situação que, não sobra reiterar,
colabora com a dificuldade de falar com as pessoas o que elas se encontrem entre si.
Porém, existem fissuras por meio das quais a informação vai se infiltrando. Por exemplo,
nos locais onde são ministradas aulas de português, alguns refugiados espontâneos
encontraram-se com reassentados. Também me contaram algumas famílias que, sentindo
falta de encontrar outros paisanos e aborrecidos nos locais onde foram localizados,
procuraram sítios “colombianos” ou “latinos” de rumba, gastronomia ou de encontro
futebolístico. Às vezes, por meio das redes sociais, às vezes por meio de parentes que

162
moram em outros estados ou, às vezes, por coincidências no local de férias, como
aconteceu com Sandra e Silvio, deram-se encontros que propiciaram novos canais de
circulação da informação, que têm conseguido driblar o que poderíamos chamar de “o
cerco informativo do Acnur”.

Apesar de todas essas fissuras e infiltrações, o controle informativo gera efeitos nas
relações entre pessoas que, devido às formas, aos processos e aos valores com os quais são
produzidas, começam a encarnar categorias diferenciadas. Alguns solicitantes, por
exemplo, expressaram sua desconfiança sobre “esos tan protegidos”. Para eles, a proteção
extrema sobre suas informações e o sigilo com que alguns deles falavam do programa e de
suas vidas, constituía um indício de que estavam ocultando alguma coisa. A desconfiança
também incluía a suspeita de algum tipo de participação dos reassentados no conflito
colombiano. Agustín, por exemplo, se referia ao reassentamento como o programa de
“proteção de testemunha”, chegando a pensar, inclusive, que um reassentado, que tinha
conhecido no curso de português, estava se escondendo.

Por sua vez, as famílias reassentadas com as quais falei expressaram sua percepção sobre si
mesmas como um “caso especial”. O fato de elas terem sido escolhidas e de serem
especialmente protegidas – apesar das moléstias com as funcionárias e as queixas de
precariedade – constituía um importante bem simbólico e, claro, uma vantagem material
em suas vidas. A discrição que os agentes de reassentamento lhes solicitam às pessoas, em
função de sua própria proteção, é muitas vezes obedecida pelas pessoas como uma forma
automotivada de proteger também o programa. Fazendo isso, as pessoas se sentem
salvaguardando o caráter especial que elas conseguiram graças à preciosidade com a qual é
construído o processo e ao manejo positivado da escassez das pessoas por ele beneficiadas.

As pessoas reassentadas se referiram à sua história como uma particularidade, oficialmente


reconhecida por meio do percurso burocrático, que lhes diferencia positivamente dos
“refugiados comunes”. “Si todas las personas saben y esto se llena de colombianos, se nos
acaba la tranquilidade”, argumentou Rodolfo, que simultaneamente promoveu meu
encontro com mais algumas famílias e defendeu a necessidade de “articularse entre
reasentados y protestar colectivamente como hicieron los palestinos”. Assim, a maior
“proteção” e o caráter especial outorgado a umas pessoas e a relação com outras que vêm

163
de lugares e situações similares, e mesmo de percursos e mobilidades parecidas, que
incluem a passagem pelo Equador, cria importantes diferenças de “integração” nas
comunidades locais e engendra nos sujeitos profundas percepções de diferença a respeito
dos demais refugiados que começam a serem percebidos como os “outros” 93.

Até o momento, tem sido apontado que os esforços para preservar essa oferta como um
bem precioso ativam mecanismos para lhe proteger de sua popularização e, por essa via, de
sua possível transformação num “bem comum”. Além disso, para conseguir essa
preservação, tenta-se governar as ações derivadas do desejo das pessoas, que, por sua vez,
é percebido como uma ameaça potencial para a fórmula que garante que essa “dádiva” seja
oferecida e não demandada. Alba, uma mulher reassentada, por exemplo, me dizia: “Yo no
quería reasentamiento, pero no había salida. Era o devolverse a que nos mataran o
quedarse así [como estábamos] en Ecuador”. Ela também me contou que o processo de
reassentamento foi ativado, inclusive, antes de ter lhes falado dessa possibilidade para sair
do Equador: “Ellos ya habían comenzado a hacer los trámites y la preguntadera94 y la
contadera era para verificar las versiones que dábamos y nosotros no sabíamos”.

O fato de que Alba não desejasse o reassentamento no Brasil, não obedecia à razão mais
frequentemente evocada pelas outras pessoas que me disseram: “Yo quería un país mejor”.
Para Alba, o problema de sair do Equador era que aumentaria a distância até a Colômbia.
Quanto mais longe de seu país, mais remota a possibilidade do retorno e mais pesava a
ausência da sua família paterna que tinha sido seu principal suporte de vida e cuja lonjura

93
Os processos de diferenciação entre tipos de refugiados sugere uma possível reflexão sobre as formas de
autorrepresentação e resignificação de sua própria origem dos grupos que se encontram em processos de
reacomodação perante uma suposta unidade nacional majoritária. A respeito da distinção entre espontâneos e
reassentados, é preciso indagar como a relação diferencial de cada um desses grupos com os agentes de
integração, com as comunidades de acolhida e com uma suposta “sociedade brasileira” vai criando também
fronteiras com outros conterrâneos, produzidos e percebidos como diferentes. Considero relevante levar em
conta a proposta de alguns autores que apontaram a existência de diversas formas de reivindicar a diferença e
também múltiplas distinções culturais em grupos sociais diversos. A etnicidade, por exemplo, pode ser
apreendida tanto como um fenômeno criado pelas circunstancias econômicas e políticas, quanto um processo
de reação ante tais circunstancias (ERIKSEN, 1993). Estaríamos diante do que alguns autores têm
denominado pluralismo cultural que implica que, nas divisões dos grupos humanos, não está em jogo a
demonstração de uma essência de pertencimento, mas as relações com outros grupos que coexistem em
determinadas condições (BARTH, 2000; WIRTH, 1945). No caso das minorias étnicas, sua definição na
interação com uma sociedade maior não se apresenta somente em termos numéricos, mas com base na
natureza do arranjo social entre elas, o grau e o caráter das fricções e dos objetivos que se quer atingir com a
tentativa de definição de um novo equilíbrio nessas relações.
94
O sufixo “dera” que sucede o verbo é um giro coloquial da linguagem que substantiva uma ação para
indicar seu caráter reiterado e fastidioso.

164
representava um dos principais motivos de sua angústia. O processo de reassentamento, a
apresentação do caso ao Conare e a elaboração dos documentos com a história dela foram
iniciados pelos agentes do Acnur no Equador, inclusive antes de lhe consultar. Esse
movimento e a ordem das ações deixam supor que uma recusa da “oferta reassentamento”
não estava prevista.

Segundo outras das pessoas reassentadas, “hubiera sido preferible ir a un país


desarrollado”. Essa expectativa, porém, não foi expressa somente para mim; vários dos
agentes das ONGs de reassentamento também referiram ter ouvido as pessoas falarem
desse desejo de morar num país melhor posicionado do que o Brasil:

[...] E também a gente terminava descobrindo aqui no Brasil, no dia a dia, que a
expectativa de muitos deles não era o Brasil, eram os Estados Unidos ou Canadá,
então a impressão que se tinha era que o Brasil era um passo para ir embora para
o Canadá. Então, muitos casos a gente teve isso de aí, porque o desejo era esse.
Ir embora para o Canadá. Sobretudo, aqueles grupos nos quais era preponderante
o anseio da integração econômica. Então, quando chegava para cá que eles se
revelavam: “não, eu não queria vir para cá, eu queria ir para o Canadá”. Ah não,
mas você veio para cá, você aceitou, você assinou. Tinha um termo que eles
assinavam e tudo mais. (Ex-coordenadora ONG de reassentamento)

Se para a agente citada, essa descoberta dava-se já na interação em solo brasileiro, para
outros agentes – incluídos aqueles da missão de seleção –, essa dimensão estava presente
desde o planejamento do programa e das características dessa oferta. O diferencial
oferecido no Brasil que terminou convencendo as pessoas de aceitar o reassentamento e
assinar o contrato foi a agilidade relativa da resposta e o traslado. Alguns países europeus,
Estados Unidos ou Canadá, que são os destinos mais desejados, podem demorar, em
média, quatro ou cinco anos para dar uma resposta e completar a viagem de instalação. A
resposta do governo brasileiro chega no mesmo ano, e uns poucos meses depois, a viagem
pode ser efetuada. A sedução do desejo dos candidatos por meio do tempo diferencial foi
evocada por todos os sujeitos – indivíduos e famílias – com quem conversei sobre seu
reassentamento no Brasil.

Os agentes da tríade coincidiram ao afirmar que, apesar de lhes mostrar aos candidatos as
realidades sociais do Brasil, para evitar criar falsas expectativas, também existe um
interesse por que eles venham ao país. De maneira que, no vídeo informativo, assim como
na entrevista, também há um esforço para convencer as pessoas de que existem vantagens

165
de morar no Brasil, especialmente se comparado com sua vida e situação no Equador. Os
agentes do Acnur apresentam Brasil e Chile como “países emergentes de reassentamento”
que, para se posicionar globalmente como potências humanitárias, devem consolidar essa
política de recepção de reassentados. Daí que não seja uma surpresa, por exemplo, que, do
primeiro grupo de candidatos que o Acnur apresentou ao governo brasileiro, foram aceitos
todos os candidatos, para inaugurar oficialmente o Programa de Reassentamento Solidário:

[...] Novembro de 2004 foi a primeira missão, aí eles voltaram com os nomes e
era deliberado no Conare as famílias que iam ser aceitas. Todas as famílias que
passaram pela primeira entrevista foram aceitas por unanimidade, porque era a
primeira missão [...] E é que também o Acnur estava reabrindo o escritório no
Brasil e ele precisava mostrar resultados e foi o começo [...]. (Ex-funcionária da
tríade)

Controlar as ações derivadas do desejo para evitar “a fraude” não significa anular o desejo
das pessoas. Trata-se, sobretudo, de identificar os candidatos que se encaixem no perfil
pretendido para o reassentamento no Brasil e lhes seduzir aproveitando seu desejo de sair e
levar uma vida melhor, para que eles aceitem integrar o processo de “consolidação da ação
humanitária brasileira”. Parece lógico que, se o reassentamento no Brasil aparece como a
última opção para as pessoas, ou a menos desejada, seja difícil manter a ideia de que essa
“dádiva” é algo precioso. O próprio caráter “secreto” do programa parece ajudar na
sedução necessária de candidatos para serem transferidos ao Brasil. Para entender melhor
essa ação de sedução por meio do secreto, vale a pena lembrar que Simmel afirmou que “la
exclusión de otros ocurre especialmente cuando se trata de cosas de gran valor, de modo
que es fácil llegar psicológicamente a la conclusión inversa, según la cual aquello que se
niega a muchos, debe ser particularmente valioso” (2009, p. 238). Os outros mecanismos
de sedução, segundo as pessoas com as quais falei, às vezes exageram na descrição dos
benefícios que o programa supostamente ofereceria, assim como nas características
positivas das comunidades locais e do lugar social que os reassentados ocupariam nelas. As
situações muito diferentes às descritas, junto com a dissolução da mágica do segredo,
colaboraram a aumentar as inconformidades e a decepção com as condições precárias em
que a maioria dos reassentados se encontraram ao chegar no Brasil.

4.2.3. O perfil dos candidatos desejados e os processos paralelos/soberanos

Miguel chegou como reassentado em 2010 e, segundo me contou, conseguiu acionar o


programa graças a seus contatos com “um alto funcionário do Acnur” que ele conheceu por

166
meio de seu trabalho como ativista na Colômbia. Apesar de seus contatos prévios com o
Acnur, ele disse que não desaproveita nenhuma chance de fazer as críticas ao programa
que sejam necessárias. Ele tem sido convidado várias vezes para “falar em reuniões do
Acnur” onde aproveita para expressar suas críticas. Apesar disso, me disse, continuam o
convidando. Eu sugeri para Miguel que talvez um “reassentado jovem e bem integrado”
que, apesar da sua historia de refúgio, conservava seu espírito crítico, era uma boa imagem
para o Acnur. Miguel concordou com a minha interpretação e agregou que: “por lo menos
en mi caso hay de por medio una historia real de persecución, pero en la mayoría de los
casos lo que le importa al Acnur y al Conare, es el perfil de las personas que puedan ser
útiles en Brasil y no la historia de desplazamiento de las personas”. Essa é, segundo ele, a
razão de “no se promociona el refugio ni el reasentamiento de las personas de origen rural
o las que están en las fronteras, que son las verdaderamente afectadas, de modo masivo,
por el desplazamiento en Colombia”.

A opinião de Miguel, com pequenas variações, também foi exposta por outros refugiados
com histórias prévias de militância política e com contatos precedentes com o Acnur. Um
deles, Francisco, que tinha inclusive trabalhado na Colômbia com uma ONG parceira do
Acnur onde se ocupava de “sacar a las personas del país”, explicou que as histórias das
pessoas deviam ser apresentadas de modo a coincidir essas histórias com o perfil desejado
por cada país receptor ou por cada programa particular do Acnur; do contrário “corrían el
riesgo de que las rechazaram”.

Essa informação sobre o funcionamento de alguns aspectos do programa que não me


chegou por meio das pessoas percebidas no universo institucional do refúgio brasileiro
como “agentes de refúgio”, mas por meio de pessoas percebidas como “refugiadas” é
interessante por vários motivos. Em primeiro lugar, abre uma zona cinza nesses processos
de refúgio – dos que estou me ocupando nesse capítulo – ao mostrar que a “competência
técnica do Acnur”, para os desenvolver, baseia-se, em boa parte, na ativação de uma
multiplicidade de agentes localizados em diferentes pontos da geografia mundial, que
tomam conta de pequenos fragmentos do processo. Processo esse que depois será
percebido e apresentado como uma ação total e global, perfeitamente controlada por uma
agência supranacional que detém o conhecimento e o poder de intervenção.

167
Em segundo lugar, a posição que os sujeitos ocupam no universo do refúgio, nesse caso
brasileiro, depende de como são interpretados pelos outros agentes e da posição relativa a
respeito do poder de influenciar as ações dos outros. Assim, um funcionário de uma ONG
que, na Colômbia, tinha uma parte do saber que permitia o sucesso de uma ação técnica de
“transferência de pessoas”, torna-se ele próprio em um “transferido”, podendo reconstruir
melhor do que outras pessoas a sequência de pequenas ações encadeadas nos processos de
refúgio e reassentamento e, inclusive, mobilizar mais facilmente algumas delas em seu
favor.

Nesse sentido, essa situação descrita também é útil para pensar que a mesma existência do
refúgio depende desses papéis, desempenhados sempre contextual e relacionalmente, que
vão construindo cenas que, repetidas e reatualizadas constantemente, nos chegam com a
aparência de “um processo de refúgio” tecnicamente infalível. Quando o que se observa é
uma constante montagem que, em cada ocasião, tem uma grande parte de fixação,
repetição, norma e causas, e outra grande parte de mobilização de relações, improvisação,
desordem e acasos. Além dessa dimensão relacional, processual e fragmentária dos
processos de refúgio, a opinião de Miguel e de Francisco é iluminadora de outro aspecto
dessas ações. Trata-se da importância que tem para o processo de reassentamento a “boa
seleção” dos candidatos. Isso quer dizer que a seleção da pessoa adequada – ou adequável
– ao perfil construído como sendo desejável pela tríade da governança do refúgio no
Brasil.

Esse aspecto, relativo à seleção do perfil adequado não apareceu somente como uma crítica
de alguns refugiados; vários dos agentes do reassentamento no Brasil consideram que a
boa seleção dos candidatos é um aspecto positivo do processo. Segundo eles, essa
característica evidencia seu refinamento e sua competência técnica e também evitaria que o
conflito colombiano se infiltrasse por meio das fronteiras brasileiras. Assim foi expresso,
por exemplo, pela diretora de uma das ONGs administradoras do programa. Para essa
funcionária, a boa seleção das pessoas também marcava uma diferença entre o Brasil e o
Equador, país em que era recebido “todo mundo” e, por conta disso, as pessoas eram
novamente perseguidas. Segundo essa mesma funcionária: “No Brasil não tem se
reassentado aos ex-combatentes dos grupos armados, de modo que as vítimas não correm
o risco de se encontrar com os antigos algozes”. Essa afirmação foi nuançada por meio do

168
relato de outra funcionária que administrou o programa alguns anos atrás e que afirmou
que alguns delatores do movimento estudantil foram reassentados em municípios do
estado. Inclusive, ela contou que, tempo depois, perderam a pista desses reassentados. Em
outro momento, explicou que algumas pessoas ocupavam lugares diferenciados e, por
vezes, antagônicos no conflito colombiano, o que fazia com que fosse preferível evitar seu
encontro e, segundo ela, justificava a estratégia da dispersão territorial. Essa funcionária,
que conhecia melhor os integrantes de cada família, assim como as histórias que causaram
seu êxodo, não reduziu o assunto a uma confrontação entre “ex-combatentes”, como foi
feito pela atual diretora da ONG. Para a ex-funcionária, ao contrário, as particularidades
das histórias eram mais importantes para entender as possíveis inconveniências de alguns
encontros:

Agente: [...] Mesmo morando na mesma cidade, eles não tinham contato por
que: aqui chegou um outro rapaz que ele chama xxxxxxx que foi para outra
cidade trabalhar num projeto social da Cáritas, porque ele só foi aceito porque
era um pouco um caso de proteção de testemunha, porque ele foi da guerrilha na
adolescência. Então, ele tinha que ter um tratamento especial, mas como depois
ele foi delator, ele conseguiu participar do reassentamento, e era muito amigo de
xxxxx, porque eles se conheceram no albergue, no Equador. Então, por conta
dessa amizade, esses aqui não conheciam esses outros. Porque tinha um certo
receio do que podia acontecer e o xxxxxx sempre foi muito tranquilo, mas como
era uma determinação do Conare de que era um caso especial, [...] foi uma
condição.

Eu: Era também uma condição do Conare de que ele não se encontrara com as
outras famílias?

Agente: Então, não era uma condição, mas era uma orientação deles. Por quê?
Famílias de lugares distintos com histórias distintas, esse (assinala uma das
famílias no caderno) era policial. Esse (outra família) o ex-marido tentou matar
os filhos porque ele era paramilitar. Então, a gente tinha algumas situações
assim. [...] Alguns pediam para se encontrar [com outros colombianos] e a gente
falava: olha, se vocês se encontrarem, tudo bem. Mas, a gente não pode
promover encontros. Era uma orientação de manter essa..., porque exatamente
por não saber, era a primeira vez, era o primeiro programa, então como tinha
dado problema com os afegãos no Rio Grande do Sul, daí veio como uma
orientação [...] Não dá certo ficar juntos porque eles têm que procurar fazer a
socialização com as próprias famílias brasileiras, conhecer o jeito, não adianta
formar gueto que a gente sabe que não funciona.

A resposta dessa última funcionária começa falando da proteção das pessoas e rapidamente
se desliza para a necessidade de proteger o programa em si mesmo. Assim, apesar das
visões contraditórias na percepção das pessoas que chegam como reassentados, existe um
acordo básico sobre o fato de que eles já são refugiados e que a boa seleção, somada à
dispersão territorial, ajuda para que o programa de reassentamento antecipe os problemas e
tome ações para evitá-los.

169
Uma vez que a condição de refúgio de uma pessoa foi reconhecida pelo Acnur ou por outro
país – que, nesse caso, é geralmente o Equador –, o Conare no Brasil pode entrar em um
espaço previamente certificado e legitimado como sendo “humanitário” e lá escolher as
pessoas que já são vistas como vítimas. A “missão de seleção” não é apenas uma viagem
para o Equador, é também um deslocamento para esse lugar moral. As dúvidas sobre a
“verdadeira necessidade de proteção das pessoas” deixam de ser um problema no
reassentamento, pois o governo brasileiro assume a seleção prévia feita no outro país e a
usa para o processo de “transferência de pessoas protegidas”. Reconhecer alguém como
refugiado assim como eleger o perfil das pessoas a serem reassentadas são atos soberanos
dos Estados. Nesse sentido, as ações do Acnur, que transfere pessoas, mas que o faz
somente com o aceite dos países envolvidos e com todos os documentos que assim o
certificam, contribuem para reforçar a soberania desses espaços pensados como unidades
fixas e delimitadas. Essas ações do Acnur contribuem igualmente para reforçar as ações-
ideias que são as fronteiras nacionais, com seus consequentes efeitos de jurisdições e
limites (TROUILLOT, 2001).

Quando perguntei a vários agentes sobre o perfil para o reassentamento no Brasil, várias
respostas apontaram para “mães chefes de família”; outras vezes, foi evocada a sugestão do
Acnur para reassentar pessoas vivendo com HIV, e, em outras ocasiões, me responderam
em termos genéricos sobre “núcleos familiares vulneráveis”. A resposta mais concreta a
esse respeito foi oferecida por uma das agentes de reassentamento encomendada pelo
Conare para ir na “missão de seleção” como representante do governo brasileiro:

Aí a questão é a seguinte: como o Acnur de lá conhece o nosso programa, a


gente acaba entrevistando pessoas com o mesmo perfil. Então, eu não sei te dizer
qual é o perfil das pessoas que estão lá no Equador, porque, para a gente, aparece
é casais, mais ou menos jovens, mais ou menos de 30 anos, porque o nosso perfil
é o seguinte, olha: a gente não precisa de pessoas com muito nível de
escolaridade, até porque, às vezes, até atrapalha. A gente precisa de pessoas que
cheguem aqui e depois de um ano já sejam autossuficientes. E então aí aparecem
pessoas com níveis secundários de estudo, casais com crianças já em idade
escolar que possam deixar na escola para a mãe já poder trabalhar, tem aparecido
também mulheres solteiras com crianças, mas aí, geralmente já tem uma criança
adolescente que já pode cuidar dos outros enquanto a mãe trabalha e é esse o
perfil que chega para a gente, porque é o perfil que a gente pede, né? Pode ter
outro, pode ter pessoas sobreviventes de torturas e esse tipo de coisas que, para o
perfil brasileiro do programa, a gente fala que não é muito adequado. Então
acaba não entrevistando.

170
Mais adiante, a mesma funcionária também tornou explícito o fato de que o perfil das
pessoas que Miguel e Francisco consideram “las más afectadas por el desplazamiento
forzado en Colombia”, não são um perfil interessante para o programa de reassentamento
brasileiro:

Eu: E mesmo se eles foram trabalhadores rurais lá na Colômbia, eles se integram


fácil nas cidades?

Agente: E então, esse é um perfil que a gente prefere não trazer. A gente traz
assim, um perfil urbano e pessoas com algum treinamento técnico. Eu sei que
tem outros países onde recebem pessoas com mais estudo, a gente não; se o cara
for carpinteiro na Colômbia, ótimo, porque aqui ele vai achar emprego fácil,
então realmente não recebemos. Então, realmente rurais não recebemos. Ao
começo chegaram, mas aí, depois, a gente foi cortando pelo mesmo [motivo],
porque as ONGs são de Porto Alegre e Guarulhos, então é urbano.

Além de preferir casais urbanos, jovens, em capacidade de trabalhar, com um nível básico
de formação e filhos em idade escolar, outras características comuns sobre “o perfil” foram
aparecendo entre os diferentes agentes. Essas outras características se referiam mais a
alguns traços pretendidos do comportamento ou caráter das pessoas. Por exemplo, falaram
em pessoas independentes, empreendedoras e motivadas. Características que rapidamente
foram associadas com a necessidade de procurar independência financeira, de serem
autossuficientes e de evitar estabelecer uma relação paternalista com o programa e com o
governo brasileiro. O “perfil desejado” foi aparecendo cada vez mais com maior clareza
vinculado com a ideia de sujeitos produtivos e em condições de alcançar independência
econômica rapidamente. A mesma agente entrevistadora resumiu bem alguns aspectos da
seleção das pessoas no Equador:

Agente: Na entrevista da delegação brasileira? São três. Um representante de


cada ente; um pra cada um. E aí até a gente comenta: não é uma entrevista, é
uma conversa; porque a gente espera saber o que a pessoa espera do
reassentamento, especificamente no Brasil [...]. Porque a gente pensa assim: a
pessoa tá pedindo reassentamento porque precisa salvar algum aspecto da vida
dele, ou é a segurança, ou é a falta de integração no Equador, que não deixa que
a vida dele não vá pra frente por causa daquilo. Então, no Brasil, com o
programa, ela tem essa oportunidade, mas aí também não vai ser uma assistência
para toda a vida. Então, ela precisa saber que depois não vai ter e tem que se
virar com seus próprios meios. A nossa conversa é para abrir seus olhos sobre
isso.

Eu: E nesse sentido, quais seriam os critérios a favor de uma aprovação do


programa de reassentamento, e quais seriam aqueles que vocês falassem “não”?

Agente: Por exemplo, pessoa que na entrevista que a gente perceba ou ela fale
ou ela demonstre que acredita que o Acnur deve prestar assistência enquanto ela
precisar. Porque a gente já logo avisa que, para o reassentamento no Brasil, a

171
gente precisa ter muita iniciativa, tem que correr atrás, que, atualmente, o Acnur
consegue bancar um ano de assistência só, pode ser que o ano que vem não seja
isso, que o dinheiro diminuiu, pode ser que aumente, está mais ou menos assim.
Então, a gente avisa para a pessoa na hora: olha, o Acnur está bancando um ano
de assistência, você vai poder fazer cursos nesse período, você vai escolher o que
você acha que é o melhor que para você se dar melhor, porque no fim do período
você vai ter que fazer suas contas, vai ter que pagar o aluguel. Então, já
aconteceu, infelizmente, que, no final da entrevista, a gente vê que é uma família
que, com adjacência, talvez não conseguiria estar trabalhando. Por exemplo, mãe
solteira com um monte de filho pequeno, e aí, se sabe que tem outros programas
em outros países que têm uma proteção mais prolongada, porque o programa
permite ou porque tem um pouco mais de doadores e, para mulher em risco, dão
dois anos, por exemplo. Então, a gente pensa que, com um ano aqui no Brasil,
essa mulher não vai ter suficiente, então, é melhor ela ser apresentada para outro
país, esse raciocínio a gente faz. Não é que a pessoa não mereça o
reassentamento, mas para o perfil do programa brasileiro ela não se adéqua,
diante de outras possibilidades. Então, nesse caso aí, geralmente, a gente fala que
não, a gente, às vezes, nem quer apresentar para a plenária no Brasil porque a
gente já vê que um caso que não vai passar pelos filtros do programa brasileiro.
A gente fala: você não quer se retirar e se apresentar para outro país? Para não
ficar esperando, esperando. Aí, o Acnur retira e apresenta para um outro país.

Esse “perfil” das pessoas reassentadas também apareceu em conversações com outros
agentes e, especialmente, em meus encontros com as pessoas que chegaram por meio do
programa. Elas mesmas contaram que o fato de serem um “matrimônio jovem” foi
apontado, por alguns dos agentes do Acnur no Equador, como uma vantagem para sua
candidatura ao reassentamento no Brasil. Muito mais do que ser uma mãe chefe de família,
especialmente se, como apontado pela agente do Conare supracitada, os filhos pequenos
tornam-se em um obstáculo para que a mulher arrume um emprego. Com a exceção de
alguns homens que chegaram sozinhos, as pessoas que conheci durante a minha pesquisa
de campo formavam famílias de quatro integrantes: um casal heterossexual em idade para
trabalhar, com dois filhos, geralmente uma menina e um menino.

Esse formato de família é parecido com aquele que representa a “família brasileira” nos
comerciais, nas imagens publicitárias e na propaganda oficial de programas de governo
destinados aos setores de baixa e média renda no Brasil, justamente os setores a onde se
espera que sejam integradas as famílias reassentadas. Saliento aqui que os processos de
formação de Estado são também processos de generificação e de reprodução de normas e
sistemas de relações possíveis e esperáveis. Com o reassentamento se pressupõe que o
núcleo familiar e as relações que cada um de seus membros estabelece de maneira
diferencial nos espaços destinados para cada um, que se baseiam em um esquema

172
convencional de gênero e geração, serão elementos, que interconectados, ajudarão no
processo grupal da integração, como será retomado na quarta parte da tese.

Apesar da importância dada à dimensão de trabalho das pessoas, a capacidade suposta de


garantir para se a autossuficiência financeira não é o único critério que é levado em conta.
Por exemplo, Miguel, perseguido em função de sua militância política e Juan Felipe,
perseguido em função de sua orientação sexual, foram apresentados como casos exitosos
de reassentamento. Isso não apenas pela “exitosa” integração educativa do primeiro e
empregatícia do segundo, mas porque tornaram-se em uma amostra da “capacidade de
integração do povo brasileiro e do caráter diverso e respeitoso da nação”. Segundo os
agentes das ONGs que defenderam essas premissas, Brasil se diferenciava da Colômbia e
do Equador porque não tinha essa “cultura machista” nem essa “situação de matar ao
opositor político”. Dessa forma, o ganho para cada um desses dois homens que, segundo
os agentes do refúgio, vão “viver e pensar como ele é”, é ao mesmo tempo um ganho para
o Brasil, já que pode oferecer uma imagem viva e agradecida desse caráter hospitaleiro e
democrático que se esforça em construir por meio dos programas internacionais de ação
humanitária (RADHAY, 2006).

Talvez a história de Juan Felipe seja a maneira mais eloquente de entender como a
identificação – por parte dos agentes do Acnur, de suas ONGs parceiras no Equador e
posteriormente da “missão de seleção” brasileira – é fundamental no processo global de
reassentamento de pessoas no Brasil. Especialmente para entender como a seleção de um
sujeito “ideal” colabora para alimentar as imagens que apresentam a nação brasileira
como aberta, democrática e acolhedora. Simultaneamente, reforçando a ideia de que os
movimentos humanos, por meio das unidades pensadas como sendo Estados-nação,
somente são possíveis e legítimos se as pessoas são reconhecidas como refugiadas e se é
apelado o poder dos Estados para decidir sobre os movimentos e lhes autorizar. Juan
Felipe, por exemplo, teve de ser reconhecido primeiro pelo Equador como refugiado para
poder ser reassentado no Brasil. Dessa forma, o Acnur ajudou a acelerar o processo no
Equador para que o mesmo dia em que foi reconhecido como refugiado, Juan Felipe
abdicasse desse status e pudesse ser transferido para o Brasil:

¡Claro! ellos fueron muy... y sin ellos yo creo que yo no estaría acá, ellos, dentro
de lo que cabe, ellos me ayudaron, me apoyaron mucho, HIAS [Organización

173
Hebrea de Ayuda a Inmigrantes y Refugiados] tuvo psicóloga siempre a mi
disposición para todo eso, estuve siempre con psicólogas en HIAS, que es como
una entidad que se llama, no me acuerdo como se llama, bueno. Ellos y una
psicóloga de otra entidad, entonces tenía psicólogas por todas partes. Ese fue un
proceso, yo comencé ese proceso en diciembre y lo terminé en julio, a principios
de julio. Y todo ese tiempo es proceso va, proceso viene, charla va, charla viene,
entrevista allá, entrevista acá, hasta que finalmente ellos me dijeron: “Le
tenemos una opción, y es que su caso ya fue avalado, no sé qué y Brasil es el
único país que puede acogerlo, para que usted vaya allá, comience una vida,
comience de cero y bla, bla, bla”. Yo no tenía... al principio yo me negué, pero
ellos me dijeron: “Si usted se niega, tiene una semana más de alojamiento y de
comida y queda en Ecuador por su propia cuenta, usted sigue en Ecuador, usted
sigue con su proceso con el Ministerio de Relaciones”. Porque esos son procesos
independientes, el Acnur supuestamente no puede entrar en los procesos internos
del Ministerio de Relaciones exteriores [de Ecuador], entonces para ellos agilizar
todo el tema aquí en Brasil, lo que hacían era adelantar las citas y las cosas en el
Ministerio de las Relaciones en Ecuador, porque yo primero tenía que ser
reconocido como refugiado en Ecuador. Antes de cualquier otra cosa con Brasil
o con equis lugar a donde yo me fuera a ir, ellos [en Ecuador] tenían que decir si,
tenían que darme la visa 12-IV que fue la que me dieron [visa 12 – IV de asilo y
refugio y Ecuador]95
[…] Una vez que ya me dieron la respuesta, ellos notificaron la respuesta
directamente al Acnur ¿Si? Entonces el Acnur llamó y comenzó a hacer trámites
y ya ahí comenzó. […] entonces cuando ya el Acnur dijo “tenemos una
respuesta positiva por parte del Ministerio de las Relaciones Exteriores de
Ecuador y vamos a comenzar el trámite con Brasil y no sé qué” Y comenzaron,
sin yo haber sido notificado [Por Ecuador], pero ellos ya sabían que Ecuador ya
me había aceptado, ya lo que faltaba era yo ir al Ministerio y que me dieran la
visa.

O fragmento do processo que apresenta as autoridades brasileiras, que apesar de ser um


fragmento, é oferecido com um caráter e uma completitude, tem na realidade uma longa
história precedente de relações entre os sujeitos e diferentes processos violentos, longos
trânsitos, complexos processos burocráticos, difíceis decisões existenciais e profundas
transformações subjetivas. Todas essas etapas e transformações são as que permitem que o
refúgio e o reassentamento existam como campos semânticos e morais e como prática de
governança. Do mesmo jeito, elas permitem que a interpretação da dor dos sujeitos por
meio do refúgio seja pensada como a interpretação legítima do sofrimento, em virtude de
sua oferta de restituição da vida em uma “comunidade nacional”. Em palavras de Das,
estaríamos diante da ideia de que o sofrimento contém a potencialidade de moldar os

95
No site do Ministerio de Relaciones Exteriores, Comercio e Integración de Ecuador, aparece a seguinte
definição para o Visa 12: IV Solicitud de Asilo y Refugio: “4.1 Este tipo de visados se lo extiende a favor de
las personas desplazadas como consecuencia de guerras o de persecuciones en su país de origen, de índole
racial, política, religiosa, nacionalidad, pertenencia a determinado grupo social u opiniones políticas, con el
propósito de proteger su vida o su libertad. 4.2 El reconocimiento de la calidad de asilado o refugiado y la
concesión del visado correspondiente será decido exclusivamente por el Ministro de Relaciones Exteriores.”
(Fonte: CONSULADO GENERAL del Ecuador em Barcelona. Ministerio de Relaciones Exteriores y
Movilidad Humana. Disponível em: <http://cancilleria.gob.ec/requisitos-para-solicitud-de-visas-no-
inmigrantes-e-inmigrantes>. Acesso em: 15 maio 2014.)

174
sujeitos como eventuais membros morais de uma sociedade e, ao mesmo tempo, o
sofrimento é infligido aos indivíduos em nome desses grandes projetos da sociedade (DAS,
1997b, p. 563). O Acnur como parte da tríade da governança e como jogador que se
inscreve a si mesmo no plano transnacional, contribui para que esses movimentos físicos e
morais se realizam com as autorizações documentais que permitem proteger, salvaguardar
e reforçar constantemente as fronteiras dos Estados ditos nacionais e que, em si mesmas,
controlando seus trânsitos, fazem do refúgio uma prática possível de governo.

Os encontros dos sujeitos com o Estado são também encontros com suas fronteiras,
conforme Trouillot (2001). Essas fronteiras, materiais e simbólicas, não apenas controlam
os trânsitos externos, mas ajudam na sedentarização interna de populações em
determinados lugares. Para esse autor, o Estado pode ser identificado mais por meio desse
tipo de efeitos do que em lugares precisos e estáticos das instituições governamentais
nacionais. Já vimos como, nos exercícios de seleção de candidatos no Equador, se colabora
simultaneamente a reforçar a ideia de soberania do Brasil e se constrói uma fronteira que
somente pode ser atravessada com os salvo-condutos documentais que concede o Estado
brasileiro.

Talvez com essas práticas de reassentamento fiquem mais claros os efeitos de isolamento,
identificação, legibilidade e especialização dos que tratou Trouillot em relação com o
estado (2001, p. 126). Já que esses efeitos, como visto no caso do reassentamento,
produzem sujeitos individualizados embora realinhados em coletividades passiveis de
serem pensadas como grupos homogêneos, sobre os quais é produzida uma linguagem e
um conhecimento que permitem seu governo, assim como as ferramentas teóricas e
empíricas que classificam e regulam essas coletividades. Tudo isso, por meio da criação de
limites e jurisdições que colocam os refugiados dentro do espaço nacional, dentro espaço
humanitário, dentro de determinadas comunidades locais e sob a jurisdição de
determinados postos administrativos.

Examinarei com mais detalhe alguns dos procedimentos que fazem parte desses processos
descritos. Especialmente, abordarei a entrada dos sujeitos solicitantes ao registro do
Estado-nação por meio da interação com a Polícia Federal. Do mesmo jeito, descreverei “a

175
entrevista” realizada com os agentes da tríade e analisarei os pressupostos que lhe são
associados a essa produção narrativa.

176
TERCEIRA PARTE. Narrações, silêncios e segredos
[…] Entonces mira, el mismo rollo 7 veces con las mismas entidades, entonces
¿ellos qué quieren? Saber si tú te equivocas o no te equivocas, si tu padre murió
o no murió, que yo no le encuentro a eso sentido. Si yo tengo una herida de bala
aquí, tengo la cicatriz, si mi papá ya murió, tengo el recorte de la prensa de cómo
murió. Si tengo el certificado de defunción de cómo murió ¿esa historia me la
estoy inventando yo? ¿Traigo a mi mamá de 63 años aquí a sufrir en ônibus?
Porque es que andar en ônibus no es fácil, yo creo que estos funcionarios no han
hecho el recorrido que yo hice en ônibus. Yo creo que ellos pegan el avión, van a
Rio de Janeiro en avión a sus vacaciones y se sienten bien, chévere, bacano, rico
y sabroso. Yo quisiera saber si ellos van a Colombia. A ver si el consulado
colombiano me regala un tiquete para dárselo a las funcionarias del Acnur y
decirles: “Vea vayan a Colombia, paseen y vuelven ¡pero en bus! ¿A ver si van
en ônibus? ¿Tú harías ese recorrido? […] Entonces yo te hago una pregunta ¿qué
perfil busca Brasil para que me den a mí los documentos? ¿Qué tipo de perfil
quieren que sea yo? ¿Por qué tanta demora? ¿No dicen que las computadoras
modernizan y simplifican y aceleran una documentación o una diligencia?
¿Entonces por qué les veo tantas computadoras tan bonitas? [ellas] tan bien
vestidas, bien elegantes, bien guapitas, bien bonitas, bien súper chéveres ¿y las
condiciones de todos los que estamos a través de esa reja? Que más bien parece
un centro carcelario. Nosotros nos sentimos incapacitados, impotentes […] (José
Alberto, solicitante de refúgio)

5. Quinto Capítulo
Regimes narrativos exaustivos e a verdade do sujeito na “história”
Como visto, a distinção que é realizada no universo institucional do refúgio entre
refugiados reassentados e refugiados espontâneos engendra diferenças importantes nas
formas em que as pessoas chegam ao país, nos benefícios a que têm direito, na relação com
os outros refugiados e com os agentes de refúgio, nos processos de seleção e
reconhecimento e na percepção subjetiva que as pessoas têm sobre si mesmas e sobre suas
experiências de vida. No caso das pessoas transferidas ao Brasil de outros países, sua
situação de refugiadas previamente reconhecidas lhes exime, por exemplo, de ter de
comprovar, mais uma vez, seu “fundado temor de perseguição”. Nesse sentido, serão
dispensadas no Brasil de narrar novamente o que é referido tanto pelos agentes do refúgio
quanto pelas pessoas administradas, como “a história” que fundamenta sua solicitação:

E daí chegavam os históricos das famílias ou dos indivíduos, alguns chegavam já


traduzidos, outros em inglês, outros em espanhol, e daí a gente ia trabalhando os
casos, conhecendo um pouco pelo menos ou por cima do que aconteceu [...]
somente se as pessoas quisessem contariam para a equipe o que aconteceu, para
não fazer com que elas passassem pelo trauma de novo. A gente tinha a história
oficial do que tinha sido passado pelo Acnur e a gente trabalhava em cima dessa
história. (Ex-agente de reassentamento)

No caso dos refugiados reassentados, o Acnur já tem “uma história oficial” que lhe
permite a seus agentes realizar a transferência das pessoas, sem a desconfiança que

177
engendram os solicitantes que, nos termos dos agentes, “ainda não têm uma história”.
Nesse sentido, a ideia de Simmel (2009, p. 226) sobre a confiança, segundo a qual a posse
de todo o conhecimento sobre o outro poria fim à necessidade de confiar, serviria para
entender uma parte dessa relação regida por um grau menor de suspeita sobre os sujeitos
reassentados. As práticas de governo do Acnur estão longe de permitir um conhecimento
profundo de todos os aspectos da vida das pessoas que administra. Contudo, no caso do
reassentamento, pode se afirmar que, pelo menos suas agências parceiras, possuem a
informação que lhes interessa para produzir e assumir a experiência de vida da pessoa
como uma história legítima de refúgio. Assim, quando os agentes do refúgio já sabem
“tudo” (que lhes interessa) dos reassentados, as pessoas podem decidir se vão contar
novamente ou não a produção narrativa por meio da qual obtiveram o estatuto do refúgio.

Considero que, se o fato de as pessoas serem já reconhecidas como refugiadas evita que
seja ativada a desconfiança dos agentes, é porque existe uma intenção por parte das
autoridades brasileiras de expressar publicamente a confiança no processo por meio do
qual essas pessoas foram reconhecidas como refugiadas. Essa relação de menor suspeita é
a expressão de uma maior confiança, não nos sujeitos, mas nos mecanismos técnicos do
Acnur – que garante os processos de reconhecimento de refugiados tanto no Brasil quanto
no Equador – assim como nas autoridades equatorianas que reconheceram tal status.

Essa diferença na exigência da narração, ou do que se espera saber com ela, não quer dizer
que as pessoas reassentadas não tenham sido submetidas a exaustivos exercícios de
narração e de uma suposta reconstituição de sua “história”. Tal como discutido na parte
dedicada aos processos de refúgio, as práticas de gestão de populações refugiadas utilizam
a ideia das fronteiras nacionais para sua ação, mas as atravessam com movimentos
organizados e legitimados de tal jeito que, simultaneamente, as reforçam. Em outras
palavras, o processo de uma pessoa reassentada no Brasil começa com seu reconhecimento
como refugiada no Equador e somente é válido com a precondição dessa declaração e com
a ativação de mecanismos legais que aprovem a transferência das pessoas e estabeleçam as
condições de sua efetivação. Isso para não falar na expulsão dos sujeitos da Colômbia e de
seu frequente reconhecimento prévio como “desplazadas” ou como “vítimas”, segundo as
categorias do governo nacional colombiano ou do Acnur. Essa expulsão da Colômbia,
ainda que seja o requisito fundamental do refúgio e do posterior reassentamento, é o

178
fragmento do processo que aparece e desaparece da narrativa dos agentes do refúgio no
Brasil, segundo os aspetos que se queiram iluminar ou obscurecer na apresentação do
programa.

As pessoas com as quais falei, que antes de ser transferidas para o Brasil foram
reconhecidas como refugiadas no Equador ou na Costa Rica, se referiram a essas narrações
e a essas repetições continuamente solicitadas, tal como o fizeram os refugiados
espontâneos e solicitantes que ativaram seu processo diretamente no Brasil. Além de José
Alberto, outras pessoas falaram de maneiras diversas sobre essas exigências de iterações
narrativas que demandaram, além disso, versões minuciosas e totais:

Le piden a uno que cuente todo, de cosas que uno ya ni se acuerda. (Alba,
reasentada)

[…] Sólo datos y que escribiera... Me pusieron a escribir todo, toda la... O sea, el
porqué me vine, que lo escribiera. Y lo mismo dije en la PF. Entonces me dice
un paisano que es lo mismo, que el 11 que me vuelvan a preguntar tengo que
decir lo mismo que dije, que he dicho en todas las veces. Pues porque no puedo
cambiar el contexto porque entonces van a decir que estoy mintiendo […].
(Santiago, solicitante)

Entonces eso era: cuente la historia y cuente la historia y cuente la historia. Yo


ya estaba que me la ensayaba de tanto contar lo mismo. (Edna, solicitante)

[…] Y entonces, entrevista va, entrevista viene. Muy fuertes. Muy fuertes porque
son entrevistas con muchas personas y en muchos lugares y son con entidades
diferentes, que siempre te preguntan lo mismo. Entonces hay que comenzar
desde la A hasta la Z. Comenzar muchas, muchas veces y yo salía con mi cabeza
así, llegaba con dolor de cabeza. (Juan Felipe, reasentado)

[…] Eso es recontar mil veces la historia. Y hablar es sacar dolores, cada vez se
saca un dolor diferente a veces bueno, a veces malo. (Victoria, refugiada)

Podemos dizer então que a diferença entre refugiados reassentados e espontâneos não
consiste em que uns devam contar sua “história” e os outros não. A diferença reside em
quando e onde é contada, assim como aquilo que “deve ser contado” ou o que se “espera
saber” segundo o momento do processo no qual o sujeito se encontra. Quando se trata de
uma candidatura de reassentamento, os agentes da Missão de Seleção já não pretendem
conhecer os motivos pelos quais as pessoas solicitaram refúgio. Nesse caso, a história
solicitada vai ser uma que consiga explicar o porquê da “não integração efetiva no primeiro
país de asilo”. Segundo alguns agentes que participaram nas missões de seleção, espera-se
saber se a não integração foi responsabilidade do sujeito ou culpa das condições
“objetivas” que teve de encarar.

179
De qualquer forma, para terem sido selecionadas como candidatas ao programa de
Reassentamento Solidário, as pessoas tiveram de repetir tanto a narração de seu êxodo para
que fossem reconhecidas como refugiadas no primeiro país de asilo quanto aquela que
explicaria sua “falta de integração”. Essas narrações, segundo as pessoas com as que falei,
foram feitas com uma multiplicidade de agentes: assistentes sociais, psicólogas e
advogadas das ONGs parceiras do Acnur no primeiro país de asilo, assim como com
funcionárias diretamente vinculadas a essa agência e/ou, por vezes, com o pessoal das
chancelarias que concede os vistos de refúgio e serve de ponte entre as pessoas e o Acnur.

Aos solicitantes espontâneos de refúgio lhes é pedido, desde o momento em que ativam o
processo, demonstrar que existe um fundado temor de perseguição. Essa expressão
discursiva, registrada nas normas internacionais e na lei brasileira, é a base jurídica do
estatuto do refúgio. Continuamente evocada pelos agentes da tríade, essa fórmula é
também a base moral que lhe sustenta e uma poderosa justificativa para sua existência. A
fim de identificar esse fundamento, do início do processo e nas suas diversas etapas, é feito
um apelo à palavra do solicitante que funciona como o combustível que ativa um
dispositivo de busca dessa “verdade” desejada. Valendo-se de diferentes formatos e estilos
narrativos, que vão de formulários com campos preestabelecidos, passando por declarações
escritas, até a narração verbal extensa, supõe-se que, na produção oral e textual do sujeito,
serão encontradas tanto suas verdades quanto suas mentiras a respeito de si próprio e da
sua história de temor e perseguição.

A obtenção de uma suposta verdade do sujeito por meio de sua palavra, exigida e
engendrada em cenários e relações controladas, condensa outra grande parte dos
pressupostos que estão na base das práticas de governança de populações produzidas e
administradas como refugiadas96. Proponho, conforme a análise de Foucault (1994; 1981)
sobre a questão da verdade, que esses exercícios não consistem na possibilidade do
conhecimento interior do sujeito, mas na produção de uma verdade a partir de uma relação
com o exterior, com o mundo social; nesse caso, com o mundo institucional do refúgio.

96
Na segunda parte da tese, foram discutidas outras formas de gestão igualmente importantes para a
produção e a administração de refugiados. Especialmente, discutiu-se a fixação de populações errantes por
meio de postos administrativos.

180
O procedimento genealógico que propõe esse autor sugere que essa busca pela verdade é
um processo, um ritual que produz um conhecimento como verdadeiro. Enquanto tal, essa
produção precisa de lugares determinados, de encontros, de cenas controladas nas quais um
discurso pode ser enunciado e construído como certo por outros sujeitos qualificados e
legitimados para fazê-lo. Com a mesma inspiração foucaultiana, proponho pensar a
“história” que é exigida dos solicitantes como uma confissão/depoimento (FOUCAULT,
1981; 1977). Os solicitantes devem produzir, a partir deles mesmos, um discurso de
verdade que, ao mesmo tempo, é uma entrega ao outro, uma renúncia à sua própria
produção de si mesmo para conseguir, nesse caso, não o perdão como propõe Foucault,
mas o reconhecimento.

Ainda conforme Foucault, entre a “história” que é produzida no momento da entrevista de


Cáritas e o sujeito que é objeto dessa história (o solicitante), existem necessariamente
distâncias e diferenças. Isto é, a produção da confissão de si mesmo nunca é igual a si
mesmo, de modo que uma desconfiança instala-se. Não só o sujeito em relação a sua
confissão pergunta-se por essas correspondências, mas as advogadas e demais funcionárias
das ONGs procurarão identificar uma relação de coerência entre o sujeito e sua confissão.
Tanto o que foi contado – ou confessado – na entrevista quanto o que não foi dito são
elementos capazes de criar segredos que agem como potenciais incoerências. O que foi
contado faz também que os solicitantes – e seu processo – só existam como posse e
conhecimento dos outros (as advogadas, os agentes da PF, os delegados do Conare, etc.).

Levando em conta esses elementos, proponho, como forma de trançar os múltiplos fios que
confluem nessas práticas, pensar as exigências da palavra e esses regimes narrativos
exaustivos em relação a, pelo menos, três aspectos intimamente relacionados. Em primeiro
lugar, a desconfiança no sujeito solicitante de refúgio e a procura por uma “verdade” para
ele mesmo e para a comunidade de acolhida. Em segundo lugar, as práticas e fórmulas com
as quais se legitima o refúgio como a ação adequada sobre as populações que se encontram
em um êxodo motivado pelo sofrimento, legitimando, junto com ele, o regime do nacional
e o poder do Estado para regulá-lo e administrá-lo. Enfim, a importância das histórias
pessoais e a singularização das experiências dos sujeitos integrantes de grupos de
refugiados ou solicitantes, produzidos em outros momentos como coletivos amorfos e
homogêneos. Em outras palavras, interessa-me destacar que os regimes narrativos no

181
contexto do refúgio de populações no Sul e no Sudeste do Brasil, além de serem
tecnologias de subjetivação, estão também profundamente relacionados com processos de
veridicción97, legitimação e individualização.

5.1. Verificar, singularizar, legitimar: um temor fundado, uma história detalhada,


uma solução adequada

A desconfiança sobre os sujeitos que se encontram como potenciais destinatários da


distribuição de bens, materiais ou simbólicos, está longe de ser uma exclusividade do
espaço institucional do refúgio brasileiro. Presente como elemento constitutivo de muitas
das relações sociais de “beneficência” que foram se configurando como sistemas de
assistência estatalizados (DE SWAAN, 1992), a desconfiança parece caracterizar o
sentimento para os sujeitos que se relacionam em uma situação de desvantagem
econômica, social e simbólica em relação não apenas à sociedade de doadores sociais ou
econômicos mas aos funcionários que decidem e regulam a entrega de tais bens.

Contudo, é possível identificar várias desconfianças específicas, expressas ou potenciais,


que se articulam com o sujeito que solicita refúgio ou que é candidato ao reassentamento,
sejam essas sentidas por ele ou em relação a ele. Podemos partir, por exemplo, da
possibilidade de que a pessoa tenha passado por experiências violentas que se
acompanhem da erosão da confiança (DANIEL; KNUDSEN, 1995, p. 1) a respeito de
outras pessoas de sua localidade, a respeito do Estado-nação ou da comunidade (dos quais
ele se sentia parte), dos diversos exércitos que participam das guerras e dos conflitos, de
sua possibilidade de ser reconhecido como um refugiado e até mesmo da existência de seu
próprio futuro. À medida que os processos de solicitação de refúgio avançam, outras
desconfianças vão se somando, por exemplo, aquela dos agentes que realizam a seleção e

97
Utilizo veridicción, no sentido proposto por Michel Foucault (1994), como as articulações que permitem
que alguns enunciados sejam submetidos ao escrutínio da verdade ao da falsidade. Nas palavras do autor,
“(…) la cuestión es también, y al mismo tiempo, determinar bajo cuáles condiciones algo puede llegar a ser
objeto para un conocimiento posible; cómo ese algo ha podido ser problematizado como objeto por conocer;
a cuál procedimiento de partición ha podido estar sometido para desprender la porción considerada
pertinente. Se trata, por lo tanto, de determinar su modo de “objetivación”, el cual, a su vez, no es el mismo
para cada tipo de saber del que se trate. Esa subjetivación y esta objetivación no son independientes una de la
otra. De su desarrollo mutuo y de su relación recíproca nacen lo que pudiera llamarse los “juegos de verdad”
(jeux de verité): es decir, no el descubrimiento de las cosas verdaderas, sino las reglas según las cuales, y a
propósito de ciertas cosas, lo que un sujeto pueda decir queda sometido a la pregunta por lo verdadero o lo
falso. En resumen, la historia crítica del pensamiento no es ni una historia de las adquisiciones ni una historia
de los ocultamientos de la verdad. Es la historia de la emergencia de los juegos de verdad; es la historia de las
“veridicciones” (veridictions) entendidas como las formas según las cuales se articulan, en un cierto dominio
de cosas, discursos susceptibles de ser enunciados como verdaderos o como falsos”.

182
estabelecem critérios e méritos para o reconhecimento e (como visto na primeira parte)
constroem outras categorias suspeitas e contaminantes no processo de busca pelo
“verdadeiro refugiado”.

Também podemos pensar na habitual desconfiança dos nacionais do país de acolhida a


respeito das razões do êxodo e da legitimidade da estadia dos refugiados e no receio
expresso por e para outros solicitantes que se tornam concorrentes pelos recursos quase
sempre escassos. Podemos tratar dessas e outras desconfianças a partir da sugestão de
Daniel e Knudsen (1995, p. 1) quando afirmam que a desconfiança a respeito da situação
de refúgio torna-se uma forma de estar no mundo98. O mundo cotidiano das pessoas, que já
foi transformado com o êxodo, torna-se um estado marcado pela desconfiança no momento
de entrar no universo institucional do refúgio. Paradoxalmente, boa parte dessas
apreensões deve ser conjurada para poder obter os supostos benefícios dessa nova forma de
habitar o mundo.

Nas práticas de seleção e classificação de refugiados, a desconfiança adota um caráter


particular. Alguns autores apontaram, com clareza, que uma boa parte das suspeitas sobre
os refugiados se inscreve na arena dos nacionalismos, ou aquilo que Malkki (1995)
chamou “a ordem nacional das coisas”. Fassin (2010), D’Halluim (2012) e Good (2006),
por exemplo, apontaram a suspeita que recai sobre os solicitantes de refúgio como uma
característica presente nos países – geralmente ricos – em que o êxodo maciço de
populações presentes em outros lugares do mundo transforma-se em um fluxo menor e
muito controlado de solicitantes de refúgio. Essas pessoas são usualmente percebidas como
sujeitos que querem tirar proveito de uma suposta hospitalidade nacional ou como
migrantes econômicos que se apresentam como se fossem vítimas de perseguições
(FASSIN, 2010, p. 151).

De outra parte, se a distribuição de benefícios sociais para os “nacionais” presume-se –


pelo menos a princípio – como uma prática legítima em função do pacto redistributivo de
cada “unidade nacional”, o mesmo não acontece com os estrangeiros. Para esses últimos, o
98
Daniel e Knudsen (1995, p. 4-6) propõem entender as palavras em inglês trust e mistrust como conceitos
que ajudariam a explicar “formas de estar no mundo” que modificam a experiência dos sujeitos e suas
possibilidades de interação com outrem. Para eles, essa forma de entender a desconfiança que marca as
relações sociais das pessoas refugiadas, está inspirada tanto no conceito de habitus de Bourdieu, quanto no de
Being in the World de Heidegger.

183
reconhecimento como refugiados não necessariamente traz benefícios econômicos na
forma de desembolsos monetários provenientes dos recursos nacionais ou na forma de bens
de consumo e raramente lhes concede direitos civis similares àqueles dos nacionais99.
Porém, tal reconhecimento lhes outorga o direito de permanecer legalmente em um
território nacional diferente ao de sua origem, que, geralmente, está em uma melhor
posição na ordem hierarquizada das nações. Contudo, nem mesmo esse reconhecimento é
automaticamente assumido como legítimo por todos os atores no espaço social nacional e,
usualmente, enfrenta poderosos detratores. O governo das populações produzidas como
refugiadas também cumpre esse trabalho de legitimação dos sujeitos que entrarão no
território nacional como refugiados e da própria figura do refúgio, como a forma adequada
para que isso aconteça sem prejudicar a sociedade de acolhida.

Nesse sentido, assim como as imagens das guerras ou perseguições que, segundo os
agentes de refúgio, originam os êxodos, também as diferenças planetárias entres países
pobres e ricos – e suas representações – configuram boa parte da disparidade
socioeconômica e simbólica com que as identidades nacionais são percebidas e negociadas
entre solicitantes de refúgio, agentes de Estado, migrantes compreendidos em outras
categorias e nacionais brasileiros. Nessa negociação do refúgio, como descrito por Sayad a
respeito da imigração100, o status do país é também o status do imigrante (1991, p. 66).
Portanto, essas disparidades globais e suas interpretações locais – sempre relacionais e
contextuais como bem mostrou Piscitelli (2013) em seu trabalho sobre brasileiras nos
mercados transnacionais do sexo – constituem também parte do material com o qual são

99
Vale a pena lembrar o caráter perigoso que representa a figura do estrangeiro e, particularmente, aquela do
migrante cujos direitos não são assumidos como legítimos no país de acolhida e que encarna uma identidade
que, por definição, é despossuída de direitos em virtude de seu movimento. Giralda Seyferth abordou,
magistralmente, diferentes aspectos dessa tensa relação entre a qualidade de estrangeiro, a migração e os
nacionalismos, nos lembrando de que “o estrangeiro, em particular o imigrante que se estabelece num outro
país sujeito a legislação específica, restritiva, e sem direitos plenos de cidadania, por sua condição de
estranho, diferente, aparece muitas vezes associada a risco imponderável nos discursos políticos de apelo
nacionalista” (2008, p. 1).
100
Para Abdelmalek Sayad, a imigração pode ser entendida como um sistema dotado de uma lógica e de uns
assuntos próprios que tem lhe permitido se perpetuar (SAYAD, 1991, p. 111). Esse sistema funciona sobre a
base de uma divisão do mundo entre o mundo dominante e o mundo dominado (SAYAD, op. cit., p. 210).
Essa separação tem permitido, segundo o autor, institucionalizar a migração sob a forma de uma oposição
intrínseca entre um mundo da emigração (que tende a se confundir com o mundo do subdesenvolvimento) e o
mundo da imigração (mundo que é identificado com o mundo desenvolvido) (SAYAD, op. cit., p. 112). O
autor sugere que, segundo a lógica desse sistema, o mundo dominante política e economicamente só produz
verdadeiros turistas e estrangeiros, enquanto o mundo dominado só produziria imigrantes, potenciais
clandestinos e falsos turistas (SAYAD, op. cit., p. 270). No caso do refúgio contemporâneo, poderíamos
agregar que o mundo dominado produz simultaneamente “refugiados” e “falsos refugiados”.

184
construídas as desconfianças sobre os solicitantes desse bem raro no qual tem se tornado o
refúgio (FASSIN, 2010).

No caso dos colombianos solicitantes de refúgio no Brasil, considero que os agentes do


refúgio com os quais eles se relacionam, além de operar sobre a base discursiva e
iconográfica de guerra e carência (que foi discutida na segunda parte da tese) operam
também com a ideia de que o Brasil é superior em relação ao país de origem ou dos
primeiros países de refúgio. Se os agentes brasileiros do refúgio não expressaram, em suas
conversas e entrevistas comigo, sentir uma grande diferença cultural ou simbólica em
relação às pessoas colombianas – o que, de fato, aconteceu a respeito de pessoas de outras
nacionalidades como palestinos, afegãos, haitianos – no momento de passar sua reflexão ao
plano nacional, frequentemente compararam o Brasil com as nações europeias ou com os
Estados Unidos. Nessa comparação, mesmo reconhecendo que essas outras nações podiam
representar maiores vantagens em termos socioeconômicos para os solicitantes, apontaram
para a superioridade da “abertura brasileira” em oposição à política repressiva de
“fechamento de fronteiras” dessas nações mais poderosas. Ao contrário, as comparações
com os outros países da região, que realizaram esses agentes, foram feitas para apontar, em
termos quase civilizatórios, os aspectos negativos do que usualmente chamaram de “os
países latinos”. Isso quer dizer que, enquanto o Brasil foi apresentado como tolerante,
respeitoso das diferenças, multicultural e democrático, a Colômbia e o Equador foram
continuamente aludidos como países violentos, machistas, homofóbicos e incapazes de
proteger seus cidadãos, localizando-os num quadrante temporal muito mais próximo da
barbárie do que da civilização.

Os agentes do refúgio também evocaram, amiúde, a informação que tem circulado


internacionalmente nos últimos anos sobre o Brasil, colocando-o no sexto lugar das
melhores economias mundiais, salientando seu poder dentro do grupo BRICS (Brasil,
Rússia, Índia, China e África do Sul), elogiando sua capacidade de geração de emprego
relacionada com os megaeventos que sediará101 e, em geral, promovendo sua imagem
internacionalmente. Usualmente, além disso, evocando também a noticiada crise na
Europa, que não só estaria se fechando à imigração como continente, mas expulsando seus

101
A pesquisa de campo foi realizada entre os anos 2011 e 2012, período de grande expectativa pelos
benefícios econômicos que traria a realização no Brasil da Jornada Mundial das Juventudes Católicas em
2013, a Copa Mundial de Futebol em 2014 e as Olimpíadas em 2016.

185
próprios nacionais por falta de garantias sociais e econômicas, em contraste com um
suposto caráter historicamente hospitaleiro do Brasil. Uma funcionária de Cáritas me dizia
a respeito:

[...] Ah, por que é que eles escolhem Brasil? E por que é que eles vêm para São
Paulo? não há uma... a gente não tem aqui um levantamento, nem questiona eles
sobre isso. O que a gente ouve é que eles... Primeiramente, é que o Brasil nunca
foi tão conhecido internacionalmente, como tem sido agora. Disse-se a sexta
potência econômica, não é? Então, as pessoas vêm atraídas por isso e pelo Brasil
ser um país acolhedor, em relação às suas diversidades, de ter questões de
homossexuais, o país o aceita. Então, eles entendem que o Brasil é um país
acolhedor, aceita bem as diferenças e, por isso, pelo geral, eles escolhem o
Brasil. São Paulo, talvez eles escolhem por saber que São Paulo é uma metrópole
e tal e tal. E vêm para São Paulo, mas não porque, por outra razão específica. É
isso, de ver que o Brasil é a bola da vez, que vai ter trabalho porque estão
esperando a Copa do Mundo, estão esperando as olimpíadas, grandes eventos,
grandes construções de usinas, Belmonte, grandes eventos, não é? Isso é um
fator, assim... Shows internacionais, que antes não tinha, agora têm, traz muita
gente, depois não volta, o próximo ano teremos a Jornada Mundial da Juventude,
vem o Papa... Então, a gente tem percebido isso. Alguns comentam: “Ah, que vai
ter copa então tem trabalho, as olimpíadas”. E o Brasil acolhe bem, aqui não tem
problema de diversidade, de ter racismo. Não. Até tem, mas não é como nos
países de... então, por isso, eles escolhem o Brasil, por ser acolhedor.

Para alguns dos agentes do refúgio essas informações sobre o Brasil eram somente
propaganda. Para outros, ao contrário, era um reflexo real do poder que o país estaria
alcançando mundialmente. Apesar dessas diferenças, a maioria coincidiu em que essa
informação estava atraindo cada vez mais pessoas ao território nacional. Para alguns, seria
necessário então redobrar a vigilância na hora de selecionar os refugiados perante o
incremento de migrantes econômicos ou, então, que o Brasil “pagasse o preço” de sua
nova posição no mundo:

[...] Brasil quer ocupar um lugar de destaque na política internacional atual e


todo mundo sabe que quer uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU [...]
esse destaque tem um preço que tem que ser pago. E aí o Brasil tem que começar
a receber mais pessoas [...] até porque o Programa de Reassentamento ajuda na
construção dessa imagem internacional do Brasil que se quer mostrar.

[... há uma] preocupação por deixar para os refugiados uma visão clara dos
problemas do Brasil antes de vir para cá, para eles não irem pensar que é um
paraíso, especialmente pela propaganda da economia aquecida do Brasil e do seu
crescimento que está passando mundo fora. Nem os EEUU são um paraíso.
“Vocês vão com os mesmos direitos que um brasileiro tiver, vão protegidos, só
que vocês têm que se fazer a vida da mesma maneira que os brasileiros fazem e
se adequar.” Porque a cultura latina é muito machista, e os homens não querem
que as mulheres trabalhem, é lá [no Brasil] é muito diferente, mulher tem que
trabalhar. A gente tem muita preocupação com isso, o Brasil é um país de
oportunidades, as oportunidades estão lá, mas vocês têm que agarrar.
(Coordenadora da ONG do Programa de Reassentamento Solidário)

186
Além desse posicionamento das hierarquias nacionais, vale a pena lembrar que, segundo
Sayad, no discurso da migração – tanto quanto naquele do refúgio – inclusive os “mais
hostis” apelam às boas intenções ou bons sentimentos e aos interesses simbólicos que lhes
associam (SAYAD, 1991, p. 66). Essa formulação bondosa que Sayad chamou de
“economia da paixão nacional” (1991, p. 207) reforça o sentido espacial do bem prezado
do refúgio. Um engano de um “falso refugiado” não somente provocaria um dano
econômico mas um estrago moral na sociedade de acolhida, assim como o questionamento
da eficácia dos agentes e das políticas encarregadas de selecionar as pessoas. A exigência
da “verdade do sujeito” é também uma exigência de se adaptar a uma suposta “verdade
nacional”, segundo a qual somente são recebidas as pessoas que podem oferecer em troca
sua dor e sua gratidão verdadeiras, pois seria esse o preço de seu pertencimento à
sociedade em nome da qual esses sofrimentos são administrados.

As possíveis vantagens econômicas para os refugiados deveriam ser simplesmente efeitos


derivados da permanência no país e nunca seu objetivo ou a motivação da entrada. Se,
durante o processo de integração, espera-se que os refugiados sejam produtivos, consigam
meios de se sustentar e são mostrados os casos de sucesso econômico; no momento da
seleção, ao contrário, a constante menção aos aspectos financeiros, o desejo manifesto de
arrumar emprego e de “progredir economicamente”, costumam prejudicar a possibilidade
de aceitação:

Em quase todos os pedidos de refúgio de colombianos, eles escrevem quase


todos “eu não tenho problemas com a justiça do meu país e eu estou disposto a
trabalhar” o que é interessante. Porque, às vezes, eles começavam o relato
falando isso “eu sou muito trabalhador, eu quero trabalhar” e eu até chamava a
atenção deles porque isso pode significar que eles sejam interpretados como
migrantes. (Advogada da Cáritas)

Também Knudsen (1995), em seu trabalho com refugidos vietnamitas na Noruega,


estabeleceu um vínculo entre as exigências narrativas e a desconfiança que recaía sobre os
solicitantes de refúgio ou os candidatos a reassentamento, vistos como migrantes
potenciais. Segundo o autor, os refugiados com os quais ele trabalhou descreveram a
sensação de que a informação que eles forneciam era constantemente verificada, tanto nos
campos de refugiados quanto no momento de sua chegada à Noruega, onde eram
novamente entrevistados (KNUDSEN, 1995, p. 23). De maneira similar como acontece no
universo institucional brasileiro, as repetições constantes e os múltiplos formatos para o

187
registro das histórias e os relatos tornam-se uma forma para verificar, por meio do
contraste, se as pessoas estão dizendo sempre o mesmo, sem cair em repetições mecânicas,
pois essas também geram suspeitas. As incongruências, ou simples diferenças entre as
múltiplas versões que devem oferecer as pessoas, costumam ser interpretadas como
tentativas de enganar os funcionários para obter benefícios desmerecidos.

Algumas funcionárias do Acnur e do IMDH queixaram-se dessa visão que denominaram


de “policiesca” e afirmaram que esta era adotada mais pelas funcionárias entrevistadoras
do Conare do que pelas advogadas das ONGs. Já entre as advogadas da Cáritas, houve
diferenças na forma de interpretar os exercícios narrativos, apesar de que todas recebem o
mesmo treinamento técnico do Acnur e trabalham com base nas mesmas pautas de
elegibilidade. Enquanto algumas argumentaram a favor do critério de credibilidade do
sujeito, baseado tanto na coerência e congruências de suas versões quanto na
emocionalidade expressiva que, segundo elas, deve acompanhar cada narração; outras, ao
contrário, o criticaram na medida em que deixava grande parte da decisão baseada no
critério da entrevistadora sem uma forma de comprovar o relato. Inclusive as mais críticas
dessa forma de seleção reconheceram que a narrativa e a congruência das histórias são a
base do processo brasileiro para julgar e eleger os refugiados espontâneos.

Permito-me apresentar, em paralelo, fragmentos de dois encontros diferentes com duas


advogadas da Cáritas, encarregadas de entrevistar os solicitantes espontâneos de refúgio.
Parece-me que ilustram as diferenças apontadas sobre o critério das advogadas e que, além
disso, servirão como base para acompanhar a discussão sobre outros aspectos que serão
apresentados mais adiante neste mesmo capítulo.

188
Quadro 2

Advogada 1 Advogada 2
A pessoa chega aqui e conta a história dela. Há [...] Você tem que ter visto que o solicitante de
várias formas de eu avaliar a história dela ou a refúgio em geral, ele não apresenta nenhum
veracidade da história dela. Uma delas é a forma documento. Ele é perseguido, mas ele não tem
como ela está me contando isso; mulheres que nenhum documento, às vezes ele nem tem o
sentam aqui e contam que elas foram estupradas documento próprio. E a tradição do refúgio, a lei,
por uma milícia intera. E aí, a pessoa para me ela não exige que você tenha. Isso não é condição
contar isso, o primeiro é que é difícil para eu para você conseguir o refúgio.
contar isso, se ela chegar e bater um papo aqui Então, na maior parte dos casos, ele é julgado com
como a gente está batendo e falar: “Ah é que eu fui base em narrativa.
estuprada por cinco soldados” e eu olho para a cara Aí você vê, o mundo todo tem uma questão sobre a
dela e não tem nenhuma emoção, não tem... E ela credibilidade, do nosso ponto de vista, por
não sabe contar detalhes da história. Eu vou exemplo, a credibilidade, ela tem seus limites.
começar a duvidar da história dela e vou começar a Quer dizer, eu posso analisar se o que ele fala é
fazer outro tipo de perguntas. Já tem acontecido coerente com o que ele já manifestou antes ou se é
isso. Agora, têm pessoas que sentam aqui e é uma coerente com o que acontece no país [...] Por
dificuldade incrível para você arrancar porque exemplo, ele fala, o solicitante de refúgio diz que
existe envolvimento emocional, tem isso que você no país dele existe uma perseguição étnica e eu
olha para a pessoa e você vê o caráter emocional vou confirmar: Existe. Mas, eu não posso analisar
que ela está jogando naquilo que ela está contando e colocar em julgamento a veracidade do que ele
ou a quantidade de detalhes que ela narra sobre fala se eu não tenho como confirmar isso. Eu não
aquilo ali, ou a percepção política, ela vai ter um posso fazer um julgamento moral sobre ele. Eu não
monte de detalhes para te contar, vai ter história de posso julgar se é honesto ou não e acho que esse já
amigos, história de vizinhos, etc. A gente já sabe o é um ponto frágil, hoje no processo de seleção de
tipo de detalhes que a pessoa tem que contar de refúgio.
acordo com a perseguição que ela está sofrendo. E [...] Então, tem também uma questão que a gente
isso faz parte da avaliação sobre o grau de tem discutido muito que é o devido processo legal
veracidade que a pessoa está passando aí na em relação ao processo de refúgio. Ou seja, que
entrevista [...] É claro que esse é um juízo de valor garantias processuais ele tem? Que ele possa, de
próprio, do advogado, mas a gente é treinado para fato, fazer uma boa defesa. Isso para alguns é só
identificar circunstâncias, obter detalhes, um detalhe, mas desde o meu ponto de vista, e não
identificar o estado emocional da pessoa. é só porque eu sou advogado, isso é essencial. A
gente não tem um processo que garanta para eles a
justiça que é necessária.

Um caso que me foi contado por uma das funcionárias do IMDH também ajuda a ilustrar
essas diferenças de interpretação das narrações. Trata-se da história de uma mulher
colombiana solicitante de refúgio que, na versão dos fatos que contou na Polícia Federal,
disse ser perseguida por seu esposo, enquanto na versão contada para a entrevistadora do
Conare e para a advogada da Cáritas, disse ser perseguida por seu amante que, além disso,
era um militar. Essa diferença nas versões foi assumida pela entrevistadora do Conare
como uma mentira e considerada uma razão suficiente para recusar o pedido. Ao contrário,
a funcionária do IMDH que me contou a história e a advogada da Cáritas, que entrevistou a
solicitante, consideraram que era lógico que, diante da Polícia, a mulher não se colocasse
na posição socialmente condenável da “amante”, já que isso poderia prejudicar sua
credibilidade perante o agente que abriu o processo. Também consideraram que omitir,
diante da PF, que seu ex-companheiro sentimental era um militar podia obedecer a um

189
desejo de evitar uma espécie de “solidariedade masculina da categoria” que,
eventualmente, significaria não só anular a importância de seu relato, mas talvez colocá-la
novamente em risco.

A funcionária que reconstruiu esse episódio opinou que parte do problema com as
entrevistadoras do Conare é que eram moças “muito jovens”, sem a experiência de vida
suficiente para entender todas as circunstâncias que estariam em jogo nessas narrações. Por
isso, a funcionária considerava fundamental a participação das ONGs da “sociedade civil”
no processo de reconhecimento do refúgio, já que elas representariam uma posição menos
restritiva, mais em prol dos solicitantes e, acima de tudo, tinham advogadas com mais
experiência tanto profissional quanto de vida.

As explicações do mau ou bom funcionamento dos processos de refúgio já foram


discutidas em outros momentos da tese, mostrando que a mútua inculpação dos agentes
apareceu como uma das variadas formas de fazer existir um algo maior e superior a suas
forças individuais e sua vontade de ação (ABRAMS, 2000; HERZFELD, 1993). Também
foi discutido o papel da Cáritas como “intermediária” – às vezes, indesejada pelos
solicitantes – entre o Conare e os sujeitos. Entretanto, a respeito das narrativas, como
mostra o caso discutido, a subjetividade das entrevistadoras entra no jogo de uma maneira
poderosa. Mesmo que o processo global seja apresentado como algo superior à ação de
cada um dos agentes envolvidos, também é simultaneamente explicado pelos próprios
agentes, em função das características singulares de cada um deles, de suas experiências e
visões sobre o mundo e de suas capacidades no exercício profissional.

Apesar dessas diferenças na avaliação mútua dos agentes que participam nos processos
seletivos, a conclusão comum é que a multiplicidade de narrações exigidas – que, a
princípio, deveria representar uma vantagem para os solicitantes se comparado com outros
países em que não teria o acompanhamento da sociedade civil – pode tornar-se uma forma
de verificar sua palavra. Nessa medida, parece-me que as exigências de escrever, narrar,
preencher formulários, descrever, dar detalhes, contar novamente as mesmas coisas são
processos por meio dos quais a “história” do sujeito vai tomado forma e vai se adaptando –
ou excluindo – aos critérios de verdade que previamente foram estabelecidos para definir a
figura do refúgio. Essas exigências também são processos por meio dos quais se cria uma

190
empatia e uma correspondência entre essas verdades produzidas por meio dos exercícios
narrativos e as “verdades” dos segmentos sociais e grupos populacionais a que pertencem
os variados agentes entrevistadores. O caráter “público” das “políticas públicas” é tingido
de toda a singularidade dos atores que participam do seu planejamento, da sua execução e
da definição de seus contornos cotidianos, com todas as contradições esperáveis entre os
diferentes funcionários e os segmentos aos que eles devem obediência ou dos quais se
sentem parte.

Em outras palavras, as exigências narrativas mostram um duplo jogo em que, de um lado,


se constrói uma continuidade coletiva no processo, marcada pela busca de uma verdade
genérica do refugiado. Nessa primeira parte, o jogo coletivo em que participam os agentes
os desindividualiza e ajuda a criar o efeito de algo superior a eles próprios que estaria
regulando os processos de refúgio. Assim, amalgamam-se os critérios de segurança com os
de atendimento humanitário a serviço da “adequada seleção dos refugiados” como um
processo unificado, como um continuum que oscila entre o humanitário e o securitário,
entre a repressão e a compaixão. De outro lado e, simultaneamente, no processo, são
criadas subjetividades e singularidades por meio das histórias pessoais tanto de agentes
quanto de solicitantes. Nessa singularização, as características pessoais de agentes e
solicitantes, os detalhes da história que vai se construindo nos exercícios narrativos e as
emoções mobilizadas são os elementos-chave tanto na construção da verdade desse sujeito
específico quanto da justificativa de sua presença como refugiado na comunidade de
acolhida. Nessa segunda parte do jogo, a singularidade dos agentes também é mobilizada
como uma explicação sobre a existência de posturas mais rígidas ou mais flexíveis na
seleção dos refugiados.

Por meio da palavra do solicitante, exposta em diversos contextos e formatos, vai se


construindo sua “verdade” e sua “história”; condição necessária para sua singularização e
com ela, conforme Vianna (2013), a possibilidade de identificação, comoção e justificativa
de sua recepção. Os detalhes da dor do solicitante não apenas garantiriam a verdade dos
fatos narrados mas também a qualificação da sua dor como uma dor digna do refúgio. A
esse respeito, Vianna tem apontado, com clareza, que, mesmo que a formalização dos
direitos em políticas públicas suponha a construção de sujeitos relativamente homogêneos,
na vida cotidiana parece se apresentar o movimento contrário de solicitação da minúcia e

191
do detalhe em “narrativas repletas de ‘quando’, ‘como’ e ‘onde’ sofreram violências,
desapareceram ou viram suas vidas ser alteradas, essas pessoas de carne e osso, objeto de
afetos e desafetos, vão sendo tornadas personagens e protagonistas de falas e ações
balizadas pelas gramáticas dos direitos” (VIANNA, 2013, p. 22).

Nos encontros entre solicitantes e os agentes do refúgio, que em diferentes momentos


requerem da produção textual e oral dos primeiros, se dão formas de interação nas quais os
detalhes da experiência dos sujeitos e sua eficácia na mobilização das emoções de quem
escuta são uma parte fundamental. Porém, para o caso do refúgio e para o momento do
processo de seleção, na hora de comunicar uma experiência de perseguição ou sofrimento,
não basta uma narração que mobilize certas emoções no ouvinte. Para conseguir a
legitimação dessa história, sob a forma de um reconhecimento legal como refugiado, é
necessário que a emotividade provocada no agente possa ser construída ou apresentada
como uma emotividade experta, como uma compaixão profissional.

Isso quer dizer que, para além da empatia pessoal com o outro sofrente, o que está em jogo
é a empatia profissional com um tipo determinado de dor e sua capacidade de diferenciá-la
de outras dores comuns. Esse movimento que, reitero, é próprio dessa etapa do processo de
seleção, parece ser a garantia de que a dor das pessoas aceitas como refugiadas seja inscrita
em um espaço considerado público para o qual eles, como agentes especialistas do refúgio,
estão contratados:

Aí quando acaba a entrevista, eu sempre saio com a impressão... de que a


pessoa... Eu sempre acredito nisso ou naquilo... Eu fico com a impressão de que
o caso é positivo. Aí, eu pessoalmente me afasto, deixo um tempo e faço outras
coisas e aí depois eu começo as pesquisas, porque aí já você se distanciou um
pouco, e aí já começa a parte objetiva, porque a parte da história dele é a parte
subjetiva que me envolve um pouco mais. Quando isso já passou, pego a história
dele e faço a pesquisa da informação da região de origem e aí eu vou ver o que
dá. Assim, infelizmente os casos que dão negativo, que a gente tem que dar, a
gente fica assim, meio que se perguntando, puxa... Agora que é o que essa pessoa
vai fazer? Mas, ao mesmo tempo, aí eu penso: eu não posso dar um positivo
porque eu me compadeci, porque as pessoas estavam na pobreza e tal e você têm
que seguir além, porque esse é o meu papel aqui. (Entrevistadora do Conare)

Esses agentes que participam do processo de seleção, também produzidos em um campo de


governança e vinculados pelo próprio campo, são dotados da autoridade e a competência
para interpretar as emoções e os signos que são mobilizados junto com a narração.
Segundo as lógicas do campo institucional do refúgio, a compaixão profissional, diferente

192
da compaixão comum, obedeceria a princípios de objetividade, racionalidade e
competência técnica que a qualificariam e mediariam em seus efeitos. Nessa medida, a
interpretação adequada do sofrimento dos outros também é uma forma de legitimar o
exercício profissional das advogadas, psicólogas e assistentes sociais, inscrevendo esse
exercício no espaço da gestão política. Esses agentes têm a responsabilidade de produzir,
junto com cada sujeito, a verdade singular de si mesmo, que vai construindo, ao mesmo
tempo, a verdade plural dos refugiados, que, por sua vez, vai se incorporando à produção
da grande verdade da nação.

Em outros momentos e etapas do processo de seleção, assim como em outros cenários de


interação, a mobilização da dor é diferente, especialmente quando se busca interpelar um
público mais amplo, ora para mostrar o trabalho humanitário que realizam o Acnur e o
Conare, ora para solicitar recursos ou para “sensibilizar a sociedade de acolhida” sobre a
“realidade dos refugiados”. Nessas situações, o formato costuma ser aquele de
“depoimentos públicos” ou vídeos que contam a história particular de uma pessoa
refugiada, em que todas as minúcias da dor e a dificuldade são expostas em singular para,
porém, representar esse contingente populacional que administram os organismos
humanitários. A história pessoal (ou alguns fragmentos dela) é mobilizada publicamente a
fim de criar empatia entre o público mais amplo, que seria chamado a se comover. A
diferença do passo descrito por Boltanski (1993), segundo o qual, para passar da
indignação para a ação, é preciso a identificação de um culpado e sua posterior denúncia,
nesses cenários de depoimentos de refugiados raramente há culpados singularizados.
Caracterizados como apolíticos (igual à prática do Acnur), esses cenários de apresentação
de histórias obliteram as causas dos êxodos e as violências que os produzem, em favor de
culpados genéricos como as guerras, os bombardeios, os exércitos de homens armados, etc.

Essa característica é um ponto de confluência com o vocabulário da ação católica das


ONGs que representam a sociedade civil, e cujas agentes me explicaram que seu trabalho é
contra “a maldade do mundo”, afinal, um genérico, que, embora moral, também é
apolítico. Assim, conforme Bolstanki (1993, p. 96) nesses cenários, estaríamos no tópico
do sentimento e não no tópico da denúncia, já que, nesse caso, a emoção do público não é
mobilizada tanto com a indignação, mas com a comoção. Não se trata de encontrar o
castigo adequado, mas a solução apropriada, que não é apenas o aporte de recursos, mas o

193
reconhecimento mesmo da condição de refúgio. Esses depoimentos ajudam na legitimação
da restituição dentro da ordem da nação como uma forma, senão de justiça, pelo menos de
uma solução justa para essas pessoas que são apresentadas como precisando do desfrute de
um bem comum que perderam ao serem banidas de seus lugares.

5.2. A verdade em um sofrimento e a mentira migrante

As diferentes formas por meio das quais se busca contrastar as informações que o
solicitante vai oferecendo nos múltiplos formatos de produção oral e textual parecem
evocar os mecanismos do modelo de prova-verdade dos sistemas jurídicos de boa parte das
sociedades chamadas de ocidentais. Embora no Brasil não se tenha adotado um formato
judicial para a avaliação dos pedidos de refúgio, como tem acontecido em outros países do
mundo, a busca da verdade parece ser daquela que Veena Das chamou da “verdade da
Ilustração” (2008, p. 166).

Parte das críticas feitas à verdade ilustrada apontam a ideia de que as narrações permitiriam
uma reconstrução objetiva do passado dos sujeitos graças a que elas seriam obtidas sob as
condições oferecidas por uma racionalidade jurídica que se orgulha de ser objetiva e
tecnicamente infalível. Para conseguir esse propósito de objetivação, são preestabelecidos
tempos, espaços, formatos e pedagogias para a fala que excluem outros formatos de
testemunho e de lembrança, como apontado por Das (op cit., p. 165). Essa concepção de
verdade também tem sido criticada por outros autores que, como Feldman (2002) ou Ross
(2003, p. 162)102, têm mostrado os limites dos projetos de reconstrução histórica que
produzem uma separação arbitrária e supostamente clara de espaços, declarações e
comportamentos público/políticos e privado/domésticos como uma forma de garantir a
racionalidade dos relatos produzidos.

A verdade procurada, no caso dos solicitantes de refúgio no Brasil, está particularmente


relacionada com a pretendida existência no sujeito do temor à sua extinção física ou à
potencialidade circunstancial de que isso aconteça. Contudo, essa extinção tem um caráter

102
A “história” dos sujeitos como resultado da interação entre solicitantes de refúgio e uma multiplicidade de
agentes que estabelecem espaços e pedagogias para a fala está em consonância com a tese de Fiona Ross
(2003) que propõe que nem a lembrança, nem a reconstrução, nem o depoimento são atos neutrais e objetivos
que possam transparentar uma “verdade” da experiência vivida. Segundo a autora: “Testimonies do not exist
intact, awaiting an opportunity for expression, but emerge from interactions shaped by the complex
relationships of class, race, gender and conventions of speech that are always in flux” (op. cit., p. 162).

194
particular, já que nem a miséria, nem a maioria das doenças, nem a violência cotidiana,
nem as catástrofes ditas “naturais” estão incluídas como causadoras de sofrimentos
passíveis de serem transformados em uma condição de refúgio. A identificação dessas
diferentes causas que levaram à saída do país de origem constitui a base da diferenciação
entre um refugiado e um migrante econômico. A fórmula que utilizaram os agentes do
refúgio para se referir aos solicitantes de quem desconfiavam foi a que sugere que se trata
de migrantes econômicos querendo “solucionar sua situação migratória” por meio do
refúgio, relatando falsas experiências de perseguição. As histórias das diferentes pessoas
com as quais falei – que foram contadas em espaços cotidianos diversos e com formatos
igualmente distintos como conversas, bate-papos, festas, jantares, tempo de espera, etc. –
pareciam, porém, contradizer essa ideia.

Algumas das pessoas que conheci durante minha pesquisa já tinham solicitado refúgio em
outros países anteriormente ou se encontravam no Brasil apenas temporalmente enquanto
buscavam os meios para chegar à Europa ou aos Estados Unidos ou, simplesmente,
enquanto “probaban suerte”. A quantidade de processos ativados e inacabados, os
cruzamentos de permissões de estadia em diferentes países e as saídas irregulares me
pareceram uma forma mais de “complicar sua situação migratória” do que de solucioná-
la. Isso, claro, segundo a lógica dos organismos de migração e refúgio para os quais um
mesmo sujeito somente pode apelar à proteção de um único país e não pode ser migrante
em um, enquanto é refugiado em outro. Para algumas das pessoas com as quais falei, que
estavam no que podemos chamar de uma multiplicidade de situações migratórias, isso não
era nem uma complicação, nem uma solução a sua “situação”; eram antes de tudo
estratégias de viagem e mobilidade em meio a controles fronteiriços e migratórios que se
interpõem entre eles e seus desejos, suas necessidades e suas buscas tanto de proteção
quanto de bem-estar.

De outra parte, a separação entre pessoas que buscam simplesmente sobreviver e aquelas
que buscam sobreviver economicamente também não parece ser tão evidente na vida das
pessoas. Em várias das narrações que elas fizeram sobre partes de suas experiências de
vida durante as nossas conversas, as razões expostas como motivos para fugir de uma
região, ou para sair do país, misturaram causas econômicas com explicações políticas da
situação de ordem pública, assim como eventos políticos ou sociais com as condições da

195
vida familiares ou domésticas. Os aspectos da existência dos sujeitos, que os agentes da
tríada tentam separar com tanta clareza, estão em realidade inextricavelmente ligados.
Francisco, por exemplo, contando sobre o primeiro deslocamento forçado de sua família
dentro de Colômbia, me dizia:

[…] Llegó un momento en que se vino una crisis económica muy brava, pero en
medio de la crisis económica era que se estaba cambiando la situación de xxxxx
[nombre de la región de origen], se estaba fortaleciendo el paramilitarismo y
empezaron a matar mucha gente, mucha gente, entonces mis papás se pelearon
feo, estaban que se dejaban y ahí mi mamá decide que nos vamos para xxxxxx
[nombre de la ciudad].

Nesse fragmento, a decisão de múltiplos motivos para abandonar um lugar aparece como
uma fuga do paramilitarismo que estava arrasando a região, como uma separação conjugal
que motivou um traslado e como uma busca de melhorar as condições econômicas
precarizadas no lugar de origem. Todos esses eventos são simultâneos ou, às vezes,
explicativos. Na continuação do relato de Francisco, a ação paramilitar estava
desbaratando as economias locais, a tensão aumentou entre os parentes e os vizinhos, os
afetos se modificaram, as opções de deixar o povoado – antes percebidas como extremas –
tornaram-se a opção mais próxima, etc. Porém, nos formatos de narração exigidos nas
práticas de governança do refúgio, e nas suas formas de interpretação desses relatos,
exclui-se essa possibilidade de expor a multicausalidade dos eventos na vida dos sujeitos.
A produção da história vai exigindo privilegiar somente as causas que possam ser
produzidas com o formato de terror e perseguição que fundaria o medo do sujeito
solicitante. Portanto, selecionando somente alguns dos fragmentos possíveis para lhe dar
um sentido unívoco à história e obliterando a complexa trama de experiências que podem
chegar a configurar um êxodo.

A ideia mesma do fragmentário (do fragmento narrativo, do fragmento da experiência do


sujeito, do fragmento de vida que é privilegiado) é chave nesses exercícios de governança
do refúgio. Lugones (2012) abordou esse caráter agudamente, salientando o modo
fragmentário em que as funcionárias procediam no Tribunal de Menores de Córdoba na
Argentina. Para Lugones, a fragmentação é condição de possibilidade dos exercícios de
poder na medida em que facilita a atuação das funcionárias, permitindo-lhes abordar
situações muito complexas que, de outra forma, teria sido impossível resolver no trabalho
cotidiano (LUGONES, 2012, p. 140). Porém, o fragmentário também é analisado pela

196
autora em outra dimensão que remete à construção mesma da ideia de um processo como
movimento contínuo e como resultado final. Os documentos, as audiências, os relatórios,
que são concebidos como uma totalidade – que, aliás, é apresentada como coerente – são
produzidos a partir de segmentos elaborados e montados em cenários diferenciados com
presenças e ausências igualmente dissimiles de administradoras e administrados
(LUGONES, op. cit., p. 132).

Considero que, nas etapas do processo de seleção de refugiados, particularmente naquelas


que requerem dos exercícios narrativos, também aparecem duas visões diferentes do
fragmentário. Para os solicitantes, a fragmentação de sua vida seria a marca da
impossibilidade de imaginar uma totalidade. Ou seja, na construção de seus limites como
sujeitos solicitantes devem renunciar a algumas de suas formas de existência (econômica,
desejosa, migrante, viageira, aventureira, prazerosa) para conseguir, com sucesso, sua
existência como refugiados (sofredores que têm perdido a vontade sobre seus próprios
movimentos espaciais e existenciais).

Essa violência os divide de tal forma, utilizando a fórmula de Veena Das (2007, p. 5), que
não seria somente o resultado da experiência de perseguição que supostamente todos
devieram passar, mas também o resultado dos processos burocráticos por meio dos quais se
tornam refugiados, já que esses animam e legalizam tal pulverização das pessoas em
fragmentos passíveis de serem encaixados nas categorias administrativas. Aqui aparece
outra leitura do fragmentário, precisamente aquela que é objeto da crítica de Das (op. cit.,
p. 6), que consiste em pensar que os fragmentos são em si mesmos uma parte ou partes de
um todo coerente. Com os fragmentos que vão se construindo e selecionando como
relevantes para a construção de uma história crível de refúgio, os agentes de seleção
constroem a totalidade, imaginada, mas operante, do refúgio e da nova existência dos
sujeitos, em uma forma semelhante à descrita por Lugones (2012).

Essa forma de separar, de fragmentar, que está presente nas práticas de governança, lembra
também as críticas propostas por Zelizer (2009) sobre o que ela chamou de “teoria dos
mundos hostis e as esferas separadas”, como modelos inconvenientes para pensar o mundo
social. Pode-se observar uma coexistência de emoções subjetivas, razões políticas (assim
como emoções políticas e razões subjetivas), economias domésticas, medos, desejos de

197
conseguir um melhor lugar no mundo, etc., tal como apareceu na história de Francisco.
Contudo, a lógica seletiva dos programas de refúgio prefere ver experiências contraditórias
e mutuamente excludentes. Segundo essa lógica “técnica” da seleção, ou se é migrante
econômico ou então se é um refugiado, mas não as duas coisas ao mesmo tempo.

Essa sorte de fragmentação da existência do sujeito também apareceu em minhas conversas


com Santiago a quem conheci na sede de uma ONG numa atividade de socialização para
solicitantes e refugiados. Dias depois num café do centro da cidade, durante uma entrevista
semiestruturada que eu pedi permissão para gravar, ele me fez um relato de sua situação
como solicitante de refúgio, construído com os mesmos elementos daquele que lhes havia
narrado às advogadas de Cáritas e à Polícia Federal. Tempo depois, quando após vários
encontros e conversas ele estava convencido de que eu não trabalhava para o Acnur e de
que também não ia contar nada de nossas conversas para as advogadas da Cáritas, ele
começou a me contar outras experiências da sua vida. Essas outras informações foram
aparecendo em bate-papos informais e, em parte, estiveram motivadas por encontros nos
quais outros colombianos participaram de nossa conversa, oferecendo, sem querer, dados
das viagens precedentes de Santiago. Uma vez, ele me disse que não era completamente
exato que ele não pudesse voltar para Colômbia. Se ele regressasse, não iam matá-lo, como
ele afirmou nas narrações para os agentes de refúgio, mas ele não queria mais morar em
seu bairro, nem em sua cidade.

A situação no bairro de Santiago foi ficando cada vez mais tensa pela confrontação entre
milícias urbanas. Aos moradores lhes foi proibido ir para outros bairros vizinhos
dominados por bandas antagônicas e começaram a extorquir aos pequenos comerciantes,
inclusive à mãe do Santiago que vendia comida na rua. Com a falta de emprego, a situação
econômica foi ficando cada dia mais difícil. Santiago se queixou ainda do controle que as
milícias exerciam sobre a vida privada “Para hacer una fiesta hay que pedir permiso, o
sino hacerla a escondidas con la puerta cerrada y la música bajita”. Tudo isso, somado às
insinuações das milícias, segundo as quais “un hombre joven que había prestado el
servicio militar podía ser un buen miliciano”, terminaram por desesperá-lo.

Santiago não queria que sua filha crescesse nessas condições, me disse, e estava tentando
obter refúgio no Brasil, tal como tinha feito antes – sem sucesso – na Guiana Francesa.

198
Para ele, além disso, a ideia de viajar era atrativa, me disse que gostava da aventura do
caminho, conhecer outros lugares e, em várias ocasiões, zombou de alguns de seus
vizinhos que “sólo viajan si tienen asegurado a donde llegar”. O fato de terem viajado e
de serem pessoas conhecedoras e ousadas foi um tema recorrente em várias das conversas
entre Santiago e outros migrantes em diversos espaços de socialização. Nesses espaços e
nessas conversas, predominantemente masculinos, tive inclusive a sensação de que se
estabeleceram pequenas competições sobre a quantidade e o prestígio dos lugares
conhecidos, as paisagens mais “exóticas” que tinham visitado e as experiências mais
arriscadas ou engraçadas.

Essa dimensão do desfrute, do desejo de viajar, de conhecer e de viver em outro lugar,


como visto na segunda parte da tese, é desestabilizadora e inconveniente nas relações
sociais dos programas de administração e governo que operam com a figura de uma
“vítima” (PISCITELLI, 2013). Mas, mesmo excluindo do relato de Santiago essa alusão ao
desfrute e ao prestigio da migração, o resto de sua narração também poderia resultar
inconveniente para seu propósito de ser reconhecido como refugiado. A descrição de sua
situação no bairro pode ser facilmente comparada com aquela que vivem muitos dos
moradores de algumas das favelas nas grandes cidades do Brasil. Não há, na história de
Santiago, segundo a lógica de seleção de refugiados, uma figura parecida à guerra
massificadora que desloca em bloco populações despossuídas e também não uma
perseguição particularizada contra ele em virtude do que ele pensa, faz ou acredita. A
maldade cotidiana não é ponderada (desigualdade, pobreza, fome, falta de recursos), é a
maldade extraordinária, que tanto desumaniza quanto singulariza os sujeitos (tortura,
destruição de cidades, bombardeios, massacres), aquela que movimenta a bondade
organizada mundialmente na figura do refúgio103.

Uma história que bem pode ser uma história de alguns moradores das periferias urbanas ou
rurais no Brasil dificilmente será considerada como uma história de refúgio nesse mesmo
país. Não surpreende então que Santiago tenha privilegiado alguns elementos nos
depoimentos e nas entrevistas que fez na PF e na Cáritas, compondo, com esses

103
A respeito dessas formas de diferenciação dos sofrimentos que são passíveis de serem levados ao plano
público e redimidos com a ação coletiva nacional e aqueles que não, é impossível não lembrar a pergunta de
Judith Butler a propósito de como certas formas de dor são reconhecidas e amplificadas nacionalmente,
enquanto que outras perdas tornam-se impensáveis e sem dor (2006, p. 16).

199
fragmentos, uma história mais parecida com o perfil solicitado. Suas tentativas prévias de
pedir refúgio, assim como suas conversas com outros solicitantes, refugiados e migrantes –
omitidos, claro, do relato que fez na Cáritas – lhe ajudaram no refinamento de suas
competências técnicas, tanto para a viagem até o Brasil quanto para a elaboração e a
depuração própria de sua história, tentando criar, na interação com esses agentes, um self
mais próximo ao perfil de vítima que é procurado no refúgio.

Se a visão do solicitante de refúgio como um despossuído colabora com a criação do


migrante econômico como uma figura ameaçadora e desestabilizadora do ideal que se quer
construir, ao mesmo tempo revela a fragilidade das bases que sustentam essa distinção.
Apesar dos esforços para separar e distinguir essas duas categorias, ambas são pensadas e
construídas sobre algumas bases comuns. Por exemplo, a mesma advogada da Cáritas que
mencionou a inconveniência de que os solicitantes colombianos falassem em demasia de
seu caráter trabalhador, comentava alguns aspectos dessa predileção pelos estrangeiros que
possam ser força de trabalho, sejam eles refugiados ou não:

[...] Essa diferença, ela vai fazer efeito em outros momentos, por
exemplo, quando a gente vai pensar que, quando ele é aceito como
refugiado, parte da integração, enfim, no dia a dia para além da
elegibilidade, isso certamente vai fazer alguma diferença, inclusive é
inevitável que tenha alguma questão moral envolvida nisso. Mas, além
disso, o que eu acho sempre interessante é o seguinte: que, no Brasil, a
questão do estrangeiro ela está ligada ou a segurança ou ao trabalho, todos
os vistos estão ligados ou a PF ou ao Conselho Nacional da Migração que
pertence ao Ministério do Trabalho. E, para você conseguir um visto pelo
CNIG, obrigatoriamente você tem que estar documentado no Brasil e
você provar que você tem condições de trabalhar.

As categorias migrante e refugiado que se tentam separar com tanto afinco nesse universo
administrativo e moral, parecem, no entanto, ter bases comuns quando são pensadas como
formas administrativas possíveis da condição de estrangeiro. Talvez, a maior similaridade
é que existe uma predileção pelas pessoas que possam oferecer sua força laboral e, por
meio dela, servir aos propósitos nacionais em matéria econômica, mas também no
cumprimento dos propósitos culturais, sociais e simbólicos. Essa interseção complexa entre
esforços de engrandecimento econômico e, simultaneamente, buscas de comprazer ideais
culturais e simbólicos da nação tem sido exemplarmente analisada nos trabalhos de
Seyferth (2011, 2008, 2000). Essa autora também identifica contradições e tensões nos
processos de migração controlada que, ao mesmo tempo em que requeriam a presença de

200
imigrantes, reconheciam neles – ou pelo menos em alguns deles – um perigo potencial para
a consolidação dos diferentes projetos de nação.

O percurso realizado por Seyferth com seus trabalhos por meio de diferentes épocas da
história do Brasil escapa do alcance desta tese, e abordar sua complexidade suporia
construir outro nível de comparação. Contudo, me interessa levar em conta que, nos
diferentes momentos apontados pela autora, em que processos migratórios tem se
apresentado ou tem se promovido, é possível identificar tanto continuidades quanto
rupturas que são úteis para pensar como, quando, por que e quanto se transformaram ou
permaneceram as lógicas que guiam esses processos. Em qualquer caso, lembrar-se do
peso dos interesses econômicos e geopolíticos que, como aponta Seyferth, têm sido sempre
associados à imigração.

Na quarta parte da tese, baseada nos trabalhos de Seyferth, tratarei com mais detalhe de
alguns dos aspectos que representam continuidades nas lógicas que guiam determinados
processos de Estado vinculados à imigração. Por enquanto, apontarei algumas diferenças
nas formas de seleção atuais, em relação aos perfiles ideais dos migrantes em outros
momentos migratórios. Se, atualmente, o fantasma que ameaça o processo de seleção de
refugiados é o migrante econômico, quem é acusado de querer “se passar por refugiado”,
em outra época a relação foi exatamente a inversa. Seyferth (2008, p. 8) apontou que:

no Vale do Itajaí, por exemplo, alguns administradores acusaram os


agenciadores do governo imperial de recrutar imigrantes de forma descuidada,
permitindo o engajamento de revolucionários de 1848 e comunistas.
Reivindicações e manifestações públicas de descontentamento, algumas
resolvidas à força, deixaram em evidência o emigrado por motivos políticos,
acusado de entrar no país disfarçado como agricultor.

A acusação na época apontada pela autora consistia em entrar como refugiado “se
passando por um imigrante”. Apesar dessa notória diferença, que reflete momentos
sociopolíticos também diferentes, a ideia de realizar uma “boa seleção” dos estrangeiros,
que serão recebidos no território nacional, estava presente na época tanto quanto hoje em
dia.

Os textos de Seyferth também têm mostrado a transformação do perfil de imigrante


desejado, segundo os contextos nacionais e os interesses políticos em jogo, assim como as

201
estratégias tanto administrativas quanto jurídicas para conseguir filtrar os indesejáveis.
Esse panorama auxilia o entendimento, na época contemporânea, de que é aquilo que
representa esse perfil de determinados colombianos refugiados – fundamentalmente
reassentados – que permite que sejam construídos como uma forma bem-sucedida de
integração. Sobre esse ponto, voltarei na última parte da tese, é suficiente, neste momento,
advertir que a exemplaridade desse processo de refúgio com colombianos está baseada
tanto nas características de sua integração econômica, quanto na avaliação feita pelos
agentes da sua capacidade de “integração cultural” nas comunidades de acolhida. Tudo
isso sem esquecer que a qualificação especial dos colombianos é possível sempre que
comparada com os processos de refúgio de outras nacionalidades que são percebidas como
alteridades radicais que dificilmente se integrariam, do jeito desejado, à nação brasileira,
ou, em palavras de Seyferth (2008, p. 16; 1997, p. 96; 1995, p. 181), na comparação com
aqueles mais resistentes ao “abrasileiramento”. Tanto para o engrandecimento nacional
quanto para garantir sua própria subsistência, o trabalho é um elemento central na eleição
dos refugiados e especialmente dos reassentados, em cujo caso essa convivência
contaminante entre perseguição e anelos de prosperidade econômica já não encarna um
problema.

O fato de que a dimensão da economia nacional esteja presente como transfundo da eleição
dos refugiados não significa que o poder simbólico do refúgio se dilua nela. Nem sequer os
agentes mais críticos das políticas de refúgio da rede ampliada de ONGs que trabalham
com migrantes propuseram que o refúgio de populações no Brasil se tratasse simplesmente
de comprazer um interesse nacional importando mão de obra para as necessidades locais.
Ao contrário, a prática do refúgio é apresentada e experimentada pelos agentes como uma
ação bondosa e desinteressada. Considero que, somente conservando tal convicção da
bondade nacional, é possível fazer que essa mão de obra, das pessoas refugiadas, não seja
percebida, nem construída como o objetivo da imigração das pessoas, nem como um pago
possível pela dádiva do refúgio que elas receberam.

A dívida de caráter moral permanece inclusive quando há interesses econômicos em jogo.


Os casos de pessoas refugiadas “portadoras de necessidades especiais”, por exemplo,
costuma engrandecer e positivar ainda mais o gesto de recepção, já que se presume, com
maior certeza, que é desinteressado, pelo menos em termos de benefícios econômicos

202
diretos. O número restringido de refugiados nem representa uma ameaça para os empregos
dos nacionais nem é uma solução para a falta de mão de obra (que, geralmente, é cobrida
com outras categorias de populações migrantes), assim que o ganho para o país de acolhida
de refugiados, antes de se inscrever no plano econômico, se inscreve no plano moral e
político. Não em vão, os agentes do Conare, especialmente os representantes do governo
nacional, insistem em que o Brasil não só está emergindo como uma potência econômica,
mas como uma potência humanitária.

Se, como foi mencionado, o governo de populações em êxodo legitima o ato de


permanência desse tipo de estrangeiros no país, também é um processo coadjuvante na
existência da categoria mesma de estrangeiro como categoria moral e politicamente
legítima. Ou seja, ao reconhecer que o refugiado deve ser reconhecido em um processo
controlado e legal para poder realizar sua entrada restituidora à nova nação e selar um novo
pacto com um Estado (BUTLER; SPIVAK, 2007), recria-se, ao mesmo tempo, a fronteira
geopolítica do país, assim como a fronteira simbólica da nação e os mecanismos que
permitem acreditar em sua existência. Essa fronteira está feita de relações, ela própria é
uma relação; não somente entre exércitos e polícias com “migrantes” e “estrangeiros”, mas
de expertos, profissionais e delegados humanitários com sujeitos cujos corpos e
movimentos são administrados como sendo “solicitantes”, “refugiados”, “reassentados”,
etc. A respeito dessas formas de legitimação, Abrams sugeriu que “el Estado, en suma, es
un intento de obtener apoyo y tolerancia para algo insoportable e intolerable presentándolo
como algo distinto de lo que es, es decir como algo legítimo y como dominación
desinteresada” (ABRAMS, 2000, p. 94).

203
6. Sexto capítulo
Começando a tradução: a entrada oficial por meio da Polícia Federal
Como visto, no universo institucional brasileiro, existem diferentes formatos e tempos para
a exposição da “história” dos solicitantes espontâneos. No primeiro contato com as
instituições encarregadas, por meio de uma manifestação oral, o solicitante tem de
explicitar o desejo de pedir refúgio. Essa primeira exposição da solicitação é geralmente
realizada na Cáritas, mas pode suceder também na Polícia Federal 104. Também ouvi com
frequência, das pessoas solicitantes, que elas foram orientadas a se direcionar a Cáritas
depois de contar uma versão resumida de sua situação em algum ponto da rede ampla de
ONGs que trabalham com migrantes ou em lugares comuns de trânsito como rodoviárias e
aeroportos.

Contudo, a ativação legal da solicitação – segundo a lei brasileira de refúgio – acontece na


Polícia Federal quando o solicitante tramita dois documentos diferentes: o “termo de
declaração” e o “questionário” (ver ilustrações 1 e 2). Esses documentos são enviados ao
Conare, e o solicitante, segundo o procedimento previsto, seria orientado a ir até uma sede
da Cáritas para continuar com o processo.

104
Na segunda parte da tese, dedicada aos processos de refúgio, discute-se, em detalhe, a ordem do
atendimento aos solicitantes, especialmente referida à PF e à Cáritas como as instituições envolvidas no
primeiro atendimento e na ativação da solicitação.

204
Ilustração 1

205
Fonte: Coletânea de Instrumentos de Proteção Internacional de Refugiados e Apátridas. 4. ed.
Brasília: Acnur/IMDH.

206
Ilustração 2

207
208
Fonte: Coletânea de Instrumentos de Proteção Internacional de Refugiados e Apátridas. 4. ed. Brasília:
Acnur/IMDH.

209
De maneira sutilmente diferente e com ênfases igualmente distintos, os dois documentos
indagam sobre dados pessoais do solicitante, detalhes da saída do país de origem, dados
dos parentes que o acompanham ou que ficaram, solicitações prévias de refúgio, entre
outros. O “termo de declaração” tem um espaço destinado para registrar o “motivo da
saída do país de origem ou de proveniência e pede, entre parênteses, descrever de forma
sucinta a situação do país de origem e o temor de retornar”. Ao contrário, o “questionário
para solicitação de refúgio” pede maiores detalhes e a narração de acontecimentos e
experiências tanto pessoais quanto do grupo familiar:

Dê explicações detalhadas, descrevendo também qualquer acontecimento ou


experiência pessoal especial ou as medidas adotadas contra você ou membros de
sua família que o (a) levaram a abandonar seu país de origem.

Depois dessas instruções, e também entre parênteses, é indicado ao solicitante que: “se
possuir prova, favor anexá-la e se necessitar de mais espaço, utilize o verso e outras
folhas”.

Vários detalhes dessas solicitações de informação, e das diferenças sutis entre elas,
auxiliam na compreensão de particularidades do processo de seleção; particularmente, das
exigências narrativas e documentais realizadas nas delegacias para migrantes da Polícia
Federal. Para entendê-las melhor e mesurar o alcance da interpretação que delas realizo,
considero pertinente explicar alguns aspectos concretos da forma em que realizei o
trabalho de campo a esse respeito. Grande parte da minha pesquisa foi realizada com
pessoas que se encontravam como solicitantes de refúgio e refugiadas, contatadas de
diferentes formas e com quem tive tipos de encontros muito diversos. Nas suas casas, nos
albergues, nos encontros sociais ou religiosos, acompanhando-as a realizar trâmites de
documentação ou simplesmente conversando e passeando pela cidade, as experiências que
essas pessoas me contaram ou me deixaram compartilhar com elas ocupam um lugar
central na pesquisa. A quantidade de conversas, sua extensão, as recorrências das
experiências e também as experiências singulares foram determinantes para descobrir as
formas concretas que toma a “política do refúgio” na vida das pessoas.

Já o encontro com os agentes da tríade, foi significativo em quantidade e diversidade de


agentes entrevistados, mas lacônico em relação ao tempo e à recorrência dos encontros.
Com poucas exceções, encontrei cada agente entrevistado pessoalmente só durante a

210
entrevista, a maioria delas caracterizadas por sua limitada disposição temporal. Também
com poucas exceções, fui muito bem recebida pelas funcionárias do Ministério da Justiça,
da Cáritas e das ONGs que implementam o programa de reassentamento. No entanto, tive
de esperar muitos dias, às vezes, meses, para poder ser recebida nessas ONGs e sempre
tramitando previamente, por via telefônica ou por e-mail, as permissões para entrevistar as
funcionárias. Os contactos com diferentes funcionários do Acnur foram mais diversos entre
si, conseguidos, quase sempre, por meio de redes profissionais ou pessoais. Houve também
outra multiplicidade de encontros e conversas com pessoas relacionadas com o
atendimento a refugiados (professoras de português, diretoras de programas sociais,
coordenadoras de outras ONGs, administradoras de albergues, párocos, psicólogas, etc.).

Se, com as pessoas solicitantes ou refugiadas, as conversas se caracterizaram pela interação


em diferentes cenários cotidianos – e, portanto, por uma multiplicidade de registros
narrativos muito diferentes entre si –, ao contrário, a narrativa dos diferentes agentes de
refúgio esteve marcada pela enunciação da versão oficial e pública das leis, as formas e os
processos de refúgio. Foram poucos os casos nos quais o registro oficial foi
intencionalmente quebrado por esses agentes para falar de outras formas sobre suas
experiências como agentes de refúgio e, quando aconteceu, foi geralmente com os ex-
funcionários, e não com aqueles ainda ativos. Tudo isso não quer dizer que essas formas
narrativas – no registro do discurso oficial – percam seu interesse ou sejam menos valiosas
para a pesquisa. Esses formatos públicos de enunciação são parte da cotidianidade e dos
valores com os que são construídas as práticas profissionais e de gestão de populações.
Dito de outra maneira, é precisamente essa mútua constituição do público e do privado,
assim como as características das tentativas por diferenciar esses dois âmbitos, uma parte
substancial dos processos que lhe dão forma à gestão e administração dos refugiados.
Contudo, a maior proximidade com as pessoas solicitantes e refugiadas oferece um ponto
de vista possível para o resultado da pesquisa e obrigatoriamente anula outros.

O fato de que o procedimento de seleção de refugiados, tanto em seu momento deliberativo


quanto em suas etapas prévias, não seja público impediu minha presença durante a
realização das entrevistas de seleção, durante as reuniões do GEP ou as plenárias do
Conare. Isso faz também uma diferença com algumas pesquisas acadêmicas sobre refúgio
que têm sido realizadas por profissionais do direito ou das relações internacionais que,

211
aliás, foram agentes de refúgio e tiveram acesso a esses espaços que, para mim, estavam
fechados. Desse modo, a análise da seleção de refugiados que agora apresento não está
baseada no fato de ter “estado lá” e ter “visto” acontecer as etapas. Trata-se melhor de uma
tentativa de reconstruir a lógica dos processos e as práticas sociais que configuram o
espaço de governança do refúgio, a partir da análise do que diferentes sujeitos, localizados
em pontos igualmente diferenciados – tanto geográficos quanto sociais – narram,
expressam, analisam, sentem, pensam e fazem a respeito dessas interações sociais nas
quais estão envolvidos. Tudo isso dentro de outros espaços, igualmente marcados social e
geograficamente, motivados por minha própria pesquisa, por minha petição de narração e
pelas minhas escolhas e possibilidades durante o trabalho de campo.

Do mesmo modo, a minha escassa presença nas delegações da Polícia Federal e o fato de
que esse não fosse o foco da minha pesquisa, implicou que se me escapassem muitas das
minúcias desse momento do processo e das dinâmicas específicas de cada delegacia.
Mesmo assim, não se pode desconhecer o decisivo papel desempenhado pelos agentes da
Polícia Federal na configuração das lógicas que regulam a figura contemporânea do
refúgio. Não me parece inócuo o fato de que seja na Polícia Federal onde são produzidos
os documentos que oficializam a condição dos solicitantes e que, no processo, uma pessoa
possa, eventualmente e não sem dificuldades, prescindir da interação com Cáritas, mas
nunca da interação com a Polícia Federal.

Também é interessante que, apesar das críticas que possam existir, a maioria dos agentes
da tríade se refere à intermediação da Polícia Federal no processo de reconhecimento de
refugiados como uma obviedade e que, além disso, lhe ofereçam um lugar privilegiado na
apresentação pública que realizam dos procedimentos; apesar de que é a Cáritas a que
ocupa um lugar visivelmente mais destacado na interação com os solicitantes e refugiados.
Ainda que os agentes da Polícia Federal tenham menos conhecimento experto das políticas
de refúgio, se comparado com os agentes especializados da Cáritas, a Polícia Federal
representa um poder muito particular do Estado-nação, que parece imprescindível no
processo de refúgio e que age também como um marcador da entrada dos desejados, como
inscrição de sua forma de estar no território e na memória nacionais.

212
Sugiro que essas ações de inscrição que são desenvolvidas nas delegacias da Polícia
Federal são um momento-chave da entrada dos sujeitos à ordem ordenante do Estado-
nação. Os documentos que são produzidos conjuntamente entre solicitantes de refúgio e
agentes da Polícia Federal são parte das tecnologias de registro que por meio do registro de
impressões digitais, registros fotográficos, preenchimento de formulários, etc., permitem a
tradução de um sujeito solicitante em vários formatos impressos de si mesmo105. Como
sugeriu Asad (1993), a respeito da tradução, o sujeito estaria sendo literalmente inscrito no
registro escrito e no arquivo da memória da nação. Continuando com as propostas de
Peirano sobre os documentos de identidade, podemos pensar que existem signos utilizados
nesses documentos que, por meio de uma ação de redundância sobre o sujeito, lhe dão uma
forma particular de existência e de possibilidades de interação (2009, p. 7). Essa
“tradução” do sujeito à linguagem da administração garante para o refugiado a restauração
da ordem – que se presume perdida – não só da nacionalidade como cidadania genérica,
mas da idade, da raça, da filiação, do gênero, da profissão, da militância, etc.

Conforme Talal Asad (1993), os processos de tradução carregam com eles uma presunção
de coerência que lhes é indispensável para poder ser realizados. Podemos ver, nesses
formatos, produzidos no campo da governança do refúgio, dois tipos de presunção de
coerência. A primeira é que existiria coerência entre aquilo que o sujeito é e aquilo que o
sujeito disse que é. A segunda é que haveria coerência entre a existência dos sujeitos e os
formatos para sua tradução em documentos e formulários. Considera-se assim que a
existência de todos os sujeitos é passível de ser registrada nos moldes elaborados para isso.

Dessa maneira, não é de se estranhar que, quanto mais parecido tenham esses formatos
com os moldes anteriores da existência nacional prévia, maior será a chance de encaixar
nessa nova existência cidadã que se marca com a entrada redundante de si mesmo
convertido em múltiplos formatos e documentos. Essas dinâmicas de registro colaboram
com a construção da ideia de que existem sujeitos mais complicados que outros; e essa
complicação não seria sinônimo de riqueza e complexidade, mas de desordem e ausência.

105
Mariza Peirano apontou diferentes aspectos da produção semântica dos documentos e de sua relação na
construção de identidades e identificações que marcam as relações dos sujeitos consigo mesmos e com
outrem, assim como diversas possibilidades de cidadania. Segundo Peirano, “No mundo moderno,
documentos são objetos indispensáveis, sem os quais não conseguimos demonstrar que somos quem dizemos
que somos. Precisamos de provas materiais que atestem a veracidade da nossa auto-identificação” (2009, p.
5).

213
Poder ou não poder se traduzir nesses formulários parece ser um reflexo de ter ou não ter
uma vida ordenada pelo modelo do Estado-nação, que tem sido amplamente presumido
como o ápice de um processo civilizatório (ELIAS, 2006).

Existem espaços preestabelecidos nos formulários nos quais entram mais facilmente
algumas histórias do que outras. A respeito disso, Sonia Hamid conta, em sua tese sobre
refugiados de origem palestina no Brasil (2012, p. 294), as dúvidas que ela e Leila, uma
mulher refugiada, tiveram no momento de preencher os espaços relativos ao país de
procedência, nacionalidade, órgão e país emissor dos documentos de identidade, etc. No
caso de Leila, seu país de procedência não era o mesmo de nacionalidade e o órgão
emissor de seus documentos era o Comitê Internacional da Cruz Vermelha e não um
Estado-nação.

Recapitulando, poderíamos sugerir que os processos de tradução de sujeitos em


documentos, como bem foi apontado por Hamid (2012), estão baseados na “ordem
nacional das coisas”, conforme Malkki (1995). Contudo, também podemos dizer que, no
cotidiano de uma delegacia de polícia, um solicitante “bem-sucedido” será aquele que
possa não somente produzir uma “história de refúgio” mas também mostrar a coerência
entre essa história de sua vida e os formulários que a traduzem. A transformação do dito
em um formulário, sob os princípios da coerência que subjazem à ação de tradução
(ASAD, 1993), também transforma o dito no formulário em potencial prova da “verdade”
de sua história que poderia ser utilizada para verificar a coerência desse com outros relatos
futuros.

De outra parte e com o ânimo de voltar aos documentos com os quais foi aberto este
apartado, considero que algumas das informações solicitadas e produzidas na Polícia
Federal terão repercussões na avaliação final da solicitação de refúgio. Algumas das
informações requeridas contribuem também para criar ambiguidades e confusões que,
como visto, ajudam em boa medida com a administração de populações. Como não estive
pressente nos momentos quando os solicitantes preenchiam esses formulários ou nos que
expressavam suas dúvidas para os agentes, não sei dizer até que ponto as ambiguidades e
as confusões foram, ou não, resolvidas. Mesmo assim, gostaria de expor brevemente
algumas das perguntas que os solicitantes com os quais falei consideraram confusas ou as

214
que eu mesma identifiquei como “faca de dois gumes” para o propósito de ser aceito, à
medida que ia conhecendo os pressupostos subjacentes nos mecanismos de seleção.

As perguntas relativas ao “desejo de retornar ao país” foram frequentemente motivo de


dúvida por parte dos solicitantes. Nos formatos extensos da entrevista na Cáritas, esse
“desejo” pode ser mais bem exprimido, mas não acontece a mesma coisa nos formulários
diligenciados na PF. Segundo alguns solicitantes, o melhor, diante dessa pergunta, era
responder que não se desejava regressar, porque: “si a uno lo van a matar pues uno no
quiere volver”. Para outros, ao contrário, a resposta deveria ser que sim, pois: “si uno es
refugiado no fue porque quiso salir del país sino porque le tocó, uno quiere volver pero no
puede”. Com outras perguntas, aconteceu algo similar; com as questões relativas à saída do
país e as etapas prévias da viagem antes de chegar a Brasil, algumas pessoas consideravam
que as autoridades queriam saber se elas haviam estado como migrantes econômicos em
outros países. Outras, no entanto, achavam que era a rota de entrada a que interessava aos
agentes para descartar intermediários ou buscar que coincidisse com o resto da história
narrada. Em qualquer caso, as respostas a essa pergunta foram motivo de dúvida, não
necessariamente resolvida, para várias das pessoas que conversaram comigo.

Em algumas conversas que mantive com agentes da Cáritas e do IMDH, me foi explicado
que um deslocamento com etapas prévias, mais ou menos prolongadas, em outras cidades
do país de origem, distantes de onde a “perseguição aconteceu”, pode ser lido como um
bom indício de que a pessoa tentou se resguardar em seu próprio país até esgotar as opções
de sobrevivência nele. Mas, para outros agentes do Conare, era a urgência no
deslocamento, e não um trafegar em etapas de afastamento, a que provava o verdadeiro
caráter premente da solicitação de refúgio. Essa mistura ambígua entre urgência
desesperada e busca de proteção interna por etapas é difícil de equilibrar. Além disso,
ainda que, no processo brasileiro de pedido de refúgio, não seja um requisito fornecer
provas, quem pode fornecê-las terá mais chance de ser aceito.

Nesse sentido, uma pessoa que foi previamente reconhecida como deslocado (refugiado
interno) pelo Acnur, poder ter mais opções de ser selecionado. Nesse caso, mais uma vez,
o sistema internacional de proteção de refugiados se valida a si mesmo. Ter sido
reconhecido como refugiado interno torna-se uma forma de lhe dar ainda mais valor à

215
“história de refúgio” que, afinal de contas, já teria acumulado carimbos de certificação
desses organismos. Porém, diferentemente, quem já foi refugiado em outro país pode
perder possibilidades de um novo reconhecimento, especialmente se o anterior continua
ativo ou se sua renúncia à condição de refugiado precedente foi feita sem a aprovação do
Acnur ou mesmo contras as recomendações dessa agência.

Esses exemplos, por só mencionar algumas das dúvidas que tive ou que as pessoas me
formularam, se somam a outras ambiguidades do processo que também afetam a produção
desses formulários que, como visto, vão se tornando formulários-prova. Por exemplo, a Lei
de Refúgio, embora notoriamente mais progressista que o Estatuto do Estrangeiro, que
ainda hoje rege os assuntos migratórios no Brasil106, conserva vários pontos muito
parecidos com o espírito restritivo das leis orientadas para a proteção da segurança
nacional. Assim, por exemplo, o benefício de “não devolução”, segundo a mesma lei que o
consigna (Lei nº 9.474/97, artigo 7º, 2º parágrafo): “não poderá ser invocado por refugiado
considerado perigoso para a segurança do Brasil”. Desse modo, as perguntas de se “alguma
vez foi detido ou preso”, podem ser uma prova a favor de quem alega uma perseguição por
parte do Estado, mas não parece que possa ser uma informação de comunicação tranquila
para outro tipo de solicitantes que não encontrem a maneira de transformar seus possíveis
encarceramentos em uma prova a seu favor.

Um dos agentes com quem falei numa Delemig comentou, a propósito do procedimento
que eles realizam quando chega um solicitante, alguns assuntos que resumem, de maneira
ilustrativa, vários dos aspectos que tenho proposto até aqui para analisar essa interação.
Também me parece que é eloquente sobre a preeminência da segurança nacional nessa
etapa do processo de seleção:

O que a gente faz cá é mesmo como se fosse psicografar. Você fala e a gente
escreve, fala e a gente escreve. A gente não dá nenhum palpite, sugestão,
orientação. A pessoa falou e do jeito que ele falar e isso e aí coloca. O nosso
trabalho aqui é como diz o nome, termo de declarações. Reduz a termo, coloca
num papel a declaração da pessoa. Se ela está falando a verdade ou não, já é o

106
A modificação do Estatuto do Estrangeiro e a formulação de uma nova lei de migração estão na pauta de
variados setores sociais brasileiros – e representantes de comunidades migrantes – faz alguns anos. Depois de
vários empecilhos e de discussões entre os posicionamentos do governo nacional e de acadêmicos, militantes
e organizações sociais; um novo processo que tenta reformular essa lei foi iniciado. A iniciativa chamada de
Conferência Nacional sobre Migrações e Refúgio (Comigrar), é coordenada pelo Ministério da Justiça, por
meio da Secretaria Nacional de Justiça/Departamento de Estrangeiros (Deest), em parceria com o Ministério
do Trabalho e Emprego e o Ministério das Relações Exteriores.

216
Conare que vai ver. Muitas vezes, eu pesquiso cá no sistema [antecedentes
criminais] [...] Por precaução, porque vai que a gente está vendo uma pessoa que
está sendo procurada pela polícia, então a gente já prende logo e não perde
tempo com refúgio.

Mas normalmente as pessoas chegam aqui e falam; “Você tem algum


documento?”, “Não, não tenho”. Então, ela pode morrer e nascer de novo, ela
pode virar uma outra pessoa e ela pode falar eu me chamo Ângela Facundo
Navío [sic] ou eu me chamo Carla da Silva Ferreira.

No momento do preenchimento do formulário, o agente se descreve como um mero


“médium” entre o “solicitante-espírito” que lhe está ditando e o formato ao qual ele está
“reduzindo-o”. Porém, recobra todo seu papel ativo de agente de polícia – ou de caçador,
seguindo o vocabulário analisado por Lowenkron (2012, p. 201) – no momento de buscar o
possível criminoso por trás dessa história narrada. De fato, enquanto conversava comigo, o
agente anteriormente citado procurou meu nome na base de dados para, segundo me disse,
me mostrar como funcionava o sistema de busca e verificação dos antecedentes penais e
também da regularidade da situação migratória.

Algumas pessoas me disseram que elas mesmas tiveram de preencher os formulários,


tendo a chance de escrever mais explicações ou alterar os moldes originais do formato,
agregando informações como uma forma para poder melhor se traduzir. Outras, no entanto,
tal como foi explicado pelo agente da Polícia Federal, tiveram de preencher o formulário
lhe informando os dados requeridos ao agente, quem pessoalmente os registrava no
formulário. Nesse último caso, ativando simultaneamente outro dos registros possíveis da
tradução: a passagem do espanhol para o português, mais precisamente a passagem do
espanhol oral ao português escrito e administrativo dos formulários.

Alguns dos agentes da Polícia Federal, encarregados de receber os pedidos de refúgio, com
quem consegui falar em São Paulo, disseram falar somente português, mas entender
alguma coisa do espanhol. Entre eles, somente um falava também inglês e um pouco de
francês. O assunto da diferença linguística com os solicitantes colombianos de refúgio não
apareceu como um problema. A posição a respeito do espanhol que parecem compartilhar
os agentes é que “dá para entender”, inclusive se não se dispõe de agentes bilíngues para
realizar o atendimento. Essa percepção de certa transparência entre o português e o
espanhol parece, além disso, estar baseada na ideia de que as línguas são unidades fechadas
sobre as que se tem maior ou menor competência, omitindo, por exemplo, as relações de

217
poder que se exercem, se constroem e se exprimem por meio da linguagem, nas diversas
interações da vida social (BOURDIEU, 1977)107.

Escutando o relato das pessoas solicitantes e na minha condição de estrangeira, havendo


passado pela experiência de interagir com agentes de Polícia Federal como a forma
primaria de contato para marcar a entrada legal ao país, me senti interpelada pelas
implicações emocionais desse momento no processo de pedido de refúgio. Parece-me que
esses encontros com a Polícia Federal costumam ser mais um exercício hostil do que uma
prática de bem-vinda. Pensando nesse aspecto e tendo em mente a sugestão de Bourdieu
(1999, p. 528), que afirmou que a violência simbólica presente nas relações de entrevista
não se dá somente “pela distância social entre entrevistador e entrevistado, mas pelo fato
de depender do julgamento do entrevistador para conseguir o objetivo pelo qual se
submeteu a tal cena”, perguntei para alguns dos agentes da Polícia federal se eles
consideravam que a situação desigual entre eles e os solicitantes pudesse ser um elemento
que impedisse a boa comunicação ou o desenvolvimento tranquilo desse momento de
oficialização da solicitação. A essa pergunta, eles responderam que não.

A maioria dos agentes da Polícia Federal coincidiu em que o “bom trato” oferecido não
permitiria que houvesse razão para se sentir intimidado. Um deles, muito sensibilizado
pelos meses que levava escutando histórias “tristes de perseguição”, disse que eles
entendem que o solicitante “pode estar muito abalado e nós não vamos piorar a mágoa
dele”. Também perguntei se eles consideravam que os sotaques, os modos regionais de
falar ou as gírias poderiam comprometer a compreensão. Devo dizer que eu me referia –
talvez pela minha experiência pessoal – ao sotaque dos agentes. Porém, a pergunta foi
entendida ao contrário, me respondendo sobre o jeito de falar dos solicitantes e opinando
que, em geral, não era um problema. O menor conhecimento da linguagem administrativa
também não foi considerado como um elemento que pudesse influenciar a interação ou o

107
Pierre Bourdieu (1977) propõe recusar o conceito de competência linguística, já que ela supõe a ideia que
existe uma autonomização da capacidade de produção propriamente linguística. Para Bourdieu, a linguagem
é uma práxis e não pode ser reduzida às meras funções da comunicação. Assim, o autor sugere submeter
alguns conceitos linguísticos a um deslocamento sociológico para abordar analiticamente as trocas
linguísticas. Em primeiro lugar, em vez da gramaticalidade, seria necessário pensar na aceitabilidade, pois
nos movimentaríamos do terreno da língua até o assunto da língua que é considerada legítima. Em segundo
lugar, em vez de relações de comunicação ou de interação simbólica, aparecem as relações de força simbólica
mostrando o valor e o poder diferencial outorgado a certos discursos, onde só teríamos visto o sentido do
discurso. Finalmente, propõe pensar em capital simbólico em vez de competência linguística, já que o capital
simbólico é inseparável da posição do locutor na estrutura social (BOURDIEU, 1977, p. 18-20).

218
resultado esperado, que consiste no preenchimento dos formulários. As poucas
dificuldades de comunicação reconhecidas foram usualmente atribuídas a que “alguns
solicitantes são mais espertos do que outros”.

Nas conversas, sempre cheias de anedotas, sobre o assunto da diferença linguística, mais
uma vez a proximidade dos solicitantes colombianos os colocou no lugar de uma alteridade
não tão alterna, quando comparados com alteridades consideradas radicais. Se os
colombianos entram bem nesses formulários que os traduzem para a linguagem
administrativa do Estado-nação, também é porque a extensão das palavras, a forma delas e
a proximidade do português com o espanhol assim permitem. A língua, nesse caso, se
materializa como um componente substancial de proximidade cultural e marca uma
entrada mais exitosa dos solicitantes colombianos que daqueles que, segundo os agentes,
“falam em árabe e não dá para entender nada; ou ainda pior, nesses dialetos africanos”.

Nesses encontros com “alteridades radicais”, a confidencialidade da interação entre agente


e solicitante se interrompe com a presença de um tradutor espontâneo. Isso porque a
solução encontrada pelos agentes das Delemig108 é perguntar, na sala de espera da mesma
delegacia, se entre os presentes alguém fala a língua do solicitante. Essa presença estranha
de um tradutor desconhecido poderia ser lida como uma ruptura do sigilo e do segredo que,
como visto, caracterizaria a informação sobre o refúgio e sobre os refugiados.

Na apresentação dos procedimentos, esse aspecto não pareceu representar um problema na


interação nem uma violação da informação. De fato, os agentes do refúgio – e não somente
os da PF – que, em diferentes momentos, me falaram desse recurso do tradutor “nativo”
não consideraram, em suas narrações, os aspectos que poderiam parecer controversos109.
Por exemplo, o possível receio do solicitante ao ter de contar detalhes de sua persecução na
frente de um desconhecido ou, ainda pior, na frente de um conterrâneo potencialmente
próximo. Também não se falou sobre o papel que a habilidade do tradutor pudesse

108
Também nas entrevistas realizadas pelas advogadas da Cáritas é utilizada a estratégia de buscar um
tradutor “nativo” entre o grupo de solicitantes ou refugiados com os quais a instituição tem contato. Porém,
essa situação é menos frequente do que na PF, já que a maioria das advogadas falam várias línguas,
geralmente espanhol, inglês e francês. Contudo, o problema da tradução costuma persistir com o árabe e
especialmente com outros idiomas não hegemônicos.
109
Sonia Hamid (2012) trabalhou com mais detalhe esse aspecto dos tradutores espontâneos na sua tese de
doutorado.

219
desempenhar na narração produzida ou das implicações de ser “testemunha” da história
narrada, que se presume tem um “fundado temor de perseguição” e torna ao tradutor no
possuidor de um “segredo” potencialmente “perigoso”110.

A presença do tradutor me foi apresentada como mais um elemento dos processos de


refúgio que entrava no espaço das entrevistas domesticado pelas capacidades e pelas
autoridades profissionais, tanto dos policiais quanto das advogadas. No entanto, diante da
minha pergunta de, se eu poderia estar presente em alguns desses cenários de interação, a
resposta negativa – tanto de policiais quanto de agentes de ONGs – se baseava na minha
presença como um elemento estranho, perturbador e violador do segredo do sujeito. Além
disso, segundo os agentes, com os colombianos não se precisava de tradutor, de modo que
não existiria razão nenhuma para me permitir assistir um desses encontros. A enunciação
constante do segredo – que, conforme Lowenkron (2012), é mais interessante pelo que
revela ao ocultar que por aquilo que oculta – se depara com práticas cotidianas nas quais o
descuido parece tomar o lugar do sigilo. Para ser mais precisa, permito-me finalizar esse
apartado contando alguns aspectos generais de meu trabalho de pesquisa nas Delemig.

Meu contato com os agentes da Polícia Federal, encarregados de receber os pedidos de


refúgio, limitou-se às cidades de São Paulo e Rio de Janeiro e, em cada cidade, os
encontros foram substancialmente diferentes. No Rio de Janeiro, cidade onde eu mesma
devo renovar meus documentos, preferi estar na Delemig somente em qualidade de
estrangeira, acompanhando desde a sala de espera os procedimentos próprios e de outras
pessoas, algumas delas solicitantes ou refugiadas. Somente uma vez, depois de conseguir a
renovação da permissão de estadia, me identifiquei com alguns agentes dessa delegacia
como pesquisadora em processo de doutorado.

Minha identificação, nessa ocasião, obedeceu à necessidade de solicitar informação para


um conhecido refugiado que estava tendo problemas para renovar sua permissão de
estadia. Como os agentes dessa Delemig sabiam de minha situação migratória,
consideraram estranho que eu indagasse sobre os procedimentos para os refugiados e tive
110
Na tese de doutorado de Laura Lowenkron (2012, p. 207-212) é elaborada uma instigante analise a
propósito das diferentes dimensões da informação sigilosa e de seus guardiões como espécies de “sociedades
secretas”. Na leitura de inspiração simmeliana, a autora aborda sua própria presença como etnógrafa nos
escritórios da PF, para mostrar as diferentes implicações sociológicas de estar e investigar em lugares
sigilosos e sobre informações reservadas e potencialmente “perigrosas”.

220
de explicar que era uma averiguação para outra pessoa. Contudo, como o agente do balcão
de informação não sabia qual era o procedimento, foi consultar com a mesma delegada que
acabava de tramitar minha renovação de visto de estudante. Ao se inteirar de minha
averiguação, a delegada foi para o espaço da sala de espera e, em um tom de voz muito
alto, me perguntou por que queria trocar meu visto de estudante para refugiada. Pergunta e
tom de voz que, agindo juntos, chamaram a atenção das pessoas da sala e dos demais
agentes ali pressentes.

Eu lhe expliquei à delegada que a averiguação era para outra pessoa, diante do qual ela
respondeu, em tom certeiro, que então “essa pessoa tem que vir diretamente a averiguar”.
Nesse momento, decidi que invocaria meu alter ego de pesquisadora de uma universidade
brasileira, que até esse momento tinha querido ocultar propositalmente, para tentar obter a
informação necessária, já que a pessoa que queria renovar seus documentos não obteria
facilmente uma permissão no seu emprego para fazê-lo pessoalmente. O poder por mim
invocado surtiu um leve efeito que se materializou somente no descenso do volume da voz
da delegada e na entrega de uma lista de documentos que deveria levar a pessoa
interessada. Isso porque a invocação que realizei dos poderes da “academia brasileira”
incluiu minha insinuação de que então eu registraria na minha tese que não existe
informação sistematizada e disponível sobre os procedimentos para a renovação dos
documentos das pessoas refugiadas.

Apesar da minha experiência prévia de entrevista com alguns agentes da Delemig da


cidade de São Paulo, que tinha sido bastante produtiva e transcorrido um ambiente cordial,
eu tomei a decisão de não me identificar desde o primeiro momento como pesquisadora na
Delemig do Rio de Janeiro. Essa decisão esteve especialmente relacionada com o fato de
que esse fosse o espaço que eu mesma frequentava em condição de estrangeira. Cheguei a
ponderar que efeitos poderia me trazer a ativação de uma permissão para “investigar” a
Polícia Federal, ela própria encarregada de renovar minhas permissões de estadia no Brasil.

Talvez, como contou Laura Lowenkron (2012), se eu tivesse procurado os meios para
estabelecer uma relação na qual minha presença não fosse percebida como o ato de estar
“pesquisando” aos “pesquisadores”, teria sido possível “produzir uma comunhão de
interesses e atividades” com a Delemig do Rio de Janeiro (2012, p. 202). De alguma

221
maneira, essa comunhão de interesses foi possível na Delemig de São Paulo, e talvez,
ativando os mesmos procedimentos, tivesse conseguido um atendimento similar também
na outra cidade. Mas foi essa, precisamente, outra das razões para desistir da ideia de
frequentar o local como pesquisadora de doutorado certificada. Considerei que o
tratamento que me era dispensado nos variados cenários de atendimento a refugiados
quando me apresentava como pesquisadora e doutoranda, mudava substancialmente em
relação ao tratamento que recebia quando os agentes do refúgio me consideravam mais
uma solicitante ou refugiada.

De outra parte, em São Paulo, com pouco tempo de espera, consegui uma permissão do
Delegado chefe da Delemig da cidade111 para entrevistar um dos agentes encarregados de
receber os solicitantes. O Delegado se comunicou comigo por meio da agente que estava
no balcão de informação e para quem eu expliquei a razão da minha presença e da
solicitação que estava fazendo. Ela foi e voltou várias vezes do escritório do Delegado
levando e trazendo informações. Na primeira vez, entreguei à agente a declaração emitida
pela coordenação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional
(PPGAS/MN)112 a propósito do caráter da minha pesquisa, e ela solicitou, além disso, um
documento de identidade. Como eu vacilei entre apresentar meu Registro Nacional de
Estrangeiros (RNE), documento brasileiro, ou meu passaporte, documento colombiano, ela
considerou melhor levar ambos os documentos.

Pouco tempo depois, a agente voltou para me dizer que havia um problema, já que meu
RNE estava vencido. Sem deixar de me perguntar (em silêncio) se o fato de estar numa
situação irregular no país seria um motivo para não ser recebida pelo Delegado da Delemig
como pesquisadora de uma universidade brasileira, entreguei à agente meu “protocolo de
renovação de prazo de estadia” vigente e lhe expliquei (ainda sabendo que ela sabia) que o
RNE geralmente está vencido devido à demora nos tempos de emissão e entrega que fazem
com que o documento chegue às mãos da pessoa quando faltam poucos dias para sua

111
A propósito do contato com os agentes da PF encarregados de receber os pedidos de refúgio, agradeço a
Laura Lowenkron. Suas explicações sobre o funcionamento da PF e suas sugestões para solicitar nas mesmas
delegacias a permissão para falar com os agentes, resultaram fundamentais para conseguir as entrevistas,
assim como para escapar das demoras burocráticas e possíveis impedimentos.
112
A declaração comumente emitida pela coordenação acadêmica do PPGAS/MN para seus estudantes em
fase de pesquisa de campo solicita a colaboração das autoridades federais e estaduais para a realização da
mesma e informa, além disso, os nomes do estudante e do orientador ou da orientadora, bem como o título da
pesquisa e as datas e os locais de sua realização.

222
expiração ou quando já expirou. Por essa razão, o protocolo vira o único documento de
identidade vigente. Protocolo que, porém, é comumente rejeitado, como documento de
identidade, por outros organismos públicos e privados. Esse é um problema que os
estrangeiros, refugiados ou migrantes, compartilham e que têm sido, nos últimos anos,
objeto de constantes queixas da parte de associações de estrangeiros e das organizações da
“sociedade civil” que trabalham com migrantes.

Voltando para a Delemig, a agente foi novamente ao escritório do Delegado com meu
protocolo e, de volta ao balcão, me informou que havia mais dois problemas. O primeiro
era que nenhum dos documentos apresentados vinculava minha identidade à declaração do
PPGAS ou à UFRJ e o segundo, que ele não entendia por que razão, se eu morava no Rio
de Janeiro, queria realizar a pesquisa na Delemig de São Paulo. Para solucionar o primeiro
problema, apresentei minha carteira de estudante113 e, para solucionar o segundo, expliquei
para a agente que São Paulo, além de ser a cidade com maior quantidade de solicitantes
espontâneos de refúgio, era também um estado que implementava o programa de
reassentamento (programa que interessava à minha pesquisa), enquanto que o Rio de
Janeiro não recebia reassentados. Tanto a carteira de estudante quanto a explicação
funcionaram, e o Delegado decidiu me receber no seu escritório. Quando entrei, ele tinha
chamado um dos agentes encarregados do atendimento de solicitantes e – depois de pedir
que eu repetisse o mesmo que já tinha lhe explicado por meio da agente que fez de
intermediaria – me autorizou para falar em privado com o agente.

O agente foi especialmente receptivo a minhas perguntas e amável em seu trato.


Mantivemos uma interlocução de quase quatro horas em que, além de responder minhas
perguntas, algumas vezes inclusive “chamando a Brasília” para resolver dúvidas, ele me
perguntou pelo funcionamento dos programas de refúgio, pelo papel das outras instituições
envolvidas nos procedimentos e pelas formas em que se poderia “melhorar o atendimento
das pessoas refugiadas”, sugerindo se não seria melhor “suprimir os intermediários” e
perguntado se a Cáritas não seria uma espécie de “despachantes” que estariam ganhando
dinheiro por gerir um serviço “ao qual têm direito os estrangeiros”.
113
Documento que, como acontece com o RNE, demora a chegar e que eu recebi da UFRJ quase dois anos
depois de ter começado o doutorado. Nem todos os colegas do programa têm um e, em seu lugar, têm de
portar uma certificação do PPGAS (redigida numa folha de papel com logo e carimbo) que faz, às vezes (de
maneira provisória), da carteira de estudante. Esse provisional se eterniza, como diria Sayad, tal como o faz
“o protocolo” no caso do RNE.

223
Durante o tempo de conversa, o agente me permitiu também falar com outros dos agentes
encarregados de receber solicitações de refúgio. Em algum momento da conversa, um
deles quis saber se eu estava interessada em conhecer as causas pelas quais os solicitantes
colombianos pediam refúgio e, diante da minha resposta afirmativa, consultou, no seu
computador, os arquivos dos últimos meses114 de solicitantes colombianos. O agente
expressou, várias vezes, que lhe parecia muito bom que eu lhe fizesse perguntas sobre o
processo de refúgio, pois, dessa maneira, ele mesmo podia também ir conhecendo melhor o
assunto.

Com a mesma boa disposição de toda a entrevista, começou a revisar as pastas enquanto
me contava que ele levava somente quatro meses trabalhando nessa Delemig e que estava
se familiarizando com o assunto do refúgio. Depois de ter revisado várias das pastas do
PC, formulou novamente a pergunta que já tinha sugerido para minha pesquisa e me deu
uma resposta:

Quer uma noção dos motivos? [...] [Continua olhando na tela do PC, me
mostrando o fragmento onde estão registrados “os motivos” e os registrando num
papel] Ah! esse aqui é por causa das Farc, outro pelas Farc também, Farc,
também tudo isso em maio. Vamos ver se mudou em Junho, Farc também,
Farc... são todos por causa das Farc. Ah! esse aqui é por paramilitar.

Quando terminou de buscar “os motivos” da solicitação de refúgio dos “colombianos”, ele
me explicou com muita propriedade que:

[...] Cada país tem a sua característica de refúgio, né? O refugiado da Colômbia
normalmente é Farc ou paramilitar, Haiti é por causa do terremoto. Senegal,
Nigéria, Angola, os países da África em geral, são disputa política tribal,
associada com terrorismo. Assim, eles dizem assim: “Ah os terroristas invadem
as casas das pessoas nas nossas vilas estupram as mulheres e pegam os homens e
falam assim: ‘ah se não for participar com a gente a gente mata’”. Depois que eu
comecei a trabalhar aqui com entrevista de refugiado, eu percebi como minha
vida era boa e o povo reclama de barriga cheia. Quer ver? Guiné Bissau, Guiné
Conakry também, está tudo nesse, nesse... Ah! Sim, problema de religião
também conta muito, muçulmano contra cristão, também nesse grupo aí,
muçulmano tirando bomba em igreja cristã e tudo mais. De uma maneira geral é
isso. Cuba é do regime, do regime do Fidel [Pergunto se no caso cubano é
alegado perseguição de Estado]. Sim, perseguição do Estado contra o cubano.

114
Segundo me explicou o agente, somente a partir do início do ano 2012, começaram a se organizar as
pastas dos solicitantes pelo critério do país de origem, de modo que, antes desse momento, era difícil
localizar as solicitações por nacionalidade do solicitante.

224
Apesar de levar poucos meses trabalhando na Delemig e de estar descobrindo, naquele
momento, os “motivos de refúgio dos colombianos”, o agente tinha uma boa informação
sobre os trâmites burocráticos que deviam fazer os estrangeiros em geral, por ter integrado
a equipe que implementou o serviço de atendimento virtual para estrangeiros e o protocolo
de atendimento dentro das Delemig. Porém, sua passagem por esse departamento da
Polícia Federal era provisório, e me explicou que, assim como acontece usualmente com
outros agentes, ele seria transferido para outra função dentro de pouco tempo. A
rotatividade dos agentes da PF não é um assunto alheio às discussões das autoridades do
refúgio. Em várias das comemorações do dia dos refugiados, o assunto apareceu, assim
como nas reuniões para discutir as leis migratórias que eu acompanhei ou nas entrevistas
com alguns funcionários do Conare:

Eu: E no caso da PF, está bem integrada com o Conare? Tem um trabalho, por
exemplo, do Conare para sensibilizar...

Coordenador: Tem, tem. Sempre que as nossas oficiais de elegibilidade se


dirigem aos estados para fazer as entrevistas com os solicitantes de refúgio,
começa também o trabalho de capacitação e formação a PF. Por quê? Porque os
delegados, os agentes, eles estão sempre se rotando. É uma característica da
Policia Federal brasileira, essa mobilidade, em todo o país. Então é importante
que a capacitação seja permanente. Então sempre há.

Eu: E para isso tem um esquema, há alguma...

Coordenador: Tem, é feito em conjunto e em parceria com o Acnur e o Conare


e também quando está ali próximo da sociedade civil organizada, também vão ali
participar de ação.

Segundo a versão dos agentes de São Paulo, eles não haveriam tido a formação com as
entrevistadoras do Conare da qual falou o coordenador. Segundo me explicaram as
funcionárias de Cáritas, as agentes entrevistadoras vão poucos dias ao ano a cada cidade,
ficam pouco tempo, fazem muitas entrevistas, às vezes, realizam entrevistas por telefone, e
todo isso aconteceria na sede da Cáritas ou das outras ONGs parceiras. Assim, é difícil
supor que, nesse tempo, consigam fazer a mencionada formação. Contudo, outras
estratégias de capacitação técnica foram aludidas pelos funcionários do Conare e, em abril
de 2013, por exemplo, o Ministério da Justiça e o Acnur organizaram o 1º Curso de
Elegibilidade e Reassentamento115. Essas atividades e a constante presença do assunto da

115
Segundo o site do Ministério da Justiça, o curso “Com um forte conteúdo técnico, terá como participantes,
principalmente, agentes da polícia federal que lidam com estrangeiros (entre eles, os solicitantes de refúgio) e
integrantes da Defensoria Pública da União, que em breve passará a realizar entrevistas com solicitantes de
refúgio em nome do Conare. Participarão ainda representantes dos comitês estaduais para refugiados e os

225
sensibilização dos agentes da PF parecem mostrar uma preocupação expressa sobre o tema.
Porém, a questão é apresentada como sendo exclusivamente um problema técnico que se
solucionaria com formação e informação.

Nessas capacitações, segundo as alocuções públicas dos diretivos do Conare, procurar-se-


ia que uma boa quantidade de agentes da Polícia Federal conheça a Lei de Refúgio e saiba
quais são tanto os mecanismos de proteção quanto os procedimentos que existem no Brasil.
A ideia seria melhorar simultaneamente a eficiência na administração e o tratamento
dispensado aos refugiados. Muitas das ONGs que trabalham com refugiados, incluindo
Cáritas e o IMDH, estão a favor dessa tarefa de sensibilização. Mas, como visto ao longo
da tese, não é a relação com a Polícia Federal aquela que os solicitantes percebem como a
interação mais difícil ou mais agressiva no processo de solicitação. Muitas das pessoas
com as que eu falei consideraram que, durante o tempo de pedido de refúgio, o encontro
com a polícia e o preenchimento dos formulários foi a parte mais fácil do processo.

De outro lado, embora os solicitantes não percebam sua passagem pela Polícia Federal –
pelo menos nas primeiras etapas do processo de pedido de refúgio – como um momento
especialmente hostil se comparado com outras interações com os outros integrantes da
tríade, há elementos desse encontro que estão baseados na construção do “outro
estrangeiro” como um potencial perigo para a segurança nacional. O encontro com a
Polícia Federal é uma relação de fronteira, com suas duas implicações; de limite e barreira
de um lado e de filtro ou molde de entrada de outro lado. Nesse caso, tentar estabelecer
uma relação particular de refúgio é, em certa medida, desafiar as normas de segurança com
as quais a Polícia Federal defende essa pretendida segurança da nação. Afinal, a lei de
refúgio vulnera várias das premissas sobre as quais se sustenta a defesa das fronteiras. Diz
a lei de refúgio, por exemplo, que o refugiado pode entrar sem documentos, pode ter
antecedentes penais, não poderá ser devolvido ao local onde corre risco de morte, etc. Esse
desequilíbrio das bases que fundamentam a tarefa de segurança da PF poder ser sentido
como um erro ou um perigo que pode (e deve) ser solucionado na interação cotidiana dos
agentes da PF com os solicitantes. Isso quer dizer que a segurança nacional, que alguns

advogados das organizações não governamentais que atuam com o Conare e com o ACNUR na assistência
aos refugiados. Os membros do Comitê Nacional para os Refugiados também participarão do curso”. (Fonte:
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Conare promove capacitação de agentes públicos sobre o tema do refúgio.
JusBrasil. Disponível em: <http://mj.jusbrasil.com.br/noticias/100474989/conare-promove-capacitacao-de-
agentes-publicos-sobre-o-tema-do-refugio>. Acesso em: 1° dez. 2013.)

226
agentes de Polícia Federal defendem, não é um assunto de falta de informação ou de
formação técnica em sua condição de agente do refúgio, mas de convicção e de
profissionalismo em sua condição de agentes da Polícia Federal.

Ao finalizar a entrevista com os agentes da Delemig de São Paulo, um deles, aquele com
quem mais tinha falado, me perguntou se eu não queria que ele carimbasse meu diário de
campo. Apesar de ter pedido autorização para gravar a conversa, eu também tinha tomado
uma boa quantidade de notas e ele tinha-o percebido. Eu lhe respondi que sim e ele
certificou minhas notas de campo estampando seu carimbo sobre a última página.
Perguntou ainda se era necessário carimbar todas as outras folhas que eu tinha preenchido
durante nosso diálogo. Eu o considerei desnecessário, mas lhe agradeci pela sua disposição
e seu tempo, assim como pela oferta de continuar em contato para poder resolver as
dúvidas que foram aparecendo durante minha pesquisa.

227
7. Sétimo Capítulo
Cavar no sujeito, verificar o objeto e estabelecer um nexo: “a entrevista”
Nós temos uma entrevista que tem uma duração média de uma hora, eu já tive
entrevistas aqui que duraram duas horas e meia e já tive entrevistas que duraram
20 minutos. Mas, depende muito da história que a pessoa está contando ou da
falta de história que ela tem para contar. (Advogada da Cáritas)

7.1. O sujeito, a história e as provas

Depois de diligenciar os documentos requeridos na Polícia Federal, as pessoas passam a


ser consideradas oficialmente “solicitantes de refúgio”. Com esse momento administrativo,
é marcada a abertura do “processo” na sua dupla dimensão processual e material. Ou seja,
como a ideia de que acabam de se dar os primeiros passos de um conjunto ordenado de
etapas que levarão até um momento resolutivo e também como uma pasta física – e, às
vezes, digital – na qual adiante serão guardados todos os outros documentos produzidos,
aportados, comunicados, referidos, etc., que conformarão a existência administrativa dessa
pessoa no universo institucional do refúgio e na administração brasileira num sentido mais
amplo116.

O processo está todo arquivado na Cáritas, desde o momento em que ele


preenche o primeiro papelzinho de cadastro aqui, até a decisão final do Conare.
Que é todo arquivado numa pastinha que é o processo. Geralmente, antes da
entrevista eu faço uma leitura desse termo de declarações, para saber o que ele
narrou lá na PF, faço a entrevista, meu parecer vai ser baseado nessa entrevista,
nos juízos de valor que estou fazendo dessa pessoa durante a entrevista e na
pesquisa que eu faço para embasar o elemento objetivo do refúgio [...].
(Advogada da Cáritas)

Dos escritórios da Polícia Federal, segundo o procedimento oficial, os solicitantes saem


com uma cópia dos documentos diligenciados e, com eles, vão à Cáritas para que as
funcionárias encarregadas avisem ao Conare e as entrevistas sejam programadas. A
primeira entrevista será realizada com a advogada que representa simultaneamente o Acnur
e a “sociedade civil”, e a segunda, que levará um tempo de espera muito maior, será
realizada com a agente entrevistadora do Conare. O parecer emitido por essas agentes será
definitivo para a obtenção do reconhecimento como refugiados ou para o indeferimento da

116
Vale a pena apontar que a redundância do sujeito no mundo institucional do refúgio brasileiro, utilizando
a fórmula de Peirano (2009), não se apresenta somente com a redundância em documentos de identidade mas
também em “processos” paralelos que marcam os distintos fragmentos de sua existência administrativa.
Assim, uma pasta que centraliza boa parte dos demais processos estará radicada em Cáritas – que age como
posto de controle –, mas outras pastas estarão nos escritórios da PF, no Departamento de Estrangeiros do MJ,
no arquivo do Conare e no arquivo do Acnur.

228
solicitação. Levando em conta esse caráter resolutivo que tem a “entrevista”, não está
demais relembrar que, conforme Bourdieu (1999), parte da violência simbólica que as
entrevistas contêm se deve a que as pessoas dependem do julgamento da entrevistadora
para conseguir o objetivo pelo qual aceitam realizar esse exercício narrativo.

Esse momento-chave da seleção me foi explicado pelas agentes que o realizam como um
exercício conformado por três partes: “a pesquisa subjetiva, a pesquisa objetiva e o nexus
causalidade”. Nas próximas páginas, abordarei esses elementos, que foram descritos por
uma das advogadas da Cáritas da seguinte maneira:

[...] Porque o refúgio tem três elementos jurídicos: tem um elemento subjetivo,
que a história pessoal da pessoa, o tipo de perseguição que ela está sofrendo,
chamado “fundado temor de perseguição” pela lei, pela convenção de 51. Tem
um elemento objetivo que é a situação fática do país, ela está me narrando uma
situação de perseguição política, o país dela realmente vive uma situação de
perseguição política? [...] E tem um terceiro elemento jurídico que a gente chama
de “nexus causalidade”. A história da pessoa, ou elemento subjetivo, tem que ter
um vínculo direto com o elemento objetivo que ela está alegando [...] Eu tenho
que extrair da história dela esses três elementos.

Apesar de não ter tido acesso ao roteiro escrito dessas entrevistas, algumas das agentes que
as realizam o descreveram quando assim lhes solicitei. Trata-se, segundo as
entrevistadoras, de ir “indagando até obter a história do solicitante”. Embora solicitem
informação sobre variados aspectos da vida das pessoas, inclusive alguns dados
biográficos, para as agentes que realizam a entrevista, a “história” refere-se especialmente
à narração dos fatos que, segundo a lógica do refúgio, estão diretamente relacionados com
a expulsão ou a saída do país de origem e que será a base para aceitar ou rejeitar o pedido
apresentado.

[...] Começa com perguntas de ordem pessoal: Onde foi que você nasceu? Morou
nessa cidade o tempo todo? Trocou de país algumas vezes? O que é que você
trabalhava? Quais eram as condições de vida no seu país? Quanto ganhava pelo
trabalho, o que é que você conseguia pagar com isso? Assim, algumas perguntas
de ordem pessoal. Depois, a gente parte para as perguntas relacionadas à
perseguição que a pessoa sofreu, aí é o momento de ela me contar ‘A história’
que tipo de perseguição que ela sofreu. Se ela está narrando uma perseguição
política, então eu vou fazer questão de saber mais detalhes: Ah! É um partido de
oposição política? Me conta um pouco mais a história desse partido. Se for uma
pessoa que está narrando perseguição política, ela deve saber alguns detalhes do
partido político ao qual ela pertence [...] Ah, se é uma perseguição religiosa [...]
Ou seja, aí na entrevista a gente tenta ir cavando detalhes dentro daquilo ali. E a
gente encerra a entrevista perguntando como foi que ela ouviu falar da Cáritas.
(Advogada da Cáritas)

229
Em princípio, somente as duas entrevistadoras (da Cáritas e do Conare) têm a autoridade
de emitir um parecer a respeito da solicitação de refúgio apresentada. Contudo, no caso da
Cáritas, outros fatores, além da entrevista e outras profissionais, além das advogadas,
desempenham um papel importante no processo de seleção dos solicitantes. Algumas das
advogadas contaram-me que, em ocasiões, com o intuito de ter mais elementos na hora de
emitir o parecer sobre um caso, era muito útil a opinião do resto da equipe de atendimento
da Cáritas, que costuma estar conformada por psicólogas, psiquiatras e assistentes sociais.

Nós temos psiquiatra, temos psicólogo e, nesse processo que a gente vai
arquivando os papéis dele, cada vez que ele comparece aqui para alguma coisa a
assistente social está aqui, a psicóloga está aqui. Então quando eu estou emitindo
o parecer, eu estou com aquela pasta na mão, então eu vou olhar tudo. Surge
alguma dúvida! Ah! Mas ele teve oito sessões com a psicóloga. Isso ai já está me
sugerindo alguma dúvida sobre o estado emocional dele. Então vou bater um
papo com a psicóloga. A psiquiatra recebe todos os remédios pesados para essa
pessoa, aí eu vou procurar saber o que aconteceu, porque aquilo ali é um forte
indício de que tudo o que ele me contou é verdade. E também porque o contato
mais frequente deles é com as assistentes sociais, então, [por exemplo,] surge
alguma dúvida de comportamento... Às vezes eh... Teve uma mulher grávida que
ela era uma chata, aparecia cá com frequência! Aí, a história dela era bastante
plausível, mas aí eu vou lá e pergunto assistente: “Olha, essa pessoa é assim?
como é que está? ela estava na casa das mulheres?”. Então, eu tenho esse
diálogo, não é para todo parecer, mas quando tem uma dúvida. (Advogada da
Cáritas)

É interessante essa forma de “consulta” que, às vezes, realiza a advogada sobre o


comportamento das pessoas e especialmente sobre seu estado psicológico, como “indício”
de verdade na história. A consulta profissional e, ainda assim, a preeminência do conceito
da advogada, no caso da seleção de refugiados no Brasil, nos oferece pelo menos duas
entradas para indagar os processos de seleção e, em particular, o parecer resultante da
entrevista com essa organização que age como representante tanto da “sociedade civil”
quanto do Acnur. Em primeiro lugar, parece eloquente a ideia, expressada pela equipe de
funcionárias, segundo a qual o comportamento das pessoas com relação à instituição, às
outras pessoas e inclusive consigo mesmas, é um elemento transcendente na decisão.

[...] Por exemplo, as consultas que ele faça ao psicólogo durante esse ano, os
pareceres do psiquiatra. Ah! uma pessoa que está alegando que fugiu do país dela
numa condição em que ela não tinha nada, tem que deixar tudo. Aí daqui a pouco
a gente começa a perceber que essa pessoa viaja todo mês pelo Brasil todo, você
começa a perceber uma certa desconfiança sobre aquela história da pessoa.
(Advogada da Cáritas)

Sim, a gente vai verificando que tipo de pessoa é essa, se ela vem à Cáritas com
frequência, se comparece nas entrevistas que são marcadas, se solicita
encaminhamentos para trabalho, se solicita encaminhamentos para cursos. Então,
é uma pessoa que está interessada em participar de tudo aquilo que é oferecido

230
por nossos parceiros. Ou se é uma pessoa que só vem na Cáritas para pedir
alguma coisa, por exemplo, ajuda financeira, porque tem umas pessoas que vêm
só com esse intuito, né? De querer ajuda financeira, mas não participam de nada.
Vêm unicamente para renovar o documento ou pedir ajuda financeira. Então,
essas pessoas elas já começam a ficar em descrédito, né? Porque a gente vai
avaliando qual é a participação dessa pessoa, qual é a sua real vontade de se
integrar [...] a gente vai formulando a nossa opinião com respeito dela.
(Assistente social da Cáritas)

Nesse sentido, além do fundado temor de perseguição, que é apresentado como a base para
avaliar a “história” e emitir um parecer, o comportamento das pessoas parece ser assumido
como um reflexo possível de sua verdade enquanto sujeito e da veracidade e concordância
de sua história consigo mesmo. Na segunda parte da tese, foi discutida a relação que as
pessoas estabelecem com as funcionarias de Cáritas, assim como a convivência não
excludente de ideais de assistência e caridade (DE SWAAN, 1992) que configura boa parte
dos princípios morais que orientam os serviços oferecidos para solicitantes e refugiados117.

Também gostaria de lembrar brevemente que, conforme Vianna (2002), foi frisado o fato
de que esse tipo de relações estabelecidas entre agentes de refúgio e solicitantes, não
funciona meramente como um exercício hierárquico de imposição de normas e avaliação
de seu cumprimento. Os sujeitos administrados, de maneiras muito diferentes, fazem parte
ativa da construção de ideais morais e avaliações do comportamento próprio e dos outros.
Essas avaliações do comportamento entram em jogo como um elemento passível de ser
interpretado de modo a comprovar a verdade de sua história, assim como de estabelecer o
merecimento ou não da dádiva preciosa do refúgio ou dos benefícios que são entregues de
forma discricional na Cáritas.

Também considero pertinente levar em conta, como foi apontado por alguns autores, que,
com o reposicionamento da noção de trauma no espaço da gestão política (KLEINMAN et
al., 1997), muitos sofrimentos começaram a ser pensados como uma marca inscrita no
espaço psi dos sujeitos (FASSIN; RECHTMAN, 2007). Se os médicos haviam sido os

117
A discussão apresentada na segunda parte da tese, que foi baseada nos pressupostos de Abram de Swaan
sobre a caridade como uma organização coletiva para amenizar os riscos dos grupos despossuídos, pode ser
complementada brevemente, para auxiliar a leitura, com a proposta de Bourdieu em La Miseria del Mundo,
segundo a qual na época contemporânea, em diferentes lugares do planeta, se passou “de una política de
Estado que aspira a actuar sobre las estructuras mismas de la distribución a otra que sólo pretende corregir los
efectos de la distribución desigual de los recursos en capital económico y cultural, es decir, una Caridad de
Estado destinada, como en los buenos tiempos de la filantropía religiosa, a los “pobres meritorios”
(BOURDIEU, 1999, p. 163)

231
profissionais encarregados de certificar o sofrimento físico, com essa virada para o espaço
psi, a prática profissional de psicólogos e psiquiatras também se inscreveu no espaço da
gestão governamental.

No mundo institucional do refúgio no Brasil, a presença dos profissionais das áreas psi é
explicada pelos agentes do refúgio como sendo fundamental para “aliviar o sofrimento das
pessoas” e como um de seus “direitos em quanto que refugiados e perseguidos”. Sua
presença também faz parte das práticas de governança que precisam da produção de uma
verdade do sujeito por meio de vários registros, assumidos como sendo objetivos e
universais, que possam certificar a presença, o tipo e o grau de dor no sujeito. Tudo isso
contribuindo para alimentar um sistema de crença que posiciona o refúgio como a ação
adequada para as pessoas que experimentam êxodos marcados por tipos específicos de
sofrimentos.

Apesar de não ser o parecer psicológico ou o psiquiátrico aquele que tem um maior peso na
decisão final sobre o pedido de refúgio, proponho levá-lo em conta para compreender a
configuração atual dessa etapa do processo de seleção no caso brasileiro. Isso,
especialmente se consideramos que, além da consulta que algumas advogadas da Cáritas
disseram realizar às outras profissionais da equipe, também uma boa parte das pessoas
solicitantes, refugiadas e reassentadas me disse ter procurado os serviços psicológicos
como uma estratégia para melhorar suas chances de serem eleitos e não apenas para
realizar uma terapia ou uma consulta. Isso não quer dizer que as consultas que as pessoas
realizam com profissionais psi obedeçam a uma mera intenção instrumental. Ao contrário,
a presença de psicólogas é reclamada também por parte das pessoas solicitantes e
refugiadas com intenções terapêuticas.

Apesar da relevância que, nas relações cotidianas, parece ter a avaliação do


comportamento dos solicitantes ou a presunção de seu estado psicológico, a verdade é que
oficialmente será somente a advogada a encarregada de “identificar” o “fundado temor de
perseguição” e também será ela quem terá o poder de decisão a esse respeito. Tanto a
capacitação e assistência técnica que dá o Acnur para as advogadas que vão representá-lo
nessa etapa quanto os formatos das reuniões deliberativas do Conare, e a realização de uma
entrevista por parte de uma de suas agentes, estão fortemente determinados por essa

232
fórmula baseada em um fundado temor e, especialmente, na crença de que a veracidade
desse temor pode ser encontrada pelas advogadas no próprio solicitante. Permito-me trazer
novamente alguns dos fragmentos supracitados na tabela 1, repetição que auxiliará a leitura
neste momento:

[...] É claro que esse é um juízo de valor próprio, do advogado, mas, a gente é
treinada para identificar circunstâncias, obter detalhes, identificar o estado
emocional da pessoa [...]. (Advogada n° 1)

Mesmo para a outra advogada – quem expressou uma dificuldade para estabelecer se
aquilo que diz o solicitante é verdade ou não – o que é posto em dúvida é a forma em que
pode ser comprovada a narrativa, mas não é questionado o fato que exista uma verdade no
sujeito. Esse receio sobre a base narrativa do procedimento atual parece sugerir que seria
melhor um sistema de juízo em que provas fossem aportadas, questionando a falta de
objetividade que supõe um veredito baseado na palavra do sujeito. Trago novamente o
relato citado na tabela 1:

[...] Eu não posso analisar e colocar em julgamento a veracidade do que ele fala
se eu não tenho como confirmar isso. Eu não posso fazer um julgamento moral
sobre ele. Eu não posso julgar se é honesto ou não [...] Então, tem também uma
questão que a gente tem discutido muito que é o devido processo legal em
relação ao processo de refúgio. Ou seja, que garantias processuais ele tem? Que
ele possa, de fato, fazer uma boa defesa. Isso, para alguns, é só um detalhe, mas
desde o meu ponto de vista, e não é só porque eu sou advogado, isso é essencial.
A gente não tem um processo que garanta para eles a justiça que é necessária.
(Advogada n° 2)

Assume-se que a narrativa pode enganar, enunciando coisas que não são verdade, ou, ao
contrário, pode recriar a suposta verdade. Nesse último caso, haveria uma correspondência
entre o dito e o vivido, entre o dito e o sujeito que o diz e que o viveu. Daí se desdobra a
necessidade que expressa uma das advogadas de “cavar”, “extrair” e “verificar”, como
ações que permitiriam chegar ao mais profundo da pessoa, em uma espécie de arqueologia
do sujeito que faria emergir o que está dentro dele. Esse interior como um lugar de
autenticidade onde são engendradas as emoções já havia sido descrito por Luc Boltanski
(1993, p. 125-127), quem sugeriu que as emoções são geralmente assumidas no mundo
social como uma exteriorização do interior, como uma sorte de epifania que expressa na
ordem corporal uma realidade de outra ordem. Ainda conforme Boltanski, podemos
identificar o papel desempenhado pelos signos corporais nesse momento da entrevista e o
tipo e a medida de emoções que acompanham a narração. A expressão autêntica das

233
emoções requer de uma economia não apenas do que é expresso, mas também de quanto e
quando isso se faz. A antecipação, segundo Boltasnki (2008, p. 127), seria uma amostra de
algo que não surge espontaneamente, mas que tem sido ensaiado e então será recebido
como sendo uma falsidade que pode virar o indício da mentira. A esse respeito, uma última
repetição dos fragmentos citados na tabela 1 pode nos servir de exemplo:

Uma delas é a forma como ela está me contando isso; mulheres que sentam aqui
e contam que elas foram estupradas por uma milícia inteira. E aí, a pessoa para
me contar isso, o primeiro é que é difícil para eu contar isso, se ela chegar e bater
um papo aqui como a gente está batendo e falar: “Ah é que eu fui estuprada por
cinco soldados” e eu olho para a cara dela e não tem nenhuma emoção, não
tem... E ela não sabe contar detalhes da história. Eu vou começar a duvidar da
história dela e vou começar a fazer outro tipo de perguntas. Já tem acontecido
isso. Agora, têm pessoas que sentam aqui e é uma dificuldade incrível para você
arrancar, porque existe envolvimento emocional, tem isso que você olha para a
pessoa e você vê o caráter emocional que ela está jogando naquilo que ela está
contando ou a quantidade de detalhes que ela narra sobre aquilo ali, ou a
percepção política, ela vai ter um monte de detalhes para te contar, vai ter
história de amigos, história de vizinhos, etc. (Advogada n°1, ver quadro 2)

Essa economia emocional, administrada no contexto da entrevista, é especialmente


sugestiva sobre outro tipo de traduções que são gestadas nesses espaços e momentos
administrativos. Eles não são apenas a mise em scène ritual do Estado, sem a qual se
perderia a legitimidade do processo e da própria produção de refugiados. Esses momentos
rituais são também o momento da tradução do sofrimento expressado por um sujeito em
um elemento administrável e “coerente” com a prática de uma ação, considerada uma
“política pública”. Vianna e Farias (2011) apontaram a complexa relação entre a expressão
emocional e a ação política, especialmente quando quebra os limites, supostamente claros,
entre o espaço doméstico e o público. Estaríamos, no universo institucional do refúgio, em
um dos múltiplos espaços e diante de uma das variadas maneiras nas quais uma dor pessoal
pode ser inscrita no espaço público e especialmente em algum lugar da ação política.

Por outro lado, da ideia de um interior depositário da verdade do sujeito e de uma


correspondência entre sua narrativa e ele próprio, também se desdobra a dificuldade que
encontrou a outra advogada (advogada 2, ver quadro 2) ao não poder contar com mais
elementos para estabelecer essa correspondência. Apelando, ao mesmo tempo, à
possibilidade de devido processo que nos remete ao sistema judicial e à verdade ilustrada
da que falou Das (2008).

234
Segundo alguns autores (DANIEL; KNUDSEN, 1995; FASSIN, 2010; D’HALLUIN,
2008; GOOD, 2006) que descreveram diferentes momentos das políticas de refúgio em
outros países, especialmente nos países chamados do “primeiro mundo”, as dinâmicas de
seleção, em diferentes momentos históricos, estabeleceram formas decalcadas em formatos
judiciais para “coprovar” a narrativa do sujeito. Ora chamando a um profissional capaz de
ler em seu corpo e cicatrizes a história inscrita da tortura e a vida narradas pelo solicitante
(D’HALLUIN, 2008; FASSIN, 2010), ora levando a leitura para o plano “psi” e buscando
especialistas na leitura do trauma e as marcas emocionais não evidentes no plano físico
(FASSIN; REICHTMAN, 2007; KLEINMAN et al., 1997), também convocando a pericia
médica para confirmar uma doença que coloque em risco a vida do solicitante
(D’HALLUIN, 2008; FASSIN, 2010) ou apelando ao conhecimento dos antropólogos e
sociólogos sobre o contexto em que o solicitante localiza sua narrativa (GOOD, 2006). Em
qualquer caso, os expertos são chamados para oferecer seus conceitos no contexto de
tribunais administrativos que operam com o formato e as lógicas de um juízo no qual é
julgado o sujeito solicitante e é decidida sua recepção ou rejeição.

No caso brasileiro, apesar da primazia do exercício profissional das advogadas, não tem
sido estabelecida a dinâmica de um processo judicial em que o sujeito seja julgado
publicamente na base da quantidade e a qualidade das provas fornecidas. É a narrativa
produzida no contexto de uma entrevista e contrastada com os outros tipos de produção
documental e oral do sujeito, a base para a seleção. Porém, existe um valor associado à
prova por parte dos agentes do refúgio, que habitualmente afirmam que embora não sejam
exigidas, as provas ajudam no processo e na emissão de um parecer positivo. Mas as
provas também são valorizadas pelos próprios solicitantes quem por vezes encontram
nelas, não apenas uma forma mais rápida e segura de serem reconhecidos, mas também um
apoio moral para seu sofrimento e uma forma de se colocar no lugar digno do refugiado
diante do caráter deplorável a que é destinado o migrante econômico nesse universo
institucional.

As “provas” que forneceram ou levaram consigo os solicitantes com quem conversei,


foram basicamente documentais. Algumas consistiam em uma copia impressa das ameaças
recebidas ou das noticias da imprensa que trataram sobre o evento de perseguição por eles
referido. Outras vezes, foram documentos produzidos pela mesma rede parceira do Acnur,

235
como a carta de desplazamiento, no caso das pessoas previamente reconhecidas como
refugiadas internas na Colômbia. Em menor medida, forneceram alguns certificados
médicos e histórias clínicas que corroborariam os relatos de torturas ou feridas sofridas no
contexto da perseguição em questão.

Na maioria das vezes, as “provas” eram documentos produzidos por algum organismo de
proteção ou de investigação na Colômbia, onde eles tinham denunciado ou onde havia
investigações a propósito desses fatos denunciados (fiscalías, juizados, delegacias de
polícia, batalhões do exército nacional, etc.) ou produzidos como denúncias públicas não
judiciais por ONGs internacionais de proteção e defesa dos direitos humanos. Esses
documentos não agiram automaticamente, e em si mesmos, como provas na entrevista.
Seria a interpretação que desses documentos fizessem as advogadas, baseadas na lógica
desse campo de governança do refúgio, o fator que terminaria decidindo se todos esses
documentos e objetos fornecidos (receitas médicas, medicamentos, fotografias, passagens
de ônibus ou avião, etc.) funcionavam ou não como “elementos probatórios”.

Dessa maneira, é possível pensar que as provas mobilizam pelo menos dois registros não
excludentes. Em primeiro lugar, estão baseadas na crença da produção documental do
regime mundial de Estados-nação, validando seus sistemas jurídicos, fiscais e
investigativos. Isso sem desconhecer que algumas vezes esses sistemas são questionados,
especialmente quando não correspondem ao sistema jurídico ocidental das democracias
neoliberais. Em segundo lugar, essas produções documentais só teriam sentido no marco
da relação social que é estabelecida sob o formato de uma entrevista (BOURDIEU, 1999)
de seleção; ou seja, se nessa relação hierárquica esses elementos podem ser interpretados
pela advogada como provas a favor e, além disso, serem atualizados pelo solicitante como
um bom reforço de si mesmo, lembrando-nos da redundância dos “eus” da que falou
Peirano (2009) a propósito dos documentos de identidade. Nesse caso, seriam documentos
que reforçariam a identidade de refugiado que intenta-se performar e verificar.

Com esses dois registros apontados no caso dos colombianos refugiados, pode-se perceber
que, ao mesmo tempo que o solicitante reconhece a incapacidade de seu próprio Estado-
nação para protegê-lo – e, por conta disso, pede refúgio – também tem de reforçar os
poderes que ostentam os sistemas jurídicos e sociais. Sistemas que, de fato, contribuíram

236
em sua produção como um sujeito marcado pela ordem do nacional. Tomando como base a
narrativa de José Alberto, é impactante notar como ele expressa sua frustração e
esteticismo sobre o Estado-nação colombiano, ao mesmo tempo que se apega aos
documentos que esse produziu para certificar que ele é um bom cidadão:

Ya renuncio a ser colombiano, cuando a mi me den asilo yo automáticamente


quiero no doble nacionalidad sino renunciar a Colombia. Porque yo no creo ni en
los colombianos, ni en la justicia colombiana, ni en la politiquería colombiana.
No creo porque uno no puede ser víctima de unas personas que manejan un país
como les da la gana y los delincuentes son los únicos que tienen derecho a todo,
a asilo, los únicos que tienen derecho a tener una ley que les diga que la ley del
perdón, la del olvido118 ¿qué es eso? ¿Tú puedes matar 300 personas y te
entregas y ya eres bueno?
[…]
Yo estoy aquí es porque soy bueno, siempre he sido bueno y quiero que mis
hijos sean buenos y sean profesionales. Por eso estoy aquí, ese es el sacrificio
que yo hago y mis hijos están haciendo, mi mamá lo está haciendo y mi familia
lo está haciendo. Entonces es un sacrificio que ¿dónde lo ven las entidades? […]
Si nosotros no nos hemos robado nada, si nosotros no hemos asesinado. Nosotros
venimos con pasaportes, venimos con un record que le llaman “pasado judicial”
[…] No tenemos antecedentes judiciales nunca jamás, ni hemos tenido
inconvenientes con la justicia […] un documento que está sustentado con un
certificado de defunción de cómo murió mi padre, fue policía, mi cédula de
Colombia dice: nacido en xxxxxxx, mi madre nació en xxxxxxxx y xxxxxxx es
conflicto, es zona de despeje, [así] lo pidió la guerrilla. […] es zona de
distención de conflicto armado, por más de 50 años. Que lo solicitaron los
señores en el gobierno de Andrés Pastrana y de Álvaro Uribe como presidente,
pidieron que xxxxxxx fuera zona de distención. Y como no lo han aceptado lo
bombardea, con bombas, con asesinatos. De ahí vengo yo, ahí nací yo.

Na interpretação dos documentos fornecidos como “provas”, vários fatores são levados em
conta. Um deles é o tempo percorrido entre a ameaça e o momento da fuga que, segundo
os agentes do refúgio, mostraria a verdadeira urgência, ou não, da solicitação de proteção,
ou demonstraria os esforços para se proteger em diversas etapas que foram o expulsando
cada vez mais longe do país. No caso de José Alberto, os fatos derivados da morte de seu
pai e da realidade sociopolítica de sua região de origem têm, hoje em dia, uma forte
presença na sua vida. Porém, para os tempos administrativos, esses fatos e as provas que os

118
A lei a qual faz referência esse fragmento é a polêmica Lei Complementar n° 975, de 6 de outubro de
2005, promovida pelo então presidente Álvaro Uribe e aprovada pelo Congresso da República. Mais
conhecida como a lei de “justiça e paz”, foi uma forma de criar um marco jurídico para a desmobilização de
grupos paramilitares, estabelecendo penas de irrisórias para delitos considerados de lesa humanidade
cometidos por esses exércitos ou seus promotores. A lei, tanto quanto o processo de desmobilização
receberam duras críticas de setores nacionais e internacionais provocando à pronunciação da ONU, a
propósito de sua inconveniência para um “verdadeiro processo de justiça e reparação para as vitimas”.
Ver artigo:
WIKINOTICIAS. La ONU pide modificar la Ley de Justicia y Paz y denuncia abusos de guerrilleros,
paramilitares y fuerzas estatales en Colombia. 14 fev. 2006. Disponível em:
<http://es.wikinews.org/wiki/La_ONU_pide_modificar_la_Ley_de_Justicia_y_Paz_y_denuncia_abusos_de_
guerrilleros,_paramilitares_y_fuerzas_estatales_en_Colombia>. Acesso em: 24 jan. 2014.

237
apoiam dificilmente poderão ser acoplados ao presente de refúgio que ele tenta construir
para si mesmo e para sua família.

Segundo me disseram as advogadas do Conare e de Cáritas, também há uma avaliação


sobre as ameaças referidas pelas pessoas, inclusive se essas estão apoiadas por “provas”.
Além do momento em que elas foram feitas, observa-se se elas afetam diretamente a
pessoa solicitante ou exclusivamente a uma parte de sua família ou apenas à região de
origem sem chegar a representar um perigo direto sobre o sujeito que as aciona como
motivo para pedir proteção. Os elementos que as pessoas fornecem como provas só
funcionam se são integrados de maneira adequada à cena social que é produzida nesse
formato de entrevista. Somente se a advogada encontra uma correspondência entre esses
elementos e a valoração que ela faz do sujeito, de sua aparência, da expressão de suas
emoções, dos signos mobilizados, etc., esses elementos ajudarão a avigorar um self crível
e, dessa maneira, exitoso nessa cena social.

A “prova” como elemento passível de reconstrução nas entrevistas, assumidas como cenas
sociais, aparece com mais clareza nos casos em que falha a tentativa de transformar em
provas os documentos “objetivos” que são fornecidos, ou seja, quando se põe em risco o
sucesso da apresentação de si mesmo que esses elementos deveriam ajudar a interpretar.
Nesses casos, os solicitantes costumam ativar outro tipo possível de evidências para apoiar
a verdade de sua produção narrativa. Assim, é ilustrado pelo fragmento que inaugura esta
terceira parte da tese em que José Alberto faz uma lista das provas que apoiam sua
solicitação. Lista que inclui os documentos, as marcas corporais e o registro moral de seus
comportamentos e suas experiências, como o fato de ser um “bom cidadão” e de ter
viajado com a mãe idosa – a quem ele descreve como “uma maquinita de sufrir y de
trabajar”– e de estar morando com ela, junto com o resto da sua família, em condições que
têm lhes trazido ainda mais sofrimento:

Si yo tengo una herida de bala aquí, tengo la cicatriz, si mi papá ya murió, tengo
el recorte de la prensa de cómo murió. Si tengo el certificado de defunción de
cómo murió ¿esa historia me la estoy inventando yo? ¿Traigo a mi mamá de 63
años aquí a sufrir en ônibus?

Não seria acaso o sofrimento constante no novo lugar uma prova da que não foi por prazer
que tem se deixado para trás o país de origem? A perda da vontade, a obrigação de ir e a

238
renúncia ao desejo de progresso econômico e prestígio social já têm sido salientados nesta
tese como elementos que parecem estar na base das lógicas dessas políticas
contemporâneas do refúgio no Brasil. Elementos que também têm sido apontados por
Good, que afirmou que “unwillingness seems a prerequisite for a genuine refugee” (2006,
p. 96). Talvez por isso, como também foi discutido antes, a suspeita de ser migrantes
disfarçados de refugiados é menos incisiva quando se trata de pessoas para as quais o
refúgio significou uma degradação em termos de prestígio social, êxito profissional e
situação econômica.

A busca no sujeito, discutida nesse apartado, que inclui tanto a produção do self em uma
relação social de entrevista quanto a produção de provas possíveis nessa interação, é
chamada pelos agentes do refúgio de pesquisa subjetiva. Para que a fórmula da seleção
esteja completa, falta ainda a pesquisa objetiva que inicia com a análise dos elementos
probatórios e chega ao estabelecimento do nexus causalidade entre esses dois aspectos.
Antes de começar a análise desses outros dois componentes, gostaria de recapitular
brevemente.

No universo institucional brasileiro do refúgio, entende-se que a narração realizada pelos


solicitantes colombianos é um exercício de transparentar a verdade do sujeito ou de fazer
que ela surja, pois essa verdade estaria no “interior” dele. Essa ideia está baseada, por sua
parte, em outra presunção segundo a qual as tecnologias de governo e os profissionais ou
expertos que, em espaços determinados, obtêm essas narrações são capazes de cavar no
sujeito para obter essa verdade e interpretá-la. Para isso, ajuda-se das formas não verbais
de comunicação e da exegese e atualização das possíveis provas aportadas pelos sujeitos
ou conseguidas pelos agentes do refúgio. Sobretudo na entrevista com as advogadas de
Cáritas, os gestos, as pausas, as emoções que acompanham cada parte do relato são
assumidos como signos visíveis da inscrição da verdade objetiva na subjetividade profunda
do narrador.

Somo-me à aposta de alguns autores (CHO, 2008; DAS et al. 2001; POLLAK, 1990;
ROSS, 2001) que criticaram os pressuposições das lógicas jurídico-administrativas
segundo as quais existiria uma relação mimética entre o evento e a memória, agindo como
uma garantia da capacidade de reconstruir uma pretendida verdade. Considero que cada

239
narração é uma criação, uma montagem dos diferentes elementos dos quais se dispõe e se
julga oportuno usar no momento dessa relação social de entrevista. Igualmente, conforme
Pollak (1990) e Ross (2001), reconheço que as circunstâncias dos exercícios narrativos
modelam as formas e os conteúdos do que é dito, em grande parte pelos lugares e pelos
formatos em que se dá esse exercício de enunciação e escuta, assim como pelas
expectativas criadas ao respeito do que se espera que seja produzido.

Na sua qualidade de montagem, essas produções narrativas somente têm sentido se são
entendidas em seu contexto de produção conjunta, na interação com cada um dos sujeitos
que estão fazendo parte dessa cena como interlocutores, em lugares diferenciados de poder,
sejam elas advogadas da Cáritas, agentes da PF, psicólogas, trabalhadoras sociais ou
antropóloga. Buscar uma única versão que se repita sempre da mesma maneira – mas com
a exigência de não cair em mecanicismos iterativos desacreditadores – é tentar negar, como
mínimo, aos sujeitos presentes na interação, às relações de poder que configuram esse
momento, assim como aos jogos da linguagem e da memória.

Como uma das interlocutoras em campo que produziu e solicitou diferentes tipos de
narrações, apego-me aqui, em primeiro lugar, à visão dos intercâmbios narrativos,
especialmente das entrevistas, como relações sociais que “que generan efectos sobre los
resultados obtenidos y se efectúan en una estructura social” (BOURDIEU, 1999, p. 528).
Em segundo lugar, apoio-me na proposta de Fassin (2010), lembrando que, no trabalho de
campo, não temos acesso à verdade do refugiado, mas àquilo que as autoridades
consideram que é a verdade. Finalmente, baseio-me na proposta de Foucault (1995, p.
212), quem nos alerta sobre a tendência a crer que há um pensamento oculto por trás dos
signos, quando os signos são em si mesmos a relação real na qual existe o sujeito.

As entrevistas de seleção que realizam os solicitantes com as agentes do Conare, como


representantes do governo brasileiro, e com as advogadas da Cáritas, como representantes
simultâneas do Acnur e da “sociedade civil”, são tão importantes quanto o encontro oficial
com a Polícia Federal que marca a entrada administrativa legal à ordem do Estado-nação.
As entrevistas são rituais burocráticos, com todos os códigos expressivos situacionais
(ABRAMS, 2000, p. 80) sem os quais a mudança de estado de perseguido a refugiado não
teria sentido para a ordem social a qual deveram se integrar os novos membros que

240
consigam cumprir com sucesso esses rituais e sobrelevar o sofrimento e a incerteza que
eles implicam.

7.2. Interpretações objetivas: a fuga da emoção e a marca da razão

A expressão emocional identificada pelas entrevistadoras no sujeito, a marca corporal


certificada por um experto ou o elemento documental fornecido pelo solicitante e validado
pelas autoridades do refúgio podem ser entendidos como a produção da correspondência
entre a narrativa exposta e a pessoa que a narra, ou seja, como a autenticidade do sujeito
que é quem disse ser. Podemos, segundo essa ordem de ideias, pensar que a
correspondência dessa correspondência com a verdade do local de expulsão é o nexus
causalidade que completaria a fórmula da seleção. No universo institucional brasileiro do
refúgio, são novamente as profissionais do direito as expertas invocadas para explorar e
identificar essa verdade no contexto dos lugares de expulsão e sua correspondência com o
sujeito e a narrativa dele. Geralmente, são as mesmas advogadas que realizam as
entrevistas ou, em seu defeito, estudantes e profissionais de alguns programas de
graduação e pós-graduação em Relações Internacionais119.

Essa etapa da “pesquisa objetiva”, segundo me explicaram diferentes agentes da tríade, é


feita pela internet e também parte da pressuposição de que a prática profissional do
experto, seu treinamento e, no caso dos estudantes, a supervisão do professor, poderá
anular os elementos que “subjetivamente” pudessem interferir e enviesar seus resultados.
Quando a busca é feita pela mesma advogada que realizou a entrevista, espera-se que a
emoção gerada pela “história” não interfera nos dados objetivos que ela encontrar. Permito
trazer um fragmento anteriormente citado no qual a agente entrevistadora do Conare tenta,
valendo-se do tempo, se afastar emocionalmente do sujeito e da história construídos na
entrevista, para localizar-se no mundo neutral e desapaixonado da investigação objetiva,
das causas políticas e da situação social do país de origem do solicitante.

119
Existem convênios entre a Cáritas e algumas universidades privadas que incluem o apoio dos estudantes
dos programas de Relações Internacionais na busca via internet de dados sobre a situação sociopolítica das
regiões de expulsão dos solicitantes. Os agentes do refúgio que me explicaram esse tipo de parceria foram
enfáticos em que os informes feitos pelos estudantes, tanto quanto o trabalho de busca, são permanentemente
avaliados e controlados pelo professor encarregado. Essa prática foi também apresentada como uma forma de
sensibilizar aos estudantes de RI sobre o tema do refúgio e criar formas de expandir a sensibilização sobre a
situação dos refugiados nas cidades de acolhida. Alguns dos docentes que vincularam seus cursos a esse
convênio foram previamente agentes de refúgio, trabalhando para a Cáritas ou para o Conare.

241
Aí, eu pessoalmente me afasto, deixo um tempo e faço outras coisas, e aí depois
eu começo as pesquisas, porque aí já você se distanciou um pouco, e aí já
começa a parte objetiva, porque a parte da história dele é a parte subjetiva que
me envolve um pouco mais.

Essa intenção de se distanciar e se colocar num espaço racional aponta uma primeira noção
de objetividade presente nessa etapa da seleção. Encontra-se em jogo a ideia implícita de
que a razão e a emoção pertencem a domínios diferentes, mas perigosamente fronteiriços.
Isto é, a emocionalidade que gera o drama subjetivo escutado pela entrevistadora pode
afetar ou colocar em risco a capacidade de ver os dados “objetivos” ou de julgá-los e
interpretá-los adequadamente, leia-se objetivamente.

De outra parte, se essa busca é presumida de objetiva, não é só pelas capacidades previstas
de quem a realizam mas também pela objetividade suposta – com todos seus correlatos de
racionalidade e caráter público – das fontes que informam da situação social e política nos
locais de origem. Para isso, mais uma vez, a credibilidade é depositada no mesmo sistema
mundial organizado de “proteção” que formam os diferentes organismos da ONU e
particularmente do Acnur com a sua rede de ONGs parceiras que funcionam como nodos
nos diferentes locais que são ativados com uma solicitação de refúgio.

Agente: [...] Na elegibilidade, tem que ver, ele contando a história dele, se a
região de onde ele vem aquilo que ele conta é possível, parece crível.

Eu: E vocês têm conhecimento dos problemas das regiões?

Agente: A gente tem acesso a um diretório do Acnur que até está na internet, né?
Que é livre mesmo. É o Refworld que reúne informação de todos os países que
tem a ver com a decisão de elegibilidade para refúgio. Então, tem de
Afeganistão, Paquistão e tem da Colômbia. Então, eu consulto muito para ver se
o relatório da Human Rights Watch ou de Anistia Internacional. Porque é como
um diretório. Eu não preciso ficar procurando em vários lugares da mídia, senão
que o Acnur reúne tudo aí e eu consulto para ver se na região atua algum grupo,
qual é o grupo que atua na região e se é crível o que a pessoa me contou. (Oficial
entrevistadora do Conare)

A ideia de credibilidade associada a determinadas ONGs e organismos internacionais é


muito importante para dotar de objetividade à busca. Assim, por exemplo, o site
Refworld120 – atualizado pelo Acnur a partir da informação das agências que esse
organismo considera confiáveis – torna-se a base para a busca, pelo menos na sua fase
primária. Depois, a continuidade e minúcia da pesquisa dependerão, em parte, do

120
REFWORLD. Disponível em: <www.refworld.org>.

242
empenho, da habilidade, dos conhecimentos e do tempo de cada agente envolvido, como
também da informação que possa ser associada a cada caso particular. Porém, vale
lembrar, que houve uma constante enunciação da falta e da precariedade na administração
dos refugiados: excesso de solicitações, poucas entrevistadoras, escassez dos orçamentos,
etc. Dessa forma, é possível supor que cada caso pesquisado tem uns limites imagináveis
de recursos e esforços investidos.

Além disso, o site referido que centraliza a informação sobre as regiões também tenta
recopilar dados “confiáveis e neutrais” de outras organizações, mas, segundo as
entrevistadoras, outra parte da informação terá de ser procurada para além dessa
compilação. Nesse caso, a seleção da informação dependerá do juízo “experto” de quem
realize a busca para determinar qual fonte seria a adequada, quem são os produtores da
informação circulante, quais são seus contextos de enunciação e de produção e qual seu
vínculo com a história do solicitante.

A preocupação pelo poder que tem essa “pesquisa objetiva”, ou melhor, seus resultados,
apareceu não só como a referência ao conhecimento experto dos agentes do refúgio mas
também como uma inquietação de algumas das pessoas solicitantes ou refugiadas;
particularmente, nas minhas conversas com aqueles que, em algum momento, fizeram
parte da rede ampla de ONGs que trabalham com deslocados, refugiados ou em defesa dos
direitos humanos. Um deles que, antes de sair da Colômbia, trabalhou em várias dessas
ONGs121 (algumas delas parceiras do Acnur) referiu-se de maneira direta a esse aspecto da
busca “objetiva” que realizam os diferentes agentes do refúgio como parte fundamental dos
processos de seleção.

Falando da sua própria prática profissional como agente de uma ONG que, na Colômbia,
selecionava pessoas para serem apresentadas como candidatas a refúgio em outros países,
ele me contou:

Había que presentar los casos al Acnur y que eran evaluados por [la ONG
llamada] xxxxxxxx y el problema para un desplazado era muy jodido porque lo

121
Na segunda parte da tese, foram apresentados alguns aspectos dessa espécie de inversão, na qual ex-
agentes locais da rede ampla do refúgio do Acnur tornam-se refugiados, mantendo uma maior capacidade de
reconstruir o tecido de relações que suporta esse espaço de governança e que, para outros refugiados,
somente aparece como fragmentos dificilmente passíveis de serem reconstruídos em uma unidade coerente.

243
evaluaban fundados en [lo que decía] la Red de Solidaridad Entonces la Red de
Solidaridad podía decir, eso es mentira. Y nosotros nos peleábamos eso,
entonces Acnur empezó a recibirnos a nosotros solos, sin la Red de Solidaridad.
Pero la idea es que nosotros teníamos que presentar un informe con denuncias
comprobadas y el informe mostraba casi que una trayectoria de la persona en
actividades políticas. Mejor si era vinculado a organizaciones sociales y de
derechos humanos, o sea, que si era sólo perfil político, sólo del Partido
Comunista, por ejemplo, tal vez no podía tener tanta ayuda como un líder
comunitario. Entonces que tuviera ese perfil y que mostrara un tipo de amenazas
permanente, con proceso de represión sistemática y que mostrara que en verdad
su vida estaba en riesgo. O sea, ¡Te van a matar ya! Una cosa así. Hubo casos
que para poder hacer que se les reconociera, tuvimos que hacer las denuncias.
Gente a la que tuvimos que ayudarla a poner las denuncias. Que no lo
necesitaban porque lo que íbamos a hacer era exponerlos más, pero [lo
hacíamos] como trámite para que se reconociera que en verdad estaba siendo
perseguido. ¡Era una bobada! Entonces teníamos que hacer una denuncia
internacional y después sacábamos de la misma página web de otras
organizaciones, copia de de la denuncia. Claro, ahí con el membrete de La
Federación Internacional de Derechos Humanos, de Amnistía Internacional, de la
Human Right Watch, cosas así, o de los mismos informes que en las Naciones
Unidas tenían los relatores para líderes, o comunidades negras, o indígenas, etc.

Esse fragmento, além de traçar boa parte das características que são determinadas para
criar e selecionar certo tipo de perfis, também mostra que essa classificação que começa
em outros lugares do mundo influencia profundamente a seleção brasileira dos refugiados.
O cruzamento de informação também permite desconstruir a ideia segundo a qual a entrada
dos refugiados ao Brasil e o contato com agentes brasileiros do refúgio é um ponto zero de
(re)estabelecimento de vínculos com a ordem nacional, quando é, mais precisamente, um
vínculo com a ordem particular do Estado brasileiro e seu universo institucional. Uma vez
mais, considero pertinente salientar que os sujeitos banidos de seus lugares de origem
nunca deixam de estar sob o poder estatal, nem sob o poder generificante da nação
(BUTLER; SPIVAK, 2007).

A partir de outro ângulo, esse fragmento também está nos contando que a “prova objetiva”
que se considera um elemento com existência autônoma e distante (temporal e
espacialmente) dos agentes da seleção brasileiros, também pode ser produzida em algum
ponto da mesma rede de seleção que se estende para além das fronteiras geopolíticas do
Estado-nação brasileiro. No caso das práticas de seleção de refugiados no Brasil, podemos
ver que a classificação e transferência das pessoas envolvem aos nodos que essa rede
organizada de “proteção” tem na Colômbia e no Equador. Do mesmo modo, envolve uma
variada e extensa gama de agentes que, como no caso de quem me narrou essa produção de

244
provas, tem ocupado lugares muito diferentes na rede de proteção do Acnur, passando de
agente colombiano do refúgio a refugiado colombiano no Brasil.

A fórmula da seleção de refugiados no Brasil, aqui discutida, funciona também sob a ação
de outra pressuposição segundo a qual a situação de violência generalizada ou a
perseguição personalizada contra um indivíduo são circunstâncias objetivas que acontecem
em um lugar determinado. Esse lugar e um “lá” de origem distante, inscrito em uma
distância geográfica, mas antes de tudo temporal. É um “lá” bárbaro e de natureza violenta
que expulsou as pessoas para um “cá” civilizado e “culturalmente inclusivo”. Quando esse
“lá” vai se transformando, tomando rumos de processos lidos como “civilizatórios” (como
foi interpretado, por exemplo, o final da guerra em Angola), a condição de refúgio será
susceptível de cessar – tal como efetivamente aconteceu com a condição de refúgio dos
nacionais angolanos no Brasil; ou também, como no caso da leitura feita pelos agentes de
refúgio sobre a realidade sociopolítica colombiana que, segundo eles, estaria iniciando uma
nova era e um processo para “se encontrar” 122. Razão pela qual já não era mais possível
falar em uma situação de grave e maciça violação dos direitos humanos na Colômbia. Uma
mudança nas “condições objetivas” do país pode, então, engendrar uma mudança nas
condições subjetivas de existência das pessoas refugiadas ou solicitantes e que
repentinamente poderiam também se encontrar em situação de ex-refugiadas.

As mudanças nas “realidades nacionais” podem gerar endurecimentos ou flexibilizações


nos processos seletivos, novas diretrizes de eleição e a expectativa no aumento ou
diminuição da quantidade de solicitantes provenientes de um país determinado. Contudo,
as transformações subjetivas não são avaliadas da mesma maneira. Ou seja, não se
considera que uma pessoa possa ser mais vulnerável à perseguição por conta de uma
mudança na sua forma de vida, nas suas atividades ou nos seus pensamentos,
especialmente se ela já está fora do seu país. Esse aspecto surgiu como pergunta em alguns
espaços que acompanhei, nos quais pessoas refugiadas e não refugiadas denunciavam a
situação de violação de direitos humanos na Colômbia e a grave situação de espólio de
terras.

122
Assunto tratado na segunda parte da tese no título “As guerras e os refúgios: o político e o humanitário”.

245
Alguns dos participantes desses espaços enunciavam, às vezes, com tom de uma piada, o
fato de que a atividade que realizávam podia engendrar perseguições contra. Além disso,
em conversas com algumas pessoas refugiadas que tinham saído da Colômbia por causa de
sua militância ou participação política partidária, surgiram perguntas similares. Uma delas
me perguntou, por exemplo, se eu não correria perigo depois de terminar a pesquisa ou
durante o desenvolvimento da mesma. Segundo me disse, lhe preocupava que eu tivesse
muita informação de “personas perseguidas y escondidas assim como que o que eu
escrevesse no les guste en Colombia y te hagan algo” ou então que “te encuentres con
alguien peligroso por ahí”.

Tomei essas perguntas, sugeridas por meus interlocutores, e as formulei para alguns
agentes de refúgio, particularmente, para algumas das advogadas que têm (ou tiveram) o
poder de emitir um parecer sobre os pedidos de refúgio. Com uma só exceção de uma
advogada que me falou sobre as diretrizes do Acnur a respeito disso 123, os outros agentes a
quem lhes perguntei consideraram improvável que isso pudesse acontecer. Embora a
categoria exista nas leis internacionais de refugiados, esses agentes não a evocaram e
consideraram que a única razão para que uma pessoa que já esteja no Brasil há anos possa
ser reconhecida como refugiada seria uma mudança nas condições do seu país, por
exemplo, que exploda uma guerra que lhe impeça voltar.

Perante minha descrição das atividades políticas que as pessoas consideravam que podiam
impedir seu retorno tranquilo à Colômbia ou engendrar perseguições, as agentes
entenderam a situação e algumas manifestaram inclusive a conveniência de incorporá-las
nas discussões do Conare. Contudo, salientaram o fato de que, no Brasil, as pessoas não
são perseguidas como acontece na Colômbia por elas pensarem diferente, opinando que é
muito pouco provável que as autoridades colombianas fiquem sabendo das atividades

123
O Acnur definiu uma categoria chamada refugiados sur place que contempla a situação de pessoas que,
morando em um país diferente ao de sua nacionalidade, consideram que precisam de proteção. Segundo o
Acnur, isso pode acontecer por conta de sucessos no país de origem ou pelos próprios atos da pessoa, mas
que, em qualquer caso, requer de uma análise muito especial e cuidadosa: “(95) Uma pessoa pode se tornar
um refugiado sur place devido a circunstâncias que surjam no seu país de origem durante a sua ausência […]
(96) Uma pessoa pode se tornar um refugiado sur place devido aos seus próprios atos, seja porque se
associou com refugiados já reconhecidos, seja por expressar suas opiniões políticas no país de residência.
Para determinar se tais atos são suficientes para justificar o fundado temor de perseguição deve ser feita uma
análise cautelosa das circunstâncias. Em particular, deve-se avaliar se tais ações podem ter chegado ao
conhecimento das autoridades do país de origem e como elas poderiam ser interpretadas por essas
autoridades” (ACNUR, 2011b, p. 21)

246
políticas de seus cidadãos no exterior e que, em qualquer caso, uma perseguição por parte
de outros conterrâneos estava descartada. Esta última não só pela distância do conflito, mas
pela “boa seleção realizada no Brasil” que o blindaria contra esse tipo de problemas que,
ao contrário, “si acontecem no Equador”.

Sem pretender entrar na difícil discussão sobre as violências da Colômbia e nos diversos
locais onde elas podem se materializar, permito-me fazer uma leitura possível do que
considero ser o temor derivado de diferentes formas de experiências violentas como
marcador de algumas subjetividades, particularmente, mas não só, militantes. Interessa-me
levar em conta a ideia de Reynolds (2000, p. 145), que, a partir de seu trabalho em espaços
familiares de ativistas políticos, sugeriu a presença de uma sorte de avaliação permanente
do risco próprio, e dos outros significantes, como parte da vida cotidiana em contextos de
violência de Estado. Também considero pertinente a proposta de Jeganathan (2004) sobre
os checkpoints como elementos que geram cartografias por – e eu agrego: para – a
antecipação da violência. Para o autor, o movimento que se dá com os checkpoints é um
mapeamento de um potencial futuro aterrorizante. Esses lugares de controle seriam uma
forma de agência de Estado que inclui tanto sua dimensão dramática e de espetacularização
da sua presença quanto a dimensão rotineira que apela à cotidianidade dos sujeitos que têm
de superar essa encarnação repentina do Estado-policial nos diferentes espaços de seu
mundo habitual, transformando-os.

Uma das formas de subjetivação desse mecanismo consistiria em fazer com que as pessoas
se interroguem diariamente sobre o fato de ser possível ou não de se deparar com um
checkpoint e, além disso, se perguntar sobre que será necessário (documentos de
identidade, salvo-condutos, carteiras de trabalho) para conseguir superá-lo. Tudo isso faz
com que seja preciso incluir na rotina a preparação dos objetos que permitem sobrepassar o
checkpoint, mas também obriga as pessoas que poderiam se deparar com esses controles a
se perguntarem a cada dia se, por acaso, elas são inimigas do Estado. As formas da
pergunta também incluem o potencial temporal do futuro e do passado que impõe essa
tecnologia de controle. Ou seja, se algum dia poder-se-ia chegar a ser considerado um
inimigo do Estado, tanto pelo que mude no sujeito e nas suas atividades quanto pelo que o
Estado “descubra” de seu passado ou então, pelo que possa começar a ser considerado
perigoso que antes não era.

247
Essa potencialidade de ser perseguido e continuamente examinado por diferentes
tecnologias do Estado ou de se encontrar com perseguidores, delatores, potenciais
inimigos, etc., parece ser uma forma possível de “estar no mundo desconfiado”, que, nesse
caso, não faz referência somente ao “mundo do refúgio” com suas fronteiras e categorias
supostamente bem-definidas, mas também se estende até todas as categorias e outredades
não contempladas nessa classificação, que, mesmo assim, estão relacionadas com as
pessoas, os movimentos e os êxodos potenciais engendrados em contextos de violência.

Essa relação potencial dificilmente é entendida ou esgotada na leitura “objetiva” da


situação sociopolítica de um “local de expulsão”. Por isso, muitas das relações dos sujeitos
refugiados – ou potencialmente “refugiáveis” – com os múltiplos Estados que intervêm na
sua produção e administração, são e continuaram sendo inapreensíveis pelos agentes e
pelas agências de refúgio. Daí que os agentes do refúgio no Brasil considerem improvável
que um colombiano seja perseguido em “território nacional brasileiro” e os medos
expressados pelos solicitantes ou refugiados sejam usualmente classificados como
“paranoias ou traumas arrastados do passado”. Vale observar que a fabricação do
refugiado colombiano é também a fabricação da fronteira brasileira e que acreditar na
infalibilidade dos processos de seleção de refugiados é simultaneamente acreditar na
fronteira e reforçar diariamente sua infalibilidade.

7.3. O improvável, o inaudível, o inenarrável

Recapitulando a seção anterior, podemos notar que, segundo os documentos e manuais do


Acnur (2011b), existe a figura do refugiado sur place. Porém, aos agentes do refúgio, lhes
pareceu improvável que as transformações subjetivas na vida de uma pessoa colombiana
morando no Brasil fizessem com que sua história fosse passível de encaixar no perfil do
refúgio. O que proponho focar agora é que aquilo que apareceu como improvável não foi a
possibilidade de o sujeito se transformar. De fato, os documentos do Acnur contemplam
essas mudanças, e os agentes, especialmente algumas advogadas, concordaram que é
possível envolver-se de maneira mais engajada com a vida política do próprio país estando
fora dele. O que apareceu como improvável é que essas atividades, estando em solos
brasileiros, possam significar, para o sujeito, uma potencialidade perigosa em sua

248
existência e, portanto, se faz muito difícil comprovar a necessidade de seu reconhecimento
jurídico-administrativo como refugiado.

Se lembrarmos dos critérios que são utilizados para a seleção de refugiados espontâneos no
Brasil, vemos que, para tal reconhecimento, é preciso não apenas de um contexto
“objetivo” de conflito social ou violência mas também da materialização desse conflito ou
dessa condição violenta em um sujeito, em uma história de perseguição e em um temor de
extermínio. Essa parte da equação é a que as autoridades brasileiras consideram difícil de
reconhecer para alguém que já está no Brasil. Aceitar dita perseguição seria admitir pelo
menos três pressupostos: em primeiro lugar, que o Estado-nação brasileiro, que oferece
proteção aos refugiados colombianos, não pode garantir a segurança das pessoas dentro de
sua jurisdição; em segundo lugar, que o conflito colombiano (supostamente interno) cruza
as fronteiras e às vezes as desmorona; finalmente, que as pessoas em território brasileiro
nem sempre têm as garantias de participação política que são proclamadas publicamente
quando as autoridades do refúgio ou os delegados do governo falam do Brasil como um
país plural e democrático e como uma potência humanitária124.

Como visto na segunda parte da tese, para explicar a “ausência do conflito colombiano” no
território brasileiro é mobilizada a explicação da “boa seleção” com a qual os agentes do
refúgio qualificam tanto os processos de seleção e do programa de reassentamento, quanto
do refúgio espontâneo. Esses filtros que o processo seletivo supõe – e que seriam os
encarregados de deixar do outro lado da fronteira alguns sujeitos presumivelmente
perigosos – não são percebidos pelos solicitantes ou refugiados como mecanismos tão
eficientes para manter afastada a ameaça de perseguição ou a reativação de diferentes
expressões do “conflito”. Inclusive, ex-agentes da tríade descreveram alguns “casos
especiais” de reassentamento nos quais delatores que entregaram lideranças do movimento

124
O Estatuto do Estrangeiro, que ainda hoje regula os assuntos relativos às pessoas imigradas, proíbe
expressamente a conformação de grupos estrangeiros com fins políticos, artísticos e mesmo folclóricos. Ver:
Estatuto do Estrangeiro – Lei n º 6.815, de 19 de agosto de 1980 da República Federativa do Brasil. No artigo
106, o estatuto estabelece que: “O estrangeiro admitido no território brasileiro não pode exercer atividade de
natureza política, nem se imiscuir, direta ou indiretamente, nos negócios públicos do Brasil, sendo-lhe
especialmente vedado: I - organizar, criar ou manter sociedade ou quaisquer entidades de caráter político,
ainda que tenham por fim apenas a propaganda ou a difusão, exclusivamente entre compatriotas, de ideias,
programas ou normas de ação de partidos políticos do país de origem”. E, no seu artigo 107, continua assim:
“É lícito aos estrangeiros associarem-se para fins culturais, religiosos, recreativos, beneficentes ou de
assistência, filiarem-se a clubes sociais e desportivos, e a quaisquer outras entidades com iguais fins, bem
como participarem de reunião comemorativa de datas nacionais ou acontecimentos de significação
patriótica”.

249
estudantil de diferentes regiões da Colômbia foram trazidos para o Brasil, exprimindo a
possibilidade de que sujeitos envolvidos em algumas das dinâmicas de perseguição a
lideranças sociais fossem beneficiários dos programas de refúgio.

Também alguns relatos de colombianos refugiados, que moram há anos no Brasil, aludiram
episódios que ativaram diferentes tipos de temores entre alguns compatriotas. Por exemplo,
alguns anos atrás, apareceram pichações com as siglas das Autodefensas Unidas de
Colombia (AUC) nos banheiros de uma das ONGs que recebem refugiados. As AUC
foram uma das alianças mais conhecidas de grupos paramilitares a que lhe são atribuídas
uma quantidade muito significativa de massacres, torturas, desaparições de corpos, roubo
de terras, deslocamento forçado de populações, assim como perseguição, morte e ameaças
de lideranças camponesas e sindicais, trabalhadoras sexuais e representantes de minorias
sexuais, professores universitários e estudantes e, em geral, de líderes sociais a quem
acusavam de comunistas e convertiam, por essa razão, em um alvo de sua luta, dita
“antissubversiva”125.

Algumas das pessoas refugiadas com as que eu falei durante a realização da pesquisa de
campo tiveram de sair do país por causa das ameaças desse grupo paramilitar. Assim, o
temor que eles me expressaram como derivado de seu encontro com essas pichações me
pareceu lógico. Contudo, segundo as pessoas que referiram esse episódio, os agentes da
ONG consideraram que não existia motivo para se preocupar, que poderia se tratar
simplesmente de uma brincadeira e que, além disso, os pedidos de refúgio do grupo de
pessoas, de quem presumiam serem os autores das pichações, tinham sido rejeitados. A
resposta parece indicar que a impossibilidade de entrada dessas pessoas ao “mundo do
refúgio” fosse suficiente para neutralizar seu poder ameaçador, lembrando-nos da ideia de
Malkki (1995) de que o refúgio parece constituir, no imaginário dos agentes e no senso
comum de forma geral, um universo afastado e distante do resto do mundo social.

125
Sobre as ações das AUC e de outras organizações paramilitares, podem ser consultados os numerosos
relatórios da ONG Codhes, dos centros de pesquisa Instituto de estudios para el desarrollo y la paz (Indepaz)
e Centro de Investigación y Educación Popular (Cinep), assim como os relatórios oficiais da Red de
Solidaridad Social do governo nacional da Colômbia ou o relatório titulado Colombia Basta Ya, elaborado
pelo Centro Nacional de Memoria Histórica, disponível em:
<www.centrodememoriahistorica.gov.co/micrositios/informeGeneral/descargas.html>.

250
O episódio das pichações não foi o único acontecimento referido pelos solicitantes e
refugiados. Permito-me relatar três situações que me foram narradas e que ilustram bem a
diversidade de maneiras por meio das quais podem ser ativados temores e experimentadas
perseguições. Experiências que, no entanto, permaneceram como fatos “improváveis” para
os agentes de refúgio e que, além disso, são difíceis de incorporar nos contextos narrativos
que oferece o marco administrativo dos processos de seleção, inclusive no momento
dedicado às entrevistas. A primeira situação me foi relatada por Camilo, que foi torturado
pelo Exército Nacional da Colômbia e ameaçado em diversos momentos de sua vida por
grupos paramilitares. Ele me contou que, depois de alguns meses morando como refugiado
reconhecido no Brasil, dois homens se apresentaram na casa do amigo que tinha o
recebido, identificaram-se como agentes da Polícia Federal e pediram-lhe à empregada
doméstica para dar uma mensagem a Camilo. O recado era simples: dizia que eles já
sabiam da mudança dele e que já estavam sabendo o seu novo endereço.

Quando Camilo quis verificar na Polícia Federal a identidade dos visitantes, os agentes da
instituição lhe informaram que nenhum de seus funcionários tinha sido enviado. Esse
episódio gerou temor e desconfiança em Camilo, que se mudou de casa e notificou o
acontecido ao Conare. Sobre a reação dos agentes da tríade do refúgio, ele tem uma versão
e sua esposa outra. Enquanto ela opina que não fizeram nada a respeito e consideraram que
Camilo estava louco, ele mesmo opina que, embora não tenham se manifestado
publicamente sobre o assunto, seguramente “tomaram medidas” para protegê-lo. Afinal,
disse ele, “yo estoy protegido por el Estado Brasilero, ellos no pueden dejar que a ninguno
de sus refugiados les pase nada, eso sería un escándalo”. Paradoxalmente, Camilo fugiu
da Colômbia, perseguido por, supostamente, estar “en contra do Estado” e hoje ele se
agarra à sua fé nessa existência antropomorfizada do “Estado brasileiro”, para acreditar
também no refúgio e nas suas promessas, e para, de alguma maneira, dotar de sentido seu
exílio e de importância essa nova forma de habitar o mundo.

A segunda situação se apresentou mais recentemente quando um grupo de colombianos,


vinculados a um movimento social de esquerda, decidiu organizar um fórum para apoiar o
processo de paz na Colômbia e procurar a participação cidadã na mesa de diálogos que se
instalou, em Havana Cuba, entre delegados do governo nacional colombiano e delegados
do comando central da guerrilha das Farc. Com a ideia de apoiar a saída negociada e não

251
militar do “conflito” e especialmente de alentar a participação da “sociedade civil” nessas
negociações, foi proposto um encontro de delegações de partidos políticos, movimentos
sociais, meios alternativos de comunicação, coletivos de migrantes, estudantes e, em geral,
pessoas interessadas sem vínculo partidário nem organizativo que apoiaram a proposta.

O papel de porta-voz do fórum, que foi difundido por meios alternativos de comunicação e
por algumas emissoras estaduais brasileiras, foi amplamente assumido por um dos gestores
da proposta. Essa eleição obedeceu a múltiplos motivos, ao fato de que ele fosse também o
porta-voz oficial do movimento social que impulsionou o evento e que ele mesmo se
reconhecesse como alguém com a experiência necessária para realizar tal tarefa. Além,
disso, na tomada de decisão também pesaram seu interesse e prazer manifestos por esse
tipo de aparição pública, depois de que passasse por uma época em que preferiu “estar
escondido”, situação que lhe deixava muito deprimido.

Entretanto, outro dos argumentos que se ativou na escolha de sua exposição pública –
nesse e em outros espaços – foi o fato de que ele “ya estuviera quemado”. Essa expressão
faz referência a que ele já foi identificado pelos perseguidores como um objetivo militar e
a que já está cadastrado e identificado como militante e ativista nos registros nacionais
oficiais e extraoficiais. O fato de que ele já tivesse sido ameaçado e de que publicamente se
apresente como um “asilado político” (que é o termo que ele prefere usar para referir sua
situação) foram elementos levados em conta para sua maior exposição e de passagem a
salvaguarda da imagem pública de outras pessoas.

Algumas semanas depois da realização do evento, um jornal local publicou uma coluna na
qual apareceu uma fotografia desse porta-voz do lado de acusações temerárias: “Há tempo
eu tenho conhecimento de membros das Farc no Brasil, inclusive com status de
“exilados”, como é o caso de xxxxxxxxxxx, […], mas com esse evento em xxxxxxxxxx tomei
conhecimento de que há mais um exilado e é evidente que se trata de um membro das
Farc”. As acusações feitas por esse colunista reativaram no grupo de organizadores todo o
temor pela segurança do porta-voz e pela possibilidade de que elas suscitassem novas
perseguições.

252
Na terceira situação, aparece outro tipo de mecanismos que ativam o medo ou permitem a
identificação de uma situação potencialmente ameaçadora. Há poucos anos, alguns
colombianos, entre eles alguns refugiados, começaram a emprestar dinheiro, de forma
extraoficial, entre os pequenos comerciantes da cidade, cobrando altos juros. Uma das
mulheres refugiadas que entrevistei me contou que seu esposo se dedicava a esse negócio
desde que tinha ficado desempregado. Para ela, porém, havia uma diferença entre seu
marido (e os outros parentes que tinham vindo da Colômbia para se somar ao negócio) e os
integrantes do “outro grupo de prestamistas”. A diferença que ela encontrava era que seu
marido sempre lhe prestava dinheiro a pessoas conhecidas, que ele sabia que poderiam
pagar, enquanto o “outro grupo” prestava sem essas considerações e depois “tienen que
cobrar a la fuerza”.

Para além da infração legal da prática da agiotagem, esse relato me interessou pela reação
que gerou em outros colombianos que moram na mesma cidade em diferentes situações
migratórias, especialmente pela reação de algumas pessoas de um grupo que se reúne em
torno de sua vinculação política, também nessa pequena cidade. Duas características
preocuparam as pessoas com quem falei. Em primeiro lugar, elas apontaram que a prática
da agiotagem foi amplamente utilizada pelos grupos paramilitares na Colômbia como
mecanismo de controle das economias locais e de se apropriar dos negócios mais
lucrativos depois de levar os seus devedores à falência econômica. Em segundo lugar, que
a região de procedência das pessoas, que estavam implementando esse sistema de
empréstimo na cidade, era a mesma de onde eles identificavam que havia nascido essa
prática na Colômbia.

Assim, algumas pessoas do grupo de cunho político decidiram que era melhor propor um
diálogo com os agiotas e saber quais eram suas intenções. Por sua vez, o grupo de
prestamistas aceitou o encontro e os termos da discussão. Esse aceite foi lido por algumas
pessoas como a confirmação das suspeitas sobre os vínculos desses “empreendedores
locais” e sobre a necessidade de explicitar os termos das presenças mútuas nesse local
compartilhado. O resultado da reunião que me foi contado por um de seus participantes,
algumas semanas depois de celebrada, numa conversa informal que tivemos aproveitando
sua visita à cidade onde eu me encontrava, foi o que poderia ser chamado de “um pacto de
não agressão”. Ou seja, os prestamistas afirmaram que não haveria nenhum tipo de

253
perseguição política, que sua presença na cidade obedecia a “interesses puramente
econômicos e que não queriam ter problemas com ninguém”. Depois da reunião e pelo
menos de maneira temporal, os temores de perseguição foram dissipados126.

Essas três situações reconstruídas não têm espaço nos relatos administrativos ou na
“história” que se constrói por meio deles. A fronteira que mantém o “conflito colombiano”
fora do território brasileiro é também uma fronteira narrativa e institucional. Não há espaço
para esse tipo de descrições e eventos mais do que no espaço íntimo e psicologizado do
refugiado traumatizado. Os agentes que coordenam processos de seleção, particularmente
aqueles que têm maior contato com os administrados, não promovem a passagem para a
enunciação pública dessas “outras histórias” que não estão contidas na “história oficial”
que interessa para o reconhecimento jurídico-administrativo. Além disso, as instituições da
tríade parecem se preservar de serem contaminadas com relatos de violências que possam
entrar nos seus registros – racionalmente construídos – com a desordem e a barbárie que se
presumivelmente pode engendrar a violência não domesticada em relatos que a
classificam. Isto é, a violência narrada que pode – e deve – ficar registrada deve ser
claramente inscrita como um assunto que pertence ao “lá” (distante e remoto) dos
sofrimentos que provocaram o êxodo, assim como ao interior perturbado dos sujeitos
tocados por ela.

Em conversas cotidianas e algumas entrevistas, algumas pessoas se referiram a episódios


de temor e os expressaram em forma de dilema. As próprias pessoas se perguntavam qual
parte de seu temor era “somente paranoia” – como lhes repetiam os agentes do refúgio – e
qual parte era uma percepção real do perigo. Para algumas pessoas, existia, de fato, uma
reflexão consciente sobre o temor como um possível efeito dos eventos violentos vividos,
mas sua complexidade como experiência não se esgotava nessa explicação. Considero que
esses dilemas são em si mesmos parte das expressões da vida cercada por diversas

126
A respeito da avaliação de um perigo potencial que fizeram os integrantes desse grupo, encontro
apropriada a leitura de Cho (2008) quem sugere que o trauma engendrado nas violências, especialmente as
militarizadas, pode atravessar fronteiras de tempo e espaço e inclusive evocar momentos do que ainda não há
acontecido. Mais do que o trauma, eu me atreveria a sugerir que, neste caso, a própria guerra, ou pelo menos
parte de suas dinâmicas, podem atravessar as fronteiras de tempo e espaço. Segundo as próprias palavras da
autora: These comparisons of Korea to Vietnam and Vieques speak to the ways in which the trauma of
militarized violence can traverse boundaries of time and space […] According to Jacqueline Rose, this
temporal or spatial shift suggests a transgenerational haunting in which trauma can be unconsciously passed
“not just down through the generations, but across them; and not inside one family, but creating a monstrous
family of reluctant belonging” […] (CHO, 2008, p. 58).

254
manifestações do conflito social e de suas encarnações mais violentas. Não considero que
esses medos dos sujeitos, em diversas situações de êxodos, tratem-se somente dos
“traumatismos”, entendidos como cicatrizes ou marcas em um espaço interior do sujeito
que se manifestam por meio de sintomas, dos quais o temor de perseguição seria o mais
notório. Parece-me que os medos e a desconfiança do outro, assumido como potencial
inimigo, são em si mesmos uma forma de existência do “conflito”, que está longe de ser
“interno” e que só se entende quando abordado como relação com os outros.

De qualquer modo, a crença nas fronteiras do refúgio e, em sua suposta efetividade como
filtro de entrada, não é uma construção unilateral dos agentes brasileiros do refúgio. Trata-
se melhor de uma das características desse campo de governança que é construído
conjuntamente nas interações com os sujeitos administrados. Para muitos desses últimos, a
exclusividade que promete a “boa seleção” é uma fé que lhes permite se sentir a salvo,
como no caso de Camilo. Simultaneamente, é um desejo, tanto de proteção quanto de
exclusividade, diante dos perigos potenciais da chegada maciça de compatriotas, pois esses
não somente poderiam “traer el conflicto para Brasil como pasó em Ecuador”, como
alguns refugiados expressaram; mas exterminar o prestígio que engendra aquilo que, ao ser
dado a uns poucos, se vive como sendo um privilégio (SIMMEL, 2009, p. 237) e que
oferece a alguns refugiados no Brasil um nível ainda considerável de singularidade para
suas experiências de vida. Sentimento que, como valor simbólico, adquire um valor capital
e é um dos poucos bens recebidos em meio a uma administração precária que oferece
pouquíssimos benefícios materiais.

A lógica que articula os formatos, os lugares, os sujeitos e os objetos que participam da


criação e da implementação desses encontros seletivos permite o desdobramento de ações
por meio das quais se incluem e se excluem tanto sujeitos como eventos e as histórias que
os recriam. Separa-se o relevante do irrelevante, ordenam-se hierarquicamente os
sofrimentos, decide-se o que pertence à imaginação e o que pertence à realidade,
inscrevem-se umas dores no espaço íntimo e doméstico e outras no espaço social e público
e marcam-se uns discursos como verdadeiros e outros como falsos. Essa mesma lógica
estabelece os acontecimentos que são prováveis e os que não são, dependendo de sua
própria interpretação da pessoa que fala.

255
A narração das violências sexuais ocupou a reflexão dos agentes do refúgio, segundo me
foi contado por alguns deles. A discussão sobre o assunto foi reconstruída, a partir de
minhas perguntas a respeito, por agentes em diferentes posições na tríade do refúgio. As
narrações que me foram feitas aludiram o “caso” de uma “mulher africana” da que não foi
especificada sua nacionalidade e da que alguns deles disseram ser muçulmana. O fato de
que essa mulher omitisse, durante a entrevista com um agente homem, ter sofrido violência
sexual foi interpretado como uma negativa a falar da violência sexual em razão da
diferença de gênero entre entrevistador e entrevistada, que dificultava a enunciação dos
vexames por ela sofridos.

A decisão tomada a respeito foi privilegiar a contratação de entrevistadoras mulheres. Essa


opção nunca foi registrada por escrito nem em formato de normativa, nem como texto de
“recomendações”, mas circula oralmente no universo institucional brasileiro do refúgio e
assim me foi narrada, inclusive por agentes que não estiveram na época do evento que a
teria gerado. Essa oralidade dos agentes do refúgio foi frequente a respeito de decisões que
costumam resultar transcendentais para os processos seletivos como, por exemplo, a
suposta melhoria no “conflito colombiano” que se materializou em um aumento dos filtros
para a seleção de refugiados espontâneos e que foi abordada na segunda parte da tese.
Contudo, para o assunto que nos ocupa neste momento, interessa-me apontar simplesmente
que a circulação dessas histórias orais – que explicam o funcionamento de alguns
processos de seleção de refugiados – requer que elas sejam pensadas por esses
administradores como explicações coerentes. As razões pelas quais a mulher não falou
sobre a violência sexual que tinha sofrido parecem esgotar-se no incômodo gerado pelas
condições da entrevista:

Eu: O fato de que vocês sejam entrevistadoras mulheres é intencional ou é um


acaso?

Agente: Sim, o doutor Luiz Paulo que é o presidente do Conare sempre fala que
uma vez tiveram um entrevistador homem. Parece que no começo. Foi por acaso.
E aí teve um entrevistador homem com uma historia com uma africana, não sei
de que nacionalidade, que sofreu violência sexual e ela não contou porque ela
não se sentia cômoda. Porque ela não quis que fosse homem e a partir desse
momento foi decidido que fossem sempre mulheres. Mas o que também eu
penso, às vezes, é que também um homem não vai ter coragem de contar para a
gente que ele foi vitima de algum abuso também, né? Mas eu pessoalmente
nunca senti alguma restrição, acho até que as pessoas gostam de contar pra mim,
eles se sentem mais à vontade, um pouco mais acolhido para contar a sua
história. (Agente entrevistadora do Conare)

256
A situação descrita pode ser abordada através da analise proposta por Fiona Ross (2003) a
propósito das audiências e outros espaços de enunciação publica das violências sofridas
por mulheres, no contexto da Comissão de Verdade e Reconciliação de África do Sul pós-
apartheid. Ross aponta os limites das explicações segundo as quais as mulheres não
falariam dos abusos sexuais para evitar a ativação dos estigmas que lhes são associados;
pois muitas vezes as violações podem ser deliberadamente publicas. Para Ross, a ênfase da
analise não dever feita somente no porque as mulheres calam as violências, mas na
pergunta de porque se espera que sempre falem sobre elas como sendo a característica
primordial e definidora do testemunho e o pior dos vexames suportados. Propõe-nos desse
jeito pensar que aquilo que está em jogo não é a privacidade ou não do ato sofrido, mas a
forma em que a sociedade o reconhece como um tipo de violência e toma medidas para
produzi-lo como uma injuria (ROSS, 2003, p. 23). Com essa e outras perguntas Ross vai
mostrando que a violência sexual é identificada como uma experiência sobre a qual as
mulheres podem e “devem dar testemunho” e sobre a qual têm que declarar sob
determinadas condições (ROSS, op. cit., p. 24).

Quando perguntei aos agentes que me referiram a história que passaria se tratara-se de um
homem a narrar episódios de violência sexual, a resposta foi reveladora da ordem de
gênero que se manifesta nas ações de classificação de sujeitos e de narrações dentro do
processo seletivo do refúgio. A maioria dos agentes opinou que “se fosse um homossexual,
também vai se sentir mais confortável contando tudo para uma mulher”. Quando refinei
minha pergunta e interroguei pelo caso de um homem heterossexual, a opinião foi que
“nesse caso, talvez ele não contaria nem para uma mulher nem para um homem”. De fato,
no fragmento citado, ainda sem que eu lhe perguntasse, a entrevistadora opinou que um
homem (supomos que heterossexual) não narraria as violências sexuais das que tenha sido
vítima.

A violência sexual sofrida por um homem heterossexual não só parece configurar outro
“improvável”, senão que pode (e, talvez, deve) ser omitida do relato. Isso porque não
haveria ouvidos adequados, nem condições possíveis para sua enunciação, convertendo-a
também num episódio “inaudível”. Nem o sujeito homem heterossexual deveria contar,
nem os agentes têm a expectativa de escutar. Ao contrário, o silêncio sobre a violência

257
sexual por parte de uma mulher, ou sua enunciação somente em algum dos múltiplos
encontros narrativos, é assumido pelos agentes do refúgio como uma omissão. As
violências sexuais não são entendidas dentro da trama ampla de relações do sujeito que as
narra e as dota de sentido tecendo-as com outros aspetos da sua vida e do sofrimento que
lhe foi infligido. Ao contrário, como bem apontou Ross (2003, p. 91), os ataques sexuais
contra as mulheres são assumidos como “the primary event of harm”.

A respeito dessas narrações que engendram e encarnam “omissões” e “silêncios” no


percurso mesmo do exercício de contar, uma das dimensões dos silêncios – esperados,
exigidos ou geridos ativamente pelas pessoas – que também apontou Malkki (1995, p. 107)
tem relação com o fato de que aquilo que é contado não é necessariamente aquilo que
aconteceu, mas o que pode ser contado sem destruir a possibilidade de reconstrução da
própria vida. Essa dimensão também tem sido salientada por Pollak (1990, p. 203), que,
além disso, nos convida a refletir sobre os significados que adquire o tempo que passou
desde que os acontecimentos referidos aconteceram e o momento em que a narração é
feita, notadamente para quem e para que é quebrado o silêncio de tantos anos (op. cit., p.
204). O autor aponta que o silêncio e suas fronteiras com o esquecimento, ou com o desejo
de guardar para si mesmo o acontecido, são difíceis de estabelecer, entre outras coisas,
porque o esquecimento e a lembrança não dependem da vontade do sujeito (op. cit., p. 222)
tornando impossível a pretendida totalidade exaustiva que se busca nos exercícios
narrativos dos processos de solicitação de refúgio.

Voltando sobre a preocupação expressa pelas agentes a propósito do conforto dos sujeitos
para contar sua história, quer dizer, voltando sobre essa reflexão preocupada pelas relações
e as posições diferenciadas dos sujeitos nas entrevistas de seleção – que parece, pelo
menos parcialmente, reconhecer nela uma relação social como apontado por Bourdieu
(1997) – vemos que sobre ela se impõe novamente a precariedade como condição superior
de explicação e de ação. Assim, várias das entrevistas das agentes do Conare estavam
sendo feitas telefonicamente na época da minha pesquisa de campo, já que havia somente
duas agentes disponíveis para isso. As entrevistas que se realizavam presencialmente, além
de acontecer depois de um longo tempo de espera, contavam com pouco tempo para seu
desenvolvimento. Finalmente, não sei por qual razão, voltou a se contratar a um agente
entrevistador homem durante o segundo ano da minha pesquisa de campo.

258
Assim como a violência sexual contra homens heterossexuais apareceu como um
inaudível, outras emoções, dores e experiências também compartilham esse (não) lugar nos
espaços administrativos dedicados à fala no universo institucional do refúgio. Álvaro, por
exemplo, me perguntou: “¿Cómo explicarles que ese tipo que torturaron y mataron podía
ser yo?”. Para Álvaro não foi possível lhe explicar ao Acnur, ainda na Colômbia, que seu
temor se fundamentava em que se viu a ele mesmo torturado em outro sujeito. A
proximidade que ele encontrava entre sua própria história de vida e a história social de um
homem que apareceu morto em sua região lhe fez pensar que ele seria um possível alvo do
grupo de narcotraficantes que tinham tomado o controle do povoado. Porém, só quando
efetivamente ele foi ameaçado e baleado foi quando as ONGs parceiras do Acnur
reconheceram sua vivência como uma história de deslocamento e, posteriormente, de
refúgio. Os conhecimentos e a intuição de Álvaro sobre as lógicas da guerra em sua região
não parecem ter sido levadas em conta como conhecimentos válidos para a construção das
lógicas administrativas de seleção.

Por sua parte, Rocío, em meio a uma entrevista conversada que fizemos enquanto
tomávamos o café da manhã na sua casa, me contou que ninguém lhe perguntou se ela
queria vir para o Brasil e que ninguém lhe perguntou se lhe doía o exílio. Na época da
saída de sua família da Colômbia, ela tinha quatro anos e somente tempo depois ela foi se
interando aos poucos das circunstâncias que provocaram a saída de sua família:

No, yo no creo que para mis hermanas lo más duro haya sido llegar aquí, no.
Para ellas lo más duro fue salir. Y cuando llegaron aquí pues ya tenían la edad
que yo tengo ahora, ya eran un poco más grandes. Tuvieron que crear una
independencia, porque mis papás nos tuvieron que cuidar a mí y a Paola. A mí
más, pero ellas salían y hacían lo que querían, iban a los concierto. María tenía
un novio punk y la fiesta y todo eso y ya! En cambio yo no, yo no entendía nada,
yo no. Y la gente piensa que yo sufrí mucho menos que ellas porque llegué más
chiquita y que entonces no sabía. Dicen: Pero no fue tan difícil, usted no tenía
amigos allá. Pero ¿lo que pasó aquí qué? […]

Como poder-se-ia no universo institucional ponderar a dor de uma criança, quando o


refúgio é pensado somente como uma condição de quem fugiu (extensiva a sua família,
sim) ao ser perseguido e não como uma realidade quem no êxodo perde parte de sua vida
que se estilhaça em pedaços difíceis de juntar de volta? Como seria classificado o
sofrimento de uma criança, segundo a lógica do refúgio, se sua dor começa quando tentam

259
a classificar no momento da sua entrada à nova nação? A dor de Rocío, nesse universo
institucional permaneceu inenarrável até que, já adolescente, foi procurada por jornalistas e
cinegrafistas para dar depoimento em alguns projetos audiovisuais. Por meio desses
formatos, ela encontrou uma forma de lhe dar expressão a sua dor, que foi se manifestando
não tanto pelo acontecido no lugar de origem quanto pelo acontecido e os anos que
passaram construindo-se um lugar no exílio. As dores que começam com a chegada e não
com a saída parecem caracterizar outra forma dos eventos que não têm espaço nas
narrações oficiais exigidas no marco administrativo.

Há outras formas de “inenarráveis” mais recorrentes como, por exemplo, a narração das
misérias. As pessoas não podem reservar um lugar central em seus relatos à sua situação
econômica, pois correm o risco de serem catalogadas como migrantes econômicos. Além
disso, a imagem do refugiado é construída como a de um despossuído absoluto, de modo
que os detalhes do sofrimento gerado pela precariedade em nada ajudam à singularização
de seu caso e ao reconhecimento de sua narração como sendo uma “história de refúgio”. A
quem só tem penúrias econômicas “lhe falta uma história” como foi dito por uma das
advogadas da Cáritas.

Além disso, o processo de seleção não é considerado pelos agentes como um percurso
doloroso, enquanto os refugiados e solicitantes identificam, nas misérias desse tempo de
espera, uma das fontes principais de seu sofrimento. Esse aspecto fundamental do refúgio
(esse último entendido como um processo existencial muito mais amplo que sua definição
jurídico-administrativa) não é compreendido nessa visão oficial e, portanto, não é
incorporado à memória oficial do refúgio que vai se formando em variados arquivos e
formatos com os quais são traduzidos os sujeitos.

Assumo que as narrativas que eu mesma provoquei em campo e as seleção e organização


que delas realizei para esta tese, integrarão, sem dúvida, outro arquivo da memória
nacional. Não somente as perguntas realizadas mas também aquelas não formuladas (que
são outra forma de engendrar silêncios) farão parte da versão do refúgio no Brasil para
colombianos que esta tese oferece e disputa com outras versões. Nessas entrevistas e
conversas, às vezes íntimas, com as pessoas, se abriram espaços para temas que, com
certeza, não apareceriam em conversas mais formais ou em narrações oferecidas como

260
requisitos administrativos. Sobre a forma de aparição dos temas nos nossos encontros,
chamou minha atenção que, muitas vezes, foi mais fácil para as pessoas falar de alguns dos
eventos violentos que geraram seu êxodo do que falar da manifestação concreta das
misérias. Aniversários não comemorados, sapatos furados dos filhos, venda dos últimos
pertences de valor, momentos de mendicância ou de fome foram narrados, às vezes, com
mais vergonha e pranto que aqueles de perseguição.

Algumas pessoas acharam particularmente penoso lembrar-se dos episódios de miséria e,


para elas, falar do êxodo e do refúgio resultava tão difícil e doloroso precisamente porque
isso significava falar da miséria na qual esses processos se converteram. De outra parte, o
processo que lhes outorga o título de refugiados – com o poder simbólico de
reconhecimento e ressarcimento da dor, que ele implica –, algumas dores são traduzidas e
levadas para um espaço público e político, podendo ser narradas com algo mais de orgulho,
enquanto a pobreza ou a miséria ocupam um lugar subjetivo e doméstico e amiúde marcam
a experiência de maneira humilhante, exigindo que o sujeito encontre por si mesmo uma
forma de lidar com essa pena.

Curiosamente, para as funcionárias da Cáritas encarregadas de distribuir os objetos que


deveriam mitigar esse mal-estar, o lugar banal que lhe atribuem aos sofrimentos
econômicos, as habilita para fazê-los públicos nos espaços de interação com os refugiados.
Santiago me contou que a onda de frio que atingiu a cidade a qual ele chegou para pedir
refúgio o tinha tomado por surpresa. Ele pensava que o Brasil era um país tropical e que
sempre fazia calor. Várias vezes, foi a Cáritas para solicitar uma jaqueta ou um casaco que
lhe ajudaram a suportar o frio da rua, pois, mesmo tendo arrumado uma vaga num
albergue, devia sair às 7h da manhã e somente podia voltar no final da tarde.

Nas várias vezes que ele foi à Cáritas para solicitar essa prenda ou uma cesta básica, ele me
contou que o fez com prudência e falando em voz baixa para evitar que as pessoas
presentes na sala de espera se interassem, porque “no es fácil estar en esa situación”. A
reação das funcionárias encarregadas, segundo Santiago, era expressa, em voz muito alta,
“casi gritando” e tornando evidente com sua resposta qual tinha sido o motivo da visita da
pessoa. Santiago, um homem afro-colombiano, opinava também que ele e os “africanos”
ou os “haitianos” sempre recebiam respostas com gritos, “como si uno no sintiera

261
verguenza de estar en esas condiciones”. Essa percepção de Santiago é ainda mais
interessante se comparada com a de Susana, uma mulher branca, de classe média,
reconhecida como refugiada, a quem as funcionárias recebiam dentro (do outro lado do
balcão) e para quem disponibilizavam o depósito de roupas e comida. A possibilidade que
lhe ofereciam a Susana de habitar esse espaço “das administradoras”, conforme Lugones
(2012), a protegia, segundo suas próprias palavras, de ter de “esperar junto a ese montón
de hombres, negros y pobres”.

O assunto da racialização de alguns solicitantes, das relações estabelecidas de maneira


diferencial segundo o fenótipo das pessoas e da interpretação realizada de seus
comportamentos serão discutidos na última parte da tese. Aqui, me interessa salientar que,
enquanto a informação referente às perseguições, quer dizer “a história”, é catalogada
como confidencial e investida com o halo misterioso do segredo, a informação sobre as
precariedades econômicas (particularmente de alguns solicitantes) foi ventilada
abertamente a solicitação da antropóloga ou dentro dos espaços de gestão como os postos
administrativos da Cáritas. Isso não quer dizer que essa informação ocupe o mesmo lugar
público-político das dores dignas de refúgio que são integradas ao relato da nação. Trata-se
de uma circulação pública dentro de um espaço percebido como doméstico, pois a
administração da Cáritas, como visto na segunda parte da tese, encarna a tarefa feminina de
gestão tanto dos refugiados, entendidos como “menores” desse espaço doméstico
(VIANNA, 2002) quanto da despensa e a distribuição e economia dos bem a ela confiados.

Apesar da construção das histórias de refúgio como segredos resguardados, cujo caráter
sigiloso se estende até seus produtores, ouvintes, locais de arquivo, instituições e agentes
que as obtêm, sua exibição em espaços públicos faz parte fundamental das ações que
conformam o refúgio. As autoridades que administram os refugiados e a sua produção
discursiva decidem quais histórias podem ser convertidas em “casos” e, se for preciso, em
“causas” (VIANNA, 2013, p. 22), para isso, é necessária uma mobilização iconográfica,
discursiva e testemunhal de dados, dores e sujeitos que até então se consideravam sob a
proteção do anonimato.

262
7.4. A propriedade privada do segredo e a oralidade do Estado brasileiro

O segredo, enquanto dissimulação de certas realidades, conseguido por meios


negativos ou positivos, constitui uma das maiores conquistas da humanidade... O
segredo oferece a possibilidade de que surja um segundo mundo junto ao mundo
patente e de que este sofra a influência do outro. (SIMMEL, 2009, p. 235)

Há experiências que não são relevantes para a construção da “história”, elas não são
esperadas, nem interrogadas, também não são escutadas e, muitas vezes, nem são narradas
e nem se tenta as provar com pesquisas objetivas. Ao contrário, são firmemente exigidas
aquelas experiências de sofrimento que a lógica do refúgio considera dignas do relato que
vai se tornar na “história”. A omissão dessas informações, o resguardo desses episódios e o
silêncio a seu respeito são considerados como eloquentes formas de mentir. Nesse sentido,
há dois pares de movimentos que operam em sentidos contrários. De um lado, se fragmenta
a vida do sujeito e são selecionadas as partes que interessam para a construção de um relato
de refúgio, e, com esses fragmentos, intenta-se construir uma história que se pretende que
seja total, como se ela resumisse ao sujeito inteiramente. De outro lado, para a construção
dessa história totalizante, é exigido que não haja secretos; pede-se a oferta dessa suposta
totalidade, para depois a converter em um segredo127.

O paradoxal desses movimentos pode se explicar utilizando uma proposta simmelina,


segundo a qual existiria na vida das pessoas uma “propriedade privada espiritual”
(SIMMEL, 2009, p. 229) com um ego que existe por sua capacidade de decidir que pode
ser revelado e que não deve ser conhecido (op. cit., p. 228). Considero que, quando as
narrações tornam-se arquivos, supostamente secretos, muda o lugar da propriedade sobre
essas, assim como a possibilidade de decidir sobre o que se expõe e o que se oculta. O
movimento anteriormente descrito pode ser entendido como o processo mediante o qual a
propriedade privada espiritual dos refugiados passa para as mãos da tríade em forma de
segredo exibido, já que as instituições que o obtém enunciam constantemente que possuem

127
Na relação entre agentes e refugiados não existe reciprocidade a respeito das exigências no conhecimento
total do outro. A tríade do refúgio não só transforma em segredo as histórias dos solicitantes, mas também o
resto da informação sobre os processos que administra. Ora argumentando que os programas de refúgio são
sigilosos, ora não oferecendo explicações, os agentes não oferecem toda a informação que as pessoas
disseram necessitar. Várias queixas surgiram sobre o fato de que as agentes de Cáritas não lhes informaram
que podiam pedir a residência permanente no Brasil sem perder a condição de refúgio ou que sua
intermediação não era obrigatória para acionar alguns órgãos públicos. A maior moléstia foi a falta de
claridade sobre as diferencias entre os tempos de espera e os recursos distribuídos entre as pessoas. O caráter
secreto de dos critérios de seleção e a falta de claridade sobre os órgãos e os agentes que têm o poder
decisório, também foi uma moléstia que me foi frequentemente expressada e analisada na segunda parte da
tese.

263
a informação de que ela é secreta, o que equivale dizer que é ostentada a posse de um
objeto valioso cujo valor reside precisamente em sua ocultação. Notadamente, o Conare e
o Acnur usam a exibição pública dessa propriedade, sendo o último organismo o maior
produtor de documentos audiovisuais e textuais que mobilizam as histórias, os rostos e as
condições de vida das pessoas refugiadas.

Várias das pessoas que eu entrevistei tinham sido parte de diferentes exercícios de
exposição biográfica e testemunhal, por solicitação do Acnur. As famílias de reassentados,
que as mesmas ONGs administradoras contataram comigo, tinham sido exibidas nesses
formatos audiovisuais como “casos exitosos de integração”. São esses “casos” que podem
ser exibidos os que a amiúde são utilizados para apresentar publicamente as vantagens das
políticas e os programas de refúgio no Brasil. Talvez, por esse mesmo motivo, eu fui
colocada em contato com elas e não com outras famílias. Para elas, algumas vezes, a
exposição de si mesmos era sentida como uma obrigação, que lembra a dívida que a dádiva
do refúgio instaura como ponto de partida de um sistema de obrigações entre as pessoas e o
“Estado” que se manifesta por meio de seus múltiplos agentes.

Assim, por exemplo, Beatriz e Rafael, que foram reassentados há mais de uma década no
Brasil, se referiram a suas aparições em vídeos e outros documentos audiovisuais
institucionais dizendo que “nosotros siempre les hemos colaborado, cada vez que vienen
acá con cámaras y micrófonos o que llaman a Pablo [el hijo menor] para filmarlo jugando
fútbol, nosotros les colaboramos”. Na época em que eu os conheci, o casal estava chateado
pela falta de acompanhamento da ONG a respeito de algumas dificuldades que teve a
família, de modo que tinham decidido “no volvemos a dejar que nos filmen. No nos
quieren ayudar pero sí que aparezcamos sonriéndole a la cámara”. Esse mesmo
posicionamento a respeito de sua aparição pública foi defendido por Sandra e Silvio, que
manifestaram que a ONG que administra o programa de reassentamento na região não quis
apoiar o projeto microempresa de Silvio, mas quando ele começou a se dar bem e ter
reconhecimento, o procuraram para fazer parte dessas produções documentais.

Apesar de seu incômodo, Sandra aceitou ir a uma conferência sobre refúgio que o Acnur
organizou no Equador na qual ela devia “dar depoimento”, num formato muito usual de
exposição narrativa de “seus” sujeitos que lembra o formato religioso de testemunho de

264
salvação. A princípio, o casal ficou chateado porque o Acnur só tinha convidado a Sandra
e se negava a pagar os gastos de Silvio para acompanhá-la, mas finalmente aceitaram.
Explicaram-me que o fizeram porque consideraram importante que houvesse uma voz
crítica “para que no sigan engañando personas allá, diciéndoles que esto es el paraíso”. A
outra razão argumentada para terem aceito foi que era preciso “escuchar qué es lo que
ellos están diciendo sobre nosotros, ellos dicen lo que quieren y no hay nadie allá para
decir que no es así”. Essa mesma razão foi argumentada por outras pessoas refugiadas,
sobretudo aquelas que gostam de exprimir seu espírito critico e denunciar as
“desonestidades” dos programas de refúgio. Por essas razões, me disseram estar contentes
pelo fato de alguém estar pesquisando o tema. Segundo eles “es bueno que haya alguien
que cuente otra versión de los hechos, porque ellos se la pasan diciendo que esto son las
mil maravillas”.

Por sua vez, Juan Felipe encontrava-se em um dilema a respeito da solicitação feita pelo
Acnur para tirar umas fotos dele e publicar parte de sua história em um folheto da
instituição. Embora Juan Felipe levasse pouco tempo no país, falava bem português, tinha
arrumado um bom emprego e ele mesmo expressava continuamente o desejo de ter
autonomia econômica. Todas essas características o tornavam um caso exitoso de refúgio,
e o Acnur queria incluí-lo na publicação que estava preparando. A apreensão de Juan
Felipe era de que sua aparição no folheto reativasse as perseguições contra ele, podendo
facilitar que ele fosse localizado. Sobretudo, lhe incomodava a possibilidade de ser exibido
como um “refugiado”. Em uma conversa no dia que nos conhecemos, ele me disse que, até
o momento em que teve que fugir, ele pensava que “eso del desplazamiento y del refugio le
pasaba sólo a campesinos pobretones” e que ele preferia “ser un extranjero más”, sem ter
de dar explicações dessa condição de refúgio que, com certeza, ele reconhece como uma
identidade deteriorada (GOFFMAN, 2006). Ele me disse também que não queria ser visto
como um mal-agradecido, pois ele sabia muito bem que “ellos han hecho mucho por mí y
yo tengo que retribuirlos de alguna manera, pero es que yo no quiero ¿qué hago?, ¿qué
me aconsejas?”.

Se a exposição audiovisual – assim como as relações de dívida e obrigação nas quais ela
está submersa – apareceu, na maioria das vezes, como um dever dos refugiados, também
foi exposta a partir de ângulos mais positivados nos discursos das pessoas. Ser selecionado

265
pelo Acnur para aparecer nessas produções, para algumas famílias ou pessoas, significou
um reconhecimento a seus esforços de “integração” assim como uma prova da importância
de sua história. A produção audiovisual por meio da rede ampliada da “sociedade civil” ou
de produções independentes funcionou como uma forma de aparecer em um formato
diferente daquele usualmente utilizado pelo Acnur e, muitas vezes, inclusive de fazer
aparecer essas “outras histórias” que são obliteradas no processo seletivo e nos esquemas
audiovisuais oficiais.

Rocío, por exemplo, quando lhe perguntei se ela não se incomodava por ter de falar tantas
vezes de sua história, já que eu tinha assistido vários projetos audiovisuais nos que ela e
sua família apareciam, ela me disse que não se incomodava e que “es cierto, nosotros
somos los famosos de los refugiados”. Para ela, essas formas de aparecer e de narrar foram
maneiras de ir construindo sua própria história de refúgio. Quando ela chegou, pelo fato de
ser uma criança, não foi entrevistada na Cáritas, também não conhecia os acontecimentos
que haviam provocado o êxodo familiar e quase nunca tinha falado com sua família a esse
respeito. As experiências e os processos dos outros pareciam ter importância, enquanto os
dela foram silenciados. Começar a ocupar um lugar e a “cair na conta” do significado do
processo do refúgio na sua vida foi, para ela, um dos aspectos interessantes desses
exercícios de produção audiovisual.

No, la primera vez que hicimos una entrevista, yo salí temblando. Y mi hermana
estaba allá y ella no se dio cuenta. Ella estaba ahí y yo: Jejeje, claro, sí [haciendo
una mueca de fingir tranquilidad]. Pero yo salí como si me enfrentara con una
cosa así terrible. Y después me dije: Ay no, ¿será que esto es de mi cabeza?
porque yo nunca me sentí así. Pues yo si sentía la indiferencia, pero comencé a
decir cosas que yo me fui dando cuenta mientras que las decía, que yo no sabía
tampoco, que fui descubriendo mientras que las decía a la señora. Y yo me dije:
Ay! pero ¿será que eso es de mi cabeza y le estoy diciendo a la mujer para que
tuviera algo que poner? Y no, pero no. Y cuando hice ese documental de
refugiados, también fue difícil porque yo me sentía medio que insignificante en
ese medio porque eran adultos también ý ellos hablaban de la mina bomba y no
sé qué y como si lo mío que yo pasé, al lado de ellos no valiera nada. Como si
Ah, fuera “frescura” mía.

Assim como Rocío, as outras pessoas com as quais falei encontraram diversas formas de
reconstruir, relatar, repensar e tecer outras histórias, outras explicações e outras formas de
exibição e ocultação para seus êxodos e suas estadias em um país estranho. Poderíamos
dizer que resistiram a entregar completamente a propriedade espiritual de seu segredo
(SIMMEL, 2009). Afinal, o segredo que eles entregaram para a tríade, em troca do refúgio,
é um segredo parcial e contingente que está longe de contê-los e esgotá-los enquanto

266
pessoas. Talvez, uma das formas mais eloquentes a esse respeito sejam os perfis nas redes
sociais que as pessoas constroem e alimentam quase todas com muita frequência. Esses
perfis e a interação nas redes virtuais são uma forma de manter o contato com amigos e
parentes, de entregar imagens que permitam acompanhar as transformações da vida longe
de casa, de mostrar os lugares e as pessoas conhecidas e, às vezes, ocultar as precariedades
econômicas experimentadas. Segundo Sayad (1991), poderíamos dizer que essas são
formas de trabalhar a ausência que existe porque sua presença está nesse outro país.

Assim como para Francisco, a militância política foi uma forma encontrada para existir,
influir e fazer parte da Colômbia – de conjurar o fantasma de sua ausência –; para outras
pessoas a desobediência que constitui o fato de se mostrar é feita por meio de mecanismos
simples da vida social. Mecanismos que lhes permitem decidir a eles mesmos – e não aos
administradores – quando e onde se exibir, assim como avaliar que anonimato é necessário
e que contato perigoso; em que redes aparecer e fazer presença ativa para continuar a vida
no exílio e quais companhias são um suporte espiritual e material nesse caminho. Além
disso, o segredo sempre será uma potencialidade se pensamos que a fala, conforme Miriam
Jimeno (2008, p. 264), inspirada em Das, embora seja uma das ferramentas mais efetivas
que temos para conhecer as experiências de sofrimento dos outros “es endeble y siempre
será enana frente a la magnitud de lo vivido” (op. cit., p. 265). Por isso, a diferença entre o
dito e o vivido marca muitos dos limites dos exercícios narrativos, especialmente quando
eles têm sido construídos sob a égide da lógica administrativa que fragmenta e totaliza a
vida dos sujeitos refugiados.

Para finalizar, gostaria de apontar que as diferentes etapas do processo de seleção de


refugiados que foram descritas, notadamente aquelas dedicadas à construção da “história”,
mostraram que existe um interesse por parte da tríade em registrar e arquivar a produção
narrativa dos sujeitos. Poderíamos dizer que é um interesse por transformar e traduzir a
própria pessoa e sua história por meio de diferentes formatos de escrita e registro. Ações
que, atuando juntas, poderiam ser pensadas como processos contínuos de criação de Estado
– nesse caso, por meio do refúgio – que foram descritas para outros Estados, em outros
momentos históricos. Por exemplo, Marta Zambrano (2008) abordou as interações entre
colonizados e colonizadores por meio da análise de textos jurídicos e legais do sistema
colonial do Nuevo Reino de Granada (op. cit., p. 18). A etnografia realizada nesse trabalho

267
mostra que a escrita não foi um veículo neutro de inovação tecnológica introduzido nas
colônias, mas um elemento crucial para a construção do império que é o que a autora
chama a “Máquina de escribir del Estado colonial” (ZAMBRANO, 2008, p. 76),
salientando os alcances da transcrição do registro oral para o registro escrito como parte
fundamental de um regime particular de construção de saber.

Na mesma obra (ZAMBRANO, 2008), outros elementos mencionados pela autora indicam
reflexões possíveis a respeito do universo institucional brasileiro do refúgio e a
centralidade do registro escrito entre seus agentes e as pessoas administradas. A autora
considera que a escrita alfabética também foi uma forma, não apenas para mediar as
relações – efetivamente criando figuras de mediação entre as autoridades reais e seus
súbditos – mas também de marcar formas específicas de concepção da história e da
memória. As relações sociais e os encontros administrativos tornados documentos foram
criando um arquivo que, ao ser administrado e controlado pelas autoridades reais,
constituiu uma base documental que lhe dava suporte a seu poder. Por último, procurar o
“favor” do Rei era uma forma de reconhecer seu poder e sua autoridade para reinar nessas
terras. Isso me parece uma assombrosa semelhança com o “pedido de refúgio” que os
solicitantes realizam para as autoridades do Estado brasileiro, reconhecendo seu poder e
autoridade para governar a terra na qual esperam ser recebidos.

No entanto, simultaneamente com esse interesse pelo registro escrito, existe, no mundo
institucional do refúgio e na relação que existe entre seus administradores e administrados,
um alto grau de oralidade necessário para governar. Aqui, não estou me referindo somente
à necessidade de apelar aos depoimentos (no melhor estilo do formato religioso) das
pessoas administradas, apesar de reconhecer que essas ações são uma fonte de geração de
crença na prática do refúgio, assim como na sua necessidade e bondade. Aqui estou
apontando notadamente para as relações que existem entre as pessoas que, na qualidade de
administradoras no campo de governança do refúgio, ocupam lugares – sociais e
geográficos – muito próximos e cuja opinião, compartilhada, circulada entre outros
agentes, acaba consolidando diretrizes de ação. Como opiniões compartilhadas ou como
dissensos não escritos, foram-me expressados vários eventos, decisões e diretrizes de ação
entre as quais: a razão para que seja a Cáritas a ONG representante da sociedade civil; a
suposta melhoria no “conflito colombiano” que representou mudanças na forma de analisar

268
as solicitações; a campanha diplomática da Colômbia para mostrar melhorias no país; a
preferência por agentes entrevistadoras mulheres; os critérios de entrega de benefícios
materiais, entre outros. Nesse caso, a fluidez da palavra expressada oralmente não faz com
que perca sua eficácia. Pelo contrário, às vezes, a torna mais eficiente, podendo se adaptar
discursivamente muito mais rápido a uma mudança nas condições dos países de origem
dos refugiados, dos contextos nacionais que exigem explicações sobre os refugiados ou das
relações cotidianas nos postos administrativos.

Ao mesmo tempo que algumas coisas ficam registrada rigidamente nos formatos escritos
que dão ao Estado a marca da racionalidade, também existem jogos de inculpação, dados e
números ambíguos, versões dos fatos e conhecimentos dos processos possuídos por poucas
pessoas e não registrados. Com esses elementos, é muito mais fácil criar confusões úteis
para estimular formas específicas de governo de populações, assim como a sensação de
que somente as pessoas encarregadas conhecem, entendem e podem encarar o “problema
do refúgio”. Há ditos e não ditos que dificultam localizar a seus autores, mas que
produzem efeitos desencadeiam práticas que podem ser pensadas como práticas de
governo engendradas na oralidade do Estado brasileiro, pelo menos desse fragmento de
Estado que se cria e se atualiza por meio da administração da palavra do refúgio.

Na próxima parte, dedicada aos diferentes tempos do refúgio, será analisada a forma em
que a produção de verdade atinge outra dimensão. As histórias e os formatos do sujeito que
são produzidos nesses encontros com o Estado farão parte da produção de uma imagem
dotada de conteúdos temporais a respeito da procedência do sujeito, de sua proximidade
cultural e de suas possíveis deformações por causa do sofrimento. Também serão centrais
para administrar e definir as formas e os conteúdos da “integração à sociedade nacional”.

269
QUARTA PARTE. O tempo: a integração ou o retorno da vida

8. Oitavo capítulo
Ritmos e tempos do refúgio
O exílio, como nos diz Said (2001), é uma “fratura incurável entre um ser humano e um
lugar natal, entre o eu e o verdadeiro lar” (op. cit., p. 46). Nessa parte da tese, gostaria de
abordar essa ruptura que configura o exílio na vida de algumas das pessoas com as que me
encontrei, assim como a diferença entre essa experiência existencial do exílio e a
experiência administrativa do refúgio (não menos configuradora de subjetividades) tal
como tem sido descrita ao longo do texto. Em segundo lugar, interessa-me reflexionar
sobre o fato de que a ruptura que é instauradora de um exílio – e que tem lhe servido de
base moral à administração do refúgio ao interpretá-la como a origem de um ‘fundado
temor de perseguição’ – não apenas é espacial, mas temporal.

O tempo que foi interrupto bruscamente, que nunca voltou ao ritmo que marcava a vida de
todos os dias e desabilitou o espaço para ser habitado pelo cotidiano, parece ser um dos
aspectos que alguns autores associam à figura contemporânea do refúgio e que podemos,
segundo Said (2001, p. 46), pensar como um dos marcadores do exílio. Esse “evento
crítico”, nos termos de Veena Das (1997, p. 6-8), atravessado por uma experiência de
violência que supera a capacidade da linguagem para significá-lo e enunciá-lo, é
paradoxalmente exigido, convertido em um requisito narrativo, pelos agentes que
administram o refúgio no Brasil, buscando em sua exposição controlada, em diversos
formatos de entrevista e interação, um passado de temor e um temor digno de refúgio. Ou
seja, buscando na narração de um evento, quase inenarrável, as “origens legítimas do
medo” (GOOD, 2006, p. 98) que facilitam a apresentação do refúgio como a prática de
governo adequada sobre determinadas populações em êxodos marcados por determinados
sofrimentos.

Além dessa ruptura temporal, ou quiçá em parte por ela, o tempo será abordado nesta parte
como um elemento fundamental no governo dos refugiados e na recomposição de um
mundo possível no exílio. Interessa-me examinar essa dimensão em relação à proposta de
Adriana Vianna (2011, p. 8) que, inspirada em Veena Das, sugere analisar o “trabalho que
se exerce sobre e no tempo” como uma peça fundamental em alguns processos por meio

270
dos quais são construídas subjetividades e moralidades. A relevância de diferentes
dimensões temporais ou ritmos (urgência, imediatismo, etapas escalonadas) na construção
de uma “história verdadeira de refúgio”, o tempo da espera para ser reconhecido, os prazos
dados aos reassentados para a integração e para o recorte dos benefícios financeiros, entre
outros, são elementos cruciais nos processos que performam aos refugiados.

Levando em conta as discussões que assinalam que o tempo é em si mesmo um “portador


de significado” e alertada pelos “usos opressivos” que este consente e facilita (FABIAN,
1983, p. 2), gostaria de indagar algumas das consequências sociais da utilização do tempo
como categoria que permite a construção de determinadas imagens e interpretações no
universo institucional brasileiro do refúgio. Iconografias e exegeses que, por sua vez,
servem de material para tecer as relações entre sujeitos refugiados e diferentes agentes de
Estado. As diversas leituras dos tempos dos sujeitos assim como dos países envolvidos no
refúgio de colombianos no Brasil colaboram na inscrição dos corpos e das histórias não
apenas em espaços sociais mas também em momentos de uma escala de progresso na
carreira que supostamente é seguida por todas as vidas. Essa inscrição também está
marcada por uma escala universalizante segundo a qual tanto os países quanto os sujeitos
que os representam na migração estariam em um momento civilizatório diferente daquele
do país de acolhida. Os usos do tempo servem para explicar a procedência dos refugiados
“vindo” de diferentes passados, mais ou menos bárbaros e violentos, assim como para
justificar o difícil trabalho civilizador do presente sobre um futuro que se presume como o
da “integração exitosa” na “sociedade brasileira”.

O tempo também se faz pressente com a ideia mesma da provisoriedade128 presumida do


refúgio (SAYAD, 1991, p. 51) e de seus processos de solicitação. Provisoriedade que

128
A respeito da migração, Sayad (1991) apontou uma não correspondência entre o direito e o fato. Se, em
direito, supõe-se que a migração é um estado provisório, sua característica, de fato, é que é uma situação
durável. Assim, para o autor, não se saberia se trata-se de um estado provisório que se quer prolongar
indefinidamente ou se trata-se de um estado duradouro, mas que se quer que seja vivido com um intenso
sentimento de provisoriedade (op. cit., p. 51). Assinalando essa questão, Sayad proporá que se trata de uma
“ilusão coletiva” de um estado que não é nem provisório, nem permanente. Nas palavras do autor: “Un état
que n’est admis tantôt comme provisoire, qu’a condition que ce «provisoire» puisse durer indéfiniment et,
tantôt, comme définitif qu’a condition que ce «definitif» ne soit jamais énoncé comme tel” (Ibidem).
Pensando nas inúmeras coincidências desses postulados com a lógica administrativa dos refugiados
espontâneos, podemos observar a existência de contradições similares segundo as quais o refúgio é uma
situação provisória que tem de ser atualizada a cada determinado tempo e que pode ser rescindida quando
seja presumido que existem condições para que os refugiados apelem novamente à proteção de seu próprio
país.

271
termina por se prolongar e se eternizar como a condição que marca as membresias
temporais e restritas que lhes são outorgadas na sociedade brasileira a esses sujeitos
refugiados e a muitos outros imigrantes. Em franco contraste com esse caráter provisório,
ergue-se discursivamente o caráter “perdurável” com o qual é construída e apresentada –
na linguagem do Acnur e do Conare – a “solução duradoura do reassentamento” (ACNUR,
2011a). Sem que essa durabilidade signifique uma membresia menos restrita, presume-se
que os reassentados não retornaram ao seu país, de modo que eles se tornam a matéria-
prima de futuros brasileiros, ora por sua própria transformação com o passar dos anos, ora
por sua descendência nascida em – e para – o território brasileiro.

Também me interessa, por meio dos aspectos supracitados e do acúmulo de trabalhos como
os de Giralda Seyferth (1993, 1997, 2000, 2011), interrogar a ideia mesma de integração
que é apresentada pelos agentes de refúgio como o objetivo principal dos programas,
notadamente do reassentamento. Isso, levando em conta os diferentes tempos/ritmos que
são propostos, conteúdos e resultados da figura contemporânea do refúgio brasileiro, vista
por meio da recepção de nacionais colombianos. Por último, considero que existe uma
sorte de tempo mítico, que todos esses outros tempos, associados à figura salvadora do
refúgio, ajudam a construir. O relato do refúgio é inscrito pelos agentes da tríade em um
tempo brasileiro que inclui todos os tempos da migração. Tempo que é resumido e
caracterizado como – tanto pelos agentes da tríade quanto pela sociedade civil ampla – por
uma perene constituição mestiça, uma sempiterna abertura vanguardista para a diferença
cultural e uma tradição pouco escrutada do Estado-nação brasileiro como um amável
receptor de povos em êxodo.

8.1. Demorando muito, recebendo pouco: o quanto sempre defasado com o


quando

Pues el día xx de xxxxxx nos visitó el ACNUR de Brasilia, que es una visita al
año que hacen para todos. Y expusimos el caso, pero ellos dicen que los ojos del
ACNUR de aquí son los del CDDH, que cualquier inquietud se la digamos al
CDDH. O sea, la misma vaina. Y un año de reasentamiento es corto, no
queremos que nos mantengan toda la vida. El tiempo está bien, siempre y cuando
ellos estudien bien el perfil, los trámites sean rápidos, lo guíen y lo orienten bien
a uno. Y que las ayudas, especialmente en el estudio, sean oportunas. Pero lo
único que hacen es dilatar todo, todo lo demoran, todo es un trámite y demasiada
‘tramitología’. Haciendo tiempo para que se acabe el año y ya uno no tenga más
derecho a nada […] Nosotros teníamos una fábrica pequeña con cuatro máquinas
y el resto de lo necesario y allá [en Ecuador] nos dijeron que acá nos ayudaban
con un micro emprendimiento que era muy bueno y que nos daban estudio a
todos para quedar bien preparados y podernos defender. [Pero] mi estudio yo lo

272
pago y para el de mis hijos y mi esposo dieron para un par de pasajes y no más.
Nos tocó pagar el resto a nosotros. Lo peor es que así ¿uno cómo va a ahorrar? y
antes de que se cumpla el año le mandan la carta de desalojo y están hasta
amenazando con policía y todo. Usted sabe alquilar una casa cuánto cuesta. Hay
que tener por lo medos 2500 ahorrado. (Reassentada)

Apesar das diferenças do que acontece ao chegar ao território brasileiro entre os


solicitantes espontâneos de refúgio e os reassentados, uma comum sensação de impotência
e desespero foi descrita pelas pessoas em ambas as situações. A descrição que as pessoas
fazem pode ser entendida como uma luta constante e desigual – que quase sempre se sente
perdida – contra a “gestão adversa do tempo” conforme a fórmula de Vianna (2011, p. 12).
Gestão que se acompanha do que eles denunciam como descuido e desinteresse por parte
dos agentes que, se supõe, deveriam velar pelo seu bem-estar. Para eles, é particularmente
difícil essa combinação da espera – como um tempo que passa sem que nada passe ou em
que passa o inapropriado – e a precariedade que eles experimentam. Precariedade que é,
além disso, continuamente enunciada pelos agentes e exibida nos lugares e nas coisas da
administração de refugiados (postos administrativos, moradias e mobiliário para o
reassentamento, albergues, etc.). Parece que, ao estabelecer um vínculo com o universo
institucional do refúgio, as pessoas se encontram, de repente, congeladas ou colocadas em
câmera lenta em um terreno pantanoso de dificuldades e carências.

Para abordar as expressões e as experiências da precariedade, baseio-me na proposta de


Judith Butler. Para a autora, existiriam duas formas – às vezes, opostas – de entender a
precariedade129, ou mais exatamente duas formas de apreender uma vida, ou um conjunto
de vidas, como precárias (BUTLER, 2009, p. 14). Além de uma primeira precariedade, que
poderíamos entender como existencial na medida em que caracteriza a existência corporal
dos sujeitos expostos sempre a forças sociais, a autora define uma concepção mais
especificamente política da precariedade. Essa última, sempre vinculada com a primeira
precariedade exposta, estaria relacionada com a forma em que existem atribuições
diferenciais de precariedade para determinados corpos (BUTLER, op. cit., p. 16). Nesse
caso, considero que os marcos por meio dos quais as vidas das pessoas são dotadas de
valor diferencial constroem diferentes tipos de reação diante delas. Ao mesmo tempo que a
precariedade existencial das pessoas aparece como motivadora de uma ação de salvação, as

129
Na tradução ao castelhano do livro Marcos de Guerra de Butler, é explicado que foi traduzido o
neologismo inglês precarity por precaridad e precariousness por precariedad.

273
relações com elas são construídas de modo que é reforçada a ideia de um humano precário
como uma condição que possibilita uma boa dose de indiferença sobre seu sofrimento.
Simultaneamente, as pessoas, ao identificar nesses marcos uma produção de precarizações,
reagem identificando-as, nomeando-as como intoleráveis e denunciando-as; tudo isso
como uma forma possível de impedir que esses marcos as afetem em um nível existencial
no qual suas vidas já não sejam mais reconhecidas como vidas.

O trabalho e a disputa sobre o tempo é fundamental nessa luta para preservar o valor das
vidas. Como foi explicado por Gladis na citação que inaugura este apartado, para ela, “el
tiempo está bien”. O que está mal é sua gestão, e a lentidão com a qual os agentes fazem as
coisas, é o poder que limita suas ações e anula sua capacidade de se preparar para “se
defender” sozinha no futuro. Para Gladis, os agentes estariam “haciendo tiempo para que
se acabe el año” e, assim, se cumpra o prazo previsto para o final dos benefícios oferecidos
aos reassentados. Essa feitura inadequada do tempo, essa dilatação de trâmites cotidianos,
que acaba por se apoderar dos meses, foi uma queixa frequente das famílias reassentadas
com as quais falei, especialmente quando se referiram (ou se encontravam em) seus
primeiros anos de vida no Brasil.

Não apenas o tempo lhes pareceu “insuficiente”, mas a constante enunciação dos
administradores da falta e da carência fez dos primeiros meses uma etapa mais angustiosa,
precipitando a sensação do final iminente dos benefícios e do prazo para a integração.
Segundo Sandra e Silvio, por exemplo, os agentes de reassentamento foram tão insistentes
sobre o caráter limitado dos recursos, em quantidade e tempo, que eles teriam chegado a
considerar a renúncia a alguns meses mais de benefícios financeiros, se isso significasse
que poderiam se desfazer dessas advertências contínuas que eles sentiam como sendo
ameaças e que terminavam desgastando a tranquilidade da família. Afinal, ao concluir o
primeiro ano, os agentes do programa lhes outorgaram mais um mês de apoio financeiro,
mas a família deveu assinar um documento “se comprometendo a não pedir mais”. Depois
desse mês “extra”, Silvio, que havia sofrido um acidente de trabalho, disse que, tendo em
vista as novas circunstâncias, ele havia tido de “ameaçar” a ONG “con hacer un escándalo
mediático”. A essa ameaça ele lhe atribui o fato de que o programa tenha aceito cobrir os
gastos durante seis meses mais.

274
Segundo alguns dos administradores, atuais e já retirados do programa de reassentamento,
essa constante repetição sobre os limites dos benefícios se fez necessária porque os
primeiros grupos de pessoas reassentadas, apesar de terem sido informados, queixaram-se
da falta de clareza sobre os benefícios e a duração do apoio do programa. Além disso,
porque, segundo eles, as pessoas chegavam com muitas expectativas sobre a assistência
que receberiam e sobre a vida no Brasil, de modo que, com os primeiros grupos, foi
preciso, em alguns casos, renegociar com o Acnur novos prazos para a suspensão dos
benefícios econômicos.

A decisão para evitar essas situações, que os agentes da tríade julgaram inconvenientes, foi
combinar a constante enunciação da falta (de recursos, de tempo, de pessoal) com a seleção
de pessoas com baixo perfil (referindo-se basicamente a seu nível educativo e a seu
suposto pertencimento de classe) de quem supunham que não teriam grandes expectativas
sobre a “nova vida no Brasil”. Também se incorporou um cálculo que antecipava um mal-
estar no momento final dos auxílios econômicos, de modo que usualmente se estabelece
um tempo possível de benefícios, mas se oferece um menor. Se, no momento de retirar a
assistência, a inconformidade das pessoas vira um mal-estar difícil de controlar, existe a
possibilidade de dar uns meses mais de cobertura econômica que já estavam contemplados
como uma opção desde o começo. Mais uma vez e, ainda com mais insistência, é repetido
que esses benefícios serão os últimos entregues e que são concedidos em virtude da
avaliação da situação como “extraordinária”.

Segundo as famílias que entrevistei, os limites da assistência são informados antes da


viagem, mas essa informação vira repetição explícita e constante quando as pessoas
chegam ao Brasil. Situação que contrasta com o momento da apresentação do programa em
que os candidatos a reassentamento são contatados no Equador. Mesmo que as pessoas
soubessem que o programa ia dar assistência por um tempo determinado, não se
imaginavam que esse tempo assistido seria marcado pela difícil gestão dos benefícios
oferecidos, fazendo dele um tempo insuficiente. O primeiro contato dos agentes da Missão
de Seleção e os candidatos a reassentamento parece ser um momento de sedução. Embora
sejam expostas algumas das realidades sociais problemáticas do país, assim como os
limites do reassentamento, o objetivo também é, segundo os próprios agentes que
participam dessas missões, convencer as pessoas a aceitarem o reassentamento no Brasil.

275
Como visto na terceira parte da tese, a seleção de refugiados e reassentados implica um
esforço por individualizar as pessoas e suas histórias, outorgando aos detalhes de cada
“caso” um lugar preponderante e um caráter de particularidade. Essa sensação de estar
vivendo algo especial, de estar sendo eleitos entre muitos outros para serem salvos, é
reforçada com outros atos de espetacularização que algumas das pessoas reassentadas,
especialmente as crianças e os jovens, relataram com entusiasmo. Por exemplo, foi motivo
de exaltação nos relatos o fato de terem sido levados pelo Acnur, escoltados até o
aeroporto e de terem tomado um voo (para muitos deles o primeiro da vida) e, além disso,
de ser parte de uma operação de uma agência internacional. Usando as palavras de um dos
jovens: “fue como en las películas”, já que “nos dieron distintivos secretos del Acnur”,
referindo-se a um kit de desenho com o logotipo do Acnur que é entregue às crianças dos
casais reassentados com instruções de que seja portado em um lugar visível de modo que
possam ser reconhecidos pela equipe da ONG que ira recebê-los no aeroporto130.

No entanto, essa espetacularização da seleção e da viagem que lhes outorga um lugar


especial contrasta com a sensação de abandono e desprezo de sua história que se instala
rapidamente quando começa a ser tecida a relação cotidiana com os administradores de seu
reassentamento. Também há um desencantamento com a sedução inicial por meio da qual
“o Brasil” lhes é apresentado como uma opção de reassentamento. Parte da estratégia de
sedução inclui a celeridade na tomada da decisão. Ou seja, que “o Brasil” oferece um
diferencial em comparação com os países clássicos do reassentamento na medida em que
não demora anos, mas apenas alguns meses para dar uma resposta aos candidatos (como
visto na segunda parte da tese). Mas a celeridade nessa primeira parte do processo vira
parcimônia quando da chegada ao Brasil, o que faz que tudo ande lentamente durante o
tempo em que as pessoas serão assistidas, ou também se transforma em uma proliferação
de trâmites que foram qualificados de inúteis e que ocupam e gastam o tempo que, segundo
elas, deveria ser dedicado ao “processo de integração”. Processo que é entendido, nesse
caso, pelos próprios sujeitos reassentados, como sua preparação para “se defender sozinhos
no futuro”.

130
No caso das pessoas adultas que viajam sozinhas, o distintivo é uma mochila ou bolsa que leva impresso o
logotipo do Acnur.

276
Apoiando a ideia dos agentes de reassentamento, segundo a qual a assistência financeira e
a cobertura do programa devem ser limitadas e esse caráter continuamente enunciado, está
a suposição de que é possível antecipar as emoções que predominarão nas pessoas durante
cada uma das etapas do primeiro ano de vida no Brasil (ou do tempo de assistência do
programa). Segundo esse cálculo, o momento da chegada estaria marcado por uma relação
cordial e, ao contrário, o momento da finalização da assistência seria um período hostil
marcado pelas reclamações.

Ah! A chegada é uma maravilha, tem casa, mobília, tudo é bom, mas já no10°
mês, no 11° mês, o 12°, é ódio total. (Coordenadora de ONG de reassentamento
1)

[...] um está na lua de mel e o outro na lua de fel. Os três meses primeiros são a
lua de mel, aí depois eles começam a ter consciência de outras coisas, das
dificuldades e até dos próprios traumas e o choque pós-traumático aparece muito
mais depois do terceiro e quarto mês e tem o período em que eles começam a
rever tudo o drama do deslocamento, porque eles são muito apegados a isso, eles
têm uma ligação demasiada com o conflito. (Coordenadora de ONG de
reassentamento 2)

A leitura das pessoas reassentadas, principalmente de algumas famílias, não coincide com
essa divisão de emoções associadas ao tempo do programa. Para uma das agentes citadas
(agente 2), o descontentamento que abrolha nas pessoas deriva da aparição do “trauma”
pelo “drama do deslocamento” que ela localiza no passado. Para as pessoas reassentadas
que entrevistei, esse descontentamento tem mais relação com o próprio processo de
reassentamento, e sua origem está claramente localizada no pressente, como uma etapa que
também está marcada pelo sofrimento, pela carência e pela reatualização de sua condição
de despossuídos, de desterrados. Considero que, para além do “evento crítico” que gerou o
primeiro êxodo e, entendidos como processos, os programas e as técnicas de
sedentarização e reassentamento são parte do deslocamento e conformam boa parte de suas
características dramáticas.

Podemos dizer que, mesmo que o Acnur e seus agentes considerem possível fragmentar os
tempos do êxodo segundo caracterizações jurídicas definidas para cada um (deslocamento,
refúgio, reassentamento, integração ou retorno, etc.), o tempo desses ciclos na vida das
pessoas não está fragmentado dessa maneira, nem apresenta esse comportamento
sequencial que fabricam os administradores dos programas. Idas e vindas, lembranças e
esquecimentos, reinterpretações dos acontecimentos violentos, tentativas exitosas ou
frustradas de regressar ao lugar natal e relações tensas ou cordiais com funcionários e

277
agentes se integram de maneira inesperada na história e na experiência de cada sujeito –
coletivo ou individual – cuja vida tem sido marcada pelo êxodo.

Por outra parte, o momento da chegada está longe de ser o momento maravilhoso ou a lua
de mel da qual falaram as coordenadoras das ONGs. Pelo contrário, me foi descrito, com
muita indignação, o descobrimento da precariedade das casas e dos bairros onde o
programa os localizou, assim como o estado e o estilo dos móveis e eletrodomésticos que
lhes foram entregues e até a defasagem entre o tamanho das roupas que lhes foram
oferecidas e o tamanho dos seus corpos. Além disso, nas narrações sobre os primeiros dias
se referiram constantemente que se sentiram sós, deixados em hotéis sem contato com as
funcionárias das ONGs, com pouquíssimo dinheiro e sem poder se comunicar em
português com ninguém.

Na narração que as pessoas fizeram sobre essas misérias iniciais, a ira e a indignação
estiveram muito presentes, inclusive nos casos de pessoas que já levam vários anos
morando no Brasil, a narração foi marcada pela emoção, às vezes pelas lágrimas e, às
vezes, pela zombaria. Sandra e Silvio riam lembrando ao contar que, quando eles
conseguiam que a diretora da ONG da época fosse visitá-los ou quando chegava a
“assistente social mais odiosa”, eles tiravam as espumas e as mantas com as quais
usualmente cobriam os buracos e o mofo do sofá que lhes tinha sido entregue pelo
programa. Desse jeito, as funcionárias se viam obrigadas a se sentar “en esse sofá podrido”
ou a tomar café em “los pocillos despicados” que lhes tinham entregado como parte do
aparelho de jantar.

Também Rodolfo lembrou com emoção que as primeiras noites foram de muito frio e não
estavam preparados para isso. Achando, como outros refugiados que encontrei, que o
Brasil era um país de clima quente – e sem informação diferente a respeito oferecida pelos
membros da missão de seleção – ele e sua família doaram as roupas de inverno para outras
pessoas que ficaram no Equador. Ao chegar à moradia que a ONG alugou para eles,
encontraram os colchões que seriam seus leitos estendidos no chão na entrada da casa, um
pouco úmidos e sem roupa de cama. Nas primeiras semanas, os quatro integrantes da
família tiveram de dormir todos juntos em um colchão só, cobertos com as poucas roupas
que trouxeram do Equador para combater o frio. A lembrança desses primeiros tempos,

278
segundo me disseram, ainda os afeta ao evocá-la mesmo que já passaram mais de sete anos
desde esse momento. Como eles, outras pessoas que chegaram reassentadas, expressaram
essa relação difícil no tempo de chegada. Além de ser um tempo encolhido pela invasão
dos trâmites inúteis, é também um tempo da humilhação por meio do descuido.

Os solicitantes e refugiados espontâneos, por sua vez, se refeririam à primeira etapa de


vida no Brasil como um tempo marcado pelo poder dos agentes de refúgio para anular sua
capacidade de decisão autônoma sobre suas próprias ações cotidianas por meio da
eternização da espera, inclusive para os pequenos detalhes cotidianos como a entrega de
medicamentos, roupa, comida, a resposta a uma pergunta simples, a emissão de um
encaminhamento131, etc. A proposta de Vianna (2011) sobre as gestões do tempo é
pertinente para tentar dar conta das diferentes dimensões em que os tempos de espera
foram referidos pelas pessoas. Mesmo que poucas pessoas significaram moralmente a
espera em termos de construir uma luta público/política utilizando o tempo como sua
matéria-prima, tal como o descreve a autora em seu trabalho (VIANNA, 2011, p. 11), foi
comum a referência à correção e à exemplaridade moral que faziam com que eles se
submetessem a esses tempos administrativos.

Submeter-se a essa gestão, vivida como um sofrimento, era para eles uma amostra de sua
condição de “bons cidadãos” e de “boas pessoas”. Pois, caso contrário, pouco lhes
importaria permanecer “ilegalmente” no Brasil132. Além disso, o tempo transcorrido em
espera de um reconhecimento confere ao refúgio um maior valor simbólico quando esse é
enfim reconhecido.

[…] entonces yo de Brasil me voy, yo aquí no voy a esperar más, yo de aquí a


diciembre, a Navidad, si no me dan a mí una respuesta positiva, si yo aquí me
siento castrado hasta diciembre, yo me voy de aquí a otro lugar donde pueda
vivir, donde pueda trabajar y donde pueda desempeñarme útil a la sociedad.
Porque yo no soy un ladrón, yo no soy un delincuente. Si yo estuviera al margen

131
Na segunda parte da tese, foi analisado esse aspecto da administração de refugiados, apontando, conforme
Lugones (2012), que a espera nos corredores ou nas salas exteriores da Cáritas, constitui um modo efetivo de
gestão e um mecanismo de controle temporal que, recorrentemente, marca o tempo por meio das dinâmicas
desses agentes de Estado.
132
Essa forma de significar o tempo dentro do contexto de trâmites administrativos que buscam um
reconhecimento final também foi descrita por Sarah Mazouz na sua tese doutoral sobre as políticas de
discriminação e as práticas de naturalização na Francia durante os anos 2000 (MAZOUZ, 2010). Em palavras
da autora: «En d’autres termes, le mérite du postulant s’éprouve par le temps de la procédure qui permet ainsi
d’estimer sa motivation. La procédure devient, donc, une mise à l’épreuve où chaque étape peut jouer un rôle
dans la sélection ou l’élimination des candidats et dans l’appréciation qu’aura l’administration de leur volonté
de devenir français et du mérite dont ils ont fait preuve pour pouvoir le devenir» (MAZOUZ, 2010, p. 256).

279
de la ley no me importaría vivir en Ecuador, en Argentina, en Venezuela, no me
importaría vivir en Paraguay, en Uruguay, sino que haría lo que normalmente
hace la gente; que es: hacerle mal a la humanidad. Entonces como yo no soy de
esas personas ¿tengo derecho a qué? A esperar, a esperar, esperar, esperar y
esperar. (José Alberto, solicitante de refúgio)

Seguindo a proposta de Vianna (2011, p. 12), considero que algo dessa “gestão adversa do
tempo” afetou as pessoas de um modo difícil de significar e de reivindicar publicamente.
Essa espera minúscula do dia a dia, muitas vezes sem resposta, foi expressa mais como a
sensação de ser humilhados e constantemente localizados em um lugar social
subordinado133, ou como disse José Alberto, a sensação de se sentir “castrado”. Em outras
palavras, as pessoas expressaram, de uma parte, uma angústia existencial por não saberem
o que passaria com seu pedido, que, em palavras de Vianna, podemos pensar como “o que
acontece na vida quando (e enquanto) algo que é objeto de tanto esforço, dedicação e dor
pessoal é posto em suspenso” (VIANNA, 2011, p. 7-8). De outra parte, as pessoas
expressaram raiva e frustração engendradas nos conteúdos diários com os que foi
preenchida essa grande espera; engendrados nos momentos cotidianos de gritos, negativas,
trâmites inúteis, vazios de informação, de orientação e de assistência ou vividos em
ausência total de conhecimento sobre o estado de sua solicitação e de seu próprio
“processo”.

A espera, nesse sentido, parece se advertir quando se manifesta em forma de ausência, seja
de informação, de atendimento, de documentos ou de modos de subsistência. Quando as
pessoas sabem como avança seu processo e o ritmo em que acontecem as etapas da
solicitação se adapta a suas necessidades de alimentação, de emprego, de renovação de
protocolos, de vagas escolares, etc., o tempo não se sente como um adversário, nem seu
transcurso como uma espera. Porém, se, em cada etapa de instalação, não tem o que lhes é
necessário para concluí-la exitosamente, a espera se manifesta como essa defasagem entre
o quando necessitam as coisas e quanto delas chegou ao momento adequado. Dessa forma,
a espera se faz insuportável e, como dizia Santiago: “ellos buscan desesperarlo a uno con
tanta esperadera, para que uno termine yéndose o renunciando al refugio”.

133
A esse respeito, é esclarecedor o argumento de Adriana Vianna quem apontou que: “O trabalho simbólico
crucial a ser feito a partir da espera implica, assim, em conseguir inseri-la em uma ordem significativamente
ativa de tempo, ao localizá-la como parte da própria “luta”. Há, porém, algo da espera que parece nunca
caber plenamente nessa ordenação, que lhe escapa por falar do rotineiro, do intangível e do não narrável nos
termos da “luta”. Seria aquilo que não é convertido em agência ativa, ficando marcado pela frustração e pela
percepção de estar sem forças e sem poder de reação, submerso por algo maior e, ao mesmo tempo, mais
invisível” (VIANNA, 2011, p. 12).

280
Se no reassentamento as esperas e a quantidade de trâmites do primeiro ano fazem que esse
ano se encolha e se faça mais curto do que o desejado, no caso dos solicitantes
espontâneos, passa o contrário. As esperas e a quantidade de trâmites dilatam os meses e os
fazem quase eternos. Essa situação dos solicitantes, segundo alguns funcionários do
Conare, não afeta as pessoas. A apresentação das leis brasileiras de refúgio e de sua
exemplaridade servem, mais uma vez, como explicação de por que a espera não seria um
fator de prejuízo:

[...] Mas assim, as pessoas teoricamente não têm prejuízo de esperar até porque
renova o protocolo134 [...] Com o protocolo, pode tirar carteira de trabalho,
também pode tirar o CPF, pode... Então é assim, ela não tem prejuízo, nada que
ela não teria sendo refugiada. (Agente entrevistadora do Conare)

Apesar da afirmação das autoridades de refúgio e apesar do registrado na lei, os


solicitantes costumam ter muitos problemas para renovar seus protocolos, para conseguir e
manter empregos legalizados utilizando seus documentos provisórios, para obter carteiras
de motorista, revalidação de diplomas, entre outra série de documentos e trâmites que são
necessários quando se deseja permanecer em um novo país. A incerteza sobre a resposta
positiva ou negativa de sua solicitação faz que muitas pessoas não comecem o difícil
processo de alguns desses trâmites. Isso, no caso dos diplomas escolares, por exemplo,
significa o retraso ou abandono na culminação da formação e suas consequentes
desvantagens na vida social e profissional.

A incerteza sobre a possibilidade e as condições futuras da permanência manifesta-se


também, segundo o narrado pelas pessoas, em angústia, depressão e falta de entusiasmo
para empreender projetos que impliquem em esforços que poderiam perder-se em caso de
uma resposta negativa. O fato de não saber se é possível permanecer torna-se uma fonte de
incerteza tão difícil de sobrelevar como aquela que experimentaram em seus locais de
origem quando não sabiam se teriam que partir. Ou seja, quando também não sabiam se
poderiam ficar. A esse respeito, considero fundamental observar que usualmente a atenção
sobre as diversas formas de opressão que sofrem mundialmente os chamados “fluxos
migratórios”, sobretudo os mais precarizados, é colocada na impossibilidade de

134
Em 2013, o tempo de validade do protocolo foi estendido, passando de três para seis meses. Essa mudança
foi muito bem recebida tanto pelos refugiados e solicitantes quanto pelos agentes de refúgio. A mudança não
foi exclusiva para os refugiados, mas beneficiou os estrangeiros de modo geral.

281
movimentação imposta às pessoas por meio dos campos de refugiados, os muros
fronteiriços, os centros de detenção para migrantes, as polícias de fronteira, etc. Porém,
pouco se fala em seu oposto constitutivo que é a impossibilidade de ficar. Ou seja, a
obrigatoriedade imposta – muitas vezes, de maneira violenta – de se movimentar, de ir e de
abandonar o lugar habitual onde se mora, inclusive quando esse tem se convertido em um
país estrangeiro, em um campo de refugiados ou numa zona de indeterminação.

Algumas pessoas se referiram à sua necessidade de vir ao Brasil, ou a seus obrigados


trânsitos internos na Colômbia, aludindo a esse processo como uma perda de liberdade. Por
exemplo, quando perguntei ao Miguel por que havia elegido o Brasil se também lhe
haviam oferecido reassentamento no Chile e na Argentina, ele respondeu que teve de sair
da Colômbia por causa do que ele pensava e de sua militância política, que eram como
uma condenação à prisão. “Si voy a ir preso por lo que pienso y por lo que hago, por lo
menos que la cárcel sea grande”, me disse. Também José Alberto, contando da
perseguição que sofreu na Colômbia, dizia:

Yo tenía que andar escondiéndome, yo no podía estar fijo en algún lugar,


entonces ahí yo pierdo mi libertad. Ahí yo pierdo mi carácter y mi idoneidad
profesional ¿Para qué estudié 5 o 7 años, si eso a donde voy no vale de nada?

Por sua vez, Rocío, quando lhe perguntei onde moravam antes de ter que vir para o Brasil,
me disse: “la verdad en ningún lugar […] vivíamos cambiando todo el tiempo”. Viver sob
a ameaça de não ter um lugar para morar também contribui para que os anos que,
posteriormente se passam em um mesmo lugar, sejam significados como uma conquista,
inclusive quando eles são o resultado de processos de fixação provisórios, gestados em
práticas de governança de populações.

Quando essas primeiras etapas da vida no refúgio no Brasil foram superadas, notadamente
quando tem se conseguido um nível de estabilização socioeconômica e emocional, a
narração que as pessoas fizeram é a de uma travessia épica, com o consequente
engrandecimento dos esforços próprios, que fortalece a ideia do mérito e a recompensa.
Seguindo a proposta de Vianna (2011, p. 16), considero que é fundamental o tempo
transcorrido na construção mesma das verdades, nesse caso, no seu reconhecimento como
“verdadeiros refugiados”. Essa construção moral pode ser entendida, conforme a autora,

282
como “tecida no tempo, por meio da tenacidade demonstrada ao atravessar os longos anos”
(op. cit., p. 16).

Os agentes do refúgio, por sua vez, falam desses sujeitos “integrados”, estáveis,
empregados, bilíngues, etc., como uma amostra tanto do bom funcionamento dos
programas, quanto do mérito daqueles que lutam pelo que querem (ver anexos 4 e 5).
Muito amiúde também exibem narrativamente – e às vezes com imagens – esses casos
como amostra da generosidade da sociedade brasileira e seu caráter acolhedor e respeitoso
da diferença.

[...] eles [os colombianos] são muito empreendedores [...] é uma coisa que os
chefes reconhecem muito, que eles são os mais esforçados, que uma coisa
diferente no jeito de trabalhar. Como uma característica de muitos [...] Lembro
de xxxxx, ele na Colômbia era um assessor de um deputado e ao começo ele não
queria aceitar de jeito nenhum trabalhar numa cooperativa catando lixo. Mas não
é que agora ele é o chefe da cooperativa de catadores de lixo? E ele implementou
uma política de salário. Mas foi que a comunidade recebeu ele muito bem, e aí
ele ficou sem jeito de falar não para esse trabalho. (Ex-agente de integração)

Os que persistem, os que se submetem, os que com tão pouco conseguem sobreviver e os
que sabem agradecer a generosidade da sociedade que os recebe vão integrando a categoria
do refúgio e particularmente a do refúgio exitoso, que parece consistir tanto no esforço, no
sacrifício, na tenacidade e na gratidão dos refugiados quanto na solidariedade e na
generosidade das comunidades de acolhida, atuando como representantes de uma
“sociedade nacional brasileira”. Não entregar as coisas com facilidade, inclusive aquelas
que, nas leis do refúgio, aparecem como um direito, tem o efeito de fortalecer o sacrifício –
com todas as suas conotações cristãs – como a forma moralmente adequada de “refazer a
vida”. Vida que os agentes do refúgio presumem desfeita pela violência e estando na
margem da ordem do nacional.

Para esse efeito, também é muito efetiva a construção da precariedade e carência absoluta
com as quais se constrói a figura inicial dos solicitantes. A ideia inicial de seres
despossuídos, tanto quanto as dificuldades do processo aumentam o mérito desse grupo
exitoso, pois eles teriam “feito uma vida a partir do nada”, segundo a fórmula usualmente
empregada pelos agentes. Nesse processo, o tempo atua tanto como uma prova que deve
ser superada para demonstrar que se é merecedor do refúgio quanto um elemento

283
transformador que paulatinamente vai tornando as pessoas em refugiados integrados,
muitas vezes por meio do esforço e da dificuldade.

8.2. As rupturas: um presente contingente

Como visto, a leitura da “integração” que realizam os agentes do refúgio e alguns


refugiados, como um processo linear que culmina em um estado final e irreversível, não é
a mesma para todas as pessoas com quem falei. Inclusive, para muitas delas que levam
longo tempo morando no Brasil, e que durante anos têm conseguido manter a vida
econômica, social e emocional mais ou menos estável, a situação atual não é totalmente
percebida como definitiva. Os eventos violentos que os obrigaram a sair do país, tanto
quanto o processo de refúgio no Brasil e em outros países são uma potencialidade
ameaçadora dessa suposta estabilidade final de um transcurso que parece concluído aos
olhos dos agentes brasileiros do refúgio.

Segundo a análise feita por Grace Cho (2008, p. 14) da diáspora coreana para os Estados
Unidos – notadamente das “noivas de guerra” que foram as pioneiras dessa migração –,
existe a possibilidade de que, em qualquer momento da vida, o passado surja e, de diversas
formas, interrogue sobre o que foi ou que se perdeu em um momento potencialmente
traumático, tanto na guerra quanto nos acontecimentos posteriores que levaram as pessoas
a se instalarem em outro país. Sobretudo, há algo do que se perdeu que somente se soube
no futuro, ou que se saberá no futuro caso acontecer algo que permita identificá-lo.

Nesse sentido, o refúgio é potencialmente um exílio, mas a ruptura que esse último implica
nunca se poderá terminar de conhecer. A perda se inscreve no futuro, de modo que aquilo
que se perdeu se decanta como uma perda específica no (ou do) futuro que não existiu.
Esses dramas humanos vão se encontrar com marcos específicos de produção de
precariedade no exílio. Daí que seja tão difícil falar de um momento final quando se trata
de vidas marcadas pelo êxodo. Vidas inclusive marcadas com etiquetas de provisoriedade
nos documentos que idealmente selariam seu pacto de uma “nova cidadania”. Alguns dos
laços quebrados somente poderão ser identificados quando, com o que sobrou da vida
como ela era no passado e junto aos novos elementos, seja tentado tecer outros mundos
possíveis. Ainda seguindo a proposta de Cho (2008, p. 53), podemos observar o exílio

284
como um encontro dos traumas do passado com os traumas do futuro, em que a dinâmica
administrativa do refúgio pode somar sofrimentos tanto a uns quanto a outros.

Depois de uma década de viver no Brasil e de ter chegado com redes pessoais que fizeram
relativamente mais fácil sua instalação, Victoria, por exemplo, ainda se pergunta qual será
seu lugar nesse mundo. Apesar do tempo que leva no Brasil, ela ainda não começou o
processo de naturalização ao qual tem direito segundo a lei. Essa situação obedece, em
parte, ao que ela considera que essa decisão seria uma ruptura emocional definitiva com a
Colômbia. Porém, em grande medida, obedeceu também a que durante muitos anos foi mal
informada pelas agentes de Cáritas. Segundo ela me contou, na instituição, lhe disseram
que, caso ela pedisse a permanência – que é um passo prévio requerido para a
naturalização –, perderia todos os benefícios como refugiada. Como, na época, seu esposo
e três de suas filhas estavam tomando cursos no Sesc e no Senac, ela não quis arriscar a
gratuidade oferecida por esses serviços para pessoas refugiadas e depois foi deixando o
assunto meio esquecido. Essa condição temporária de seus documentos tem colaborado
com a sensação de não ter conseguido construir um lugar definitivo para si no mundo.

Todos esses anos, trabalhando para manter economicamente a família, têm lhe deixado um
vazio pessoal que ela associa principalmente às tentativas frustradas de terminar sua
carreira profissional ou fazer outra ainda com mais afinidade com seus gostos e interesses.
Agora que passou dos cinquenta anos, sem possibilidade de se aposentar – nem no Brasil,
nem na Colômbia – e ainda trabalhando para a subsistência, ela se pergunta por que não
recebeu apoio desde o começo do refúgio para culminar sua carreira. De fato, se pergunta
por que lhe colocaram tantos empecilhos para concluir sua formação e por que ainda hoje
continua sendo tão difícil fazê-lo. No balanço que Victoria realiza, seu ex-marido e três das
suas quatro filhas parecem estar cada vez menos refugiadas, cada vez com mais laços e
lugares para si no Brasil, enquanto seu próprio exílio não tem deixado de crescer e se faz
mais evidente quando os outros membros constroem projetos fora do espaço familiar.

Beatriz, outra mulher refugiada que, como o fez Victoria, manteve economicamente a
família durante quase uma década dando aulas de espanhol, também se queixa da falta de
apoio das ONGs encarregadas de administrar o refúgio. Segundo ela, quando os agentes se
referem à “educação”, na verdade, estão oferecendo “cursos” que, muitas vezes, nem

285
sequer são profissionalizantes135. Agora, preocupada com a forma em que ela e seu marido
passarão a velhice, tem cogitado a possibilidade de voltar para Colômbia, mas seu marido
não quer regressar. Os filhos de Beatriz e Rafael casaram com parceiros brasileiros,
tiveram filhos e, segundo o relato dos pais, “ya son más brasileros que colombianos”.
Beatriz sabe que a opção do regresso engendraria uma nova separação, dessa vez com os
filhos e os netos que, seguramente, permaneceriam no Brasil. Além disso, não tem certeza
de que Rafael possa se adaptar novamente à vida na Colômbia. Então, tem decidido, por
enquanto, não insistir nesse assunto.

Também Aurora, uma mulher refugiada muitos anos mais nova do que Victoria e Beatriz,
manifestou, nas nossas conversas, se sentir exausta pelo fato de ter de manter a família
com jornadas exaustivas de trabalho e sem a possibilidade de exercer sua profissão.
Mesmo que suas redes pessoais lhe tivessem ajudado a se empregar numa área afim a sua
carreira, o processo de provas para a revalidação de diplomas foi árduo e infrutífero. Para
aurora, a dificuldade de passar as provas deve-se ao fato de não ter tempo para estudar, já
que da sua renda depende a estabilidade econômica dela, de sua filha e de seu marido.
Além de ter sido o suporte econômico da vida no exílio, essas três mulheres assumiram
também o suporte doméstico, ampliando as jornadas de trabalho e os esforços cotidianos.
Nos relatos de Victoria, está muito presente a ideia de que “sim aproveitou” os benefícios
de formação oferecidos aos refugiados enquanto ela trabalhava sem descanso e “sin pensar
en ella misma”. Também me contou que Andrés, seu ex-marido, considerava que dar aulas
de espanhol era um ofício menor e teria sido explícito que não iria “rebajarse a eso”.
Contudo, era ele que ficava a cargo da administração do salário que ela lhe entregava
inteiro, tendo que posteriormente lhe pedir para e consultá-lo sobre seus próprios gastos
pessoais.

Anos mais tarde, quando ocorreu a separação conjugal, Andrés teve de começar a dar aulas
de espanhol em vista da frágil situação econômica na qual se encontrou naquele momento,

135
Essas duas mulheres enfrentaram uma mudança na legislação dobre o ensino de idiomas nas escolas,
colégios e institutos, segundo a qual devia se contratar somente professores com, no mínimo, nível de
graduação. Elas ou não tinham se formado ou não conseguiram validar os diplomas de modo que os
benefícios trabalhistas que tinham em seus empregos formais não estavam mais garantidos. Victoria teve de
redobrar a quantidade de aulas privadas com a consequente instabilidade e deslocamento pela cidade e
Beatriz teve de abrir mão de alguns de seus benefícios trabalhistas para conservar o emprego no instituto de
idiomas onde trabalha devendo se acolher a uma modalidade contratual diferente.

286
mas, quando eu falei com ele a esse respeito, ele manifestou que as aulas que ele dava
eram “en realidad clases de filosofía, de religión, de política, de todo con la excusa del
español”. Parece-me que essa recusa discursiva ao “descenso” e a obrigação de vivê-la na
prática são também formas de atualizar a ruptura com o espaço social que ele ocupava
antes (ou que imaginou que ocuparia agora) e que, em um contexto de êxodo, o fazem
lembrar constantemente que a origem dessa fratura tem as marcas da condição de ser
estrangeiro e da impossibilidade do regresso.

Essa forma de controle e qualificação das atividades assumidas por alguns sujeitos, nesse
caso pelas mulheres, não é exclusiva do refúgio. Porém, uma parte da sensação de
indignidade – manifesta por Andrés e outras pessoas entrevistadas sobre alguns ofícios –
poder ser experimentada de uma maneira particular no contexto de êxodo136.
Especialmente quando se trata de movimentos que se dão contra a vontade e quando esses
significam uma perda de status pessoal e profissional, sendo simultaneamente movimentos
para lugares com melhor status que os lugares de origem.

Nesse caso, supõe-se que o Brasil ocuparia um lugar mais destacado na organização
hierarquizada das nações com relação à Colômbia, mas as pessoas estariam pior, embora
estando num “lugar melhor”. Alguns relatos de pessoas refugiadas falaram da dinâmica
explícita de ocultação de sua “verdadeira situação” diante de parentes e amigos na
Colômbia. Foram comuns as frases como “ellos creen que esto es un paraíso, ella no sabe
las necesidades que estamos pasando ou no quiero que ellos vayan a saber y se
preocupen”. A ideia de viver em um lugar com prestígio relativo (sexta economia mundial,
o gigante latino-americano, etc.) e ajudar com o próprio silêncio a que essa imagem se
propague, inclusive entre parentes e amigos, remete a análise de Sayad (1991, p. 38) sobre
a ocultação da “verdadeira França”, a “França do exílio”, que o silêncio dos imigrantes

136
Dony Meertens que tem abordado o assunto laboral em contextos de desarraigo (MEERTENS, 2000;
2003), tem positivado essa característica de “adaptação feminina” no caso das famílias deslocadas
internamente pelo conflito na Colômbia. Segundo a autora, os homens, ao perder seu status de provedores,
sentiriam mais intensamente a perda de dignidade das condições do emprego informal e argumenta então que
as mulheres deslocadas mostram mais flexibilidade e recursividade. Meertens (2003, p. 4) defende que “pese
a la doble jornada, la nostalgia y ese sentirse desplazada”. Essas mudanças podem significar a construção de
maior autonomia que lhes permitiria “hacer sostenible el cambio de roles entre hombres y mujeres como
consecuencia del desplazamiento”. Embora discrepe do otimismo de Meertens a respeito da mudança
sustentável que, nas relações de gênero, possam engendrar as mudanças nos roles entre homens e mulheres
em contextos de deslocamento, parece-me muito produtiva sua ideia de um sentimento maior de indignidade
da parte dos homens, diante de alguns trabalhos.

287
argelinos ajudou a construir. Porém, também a análise de Fabiam (1983, p. 23) quando
propôs que a antropologia contribuiu na construção da diferença como distância,
engendrando a negação da simultaneidade para o “outro”, ou melhor, construindo o
“outro” a partir da negação de sua simultaneidade. Os “outros”, os imigrantes, os
refugiados, os ilegais estão corporalmente e como mão de obra presentes no território
nacional, mas ocupam um espaço temporal, “um tempo tipológico” (op. cit., p. 22) distante
daquele Brasil “do progresso e da civilização”.

Nessas circunstâncias, há uma grande dificuldade para se pensar em si mesmos “saliendo


adelante” quando a sensação é de estarem atrasados no tempo em relação ao que tivessem
conseguido nos mesmos anos se não tivessem tido de abandonar seu lugar. Nesses casos,
parece que se impõe uma dificuldade maior para significar o êxodo. Este não logra ser
completamente representado como um romantizado exílio político, nem significado
plenamente com a ideia de um progresso econômico e social derivado da vida em um país
“mais desenvolvido”. Trânsito que, em outras circunstâncias, poderia beneficiar com o
prestígio de uma mobilidade ascendente.

Há ordens diferentes de dominação envolvidas nessa encruzilhada. De uma parte, as


referidas desigualdades marcadas pelas relações de gênero e, de outra parte, a “condição
migrante” (SAYAD, 1991:61) que oferece aos “não nacionais” oriundos do “mundo
dominado” (SAYAD, op. cit., p. 270) os trabalhos menos qualificados ou aqueles que “os
nacionais” (ou alguns deles) não desejam realizar. Porpem, o que me interessa enfatizar
aqui é que, como detalharei mais adiante, supõe-se que o trabalho é uma das bases da
integração, como manifestado repetidamente pelos agentes:

[...] A gente acredita que a integração parte do trabalho. A pessoa trabalhando


tem menos tempo para pensar bobagem, menos tempo para ficar cultivando seus
temores. Então, não é que a gente quer que as pessoas esqueçam sua vida, mas
que aproveitem a chance de sair adiante, para não ficar mastigando aquela coisa.
Então, nós trabalhamos sempre com o foco no trabalho. (Agente de integração)

Isso significaria então que Victoria, tanto como Aurora ou Beatriz, que não têm deixado de
trabalhar, deveriam se sentir mais “integradas” do que os seus maridos ou teriam tido mais
“chances de salir adelante”; mas isso não acontece exatamente desse jeito. Embora essas
tenham feito um aprendizado mais refinado do português e construído redes a partir de
suas atividades laborais, não parece que o fato de ter trabalhado intensamente desde o

288
começo do refúgio lhes permitiu construir mais facilmente uma sensação de estabilidade,
de permanência e de pertencimento maior. Pelo contrário, a intensidade e a desqualificação
dos trabalhos realizados são, para elas, a razão principal pela qual não tem tido tempo de
trabalhar o mundo para se construir um lugar próprio. Conforme Said, “grande parte da
vida de um exilado é ocupada em compensar a perda desorientadora, criando um novo
mundo para governar” (SAID, 2001, p. 55), justamente o que essas mulheres não têm tido
tempo de fazer.

Interessa-me apontar que as pretendidas receitas da integração exitosa dos refugiados estão
baseadas em indivíduos genéricos com os que dificilmente podem se compreender a
multiplicidade de experiências que engendram os exílios na vida dos sujeitos que eles
administram. Aliás, o tempo da integração, segundo os agentes, corresponderia a uma
fórmula linear e progressiva segundo a qual a suma dos anos avançaria, junto com os
sujeitos, para um estado irreversível de adianto e integração. Isso além da ideia de que as
famílias no refúgio são “famílias de refugiados”, entendidas como núcleos coesos e
indissolúveis cujos membros viveriam todos em um mesmo ritmo ou em um mesmo
tempo.

As experiências narradas pelas pessoas são difíceis de unificar e têm tons e reflexões
diferentes, dependendo não só de fatores como a idade, o gênero, a geração, o
pertencimento étnico-racial, etc., mas também do momento de vida em que essas
experiências são contadas e de para quem e para que sejam narradas 137. Esses relatos
mostram formas muito diferentes de entender as relações familiares, os arranjos com si
mesmos na sua condição de estrangeiros e parecem marcadas pelos tempos cujos
movimentos descrevem muitas figuras diferentes à linha reta. Muitas vezes, assemelhando-
se mais com a desintegração do tempo progressivo da que nos alertou Cho (2008, p. 50-51)

137
Para Pollak (1990), existe uma relação importante entre o tempo e a narração pela significância do
momento particular em que uma pessoa decide contar suas vivências e articular narrativamente suas
lembranças e o que lhe é possível dizer sem se destruir a si mesmo no processo. Nessa ralação, não apenas os
esquecimentos e a capacidade de reconstruir uma experiência estão em jogo. O autor propõe levar em conta o
porquê de as pessoas decidirem contar e para quem se faz essa narração. Os casos descritos pelo autor, nos
quais a percepção do fim iminente da existência ativa a necessidade de impedir a extinção da memória, são
muito interessantes a esse respeito; particularmente levando em conta que os processos coletivos de
memórias nacionais ou comunitárias têm privilegiado determinados relatos e obliterado ou impedido outros,
capturando essas experiências filtradas para a fabricação de uma memória oficial. Processo que, no seu curso,
impede que alguns indivíduos e algumas experiências se articulem com um relato público, de onde se deriva
a potencialidade desafiadora dos relatos e eclodem como necessidade íntima de comunicação com sua
própria descendência, por exemplo, e não com os sistemas de “justiça” dos Estados.

289
ou a um momento que faz parte de “algo muito maior” e cheio de meandros, como descrito
por Vianna (2002, p. 116) para alguns dos “casos” de “menores” analisados na sua tese
doutoral. Parece-me que um dos esforços para tentar compreender esses exílios deveria se
basear na proposta de Said (2001, p. 48-51) de “mapear esses territórios de experiência”
entendendo que o exílio é em si mesmo “um estado de ser descontínuo”.

Considero que o exílio está sim, feito de perdas, de lugares sociais que não podem se
recuperar, de nostalgias e abandonos, do fato de sair sem querer fazê-lo, de deixar para trás
pessoas, projetos, objetos e formas de vida e de não poder voltar, ou não vislumbrar
claramente o momento do regresso. Porém, o espaço onde são inscritas essas rupturas
marca uma diferença importante na forma em que essas são significadas e tornam-se
passíveis de serem transformadas na figura administrativa, jurídica e populacional do
refúgio.

Pérdidas sí. Perdimos mucho, perdimos familia y perdimos las referencias, los
barrios, los amigos, los lugares donde nos criamos, hasta las referencias
bancarias, inmersos en una ciudad altamente hipócrita. Pérdida incluso de la
trasmisión de algunos valores que fueron muy importantes para nosotros como
familia, como una nación, como un pueblo. (Andrés, refugiado)

Andrés aponta, em um primeiro momento, a perda no plano íntimo e familiar, mas


rapidamente a leva até o lugar da “nação” e se coloca discursivamente como o “caso” que
ilustra a história de um povo. A história individual que se transforma na história de uma
nação se parece muito mais aos modelos de seleção de refugiados do que aquelas histórias
que são domesticidade só e que desconhecem, além desse espaço, os significados nacionais
da guerra. Nos processos de seleção de refugiados, são exigidos todos os detalhes
subjetivos e cotidianos da dor, mas são organizados e traduzidos utilizando os moldes de
uma racionalidade jurídico-administrativa que presume tempos lineais, causas e efeitos
claramente relacionados e um nexo que vincula o presente do sujeito com eventos –
assumidos como inscritos no passado – da história de guerra e conflito da nação.

Todavia, o que eu escutei das três mulheres anteriormente citadas, assim como de outras
pessoas com as quais conversei, foram relatos que significaram o exílio a partir de
experiências que não existem mais do que no seu mundo doméstico ou nas relações
marcadas pela cotidianidade. As referências da ruptura não estavam nos grandes
acontecimentos políticos do conflito, nem em exércitos genéricos nomeados como “forças

290
da guerra”. As causas da perseguição, às vezes, foram descritas como ciúmes de um
“narco porque mi mujer era bonita y él la queria”. A situação de uma região foi
condensada no relato como a necessidade de “meterse debajo de la cama, cantar canciones
para distraer a las niñas y no dejarlas ir al baño”, enquanto passava o bombardeio do
avião fantasma138; outras vezes, foi descrita como a impossibilidade de fazer uma festa na
casa com a porta aberta e a música em alto volume.

Tal como descrito por Cho (2008), há fantasmas de guerra que se instalam, não na praça
pública, mas na cozinha e no quintal traseiro da casa. Os sofrimentos das pessoas em
êxodo que elas não conseguem, não buscam ou não querem significar além do plano
doméstico, e que os agentes do refúgio também não traduzem para a linguagem jurídica do
refúgio, parecem condenados à inexistência pública e a serem tratados como
insignificantes mesmo dentro das relações com os próximos; assim como a integrar outras
classificações que obliteram as violências políticas e passam a ser vistas como estando nas
margens do conflito ou sendo seus efeitos colaterais. Novamente, conforme Cho, parece
que algumas figuras – como a da noiva de guerra – “operates as a figure for the
disappearance of geopolitical violence into the realm of domestic” (2008, p. 14).

Esse jogo complexo entre o que aparece como pertencente ao universo público ou às
relações domésticas e íntimas talvez esteja na base da dificuldade que tive, e ainda tenho,
para lhes dar um lugar, na relação que estabeleci com as pessoas, a esses relatos que eu
provoquei. Tanto quanto a isso que se descolava das pessoas nos momentos das conversas
ou que, ao contrário, ia se aferrando a suas existências a força de lhe dar corpo por meio da
palavra e um lugar nas suas lembranças coletivas. Esses momentos têm uma densidade
muito especial, não apenas por aquilo que possam revelar sobre a complexidade de um
assunto que é objeto de reflexão, mas também pela responsabilidade que envolve o
exercício mesmo de provocar lembranças e narrações. Minha responsabilidade sobre esse
silêncio roto, sobre esse episódio revelado e sobre o que isso possa acionar na vida das
pessoas, ainda não encontrou um lugar, em parte porque muitos desses diálogos continuam
ativos. Na sua dissertação de mestrado sobre a forma em que as pessoas vivem e narram o
138
O avião fantasma faz referência às naves de guerra Douglas AC-47 Spooky (de uma série de aviões
desenvolvidos pelo exército dos Estados Unidos durante a guerra de Vietnã) que o governo colombiano
adquiriu nos anos 1990 e que mudaram a dinâmica da guerra “contrainsurgente” e “antiterrorista” por sua
possibilidade de ataque aéreo e de reforço às tropas terrestres, introduzindo a potencialidade do bombardeio
inesperado dentro das comunidades que vivem nas regiões onde o avião atua.

291
conflito armado no Medio Rio Caquetá, Marco Tobón (2008, p. 134) propõe uma linda
reflexão sobre a relação que as pessoas fazem entre nomear e atrair, como uma forma em
que a palavra seria capaz de reviver ou fazer reaparecer aquilo que é nomeado. Por isso, as
pessoas alertam sobre o cuidado que deve ser tomado ao compartilhar a memória. O autor
também inclui aos possíveis leitores nessa relação que é estabelecida ao compartilhar as
lembranças e as histórias. Ponto fundamental de reflexão quando a minha intenção, ao
recriar os diálogos compartilhados, é também a de não somar sofrimentos nem ao passado,
nem ao futuro das pessoas, ao aumentar o número de sujeitos que sabem dessas
experiências, e nem quando eu mesma tentar lhes dar uma coerência textual longe de seus
locais de produção. Esse assunto de quando, onde e por que é falada alguma coisa e o que
acontece com essa reflexão na qual o sujeito se produz a si mesmo – necessariamente com
uma determinada distância – foram indagados por Poe Pollak (1990, p. 203-204). O autor
convida a entender os próprios limites do que o sujeito se “confessa a si mesmo” e aquilo
que pode transmitir ao exterior sem se destruir a ele próprio nesse exercício.

Nas histórias de Victoria, Beatriz e Aurora, como nas de outras mulheres que entrevistei,
há outro elemento crucial para entender algumas das dinâmicas de seu próprio exílio. Nos
três casos, a perseguição que originou a fuga e o refúgio foram perseguições contra seus
esposos, e elas não souberam na época, ou ainda desconhecem, todos os detalhes desses
episódios. Com alguns dos membros desses casais, conversei individualmente, mas com
duas delas, houve pelo menos um encontro conjunto. Nessas conversas coletivas, houve
sempre um momento em que os homens contaram detalhes dos fatos pelos quais fugiram,
assim como explicações sobre o porquê tinham sido ameaçados ou perseguidos, enquanto
elas ofereceram mais detalhes sobre os itinerários físicos e burocráticos e das tarefas que
tiveram de ser feitas para possibilitar a fuga ou a instalação em outro local. Em uma
ocasião, com outro casal – Rodolfo e Hilda – nossa conversa conjunta foi inclusive o
momento em que, depois de muitos anos, ela soube de alguns dos pormenores das ameaças
que seu esposo sofreu e de algumas experiências que ele tinha vivido no Equador, antes
que ela e seus filhos pudessem se reunir com ele novamente.

Assim como Hilda, muitas das mulheres entrevistadas começaram a viver um exílio de
cuja origem não tinham toda a informação, nem a certeza de todos os elementos que
estavam em jogo. O refúgio como figura administrativa contempla essa situação e amplia a

292
proteção aos membros da família em primeiro grau de parentesco ou aliança com a pessoa
perseguida. Contudo, é assumido que toda a família sabe as causas do “fundado temor de
perseguição” e se realizam entrevistas individuais que servem para contrastar as versões
oferecidas pelos outros membros da família. A respeito, considero que a história de
Victoria é a que melhor ajuda a explicitar os limites desses exercícios narrativos exigidos
no campo de governança do refúgio, assim como a potencialidade de ruptura que pode
engendrar essa relação diferencial com a perseguição e com a informação que se tem sobre
ela.

Victoria veio ao Brasil de férias aceitando um presente de sua família materna. A viagem,
me contou, lhe foi oferecida para ela se distrair do difícil trânsito desses meses em que ela,
seu esposo e as filhas deles haviam tido que sair de casa e se hospedar em casa de parentes
em outra região do país. Até esse momento, ela considerava que essa situação era
temporária, que obedecia ao recrudescimento dos confrontos armados na região onde eles
viviam e que, uma vez que as circunstâncias melhorassem, ela e sua família poderiam
regressar. Porém, estando de férias no Brasil, faltando poucos dias para voltar para a
Colômbia, o esposo dela a chamou para lhe dizer que a situação não melhoraria e que,
dificilmente, poderiam voltar devido ao fato de que ele tinha recebido ameaças de morte, e
essa tinha sido a razão para sair da casa e da região. Na chamada, ele também lhe contou
que havia recebido assessoria de alguns conhecidos que trabalhavam com o Acnur quem
lhe sugeriram aproveitar a presença de Victoria no Brasil para pedir refúgio.

A notícia foi devastadora e angustiante, não apenas por ter se inteirado das “verdadeiras
razões” que lhes levaram a sair de casa, mas porque, na Cáritas, lhe informaram que, se ela
começasse o processo de refúgio, já não poderia mais retornar à Colômbia. Apesar do
desassossego que isso significou, Victoria assumiu a tarefa de começar os trâmites da
solicitação de refúgio e de unificação familiar. Quando, na Cáritas, lhe informaram que ela
teria de ir para “contar sua história” e preencher alguns formulários com informação sobre
a perseguição que alegava, Victoria teve de chamar seu esposo e lhe pedir: “bueno, ahora
sí, cuénteme a ver qué fue lo que pasó, porque me están pidiendo que diga todo y yo no sé
nada”. Seu esposo lhe contou alguns elementos relacionados com as ameaças que tinha
recebido e lhe transmitiu as instruções recebidas pelos seus conhecidos do Acnur, para que
ela pudesse “decir las palabras claves para que la solicitud no fuera rechazada”. Assim, o

293
fez e o reconhecimento, segundo ela, foi relativamente rápido apesar de que ela conhecia
somente, de maneira parcial, a história e apesar de algumas desconfianças das agentes que
lhe pediram para fornecer provas. Já o tempo da unificação familiar foi mais demorado e
desesperador, porque os custos da viagem de todos os membros da família que ficaram na
Colômbia (cinco pessoas) não foram pagos pelo Acnur, assim que eles mesmos tiveram
que ir programando cada viagem segundo o ritmo de obtenção dos recursos econômicos
para pagá-la.

Esses meses foram tempos muito difíceis para Victoria, não somente pela distância de sua
família, mas pela certeza que foi se instalando com a passagem dos dias de que não
voltaria mais para sua casa, não teria como recuperar as coisas que ficaram, nem retomaria
seus projetos com as pessoas da comunidade com as que ela trabalhava. A sensação que
Victoria descreveu foi como se houvessem lhe interrompido o tempo e a etapa de vida que
estava construindo houvesse ficado inconclusa. A esse momento, não foi imposto um final,
mas, ao interrompê-lo, tornou-se eterno e continua aparecendo como o que poderia ter sido
e não aconteceu, como o que sempre estará para se fazer. Entretanto, a ruptura mais forte
para Victoria e a que ela me narrou com mais dificuldade não foi essa fratura com a vida
de antes, mas o divórcio de seu esposo alguns anos depois de sua chegada ao Brasil.

Em algum momento de nossas conversações, Victoria me disse que, quando “las cosas se
empezaron a poner muy feas”, quando “empezaron a aparecer muchos muertos”, ela
chegou a se imaginar que teriam que sair desse lugar. Mas, em seguida, me disse que
aquilo que nunca chegou a imaginar era que ela e seu esposo pudessem se divorciar. Se o
refúgio era algo que ela chegou a imaginar e pensar como uma possibilidade, a separação,
ao contrário, tentou me dizer, “era algo que no existía, algo que no…”. Algo que não
conseguiu expressar com palavras, pois, para ela, o que aconteceu não tinha nem forma,
nem nome. Na descrição de Victoria, várias dores juntaram-se naquele momento. A
primeira de ter sido traída com “uma brasileira”, apesar das advertências que recebeu de
outras mulheres “latinas” advertindo-lhe para cuidar de seu matrimônio porque “a las
brasileras no les importa que sean casados”. A segunda dor foi que seu esposo lhe fizesse
reclamações de diversos tipos que, segundo ele, justificavam em parte sua relação
extraconjugal: que ela não se preocupava por estar bem, que não se informava e não
entendia da vida política nem da Colômbia, nem do Brasil, que já não tinham a mesma

294
vida sexual de antes, etc. Victoria sentiu essas reclamações como particularmente injustas,
pois o tempo que ela dedicava a trabalhar e a cuidar da casa era um tempo que lhe deixava
extenuada, que perdia para seu cuidado, sua beleza e seu prazer e, simultaneamente, era um
tempo que ficava liberado para seu esposo descansar, tomar cursos, ler livros e notícias e
ter uma amante.

Talvez, a dor mais difícil de contornar engendrou-se quando a separação lhe permitiu
pensar, pela primeira vez, se ela e suas filhas realmente teriam de ter saído do país. Com
novos dados sobre os acontecimentos da vida de seu esposo na Colômbia, incluindo outras
relações extraconjugais antes da viagem para o Brasil, Victoria começou a pensar nas
outras possibilidades, distintas do refúgio, que ela houvesse podido ter para se salvaguardar
junto com suas filhas na Colômbia. Sobretudo, começou a duvidar de que ter se refugiado
junto com seu esposo tivesse sido a decisão correta para sua vida e a vida de suas filhas,
pois, afinal, elas não tinham sido ameaçadas.

Até esse momento, Victoria havia sentido nostalgias e perdas, mas todas compensadas pelo
projeto conjugal e familiar que o refúgio conseguiu por a salvo e ao qual ela se dedicava
por completo. Quando esse projeto se fraturou, começou o exílio mais duro, o verdadeiro
exílio. Foi essa ruptura o marcador real do que o êxodo e a violência lhe haviam imprimido
à sua vida. Na época, ela pensou em ir para outro país com suas filhas, mas, quando
averiguou sobre as opções, soube que, apesar de sua sensação de não poder mais continuar
com a vida no Brasil, ela não seria considerada uma candidata para reassentamento. Não
existiria, segundo a lei, justificativas para tirá-la do país. Sem meios materiais para
empreender uma nova viagem por conta própria, terminou ficando e continuando a vida
apesar do fracasso do projeto conjugal. Hoje, anos depois da separação, fortalecida pela
experiência de ter superado esse momento crítico e motivada por uma incrível e contagiosa
força vital que a mantém ativa e sorridente, Victoria busca recompor outra das coisas que
quebrou o exílio: a relação com a menor de suas filhas. Essa filha, apesar de ser a
integrante da família que mais tempo de sua vida tem morado no Brasil comparado com o
tempo vivido na Colômbia, também se sente ainda uma refugiada e reivindica esse lugar
como o espaço que lhe permite enunciar suas faltas e, em parte, explicá-las. Para ela, o
exílio também está cheio de rupturas, a pior delas com seus próprios pais e, por meio dela,

295
com ela mesma. Ou com o que ela considera que houvesse sido “ela mesma” se não
tivessem tido de sair da Colômbia nas circunstâncias que o fizeram.

Acredito que esse fragmento da história de Victoria que, com muitas imprecisões, tentei
reconstruir ilumina aspectos da vida das pessoas que não estão, nem estarão
compreendidos na lógica administrativa do refúgio, nem restaurados com o suposto pacto
restituidor de cidadania que é oferecido como salvação das vidas em risco. Inclusive, anos
depois de terem sido reconhecidos como refugiados, os sujeitos podem sentir a defasagem
das etapas prévias. O “como houvesse sido se...” é uma potencialidade sempre ameaçadora
e o ponto de partida de uma integração que nunca será completa e que desafia o pacto de
gratidão que tenta se instaurar com a figura do refúgio. A qualquer momento, os sujeitos
refugiados voltaram a precisar dos agentes que são contratados, legitimados e exibidos
como os encarregados de dar suporte ao refúgio deles, mas os tempos de assistência terão
expirado, terão sido sobrepassadas as etapas de estabilização e integração e a
responsabilidade sobre suas próprias vidas lhes terão sido retornada aos sujeitos.

8.3. Quanto tempo passou: o tempo que demonstra e o tempo que transforma

[...] Entre menos tempo estiver naquela zona escura que é o primeiro país de
asilo, melhor. Assim, a solução duradoura aqui é muito mais eficiente.
(Coordenadora de ONG de reassentamento)

Como mencionado em diferentes momentos da tese, os agentes administradores dos


programas de refúgio realizam uma valoração do tempo e dos ritmos em que se deslocam e
atuam os solicitantes de refúgio e os reassentados. Aqui, interessa-me salientar que existe a
ideia de que os movimentos dos solicitantes estão marcados pela urgência. Essa percepção,
que tem se transformado num critério de julgamento, está estreitamente relacionada com a
noção do “fundado temor de perseguição” em sua versão/percepção mais espetacularizada
e comumente midiatizada. Essa fórmula discursiva e normativa parece descrever uma cena
segundo a qual um evento, repentino e claramente ameaçador da existência, se desata sobre
as pessoas, sobre suas vidas ou sobre seus lugares de habitação. Evento que anularia nas
pessoas suas possibilidades de pensar, de calcular e de planejar os passos a seguir, assim
como de eleger o destino de seu movimento de saída; deixando somente a opção impulsiva
da fuga assumida, desde esse ponto de vista, como um movimento irracional. Parece, como

296
apontado por Malkki (1995, p. 110), que o repentino da fuga habilitaria a presunção da
suspensão do social.

A imagem da ameaça repentina e iminente da extinção física, que pode ser mais próxima
aos episódios de violência extrema, vividos por muitas pessoas na Colômbia, não
corresponde, porém, com a realidade da maioria dos solicitantes que chegam ao Brasil.
Sobretudo, não corresponde com a experiência imediatamente vivida pelas pessoas que
chegam às cidades onde estão os postos administrativos que marcarão sua entrada com o
rótulo de “solicitantes” e classificaram suas histórias baseando-se nos critérios burocráticos
do refúgio139. Nenhuma das pessoas que conheci durante a minha pesquisa de campo
nessas cidades – sendo eles solicitantes ou refugiados – moravam perto da fronteira
colombo-brasileira antes de vir a solicitar refúgio no Brasil. Isso permite supor que as
pessoas deviam contar com um mínimo de recursos e com um planejamento básico para
realizar a viagem e para chegar até as cidades que escolheram como destino ou que lhes
foram sugeridas pela rede de ONGs que trabalham como migrantes ou por outras pessoas.

As histórias que as pessoas contaram estiveram cheias desses detalhes de preparação da


viagem, de dúvidas sobre qual seria o melhor destino, dos critérios para a escolha final de
uma cidade, das preparações técnicas para empreender o caminho e dos imprevistos que,
algumas vezes, modificaram suas trajetórias e cronogramas. Todos esses pormenores
foram especialmente significativos nos relatos das pessoas que não contavam com recursos
econômicos para fazer o trajeto de avião e tiveram de fazê-lo de ônibus, ou quando já
tinham tentado morar em outros países da região antes de optar por vir até o Brasil. Para
essas pessoas, o percurso foi mais longo, com mais anedotas, com mais paisagens e com
uma maior exigência física e anímica para suportar as longas jornadas em rotas e ônibus,
nem sempre confortáveis, assim como os controles fronteiriços, amiúde hostis.

O caráter de imediato e de urgência com o que os agentes constroem a imagem genérica do


refugiado não contempla os ritmos de reflexivos e, quando menos, minimamente

139
A respeito disso, é pertinente lembrar o caso citado na segunda parte da tese, sobre vários grupos de
colombianos que, em 2007, foram maciçamente deslocados e que cruzaram a fronteira brasileira. Os eventos
reconstruídos por Julia Moreira (MOREIRA, 2012, p. 238), a partir de documentos de arquivo do Acnur e do
Itamaraty, mostram que, apesar da forma em que essas pessoas foram expulsas, se assemelha muito mais com
as imagens de perseguição repentina e ameaça iminente, a opção das autoridades brasileiras não foi a de
reconhecer o refúgio, mas a de estimular o retorno deles ao território colombiano.

297
planejados da viagem das pessoas que chegaram até as cidades brasileiras das que se
ocupou esta pesquisa. Assim como também não descreve nem contempla outros ritmos da
perseguição o caráter progressivo de algumas ameaças e o ambíguo poder do rumor em
meio a contextos de violência. Omite também as idas e vindas dos sujeitos que esperam
que as coisas possam ter melhorado, que regressam para ver se podem ficar, que vão e
voltam medindo as forças com aqueles que os expulsaram ou com aquilo que os levou a
decidir sua saída do país. Movimentos reflexivos de cálculo e desejo que as pessoas
realizaram inclusive quando já estavam no Brasil e quiseram esperar um tempo antes de
ativar a solicitação de refúgio que lhes submeteria a suas consequentes restrições de
mobilidade.

A equação que põe em jogo o imediato e a urgência, no contexto da classificação e do


reconhecimento de refugiados, contribui a criar hierarquias sociais e morais que são
utilizadas pelas próprias pessoas para avaliar e julgar quem realmente mereceria, e quem
não, essa dádiva da proteção. Dito de outra maneira, essa fórmula joga com o cálculo que
tenta decifrar quem ia morrer iminentemente e quem não, ou quem talvez fosse morrer,
mas sem esse caráter do imediato marcando sua extinção. Essa pretendida correspondência
unívoca entre o medo, a fuga, o imediato e a irreflexibidade também termina criando
contradições nos critérios de interpretação da história das pessoas que pedem proteção. Nas
declarações dos agentes, exibe-se essa ideia da fuga irracional e instauradora de uma
precariedade total:

[...] E o refugiado em geral é aquela pessoa que tem... ele está desvalido, ele está
em uma situação de drama social tão grande, que ele não consegue empreender
uma viagem intercontinental para buscar proteção no Brasil. A Classificação
mais comum do refugiado é aquela de quem sai do país pela fronteira. Sai a pé,
sai de veículos, mas sai num momento de desespero [...]. (Presidente do Conare
em “Cenas do Brasil”, TVNBR, 12/17/2012)

Ao mesmo tempo, as funcionárias que entrevistam os sujeitos sugeriram que as etapas em


escalas do êxodo, em particular as etapas no próprio país, são uma prova de que as pessoas
tentaram se refugiar internamente. Essa leitura sugere que a proteção nacional prima sobre
a proteção internacional e que os refugiados deveriam seguir essa ordem em seus
movimentos de fuga e busca de proteção. Aqueles que, em seus relatos, mostram esse tipo
de viagem em escalas podem ser mais bem avaliados, segundo me explicaram algumas
agentes. Essa leitura está cruzada de maneira implícita com a situação socioeconômica,

298
suposta ou declarada das pessoas. Quando os refugiados têm recursos econômicos para
pagar sua passagem e fazem uma viagem de uma cidade colombiana até uma cidade no
Brasil, o movimento direto parece evidente e livre de suspeita. Será catalogado como um
movimento esperável e explicável em razão da urgência que precisaria se pôr a salvo.
Porém, quando a pessoa é oriunda de uma área rural ou de uma periferia urbana e não tem
recursos para a viagem, se espera dela que procure outros lugares de refúgio (a seu
alcance) antes de empreender uma viagem internacional.

De qualquer forma, segundo os agentes, a rapidez com a qual as pessoas solicitam refúgio,
uma vez que tenham entrado ao território brasileiro, será um elemento que jogue a seu
favor. Do contrário, pode ser ativada a suspeita comum de que as pessoas “estão utilizando
o refúgio para solucionar sua situação migratória”. Essa suspeita continua estando
baseada na premissa da perda de vontade que supostamente caracteriza as pessoas
perseguidas e as distingue daquelas migrantes econômicas desejosas de uma melhor
condição de vida. Como visto, conforme Good (2006, p. 96), a falta de vontade parece um
requisito para ser um refugiado genuíno e o imediato da solicitação avaliado pelos agentes
como um elemento de credibilidade140.

Sugiro pensar no que acontece quando o imediato e a urgência são assumidos como os
ritmos lógicos do medo e dos movimentos geográficos realizados para salvar a vida,
especificamente quando os agentes que avaliam as solicitações de refúgio e as candidaturas
a reassentamento assumem que a perseguição se manifesta sempre e exclusivamente nesses
ritmos. Perseguição mais urgência envolveriam, segundo essa lógica, a incapacidade de
reflexão e a perda da vontade dos sujeitos que aparecem de repente despossuídos de sua
razão e de seu desejo. Se a perseguição é instauradora também de uma perda dos direitos
civis e políticos que são entendidos comumente como sendo responsabilidade do seu
próprio Estado, a esse sujeito lhe restaria somente seu corpo. Sobrar-lhe-ia a vida que tenta

140
Em palavras do autor: “The Handbook of the UN High Commissioner for Refugees specifies that the
examiner should ‘use all the means at his disposal to produce the necessary evidence in support of the
application’. In particular, applicants should be given the benefit of the doubt if their account appears
credible – if, in other words, it is ‘coherent and plausible’, and does not ‘run counter to generally known
facts’. By contrast, though IND’s manual does indeed mention the gathering of further evidence, Home
Office procedures seem designed to undermine credibility rather than verify it. For example, despite the
traumatic past experiences of many refugees with officialdom, and the clandestine circumstances under
which many have travelled, staff are told to query their credibility if they have not applied for asylum
‘forthwith’ (GOOD, 2006, p. 94).

299
salvar como única possessão, entendida nesse sentido como a “vida nua” da que, de
maneiras diferentes, falaram Arendt (2007) e Agamben (1998)141.

O refúgio, como ação humanitária, intervém caracteristicamente sobre essas vidas


entendidas como vidas “humanas”. Vidas que, por não terem mais atributos que sua
humanidade, colaboram com que a ação de agências como o Acnur seja descrita como
“humanitária, social e apolítica” (ACNUR, 2009:2). O que é paradoxal deste movimento,
que já tem sido analisado por vários autores (FASSIN, 2010; FASSIN; RECHTMAN,
2007; TERRY, 2002), é o potencial duplo que esse humano tabula rasa engendra. Em
primeiro lugar, essa humanidade desprovida de outros atributos aparece como um lugar de
inscrição das características de um novo sujeito. A partir disso, se dão as frequentes
referências das autoridades e agentes acerca do refúgio como “uma nova vida”, um
“recomeçar de zero”, um “se fazer uma vida do nada”. Em segundo lugar, essa
característica também aparece como uma força potencialmente disruptiva da ordem social
na qual se pretende “integrar” ao refugiado. Isso porque um humano, puramente humano,
sem possibilidade de reflexão e sem vontade, pode ser entendido também como a matéria-
prima de qualquer coisa, desejada ou indesejada para os propósitos da integração. Talvez
ali se encontre a fonte dos receios que têm alguns SOS agentes sobre os refugiados que
eles administram.

Porque o refugiado é assim, ele é um sobrevivente e se ele detectar fraqueza em


ti, ele vai aproveitar isso; porque é assim, eles vão até o final porque tem que
sobreviver de alguma forma, então você tem que saber como lidar com isso.
(Coordenadora de ONG de reassentamento)

No fragmento citado, parece que a condição humana rasa, encarnada no evento violento
que atingiu o sujeito e naquilo que ele teve de fazer posteriormente para sobreviver, tivesse
o tornado simultaneamente em algo não humano. A respeito dessa presença ambígua e
suspeita de quem se livra da morte, Pollak sugeriu que os relatos sobre a sobrevivência –
para o autor dos campos de concentração nazistas – não apenas dão conta das formas de
resistência à violência e ao extermínio, como das “deformações impostas à pessoa ao longo

141
Butler aponta que duas interpretações próximas, mesmo que com nuances, foram feitas por Arendt (2007)
e Agambem (1998) a propósito do espolio dos sujeitos tanto dos direitos que garantiriam sua pertença a um
Estado-nação (segundo a primeira) quanto os exercícios de poder que privariam aos sujeitos de sua existência
política lhes deixando somente sua existência em tato que espécie (para o segundo). Para uma reflexão crítica
sobre essas interpretações e sobre os limites dessa visão que assume a possibilidade de que exista um corpo
biológico, para além das ordens que o atravessam e o constituem, pode-se consultar Butler e Spivak (2007).

300
do tempo” nesses contextos (POLLAK, 1990, p. 220). Algo dessa proximidade com a
morte e do que foi negociado para sobreviver é a base desse caráter um pouco monstruoso
do sujeito que, segundo os agentes, o faria capaz de ir “até o final”, de sobrepassar os
limites e de “aproveitar a fraqueza” do outro para conservar sua própria vida. Se o
refugiado somente humano assusta por sua hiper-humanidade, o refugiado como
sobrevivente assusta por ter perdido um pouco dessa humanidade.

Mais uma vez, o tempo entra na equação tanto para explicar quanto para remediar esse
caráter monstruoso. O tempo, tanto da urgência no momento extremo de violência quanto
da luta pela sobrevivência posterior, vai transformando o sujeito nesse ser limítrofe entre a
humanidade e alguma outra coisa perigosa. Sobretudo, o tempo transcorrido em alguns
espaços é um tempo que não avança para um estado que progressivamente cure esse
caráter, mas que pode ser um tempo-espaço que o piore. Há lugares que os agentes
enunciaram como sendo em si mesmos elementos-chave dessa transformação deformadora
dos sujeitos. Desse modo, explica-se a ideia da agente citada ao começo deste subtítulo,
segundo a qual: “entre menos tempo estiver [a pessoa] naquela zona escura que é o
primeiro país de asilo, melhor”142.

Equador (ou o primeiro país de refúgio) pode ser entendido, com base nos postulados de
Fabian (1983, p. 143-144), como um espaço não coetâneo com relação ao “Brasil da
integração”. Essa temporização dos espaços, regida por uma espécie de cronopolítica, nega
a contemporaneidade dos “outros”, permitindo que os espaços de guerra e os de “crise
humanitária” (nesse caso, Colômbia e Equador), junto com seus habitantes, sejam
concebidos como objetos dos programas de refúgio. Aos agentes brasileiros da integração
lhes corresponderia a tarefa de reconverter em humanos e sujeitos aos refugiados
resgatados desse tempo-espaço sombrio e desumanizante. Ação que eles apresentam como
particularmente imperiosa sobre aqueles que chegam por meio da “solução duradoura” do
reassentamento e de quem se considera que vão ficar no Brasil.

142
Sonia Hamid (2012, p. 164) realizou uma excelente analise sobre esse mesmo aspecto, apontando que o
tempo que as pessoas passaram no campo de refugiados é percebido como um tempo que as transformou. Em
palavras da autora: “Em outra direção, Sheila também acionaria o longo período passado no campo como
um momento no qual os refugiados teriam perdido a “noção” de como se portar. Neste espaço/tempo liminar,
portanto, os refugiados teriam deixado não apenas seu status político, social e jurídico na “ordem nacional”,
mas também as regras da convivência interpessoal, da boa conduta e da moral ou, em outros termos, sua
própria civilidade. Sua reinserção numa ‘ordem nacional’, assim, também exigia que os mesmos fossem
civilizados”.

301
Agente de integração: Porque o problema é quando vai uma família e aí tenta,
mas há falta de integração no local, e então fica muitos anos lá no Equador e aí
fica o problema.

Coordenadora de ONG: É. Chega aqui depois de muito tempo de não ter uma
vida formal e isso prejudica, sim, o processo da integração. (Entrevista com
equipe de reassentamento).

A tarefa dos agentes seria aquela de trabalhar sobre o tempo da integração dos refugiados
para fazê-los novamente humanos e, especificamente, novamente cidadãos. As ações
empreendidas são um trabalho civilizador que reverte o tempo de ser somente
sobrevivente, chega até o momento de somente humanidade e, a partir dali, constrói um
refugiado capaz de se integrar a sociedade brasileira. Essa última apresentada como uma
unidade homogênea. Arrancados do espaço que os torna em algo não humano, os
refugiados serão instalados no espaço que os tornará potenciais nacionais, sujeitos de
direitos (restritos) e submersos na ordem ordenadora do Estado-nação brasileiro
contemporâneo.

Quando se fala em uma humanidade genérica, nada mais do que humana, sobre a qual se
exerce a ação salvadora do refúgio, vários conteúdos e pressupostos lhe estão sendo
associados. Nesse caso, pensar quais são os supostos males desses lugares de
transformação monstruosa das pessoas pode ajudar a identificar também alguns dos
pressupostos que construiriam a humanidade como ponto zero e a posterior existência ideal
do refugiado integrado. Nesse tempo-espaço obscuro que, segundo os agentes, é o primeiro
país de refúgio – e, notadamente, os campos de refugiados – o fantasma mais poderoso que
atua afetando a humanidade dos sujeitos é o assistencialismo. É a isso que se refere a
agente supracitada quando diz que as pessoas passaram “muito tempo de não ter uma vida
formal”. A mesma agente afirmou durante a entrevista que:

[...] com o trabalho ocupa a cabeça e a pessoa ao receber um dinheiro justo no


final do mês e não ficar dependendo da assistência é uma grande coisa, porque é
muito fácil a pessoa se acostumar com uma situação de assistencialismo. Mesmo
considerando todo o sacrifício que o deslocado passa; depois que passa três ou
quatro anos dependendo da ajuda humanitária, muitas vezes o ruim se torna bom.
Então, com toda essa coisa da cultura do assistencialismo a gente tenta
verdadeiramente cortar: “E olha que, ô, o psicólogo está aqui para trabalhar com
teus temores, para te ajudar aqui no trabalho, aqui tem estudo e então toca a
vida”. (Coordenadora de ONG de reassentamento)

Essa mesma ideia de uma vida “não formal” foi explicitada por outros agentes da tríade do
refúgio. Uma das funcionárias do Acnur explicou que os critérios para o reassentamento

302
brasileiro estavam mais orientados e planejados para atender a “questão urbana da
Colômbia”, esclarecendo que, para eles, o conceito de urbano não é o oposto a rural, mas o
oposto a campo de refugiados. O campo de refugiados seria, segundo ela, uma “vida
artificial” como consequência do fato das pessoas terem assistência. Segundo a agente, “na
vida real não é assim”. Seguindo esse critério, aqueles refugiados que moraram em
campos teriam sido mais prejudicados pela transformação deshumanizante que aqueles que
viveram por sua própria conta nas cidades equatorianas e que, nessa medida, já seriam
mais parecidos com as pessoas das comunidades locais onde serão instalados.

Os agentes da tríade que entrevistei conversaram comigo antecipando sempre duas críticas.
A primeira consiste em que a burocracia das agências do refúgio existe porque existem
refugiados. Os funcionários, notadamente os do Acnur, foram enfáticos ao defender que a
existência dos refugiados seria independente da existência dessa agência, que se dedicaria
simplesmente a lhes atender e a atenuar as difíceis condições da maioria deles. A segunda
crítica da que são alvo frequente, e à que eles também se somam enquanto detratores, é a
do assistencialismo. Somar-se à desqualificação de aquilo que é um elemento da crítica que
outros poderiam fazer contra a agência parece uma forma de se antecipar e evitar essas
críticas.

Apesar de os programas para refugiados serem basicamente assistenciais, os funcionários


insistem no caráter limitado dos benefícios e na forte ênfase de autogestão e independência
financeira colocada nos programas. Durante a pesquisa de campo, vários agentes se
referiram à cultura do assistencialismo143 fazendo alusão menos a uma relação das agências

143
Julia Bertino Moreira, na sua tese de doutorado (2012), cita também várias entrevistas com agentes de
refúgio para quem está presente essa ideia da influência negativa da dependência econômica dos refugiados
nos processos de integração. A autora não problematiza os termos utilizados pelos agentes, nem questiona a
ideia mesma da autossuficiência dos refugiados como um ideal político, econômico ou moral. As citações
realizadas por Bertino Moreira reforçam a preocupação dos agentes sobre a assistência financeira. Segundo a
própria autora: “Corroborando o ponto colocado por Rovida (2009), segundo a entrevista realizada com
Pereira (2009), os palestinos, por terem vivido décadas no campo jordaniano, sofriam de síndrome de
dependência, em função da assistência recebida durante anos, o que representou um empecilho no processo
de integração” (MOREIRA, 2012, p. 245) [grifos meus]. Na tese de doutorado em Ciências Sociais de
Andrea María Calazans Pacheco Pacífico (2008), a ideia da dependência dos refugiados também aparece e é
apresentada claramente como um problema, inclusive como uma patologia com sintomas associados já
identificados. Longe de propor uma crítica à patologização do comportamento dos sujeitos produzidos como
refugiados ou de sua consequente deslegitimação das inconformidades ou reclamações que esses possam
fazer, a autora – apoiada no trabalho de Lance Clark (1985) – fala em Síndrome de Dependência dos
Refugiados (SDR) como sendo uma realidade com a que, além disso, é preciso cortar e afirma que: “[…] ele
está fisicamente protegido, mas falta-lhe assistência psicológica suficiente (aconselhamento, encorajamento,
apoio social, ser ouvido, enjagamento nas atividades de primeiros socorros, etc.), conduzindo-os à tal SDR,

303
com as pessoas que recebem benefícios financeiros ou apoios materiais e mais a um tipo de
costume adquirido pelos sujeitos, que faria deles tendentes à dependência econômica. Isso
como uma característica que, segundo os agentes, arruinaria as possibilidades das pessoas
voltarem a ter uma vida normal nos termos e ideais morais da integração.

Segundo essa lógica, os colombianos, particularmente os que não passaram muito tempo
no Equador e viveram sem serem assistidos, teriam sido menos desumanizados. Assim, em
um primeiro momento, os agentes adotam a imagem do refugiado como um ser carente e
desprovido de sua existência política. Mas, em seguida, na hora de avaliar as possibilidades
de integração, parecem adotar a ideia de que esse caráter somente humano não é aquele da
vida nua, mas aquele da preservação de boa parte das características da “vida formal” que
levava antes de ser refugiado, ou que continuo levando no percurso do êxodo. O humano,
nesse sentido – e neste momento particular do processo de refúgio –, parece ser entendido
pelos agentes como aquilo que não se tornou monstruoso (especialmente dependente) e que
pode ser reaproveitado nos moldes da integração.

As afirmações sobre as melhores possibilidades de integração desse tipo de colombianos


que se preservaram da desumanização foram usualmente baseadas na comparação do “caso
colombiano” com o “caso palestino”144. Alguns refugiados, e mesmo alguns ex-agentes
dos programas de refúgio, narraram episódios de violência e agressão contra funcionários
das ONGs parceiras do Acnur. Essas agressões realizadas por alguns colombianos
envolviam reclamações e inconformidades com a entrega ou a aprovação de benefícios
financeiros ou materiais. Contudo, a conclusão à que todos os agentes chegaram, inclusive
aqueles que reconheceram que houve agressões ou foram agredidos, consistiu em que o
programas de reassentamento de colombianos têm sido um sucesso e que esses episódios
foram detalhes menores.

cujos principais sintomas são: sentimentos de letargia e falta de vontade de viver; falta de iniciativa;
aceitação das bengalas (apoios prontos); sem atenção a sua autossuficiência e reclamações frequentes,
especialmente com relação a falta de ajuda externa” (2008, p. 40-41).
144
O “caso palestino” se refere particularmente ao grupo de pessoas, majoritariamente de origem palestina
que foi trazido ao Brasil em 2007, por meio do programa de Reassentamento Solidário. O “caso colombiano”
é uma forma de referir ao conjunto de pessoas, quase todas de nacionalidade colombiana, que chegaram em
diferentes momentos por meio do programa de Reassentamento Solidário. Algumas vezes, inclusive, “o caso
colombiano” pode estar se referindo às famílias ou aos sujeitos que continuarão chegando por meio do
programa.

304
[...] Teve também alguns colombianos que me ameaçaram de morte, mas eu
sempre procurei sair calmo, quando entrava para uma discussão acalorada eu
cortava a conversa e dizia: “olha, a gente se calma e a gente volta e conversa e
tal”. Então, têm essas coisas, mas isso daí poderia ter sido um brasileiro a quem
eu estivesse ajudando, não é por ser um colombiano ou por ser um refugiado [...].
No caso de colombianos, foram três ou quatro casos [de ameaça ou agressão], no
caso dos palestinos foi pior. Até porque [...] aí também tem todo um traço
cultural do mecanismo deles de esgotamento psicológico da gente que é
diferente. (Ex-coordenadora de ONG de reassentamento)

Na leitura que realizaram os agentes sobre esses episódios de agressões por parte dos
colombianos, os mesmos comportamentos poderiam ter vindo de de um brasileiro. Além
disso, segundo eles, essas reações não se explicam somente porque eles sejam refugiados.
Diferentemente, nas declarações e narrações sobre o reassentamento de palestinos primou
uma leitura de conflito, de muitos fracassos e de uma distância cultural infranqueável –
aumentada pelo tempo que levavam morando como refugiados assistidos – que foi exposta
como causa principal das dificuldades de integração.

[...] Então, o refugiado sempre chega numa situação difícil, precária... É muito
problemático. Só que, com os colombianos, a gente tinha a proximidade da
língua e alguma proximidade da cultura. E já com os palestinos era tudo
diferente, tudo, tudo, tudo, diferente. A cultura muito diferente, o ambiente muito
diferente, então isso dificultou muito. (Coordenadora de ONG de
reassentamento)

Em outras entrevistas, uma com o pessoal de uma das ONGs e outra com um ex-agente de
integração do programa de reassentamento, essas dificuldades apareceram inclusive como
potenciais perturbadores dos próprios agentes e não somente da possibilidade de integração
dos refugiados. O processo de integração de grupos considerados tão diferentes é
entendido então como uma experiência potencialmente traumatizante também para os
grupos receptores. Ressalta-se, em ambos os casos, novamente, uma distância que
incapacitava a possibilidade de reconhecimento de uma comum humanidade como laço
que facilitaria o processo. Aliás, ainda reconhecendo diferenças na execução do programa
de reassentamento para cada um dos grupos comparados, inclusive a respeito dos
montantes financeiros e do interesse institucional do Acnur com cada um deles, essas
dessemelhanças não entraram em jogo em suas declarações como elementos explicativos
com igual peso que aquele da alteridade:

Entrevista 1

Agente de reassentamento: Então, com a vinda dos palestinos tivemos ainda,


ou eu tive, uma preocupação muito forte por manter a sanidade mental da equipe,
porque estávamos ficando doidos aqui, porque o palestino, quando não gosta de

305
tua cara, ele cospe na tua cara, ele briga assim, grita, cospe, e se deixar ele faz
mais coisas. E como é que a gente ia suportar isso? Como a equipe se manter
coesa?

Eu: E com os colombianos tiveram o mesmo tipo de problema?

Agente de reassentamento: Não, não, a gente nunca teve problema nenhum.

Entrevista 2

Eu: Nunca o programa deu problema com os colombianos?

Ex-agente de integração: Não, tinha problema, lógico que tinha problema. A


gente discutia, brigava, não era tudo tão tranquilo. Cada seis meses eu tinha que
ir para Brasília a negociar com o Acnur o que é que fica, o que é que não fica. Eu
acho que um pouco até por características minhas [...] eu puxava muito a
sardinha para meu lado para esse programa. Então, foi uma coisa assim, não foi
feito na regra do Acnur. Foi um programa feito nas regras da Cáritas, então foi
um programa muito mais humano. E, com os palestinos, a verba vinha de outros
lugares, de outros doadores o cinto era muito mais apertado, aqui era um
programa que estava começando. O Acnur estava reabrindo o escritório no Brasil
e ele precisava mostrar resultados. E foi o começo. Depois, com os palestinos, a
gente teve muito problema com tradutor, eu tinha tradutores que não traduziam
as coisas para mim porque tinham vergonha. Eu tive muito embate cultural. Ah!
Que é fácil? Ahã. Fala aí de relativismo, vai! Vai viver ele no dia a dia. É outro
mundo, é outro mundo, é outro mundo. Eu lembro que na entrevista que eu dei
para [outra pesquisadora], eu estava muito, muito machucada ainda e eu
perguntava para [ela]: Que tipo de seres humanos são eles? Porque eu não
reconhecia a igualdade. Eu sou de um jeito, e eles são de outro completamente
diferente. Então, era uma coisa assim de outro mundo. E, com os colombianos,
não tinha isso até pela facilidade da língua.

Segundo os agentes do refúgio, a diferença cultural com os palestinos marca uma imensa
distância, apontando a dificuldade de integração por meio de todos os pressupostos
civilizatórios associados à ideia de tornar apto um grupo de pessoas para viver em uma
determinada sociedade. Além disso, somado à diferença cultural que é atribuída aos
palestinos em geral, os agentes agregam mais uma dificuldade a esse grupo em particular
que é chamado do “caso palestino”. Segundo eles, as pessoas desse grupo teriam o
“costume do protesto” como um hábito adquirido durante o tempo que permaneceram
assistidas no campo de refugiados de Ruweished (Ver: HAMID, 2012).

[…] os palestinos que são sunitas foram para um campo na fronteira da Jordânia
com o Iraque, e eles ficaram presos dentro do campo, porque o exército da
Jordânia patrulhava, e eles só saíam do campo para ir para o hospital quando
estavam muito doentes. Então, eles tinham essa coisa muito de protestar; então
daí quando o Acnur ia levar comida para eles, aí eles protestavam e eles já vêm
de uma experiência assim, da briga, e daí quando chegaram aqui foi complicado,
porque até eles entenderem que se pode sentar e conversar [...]. (Agente de
reassentamento)

306
Essa última frase da citação, “eles entenderem que se pode sentar e conversar”, marca um
tempo muito particular e ilustra parte desses pressupostos associados a certos espaços
como elementos transformadores. Esse fragmento enfatiza a demora que pode implicar o
complexo trabalho civilizador de “fazer com que os palestinos entendam” os códigos
“adequados” da comunicação. A comparação sempre presente com esses “outros” permitiu
que “os colombianos” me fossem apresentados como uma alteridade não muito alterna.
Uma alteridade integrável, na medida em que requer menos esforço e menos tempo para
ser acondicionada aos moldes da nação brasileira. Foram, assim, apresentados como
humanos mais parecidos com os formatos de cidadania pautada na autogestão própria do
modelo neoliberal a aos padrões culturais que os agentes qualificaram como próprios. A
esses representantes de uma alteridade integrável, segundo os agentes, lhes pode ser
ensinado o que faz falta para seu processo de integração como mais facilidade que a esses
“outros” de uma alteridade radical. Ou seja, com “os colombianos”, os processos de
integração entendidos como esforços de nacionalização de refugiados (SEYFETH, 2000, p.
47) têm a potencialidade de serem mais rápidos e menos agressivos.

Coordenadora de ONG: Olha, é um desenho de projeto bem diferente. A gente


teve que fazer outra proposta, porque, no caso palestino, eles vivem em
comunidades quase tribais. Assim, é uma organização meio tribal. Então, a gente
foi procurar na própria comunidade aqui, local, lideranças políticas ou religiosas
que nos ajudassem e nos apoiassem no reassentamento palestino que é bem
diferente da colombiana. A colombiana é dispersar, e o palestino foi realmente
inserir nas comunidades palestinas de migrantes já existentes. Nós fizemos então
essa parceria com a comunidade e foram então definidas as cidades as quais nós
poderíamos mandar famílias palestinas que a comunidade local ia-nos ajudar, por
causa do idioma, da tradição. Porque a necessidade número um também era ter
tradutores, porque tudo era muito diferente.

Agente de reassentamento: E a questão da diferença cultural, que é muito


diferente porque várias meninas chegaram com véu e depois algumas largaram
aqui, e outras ainda usam.

Outra das diferenças salientadas entre esses dois grupos antagonizados, no discurso dos
agentes e no universo institucional do refúgio brasileiro, é a relação que cada um deles
teria com a gratidão e as formas de sua expressão pública. Enquanto, como visto, os
palestinos são acusados de terem aprendido a protestar no campo e de serem
“culturalmente” tendentes às reclamações pouco educadas, os colombianos são
apresentados como agradecidos e distantes da queixa.

[...] Porque é difícil encontrar um refugiado colombiano que reclame da vida.


Não! Ele vai reclamar claro, do fundado temor de perseguição, daquilo que o
levou a... Daquele entorno que se coloca que é próprio do refugiado, e é normal.

307
Mas aquela outra reclamação que seria reclamação de... Sei lá! De está tudo
ruim! Fica tudo chato! Não. Um colombiano você não encontra não. É
interessante, eu tenho conversado com alguns colombianos que estão no Sul do
país, no interior de São Paulo, que estão aqui em Goiás também, e nós
observamos que eles estão contentes [...] pese a todo o drama pessoal, da aquela
história que os trouxe aqui. Então, não há reclamação por conta do fato de estar
aqui. A reclamação é daquilo que os trouxe aqui. Que é uma reclamação normal.
(Coordenador do Conare)

Considero pertinente interrogar essa apresentação “exitosa e agradecida” dos


“colombianos” que foi se mostrando como uma ideia compartilhada pela maioria dos
agentes brasileiros do refúgio. Eu mesma percebi, em muitas das conversas com as
pessoas, uma reiteração da gratidão e um reconhecimento constante dos benefícios de
todas as “ayudas recibidas”. Foram poucos os casos das pessoas que reivindicaram e
usaram a linguagem dos direitos para descrever sua relação com os agentes e para reforçar,
de passagem, o caráter legal e não pessoal que esse vínculo teria. Também foram poucos a
expressar que eles não deviam gratidão aos funcionários por cumprir com as tarefas pelas
quais recebiam um salário. Ao contrário, a maioria das pessoas, apesar de todas as
inconformidades que expuseram, manifestaram suas queixas depois de ter repetido o
agradecimento que sentiam e de me explicar que não era por ingratidão que eles
reclamavam.

Inspirada em Scott (2000) considero que, como grupo subordinado, os reassentados


puderam me oferecer, em seus relatos, uma sorte de “discurso oculto” por meio do qual
“crean y defienden, a escondidas, un espacio social en el cual se puede expresar una
disidencia marginal al discurso oficial de las relaciones de poder” (SCOTT, 2000, p. 20).
Com isso, quero dizer que a expressão da moléstia não aconteceu da mesma maneira diante
de mim que diante dos agentes do reassentamento. Meu trabalho foi visto por muitas das
pessoas refugiadas, segundo elas me disseram, como uma forma de “contar su verdad
sobre el programa”. Inclusive, algumas apontaram que falar comigo era uma espécie de
terapia que lhes permitia tirar moléstias ou dores velhas. Tudo isso sem esperar um
intercâmbio direto, benefícios ou reparações evidentes a partir dessa narração, mas com a
tranquilidade cada vez maior – à medida que íamos ganhando confiança – de que sua
narração não lhes traria prejuízos.

As pessoas sabiam que a expressão da moléstia, quando feita diante dos agentes que
exercem poder sobre eles e suas vidas, poderia acarretar prejuízos, inconvenientes e

308
desajustes na relação estabelecida com eles ou no cumprimento da entrega de benefícios.
Quase todas as pessoas me recomendaram não dar seus nomes para que as pessoas das
ONGs não soubessem o que elas tinham dito. A solicitação de reserva de seus nomes e de
cuidado com a informação por eles fornecida me foi feita inclusive pelas pessoas que já
não recebem assistência das ONGs. Considero que essas recomendações e esses sigilos,
além de estarem relacionados com o medo das possíveis represálias, estão relacionados
com uma valoração moral das pessoas sobre o dever ser das relações sociais nas quais a
gratidão é um elemento altamente estimado. Essa espécie de virtude seria, além disso, um
facilitador das relações com os agentes do refúgio, já que uma valoração moral
compartilhada com eles lhes localiza em uma situação menos díspar em meio a essas
relações hierarquizadas que estabelecem distâncias.

A esse respeito, também é esclarecedora a proposta de Grace Cho (2008, p. 13) que
apontou que a gratidão e o silêncio foram elementos fundamentais para a construção da
diáspora coreana nos Estados Unidos como um caso bem-sucedido de migração. O silêncio
sobre o acontecido na guerra foi exigido desses migrantes coreanos, mas era ao mesmo
tempo fácil de obter, pois também as pessoas envolvidas se protegeram com esse mutismo,
obtendo por meio dele um lugar não problemático para si mesmos no meio à diáspora.
Sugiro que também a construção dos “colombianos” como um grupo exitoso de refugiados
passa pelo fato de guardar silêncio, de não protestar e de selar um pacto de gratidão com as
comunidades de acolhida. Nesse pacto, “os fantasmas” da guerra e determinados
sofrimentos inenarráveis do êxodo não devem contaminar o presente da integração e da
salvação que lhes oferece o refúgio. Domesticar os fantasmas, deixá-los no quintal e tornar
público somente aquilo que socialmente possa ser significado como uma dor digna de luto
e reparação faz parte fundamental desse silêncio agradecido da integração.

Levando em conta a proposta de Mauss contemplada no ensaio sobre a dádiva (MAUSS,


2002), considero também que, por meio da manifestação da gratidão, é possível manter
ativo o circuito de obrigações materiais e morais que é criado entre doadores e receptores
desse bem precioso de refúgio que está em jogo, particularmente do refúgio que deveria
culminar em uma situação exitosa de integração. Vale lembrar que, no caso dos
reassentados, as ONGs e suas funcionárias continuam sendo, durante muito tempo, a
principal referência de contato e as encarregadas de assessorá-los nos processos

309
burocráticos de renovação de documentos, validação de diplomas, etc. Essas ONGs e essas
pessoas continuam sendo básicas durante longos períodos inclusive depois de finalizada a
etapa de assistência financeira.

Assim, considero necessário levar em conta o vocabulário e as formas que são utilizadas
no universo institucional brasileiro do refúgio para falar tanto dos grupos de pessoas
refugiadas quanto de sua própria gestão. O vocabulário utilizado para avaliar o êxito da
integração mistura o registro da caridade cristã (ajuda, o valor moral da recepção, as
virtudes do sacrifício e da gratidão) com o registro do empreendedorismo neoliberal das
democracias modernas (autonomia, autogestão, independência, capacidade de adaptação) –
vocabulário e práticas nas quais alguns sujeitos se movimentam com maior facilidade e
têm mais treinamento do que outros. Para a integração, ao mesmo tempo que o sujeito deve
ser ativo e tomar as rédeas de seu processo de reconstrução vital, lhe é exigido também que
aceite aquilo que lhe é oferecido e, em virtude de sua situação precária, agradeça a
salvação nos termos e nas condições em que ela vier. Tudo isso sem se queixar demasiado
e especialmente sem se queixar coletiva e publicamente.

310
9. Nono capítulo
A integração e as fronteiras do Estado-nação
Diferentes planos da categoria tempo têm sido propostos nessa última parte da tese até
agora. Na presente seção, interessa-me discutir “a integração” como outro processo que é
em si mesmo construído como atributo do tempo, não apenas porque o tempo qualifica e
associa valores aos sujeitos, como visto, mas também porque, no trabalho do tempo
(processos, esperas, fixações, urgências), decantam-se as ações do Estado que nos
permitem ter uma porta de entrada para entender os processos que o vão formando. Além
desses planos elencados, ficará mais claro, nas páginas a seguir, a “integração” como
processo também é uma forma de administração de Estado que pode ser entendida como
um processo de longo prazo, uma sorte de tradição administrativa.

A integração é o objetivo declarado de boa parte dos programas contemporâneos de


refúgio coordenados mundialmente pelo Acnur. Portanto, a integração também tem se
tornado uma forma de avaliação e de ação sobre a vida dos sujeitos que chegam ao Brasil
por meio desses programas. Sob o rótulo de “integração local”, o Acnur e suas ONGs
parceiras se referem a uma das três “soluções duradouras” que oferece essa agência
mundial para o “problema dos refugiados”, sendo o “retorno” e o “reassentamento” as
outras duas propostas. Segundo os documentos do Acnur, a integração seria a opção mais
adequada, quando o retorno ao país de origem não é viável:

En ocasiones, el retorno al país de origen no es una alternativa viable, en cuyo


caso a los refugiados se les puede permitir permanecer indefinidamente en el país
donde han encontrado condiciones de seguridad. En estas situaciones, se
estimula a los refugiados a que se integren en las comunidades locales y, con el
tiempo, puedan llegar a obtener la residencia permanente o la ciudadanía, en
cuyo caso dejarían de ser refugiados. (ACNUR, 2006, p. 77)145

145
No mesmo documento do Acnur (2006) e em várias de suas publicações web, são oferecidos detalhes de
como é concebida a “integração local” e quais são os objetivos que deveriam guiar esse processo: “La
integración local es un proceso gradual que tiene lugar en tres ámbitos: Legal: a los refugiados se les otorga
progresivamente un más amplio rango de derechos, similares a aquellos disfrutados por los ciudadanos, que
lleva eventualmente a obtener la residencia permanente y, quizás, la ciudadanía. Económico: los refugiados
gradualmente se vuelven menos dependientes de la asistencia del país de asilo o de la asistencia humanitaria,
y son cada vez más autosuficientes, de manera que pueden ayudarse a ellos mismos y contribuir a la
economía local. Social y cultural: la interacción entre los refugiados y la comunidad local les permite a los
primeros participar en la vida social de su nuevo país, sin temor a la discriminación o la hostilidad. Incluso
cuando la integración local no se persigue como una solución duradera, promover la autosuficiencia entre los
refugiados puede ayudar a alcanzar las otras dos soluciones duraderas” (Fonte: UNHCR ACNUR: Agência
da ONU para Refugiados. Integración local: uma nueva vida em um país generoso. Disponível em:
<www.acnur.org/t3/que-hace/soluciones-duraderas/integracion-local>. Acesso em: 5 fev. 2014.)

311
A princípio, a integração é mostrada como uma solução e, nesse sentido, seria algo pronto,
algo já elaborado. Contudo, em seguida, é proposta também como um objetivo, como uma
ação a ser realizada, de modo que, como mencionado no fragmento anteriormente citado
“se estimula a los refugiados a que se integren” e são despregadas estratégias tendentes a
conseguir esse propósito. Daí que, na tese, tenha considerado pertinente indagar as
relações, as práticas, as técnicas e os pressupostos que orientam as ações dos agentes que
atuam como guias e administradores desse processo de integração de refugiados nas
comunidades locais.

Entretanto, considero também relevante encarar a integração como uma noção que contém
várias hipóteses nem sempre homogêneas e nem todas surgidas exclusivamente da prática
e perícia do Acnur. Como visto na primeira parte da tese, no desenvolvimento recente das
políticas de refúgio no Brasil, podem ser encontradas tanto continuidades quanto rupturas.
Já foram mencionadas as importantes transformações nos modelos de governo desde finais
dos anos 1980 e a relação de boa parte delas com os chamados processos de
redemocratização (Ver TEIXEIRA; SOUZA LIMA, 2010, p. 62). Igualmente, as
transformações também tinham relação com a tendência, quase planetária, à
implementação de práticas políticas baseadas em critérios de participação e modelos
neoliberais de autogestão. Além disso, também é importante levar em conta uma sorte de
homogeneização global de critérios técnicos, noções de intervenção e práticas de gestão
dos refugiados a partir da legitimada presença e assistência técnica do Acnur em muitos
dos países receptores de populações em êxodo.

Há outros aspectos contidos e expressados nessa noção de integração que podem ser
entendidos, mas que, como rupturas, como continuidades de várias etapas prévias da
história brasileira de administração e gestão de grupos migrantes ou refugiados. Proponho
entender que os pressupostos da pretendida integração têm relação não apenas com os
relativamente recentes formatos técnicos do Acnur mas também com as diferentes formas
que tem cobrado a preocupação história sobre a presença de populações estrangeiras em
território considerado brasileiro e sua relação com a sociedade nacional.

A respeito do mencionado assunto, Giralda Seyferth tem apontado em diferentes


momentos que, por meio da ideia de assimilação, ou de sua homóloga antropológica da

312
aculturação, a integração dos migrantes e seus descendentes na sociedade nacional foram
uma preocupação presente desde meados do século XIX em diferentes setores da sociedade
brasileira (SEYFERTH, 2000, p. 45). Os trabalhos da autora têm iluminado também a
relação entre os processos migratórios – em particular aqueles que foram promovidos pelos
governos – e os critérios raciais e culturais com os quais os ideais da importação de
estrangeiros foram guiados, assim como sua relação intrínseca com a construção de um
determinado modelo de nação146.

Variados momentos e desenvolvimentos da relação com os povos estrangeiros – e com a


diferença referencial que sua presença significou para uma sociedade nacional brasileira
pretensamente unificada – podem ajudar a descrever as coincidências e continuidades de
outras épocas com a forma contemporânea dos processos de integração de refugiados.
Particularmente, parece-me relevante e coincidente a ideia, ainda pressente, de que há
povos com maior possibilidade de “abrasileiramento” 147
do que outros (SEYFERTH,
2000, 46; 1997, p. 96). No entanto, também são interessantes as coincidências com a
preferência histórica pelos processos migratórios que permitam escolher os estrangeiros
mais desejáveis (segundo os propósitos de cada momento histórico), assim como o temor
expresso de que os estrangeiros formem “guetos” segundo o discurso dos agentes do
refúgio contemporâneo. Notadamente, esse último aspecto pode nos remeter ao debate,
durante o Estado Novo a respeito da inconveniência de permitir a formação de “quistos” no
corpo da nação, como mostrado de maneira crítica por Seyferth (1997, p. 95). A “dispersão
territorial” como estratégia de integração (abordada na segunda parte da tese) aponta para
esse objetivo e ilustra o temor, ainda pressente, de uma alteridade enquistada no corpo
nacional.

146
Seyferth tem abordado algumas das relações fundamentais para pensar os pressupostos raciais que
estiveram na base da formulação das primeiras políticas migratórias brasileiras a partir da segunda metade do
século XIX. A autora propõe uma leitura que mostra, por exemplo, como, para esse momento, a abolição da
escravatura e a migração eram dois temas que se discutiam juntos (SEYFERTH, 1995, p. 179). A autora
também traça, com agudeza, outros tipos diferentes de conexões (às vezes, inclusive, antagônicas) que
tiveram entre si a migração, o desenvolvimento econômico nacional e a assimilação. Além de analisar as
formas em que esses assuntos afetavam ou se valiam dos pressupostos da mestiçagem como critério central
da interpretação da história brasileira a inícios do século XX (SEYFERTH, 2000, p. 46).
147
Giralda Seyferth utiliza, em diversos textos e de maneira analítica, o termo “abrasileiramento”, explicando
que, como termo nativo, expressa a ideia de que a assimilação dos estrangeiros foi pensada, desde finais do
século XIX, como um processo unidirecional de nacionalização de “alienígenas” (SEYFERTH, 2000, p. 46).

313
Se a presença de estrangeiros pôde interrogar, de diversas maneiras, a constituição e as
características da nação brasileira, não tem sido somente pela diferença e o contraste
cultural entre nacionais e estrangeiros. A respeito disso, é pertinente levar em conta a
proposta de trabalhos como o de Mazouz (2010) que também sugerem que a questão das
discriminações raciais associadas à imigração pode iluminar a existência de fronteiras
interiores – na sociedade francesa no caso de seu estudo. Essas fronteiras interiores
questionariam a igualdade de direitos dos cidadãos e não apenas dos estrangeiros
(MAZOUS, 2010, p. 8). Também nos trabalhos de Seyferth, o lugar da integração e os
encarregados de “assimilar” esses estrangeiros nos remetem a interrogantes sobre a suposta
completude da mestiçagem e a também imaginada unidade da sociedade nacional
brasileira.

As relações propostas nos trabalhos citados nos interrogam sobre quais seriam os lugares,
os grupos, as comunidades locais e os espaços sociais nos que devem e podem entrar esses
estrangeiros que pretendem se integrar à nação148. Se a ênfase do assunto da recepção e
administração de populações, pensadas e produzidas como refugiadas, havia nos remetido
até agora para a questão das fronteiras externas do Estado-nação brasileiro, o assunto da
integração nos remete necessariamente às fronteiras internas desse lugar imaginado como
uma unidade nacional.

9.1. Uma solução duradoura, um esforço pedagógico cotidiano

A princípio, a integração me foi explicada pelos agentes brasileiros do refúgio com o


mesmo vocabulário e definição que estão contidos nos documentos do Acnur. Isto é, como

148
Esse assunto pode se remeter ao paradoxo exposto por Seyferth a respeito da ideologia do branqueamento
que supunha que os grupos que deveriam ser branqueados por meio da migração eram, simultaneamente, os
encarregados de “abrasileirar” a esses estrangeiros. Em palavras da autora: “A exclusão dos alemães, que, no
Império, foram considerados os imigrantes ideais para o sistema de colonização com pequenas propriedades,
ocorreu porque nossos teóricos do branqueamento incorreram num paradoxo [...]: conceberam a “formação
(étnica) brasileira” desde a época colonial como resultado de um amplo processo de caldeamento de raças
consideradas inferiores, bárbaras e selvagens (negros e índios), ou brancos produzidos por mestiçagem
(portugueses); os imigrantes europeus serviriam, entre muitas outras coisas, para branquear essa população
mestiça que, mesmo concebida como inferior em raça e cultura, tinha a missão de abrasileirá-los. Dito em
outras palavras, o ideário do branqueamento afirmava a inferioridade irremediável de grande parte da
população nacional (negros, índios e mestiços de todos os matizes), mas imaginava que esta mesma
população poderia transformar em brasileiros/latinos todos aqueles brancos “superiores” encarregados de
fazê-la “desaparecer” fenotipicamente” (SEYFERTH, 1995, p. 181). No caso do refúgio contemporâneo que
me ocupa, as comunidades locais onde se pretende integrar aos refugiados (especialmente aos reassentados),
na maioria das vezes, são elas mesmas o objeto da intervenção de políticas de governo que procuram
construir ideais de população, de família, de núcleos produtivos, etc.

314
“uma das três soluções duradouras para o problema dos refugiados”. Porém, a integração
também remeteu ao objetivo primordial dos programas para refugiados, em particular o
Reassentamento Solidário. Isso porque, como visto, enquanto o refúgio por elegibilidade
(ou espontâneo) se constrói jurídica e simbolicamente como um estado provisório, o
reassentamento, ao contrário, é pensado como duradouro e, muito amiúde, apresentado
como definitivo.

No caso dos postos administrativos, que gerem os assuntos dos refugiados espontâneos,
existem pautas para a recepção das pessoas que suas funcionárias chamam, em alguns
casos, de “programas” e em outros de “serviços”. Esses me foram apresentados na Cáritas
como sendo fundamentalmente quatro: proteção, assistência, integração e saúde mental.
Segundo a descrição das funcionárias, esses “serviços” são a forma de organizar e
apresentar o atendimento que oferecem as ONGs como representantes da sociedade civil,
mas especialmente como organizações que trabalham conveniadas com o governo e com o
Acnur. Com “proteção”, as funcionárias aludem ao atendimento jurídico que inclui a
ativação do processo de solicitação de refúgio, a gestão da documentação e a assessoria
para recorrer, caso a resposta do Conare seja negativa. Com “assistência”, referiram à
administração e entrega de apoios materiais e financeiros e, com “saúde mental”, ao
atendimento psicológico ou psiquiátrico e urgência. Já “integração” foi sempre um termo
mais ambíguo, porém, quando mencionado, as funcionárias se referiram basicamente aos
cursos de português oferecidos aos refugiados, aos cursos básicos ou técnicos de formação,
à tramitação dos documentos trabalhistas e escolares e à ajuda para conseguir empregos.

Esses mesmos elementos elencados foram salientados pelos outros agentes da tríade do
refúgio. De maneira geral, em seus discursos, podem ser identificados três aspectos básicos
reiteradamente mencionados ao falarem em integração ou ao serem interrogados sobre o
assunto. São eles: trabalho, língua e escola; essa última mais orientada para as crianças.
Desses três elementos, o trabalho é aquele que primeiro apareceu e que, de forma mais
clara, foi enunciado como um escopo-chave na integração dos refugiados. De fato, várias
vezes, ao perguntar aos agentes sobre o tema da integração, a resposta esteve relacionada
com o trabalho sem que sentissem a necessidade de explicitar o vínculo nos dois assuntos e
sem que considerassem pertinente aclarar o tipo de relação estabelecida nesse momento
entre eles.

315
Eu: No que diz respeito ao processo de integração dos colombianos, há
problemas de...?

Agente de Posto Adminstrativo: Não, como todos os outros, eles também se


dispõem a fazer qualquer trabalho, ficam muito preocupados em querer
conseguir o refúgio no Brasil, e eles fazem o trabalho... Segundo qual é a
formação dele, a habilidade dele, a gente tenta encaixar ele. Mas, não podendo,
eles aceitam o trabalho que aparecer. [...] Eles se sujeitam, se sujeitam, não, mas
eles aceitam qualquer tipo de trabalho. O maior número de empregos que a gente
tem aqui é de auxiliar de empresa, construção civil, eles não têm problema, eles
aceitam, diante da dificuldade deles para se integrar, eles aceitam. As coisas vão
melhorando conforme eles vão se integrando [...]. (Agente da Cáritas)

O trabalho, como forma de integração, foi quase sempre referido à necessidade de que os
sujeitos refugiados tornaram-se rapidamente autossuficientes para assim exorcizar os
fantasmas da dependência e do assistencialismo. Com maior nitidez, inclusive que, no
refúgio espontâneo, o assunto da capacidade laboral dos refugiados apareceu no programa
de Reassentamento Solidário. Os agentes que integram a Missão de Seleção e, em geral, os
agentes da tríade foram explícitos em que o perfil do reassentado ideal é o de um sujeito
com idade e capacidade laboral, viajando em companhia do seu núcleo familiar com filhos
pequenos. Esses últimos, preferentemente, em idade escolar para não obstaculizar as
possibilidades de empregar-se de seus pães.

Além da reiterada necessidade de independência financeira, as referências ao trabalho


como base da integração permitem identificar outros aspectos que lhe são associados. Em
primeiro lugar, permite notar que esses agentes consideram que o lugar genérico da
integração para os refugiados e aquele dos setores laborais e sociais mais baixos da
economia nacional, com seu consequente identificação sociocultural como setores
populares. Assim, apesar dos grandes esforços para distinguir refugiados de migrantes
econômicos, para ambos os grupos, são destinados os trabalhos menos remunerados e, em
especial, aqueles que não representem um potencial perigo para os setores e grêmios
profissionais que desfrutam de prestígio social e econômico no nível nacional.

A questão do estudo é uma coisa que para nós dificulta porque a gente não
manda nas corporações: engenheiro é engenheiro, médico é médico e quanto
menos vier de fora, para eles, muito melhor, e não existe essa solidariedade de
querer reconhecer o título. E o cara de mão de obra, assim da área de serviço, se
dá muito bem. Porque são muito trabalhadores, muito trabalhadores,
colombianos nas empresas se destacam, causam até um ciúme positivo dos
colegas brasileiros que estão aqui há 15 anos fazendo a mesma coisa, muito
acomodados. Já nós tivemos mais de um caso em que nós tivemos que intervir
frente à empresa e até pedir ao próprio refugiado para baixar a bola, ir devagar:
“tu é bom, mas dá um tempo, as pessoas vão te massacrar aqui”. Então, ele teve

316
que dar uma abaixada no ritmo dele para não... Porque a empresa estava tendo
problema, era grande e nunca tinham tido esse problema, uma empresa grande,
uma multinacional e falaram: “senhora, nós nunca tivemos esse problema de
alguém trabalhar mais e os outros não gostarem”. Então, o rapaz teve que fazer
isso, mas mesmo assim acho que passou dois anos ali, e hoje ele é empresário,
ele abriu seu próprio negócio, ele é importador e exportador. Então, ele agora
está muito bem, mas cara é um aprendizado para todo mundo. Então, é assim,
são muito trabalhadores, eles têm muitas ganas de trabalhar e então se dão muito
bem. (Coordenadora de ONG de reassentamento)

O segundo aspecto que expõe essa reiterada referência ao poder integrador do trabalho é a
ideia de que ele é em si mesmo uma atividade dignificante e com um grande poder
pedagógico e moralizante. Entrar na “vida formal” da sociedade brasileira necessitaria do
aperfeiçoamento de determinadas características que somente se adquiririam por meio de
atividades e relações muito específicas com os outros, com o dinheiro, com uma
determinada racionalidade de gestão de seus próprios recursos e tempos, etc. Os agentes da
tríade costumam dizer que os refugiados desfrutam dos “mesmos direitos que têm os
nacionais”, mas esquecem de complementar que são os mesmos direitos dos nacionais
pobres e que se referem basicamente (e de forma ideal) aos direitos laborais e aos serviços
gratuitos de saúde e educação. Outras formas de cidadania, não subsumidas no âmbito
produtivo e financeiro, nem sequer aparecem nas narrativas dos agentes.

As estratégias para a integração privilegiam então a educação básica e o emprego como


promotores de uma cidadania muito específica que tem também espaços bem delimitados
para seu exercício. Não apareceu, nos discursos dos agentes, por exemplo, uma
preocupação por desenvolver práticas pedagógicas para fomentar a participação política ou
o conhecimento dos direitos diferenciados das populações refugiadas. Porém, apareceram
estratégias para formar hábitos financeiros nos sujeitos. Para as famílias de reassentados
que viveram muito tempo assistidas e para aquelas que nunca tiveram contato com o
sistema financeiro, foi criado um programa de microcrédito que oferecia o financiamento
de pequenas empresas familiares149.

149
Algumas das primeiras famílias que chagaram ao Brasil pelo programa de reassentamento disseram ter
recebido crédito, mas os agentes que atualmente trabalham nas ONGs encarregadas do programa, não se
referiram ao assunto. Porém, várias das famílias recentemente chegadas me contaram que, no Equador,
quando entrevistadas pela “missão de seleção”, lhes foi oferecida a possibilidade de um crédito com baixos
juros, para que eles pudessem montar pequenos empreendimentos familiares. Algumas famílias estavam
chateadas no momento de nossas entrevistas, porque não tinham recebido o crédito oferecido e algumas
afirmaram que era mentira que o programa continuasse prestando esse tipo de benefícios.

317
Segundo me contou uma ex-funcionária do programa, para os primeiros grupos de
reassentados colombianos, o dinheiro foi entregue com juros mínimos e, muitas vezes,
quando comprovado que as pessoas “cumpriam com as obrigações de pagamento”, boa
parte da dívida era perdoada. Tudo isso sem que os refugiados soubessem do
funcionamento real do sistema de crédito, para que o exercício funcionasse como uma
encenação da “vida formal” que lhes fosse educando para o futuro:

Ex-agente de reassentamento: [um refugiado] pegou empréstimo no Banco de


Rio Grande do Sul, era um acordo com o Acnur e com um banco de crédito
solidário que era para esses aportes de microcrédito. Eu acho que se chama
Credisol. Isso era, os refugiados não sabiam, mas o Acnur fazia um aporte pro
Credisol e, com os projetos, ele apoiava algumas iniciativas. Mas era um aporte
do Acnur, mas quem aparecia era o Credisol, os refugiados não sabiam que o
dinheiro era do Acnur, eles sabian que era do banco.

Eu: E por que isso?

Ex-agente de reassentamento: Porque para ter uma responsabilidade com o


crédito porque alguns empreendimentos que foram diretamente feitos com o
Acnur nunca foram devolvidos, então aqui era nada de juros, muito, muito
pouco, eram juros solidários mesmo, assim de verdade, eram de 2% no contrato
inteiro de cinco anos. Era uma coisa assim bem simbólica, mas que tinha um
compromisso que gerava boleto, que tinha que pagar no banco, saía um contrato
e tudo mais. Porque era um jeito também que o Acnur enxergava de educá-los
para o crédito porque, no Brasil, é muito complicado abrir empresa, trabalhar
com crédito, abrir conta em banco. Que era muito diferente do que eles tinham
vivido na Colômbia e principalmente vivido nos últimos anos no Equador onde a
informalidade é muito maior.

Esse sistema de crédito era oferecido preferencialmente a famílias que, por meio da escola
dos filhos, os vínculos com organizações sociais e igrejas de bairro e dos compromissos
laborais dos adultos, estiveram sedentarizados e cada vez com mais redes geradoras de
obrigações sociais, entre elas a do pagamento das dívidas. Dessa maneira, dito sistema de
crédito apareceu como uma dupla função. Em primeiro lugar, esperava-se que o crédito
oferecido pudesse ajudar efetivamente no desenvolvimento de pequenos negócios que
oferecessem ingressos estáveis à família e, portanto, independência financeira uma vez que
finalizasse a assistência financeira do programa. Em segundo lugar, esperava-se que
funcionasse como uma pedagogia de educação no sistema financeiro e creditício e como
uma forma para criar alguns hábitos nos refugiados. Esse sistema como pedagogia da
integração é ilustrativo da constante articulação entre práticas cotidianas, preocupações
populacionais e valores morais nos processos de reassentamento.

318
Tal pedagogia de crédito é assim destinada aos chamados “núcleos familiares”. Presume-se
que as pessoas que integram cada família vão estabelecendo determinado tipo de relações
na medida em que passa o tempo e que essas relações – baseadas em um esquema bastante
convencional de gênero e geração – seriam estabelecidas de maneira diferencial por cada
um de seus membros nos espaços sociais destinados a cada um deles (trabalho, escola,
bairro, igreja, casa, etc.). Elementos esses, que interconectados, ajudariam no processo
grupal de adaptação ao novo lugar de vida. Nesse caso, a família nuclear, como
configuração relacional específica, aparece como o lócus privilegiado para o
desenvolvimento de algumas pedagogias da integração.

Ao mesmo tempo, conforme Hamid (2012), no processo de formação e de educação dos


refugiados, é utilizado o que a autora descreve como uma sorte de pedagogia familiar que
compreende o ensino do crédito, recompensas pelos bons comportamentos, firmeza
acompanhada da proteção dos mais vulneráveis, etc., como preparando os filhos para a
vida em um formato específico de sociedade (HAMID, 2012, p. 195). Nesse modelo
familiar para a educação, os funcionários e as funcionárias que trabalham diretamente com
os sujeitos interagem de maneira diferenciada com eles. Uma das coordenadoras de uma
ONG de reassentamento dizia que, às vezes, tem de ser mãe, às vezes irmã, e às vezes
amiga dos refugiados, dependendo do momento da relação e, geralmente, da negociação
que esteja em jogo com as pessoas.

[...] Nós não podemos entrar no problema deles, nós temos que manter-nos fora
para poder ajudar, um pouco saber qual o limite que a gente estabelece. Se ser
amiga, ser mãe, irmã e ser quem dá o dinheiro. Porque nós somos quem
passamos o dinheiro para eles, mas também somos quem cobra deles; então, nós
somos mãe, madrasta, irmã, todos os papéis possíveis aqui a gente cumpre e
assim vai durante anos para acompanhar essa pessoa até ela estar bem ali [...].
(Coordenadora de ONG de reassentamento)

A mesma funcionária apontava que os homens das famílias reassentadas vivem de maneira
mais intensa a crise de perder seu lugar de provedores, querendo conseguir, “com a
reclamação constante”, o dinheiro que não conseguem oferecer por meio de sua força de
trabalho. Essa situação fazia necessário, segundo ela, ter mais firmeza no processo de
assistência para não criar pessoas dependentes e ir educando-as para a autonomia. Segundo
essa leitura, seria mais fácil o trato com as mulheres que, afinal, já estariam acostumadas a
ocupar uma posição subordinada e receptiva em matéria financeira e educativa. Não é em
vão que são, geralmente, as mulheres e as crianças as pessoas que os agentes apresentam

319
em cada família como os sujeitos mais integrados e integráveis no processo de
reassentamento, sempre que contidas nesse marco da família nuclear.

O assunto do poder integrador do trabalho também apareceu varias vezes se referindo aos
“colombianos” com a ideia de que esse grupo de refugiados se caracterizaria por ser muito
trabalhador. Porém, essa fórmula tão reiterada durante a minha pesquisa de campo não
proveio somente dos agentes do refúgio mas também de vários solicitantes ou refugiados
colombianos. Eles a mencionavam como uma forma de exaltar simultaneamente seu
processo de vida em território brasileiro e uma espécie de característica colombiana que
sentiam como motivo de orgulho nacional. Alguns solicitantes chegaram inclusive a se
comparar com outros grupos nacionais (continentais, pela generalização) com os quais
conviviam nos albergues, utilizando formas que aludiam a seu próprio comportamento
como meritório e ao dos “africanos” como preguiçoso.

Algumas vezes, a fórmula adquiriu a expressão ainda mais abertamente racista ao se referir
a outros grupos de migrantes, com os quais compartilhavam espaços administrativos e de
moradia, como “os negros zânganos”, enquanto eles próprios se exaltavam como
trabalhadores. Tudo isso, geralmente, sem mencionar nem a cor da pele, nem o
pertencimento étnico-racial, próprios ou genéricos dos “colombianos”, como se não
existissem tais marcadores. A exceção a esse uso de uma denominação antagônica entre
colombianos e negros ou colombianos e africanos foi quando os próprios solicitantes
colombianos se reconheceram como negros ou como afrocolombianos.

Voltarei sobre essas categorias mais adiante. Por enquanto, gostaria de salientar que esse
discurso genérico dos colombianos transformou-se em um discurso particular do “eu”
quando as pessoas entrevistadas quiseram explicar e singularizar essa suposta
disponibilidade para qualquer trabalho. Reassentados, solicitantes e refugiados espontâneos
contaram, com indignação, as propostas que receberam para se empregar em cooperativas
de reciclagem de resíduos sólidos ou em trabalhos com precárias condições laborais, tipos
de empregos que foram as opções comumente oferecidas pelas ONGs. Tendo ou não aceito
esses empregos, a ideia de que eles tiveram de fazer grandes sacrifícios esteve muito
presente e serviu para engrandecer sua história pessoal e a fazer mais meritória. É
precisamente essa valoração do mérito, da disposição para “salir adelante” e o desejo de

320
integração a que muitos sujeitos compartilham com os agentes do refúgio e a que permite
criar ideias de proximidade de valores, cercania cultural e facilidade de acomodação às
“práticas nacionalizantes” (SEYFERTH, 1995, 2000) que estão na base da noção de
integração de refugiados.

9.2. Como quais brasileiros?

Uma visão dissidente dessas leituras comuns sobre o mérito e o esforço apareceu nas
conversas com Álvaro e Edna, um casal inter-racial que chegou como solicitante de refúgio
junto com a irmã de Edna, seus filhos e seus sobrinhos. Para Edna, a necessidade de
trabalhar não tinha nada a ver com mostrar suas qualidades e estabelecer um lugar moral a
partir de sua capacidade de sacrifício. Explicou-me que, se eles aceitaram, no começo,
empregos, que sabiam que eram mal remunerados, foi para tratar de sair de uma situação
de extrema precariedade. Mas, com clareza, se manifestou criticamente sobre a ideia de
que seria necessário aguentar e tolerar maus tratos e más condições laborais em nome das
dificuldades. Essa visão dissidente da norma do sacrifício engendrou juízos contra eles no
albergue católico onde se hospedaram ao chegar. Segundo me contou Edna, foram
criticados tanto pelas funcionárias do lugar quanto por outros dos hóspedes do albergue.
Em um diálogo conjunto que tivemos, eles apontaram, com nitidez, as conexões que viam
entre os espaços da migração e as formas de racismos históricos que se projetam tanto para
os nacionais quanto para os estrangeiros:

Álvaro: Ah! pero yo conseguí un trabajo antes del que tengo ahora [tono de
burla]. Fue un día de hambre y no me pagaron.

Edna: No sabes cómo a mí me dolió que él se quedara todo el día aguantando


hambre, todo el día como hasta las nueve de la noche. ¡Y trabajando y no le
pagaron!

Álvaro: Ni me pagaron, ni me quiso llevar a la Casa del Migrante, sino que me


dejó por ahí y me tocó llegar andando.

Yo: ¿Quién hizo eso?

Álvaro: Un brasilero, yo no sé.

Edna: Es que a la Casa del Migrante van muchas personas por esclavos, van a
buscar migrantes para que les sirvan de esclavos.

Álvaro: Yo llegué a las 8 de la noche a La Casa del Migrante, llorando y


entonces allá me dieron de la comida que les había quedado. Y yo que me había
ido contento porque de pronto me iban a dar alguito para poder comprarle algo
bueno de comer a Edna que estaba embarazada.

321
Edna: Es que además allá en la Casa del Migrante les daba rabia porque
nosotros comprábamos un pollo, porque yo decía: No señor, yo ya estoy
trabajando como para seguir comiendo arroz crudo. Y entonces ellas nos miraban
como así raro.

Décadas atrás, o albergue – lugar conhecido na cidade pela tríade do refúgio, pela
sociedade civil ampla e pelas redes que empregam migrantes – era uma casa para receber
migrantes nacionais, majoritariamente provenientes do Nordeste, que viajavam para o Sul
do país em procura de oportunidades laborais. Contudo, recentemente, o albergue focou
nas migrações internacionais, mudando, nos últimos anos, as proporções de hóspedes
segundo a procedência, passando de uma maioria latino-americana para uma maioria
angolana, congolesa e mais recentemente haitiana. Não é de estranhar que Edna junte suas
experiências prévias de experimentar o racismo com as características de sua estadia no
albergue para poder afirmar que esse lugar é um depósito de escravos.

Os eventos que Edna descreveu ajudam a entender melhor a proposta de Butler e Spivak
(2007) que foi exposta na primeira parte da tese. Ou seja, o refúgio (e os refugiados) são
representados como desprovidos de ordem, como estando num estado metafísico de
abandono caracterizado pela ausência de poder estatal. Porém, se oblitera com essa
representação o fato de que a existência do refúgio (e dos refugiados) implica a existência
de um conjunto de poderes que produzem e mantêm a situação de destituição (BUTLER;
SPIVAK, 2007, p. 8) e que, de fato, produzem e preparam determinados sujeitos para seu
despojo. As ordens e os poderes que cruzam os sujeitos, que os constroem e os
diferenciam, habilitando espaços e formas de estar no mundo para cada um, continuam
estando presentes. Esses são importantes mediadores das relações sociais e políticas que
constituem o refúgio, inclusive quando os embandeirados das ações humanitárias tentam
convencer de que sua atuação é sobre uma humanidade genérica, despossuída de ordem e
na margem do poder ordenador da nação e do Estado.

Também Santiago, um solicitante afro-colombiano que conheci em São Paulo, identificou


essa presença ambígua de sua situação de ser solicitante e de ser um homem racializado150.

150
Da vastíssima literatura sobre a questão das raças e dos racismos, gostaria de tomar, de uma recente tese
de doutorado, algumas ideias que me permitirão acompanhar a descrição das experiências de discriminação
(e outro tipo de violências de ordem racista) das pessoas que conheci durante a pesquisa. Procuro aderir aqui
às propostas de Mazouz (2010), que sugere a categoria racialização para dar conta desse tipo de experiências.
A racialização não é um simples processo de categorização, mas uma categoria de poder racializante.

322
Como solicitante de refúgio, quer dizer estrangeiro, supõe-se que ele é um anônimo, um
“outro” diferente aos nacionais e, nessa medida, alguém que ainda não se conhece. Mas a
cor da sua pele, ao contrário, segundo suas sensações, fazia que as pessoas atuassem
presumindo que sabiam cosas sobre ele. Esse preconceito por sua cor de pele não era uma
experiência nova para Santiago, nem derivada (mesmo que piorada) de sua condição de
estrangeiro. Sendo consciente do racismo e havendo sofrido de discriminação e outras
formas racistas na Colômbia, sua escolha do país no qual pediria refúgio esteve também
orientada por esse aspecto:

Yo: ¿O sea que tú en principio ibas para Chile?

Santiago: Si, pero cuando ya llego a Desaguadero que es la frontera entre


Bolivia y Perú, que hablo con el brasilero y hablo con otra paisana y noto de que
Brasil actualmente pues está mejor. ¿Ya? Fuera de eso él me dijo: No, allá se ve
mucho trabajo de construcción, porque como en el 2014 es el mundial, más de
una ciudad la están poniendo bonita para el evento y empleo encuentras. ¡Ah! y
en calidad de vida, él me dice: “No, en Chile... o sea, ya yo me voy un poco por
el lado ¿cómo diría? de racismo por decir. Él me dice que en chile al negro no
lo... no tiene acogida, mas sin embargo en Brasil sí. Me dice: “en Brasil se ve el
preconceito pero hay muchos negros. Me dice eso. Entonces yo dije: No, pues
entonces opté por Brasil.

Quando Santiago chegou a São Paulo, percebeu que a manifestação do racismo ia para
além do preconceito. Para a época, a cidade estava passando por vários processos que
alteraram a rotina dos habitantes habituais do centro da cidade, região onde ele morava e
transitava diariamente. Algumas ações das autoridades municipais e estaduais ativaram os
alarmes de outros setores nacionais que viam a possibilidade de que estivessem se tomando
medidas violadoras dos direitos; depois de que em um período curto de tempo se desse o
despejo de Pinheirinho151, a proibição de dar alimentos aos moradores de rua, junto com a
tentativa de acabar com a zona conhecida como cracolândia, o desenvolvimento de ações
contra vendedores ambulantes em alguns lugares da cidade e o encarceramento em poucos
dias, derivado de todas essas ações, de uma quantidade importante de jovens pretos.

Segundo a autora, essa categoria se referiria, ao mesmo tempo, a um processo que coloca os sujeitos em
diferentes lugares de alteridade e uma categoria analítica que permitiria pensar a discriminação e outras
formas de violência baseadas em ideias de raça, sempre em termos de processo, de contexto e de produção de
alteridades (MAZOUZ, 2010, p. 13). Em outras palavras, a racialização como categoria analítica permitiria
explicitar de que maneira a sociedade produz o racial, examinando os processos sociais que produzem
relações de poder sob uma modalidade racial (MAZOUZ, op. cit., p. 15).
151
Com Pinheirinho, faz-se referência ao despejo violento, em janeiro de 2012, das pessoas que moravam em
uma ocupação territorial urbana em um município do estado de São Paulo. Ação que foi controversa e
duramente criticada por amplos setores sociais brasileiros, não só pela questionável legitimidade da decisão
judicial mas também pela truculência e pela violência com que a polícia realizou o despejo.

323
Santiago tinha de passar muitas horas do dia perambulando por esses espaços que, para
esse momento, mais agudamente que em outras épocas, tinham se tornado ainda mais
hostis diante de determinadas presenças na rua. Por norma do albergue, ele devia sair às
sete horas da manhã e podia retornar somente no fim da tarde. Como seu protocolo de
solicitante havia-se demorado muito para ficar pronto, ele estava sem documentos que
comprovassem sua estadia legal no país, sem possibilidades de solicitar uma carteira de
trabalho e sem dinheiro. Além disso, Santiago viajou com pouca roupa e não veio
preparado para a temporada invernal que, durante esses dias atingiu a cidade, tendo de usar
roupas doadas e nem sempre correspondentes com seu estilo ou tamanho. Além disso, ele
estava sofrendo de pele seca por causa do clima, ele sentia aumentada sua incapacidade de
reverter esteticamente os estigmas que ele sabia que podiam afetá-lo e torná-lo mais
vulnerável nesse contexto da cidade que encontrou na sua chegada. As várias camadas de
significação que foram se superpondo em sua vida e o tecido particular dos múltiplos fios
de relações e eventos que marcaram sua entrada à sociedade nacional também são
eloquentes a respeito dos lugares possíveis, tanto sociais quanto geográficos, que lhe são
destinados aos refugiados, previamente produzidos como seres carentes e vulneráveis.

Se a ideia da integração é conseguir que os estrangeiros possam viver como os brasileiros,


as experiências e as reflexões de Edna e de Santiago permitem perguntar: como quais
brasileiros? Além disso, quais seriam os limites desse suposto pertencimento nacional. A
esse respeito, outra experiência – que citarei em extenso – ilustra também as negociações
de lugares, pertencimentos e alteridades que estão em jogo em cada experiência de êxodo,
em seu encontro com essas fronteiras internas da(s) sociedade(s) da integração.

Rocío: […] Yo estudio en un colegio de gente rica y siempre me sentía muy mal
(ahora ya no) porque yo no era como ellos y yo no entendía por qué no podría
ser… No entendía por qué no les podía pedir ayuda a ellos si ellos tenían plata.
Porque mis papás me educaron así: no pida, sino que si le piden usted va a dar y
eso. Y yo no entendía entonces por qué ellos no me podían ayudar, por qué ellos
no podían ser mis amigos y desde siempre esa cosa muy materialista ¿no? y
siempre así, y era bullying y todas esas cosas.

Yo: pero ¿el bullying era porque tú eras colombiana o porque eras refugiada?

Rocío: porque yo era colombiana, porque yo era pobre, porque todo, por todo.

Yo: ¿ellos saben que tú eres refugiada?

Rocío: si.

Yo: ¿y eso ha sido también un problema?

324
Rocío: Claro porque Ay! uno es refugiado y entonces piensan que uno es
traficante de cocaína y que mata no sé cuántos en el monte y siempre así... “¿ah
de Colombia? Y cómo no saben nada de Colombia, como ellos no saben nada de
la situación, entonces piensan que uno está haciendo drama, haciéndose de
pobrecito. Eso, y también mucha exclusión. Y yo al comienzo tampoco entendía
porque no sabía nada y uno les decía pero es que oiga que hay problemas y
[ellos]: "nada que ver, Ay! deje de ser, que usted era chiquita".

Yo: ¿Tú has estado en ese colegio todo el tiempo?

Rocío: Si, si. Cuando llegué con 4 años estuve en ese colegio en otra unidad que
era donde mi prima estudiaba, allá en la aldea de la sierra. Después estuve como
3 años en un colegio público allá en la república [se refiere al barrio de SP] y ese
sí era chévere.

Yo: ¿te gustaba más?

Rocío: Claro la gente era mucho más... pues había unos que eran bandidos de la
calle, así: se robaban los juguetes, los lápices. Pero era mucho más familiar, pero
obviamente que no aprendí nada allá. No aprendí nada, nada, mi mamá me
enseñó a leer, el resto era, nada. Ahí después entré al colegio, al de acá y ahí
después ya no me salí.

Yo: ¿cuál ha sido la época más difícil, cuando estabas pequeña o ahora que ya
estás más grande?

Rocío: Es que son cosas diferentes, yo creo que cuando era pequeña yo no
entendía y sufría y: "mami ¿por qué yo no puedo tener?". Y yo no entendía y yo
vi que me estaba volviendo una persona igual a ellos, toda capitalista. Ahí hubo
un momento, yo creo que fue hace unos dos años que yo dije, que yo vi que
comenzaba como que a matar partes de mi misma para ser igual a ellos. Y de
verdad: un suicidio mental, una cosa así, a dejar de ser yo y a asumir... Yo dije,
yo pensé: ¿a quién estoy ayudando? No estoy haciendo esto por mí, sino por
ellos. No es una cosa por el bien de la comunidad o algo así, no estoy haciendo
eso por nadie. Estoy [haciéndolo] porque ellos creen que es así, entonces me voy
a volver así también. Y desde ahí cambié totalmente asumí digamos la cosa de
ser refugiada y ya no me importa, me pongo la ropa que quiero, hago lo que
quiero, pero obviamente es muy difícil y la gente no entiende. Mi propia
coordinadora me decía: ah, es que usted es una revoltada sin causa, no sé qué. Y
eso me da mucha rabia, yo odio a esa señora. Es que mi mamá le pidió descuento
para la universidad […] y ella [le dijo]: "Ay, pero que su hija estudie aquí ya es
un privilegio". Pero es por ley que los hijos de los profesores tienen que estudiar
en el colegio, eso es una ley, están obligados, no es un privilegio. Y eso perdura
para mi, ellos son preconceituosos contra negros, contra indios, contra todo […]

Yo: ¿tú no quieres pedir la residencia?

Rocío: No, o bueno, residencia si pero yo no quiero ser brasilera. Yo sé que


eso... yo tengo preconceito contra los burgueses, porque eso es... porque fue una
cosa como que de chiquita siempre me intentaron como que acabar, entonces yo
tengo mucho preconceito. Yo veo una persona que la identifico como burguesa,
la gente como se visten así y tal y el pelo y yo ya me da, no rabia, sino que me
da... ya tengo el concepto de que esa persona es ignorante, de que no sabe nada
de la vida, de que va a decir cosas idiotas porque es preconceituosa. Y yo sé que
eso es malo, pero son costumbres desde chiquita y que necesito quitar.

Yo: pero tú crees que pedir la nacionalidad brasilera...

325
Rocío: Pues no sé, es que por exactamente eso, yo conozco brasileros súper
chéveres y todo. Pero me da una cosa de como que ser brasilera. Y yo cuando
pienso en brasileros pienso en gente egoísta, sucia, en el sentido de tener una
alma sucia, individualista, entonces no me... y yo digo: y mis papás siempre
hablan tan bien de los colombianos. Que son mucho más, que les importa mucho
más la comunidad y a veces a mi me da mucha tristeza de no ser así. Porque yo
realmente tengo unas cosas de brasilera, que a pesar de que tuviera mi familia
aquí, pues obviamente todos los días en el colegio, en la calle veía actitudes
completamente diferentes a lo que ellos me decían. Entonces para mí… es algo
que me da mucho pesar.

Yo: ¿tú te sientes colombiana también?

Rocío: Si. Yo intento.

Yo: ¿y entonces lo más difícil para ti de haber llegado a Brasil ha sido esa
relación con las personas del colegio?

Rocío: Si, era mucho preconceito y ahora todavía es jartísimo y yo aguantarme


todavía todos los días esa gente diciendo que los negros tienen que morirse... es
racismo, es horrible […] y siempre así, la gente a destruirte, a hacerte pensar que
eres menos. Ay! que favelada que no sé qué. Y yo: ¿cuál favelada? y si fuera
favelada ¿qué?

Para as autoridades do refúgio, a integração é um processo que paulatinamente vai


transformando os refugiados em nacionais, mas a experiência que narra Rocío vai à
contramão. Para ela, a luta para encontrar um lugar próprio dentro da sociedade brasileira –
ou dentro do fragmento de sociedade – na qual lhe correspondeu se integrar, é um esforço
continuo de não tornar-se como esses nacionais. A obrigação de se integrar exitosamente
no espaço que a ela lhe correspondeu era uma obrigação que Rocío sentia como sendo “un
suicidio mental”, como “estar matando partes de mi misma” para ser como aqueles. Na
negociação consigo mesma e com esses “outros” referenciais, mobiliza a carga simbólica
associada a sua nacionalidade de origem e a seu pertencimento de classe para,
diferenciando-se de “esos burgueses”, sentir-se mais tranquila sabendo que é um pouco
brasileira, que tenta ser um pouco colombiana e que não sabe o que será depois.

Por seu posicionamento crítico contra as posturas políticas desse grupo de referência – a
quem Rocío identifica como burgueses e racistas – , essa é uma identidade que ela recusa
adotar. Porém, esse dilema do pertencimento diferenciado não foi exclusivamente narrado
por ela. Outras histórias se referiram a essa sensação de querer um lugar social no novo
ambiente, mas de não se entregar a algumas das formas oferecidas por esses locais. Com
princípios menos louváveis que a luta antirracismo de Rocío, também aludiram a esforços
realizados para se diferenciar dos brasileiros do segmento de sociedade em que lhes

326
corresponderia se integrar, segundo as autoridades de refúgio e segundo as condições
materiais e simbólicas disponíveis. Por exemplo, José Alberto reiterava que ele dava
“esmola” aos brasileiros da rua como uma forma de lhe agradecer a “la sociedad brasilera
por haberme recebido”, mas concomitantemente tornava-se uma forma de marcar uma
diferença com os moradores de rua, a quem os refugiados, que chegam em uma situação
econômica precária, terminavam por se aproximar, já que os albergues, comedores
comunitários, os bairros e as ruas são os mesmos para uns e para outros.

Outras tentativas de diferenciação foram a criação das já mencionadas categorias de


classificação entre migrantes. Rótulos como “africanos”, “palestinos”, “latinos”,
“colombianos” ou “haitianos” foram, muitas vezes, compartilhados com os funcionários da
rede de atendimento a refugiados e migrantes. Frequentemente a origem nacional, e por
vezes continental, foi utilizada para se referir às pessoas, especialmente quando havia um
grupo, oriundo do mesmo país, solicitando serviços da rede de atendimento. Essa forma de
nomeação se relaciona com o fato de que o atendimento aos migrantes e refugiados seja
baseado na ordem nacional das coisas. Ou seja, o tratamento dispensado aos nacionais de
um determinado país depende muito da relação que o governo brasileiro tiver com o outro
governo ou das decisões e posturas diplomáticas adotadas em função de sua política
exterior. Desse modo, é muito frequente que haja distinções no tipo de vistos outorgados,
financiamentos diferenciados e origens distintas dos recursos para apoiar aos migrantes ou
solicitantes, necessidade de maior ou menor atenção sobre um grupo a depender do
impacto midiático e diplomático de seu tratamento, etc.

Essas diferenças, que parecem ser simplesmente indicadores de origem e categorias


administrativas, costumam se transformar rapidamente em categorias sociais e morais, nos
espaços de gestão de refugiados e migrantes. Alguns dos solicitantes colombianos que
entrevistei sentiram a necessidade de se diferenciar não apenas dos brasileiros com
identidades deterioradas mas também desses outros estrangeiros que, muitas vezes,
estavam em uma situação de maior alteridade e desigualdade. Alteridade que os
solicitantes colombianos mediram não só em relação aos agentes de refúgio ou à sociedade
de acolhida como também com relação a si mesmos. Dessa forma, muitas vezes, esse
movimento os aproximou mais dos administradores do que dos “africanos” ou “haitianos”,
voltando a se juntar discursivamente com esses últimos somente quando enfatizavam sua

327
situação de precariedades compartilhadas ou no momento de reclamar pelos serviços e o
atendimento recebido.

Apesar dessas experiências das pessoas que devem negociar constantemente um lugar
social por meio da identificação, atualização e criação de fronteiras internas da sociedade,
esses limites poucas vezes apareceram explicitamente no discurso dos agentes da tríade.
Ao contrário, como visto, a maioria deles aludiram continuamente à sociedade brasileira
como um todo homogêneo, miscigenado e acolhedor. Aliás, essa sociedade seria oriunda
da migração, razão pela qual teria uma disposição histórica para a recepção e a integração.

Avôs e patriarcas migrantes foram evocados amiúde pelos agentes do refúgio – tanto os da
tríade quanto os da sociedade civil ampliada – para explicar o ânimo respeitoso de “todas
as diferenças” que caracterizariam a nação. Essa conformação, segundo os agentes,
permitiria que os refugiados não fossem discriminados em função da cor da pele, do
gênero, da orientação sexual, da religião ou do pensamento político, como o ilustram
alguns fragmentos a seguir (e outros que foram analisados na primeira parte da tese) em
que inclusive são positivadas experiências que bem poderiam ser lidas como experiências
discriminatórias.

Agente de integração local 1: [...] E aí também porque, como as nossas


comunidades do interior, que são comunidades muito acolhedoras, e aqui por
enquanto o diferente não é motivo de discriminação ou de xenofobia. O diferente
é acolhido como algo a ser... até com curiosidade. Então, as pessoas não estão
sendo discriminadas porque falam espanhol ou porque são colombianas ou seja
lá o que for. Pelo contrário, elas são muito bem acolhidas, encaminhadas; as
crianças na escola são motivo de atenção de tudo mundo, as outras crianças vêm,
querem saber que é que faz, que é que não faz. Então, é muito positivo.

Eu: E no caso das cidades pequenas que vocês estava falando não tem tido
discriminação?

Agente de integração local 1: Não, porque os alemães adoram um garotinho


bem bronzeado, bem bronzeado, bem moreno, pele de índio e tal.

Agente de integração local 2: Mas não, o grupo de afros é pequeno, até porque
a maioria não é afro que vem para cá, chegam alguns, mas não é a maioria.

Agente de integração local 1: O que acontece é que essas famílias são mais
numerosas, eles eram seis ou sete, pessoas com muitos filhos e tal. E com uma
dessas famílias foi feito o fast track, que é quando o Conare faz reunião extra e
toma a decisão em 72 horas ou uma coisa assim. Então, veio para nós uma
informação, um perfil assim: olha, são assim ou assado, nós recebemos, demos a
resposta positiva e aí, em alguns dias, as pessoas chegaram. Só que no perfil não
veio foto, não veio nada. E nós preparamos toda a acolhida para essa família
numa cidade absolutamente alemã, num bairro absolutamente alemão e essa

328
família era afro, né? Enquanto nós recebemos as pessoas no aeroporto, a gente
não sabia que eles eram afros, mas também isso não foi motivo para nada, pelo
contrário, né? Eles meio que acharam: “como que somos só nós que não somos
brancos aqui” E eu disse é. Mas foram bem recebidos, lá na igreja deles
principalmente, porque eles são evangélicos, e lá na igreja eles foram super bem
recebidos. Lá na escola (porque eram três meninas muito bonitas) fizeram o
maior sucesso, tanto que era um desfile de rapazes, de muchachos, querendo
namorar e o pai desesperado: “Que é que agora eu faço?”. Então é assim, eles
são muito bem acolhidos em todo sentido: social, religioso, de trabalho também.
Essa família terminou voltando, foi embora porque deixou um filho lá, um dos
filhos estava desaparecido lá e a tia que ia cuidar do assunto lá apareceu com a
criança, então eles estavam muito... e foram embora. Mas eles não tiveram
problema nenhum, aqui que é uma cidade super alemã. Então, não temos assim
histórico de uma discriminação por raça ou por sexo, ou por colombiano, ou por
negro.

Poucas vezes, só alguns agentes de refúgio reconheceram que poderiam se apresentar


dificuldades no processo da integração, derivadas de possíveis discriminações ou
preconceitos. Contudo, esse reconhecimento não confrontou o relato da sociedade
brasileira como sempre receptiva aos estrangeiros e historicamente acolhedora. Para citar
um exemplo só em que essa contradição apareceu – entre os vários eventos que acompanhe
durante a pesquisa –, gostaria de rememorar uma das jornadas de um ciclo de palestras
organizado por uma universidade em parceria com a prefeitura de São Paulo. Muitos dos
convidados e organizadores foram agentes que trabalham em diferentes setores da
chamada “sociedade civil” (incluindo a universidade) em prol da causa migrante; alguns
deles reputados por serem militantes críticos e ativos em favor dos direitos desses grupos.

Nessa ocasião, todos os convidados evocaram seu próprio passado migrante (ascendentes
europeus em todos os casos) e fizeram um percurso pela história da nação brasileira nos
momentos de recepção de fluxos migratórios importantes. O percurso incluiu japoneses,
alemães, italianos, portugueses, argentinos, uruguaios, angolanos e bolivianos até chegar
aos haitianos, que todos localizaram como a migração mais recente. Também houve, entre
os palestrantes, um acordo sobre a desdenhável criminalização da migração que agravada
pela crise europeia, estaria fazendo com que o velho continente se mostrasse abertamente
racista e xenófobo.

Foi preciso esperar até a intervenção da plateia para começar a escutar outros aspectos –
claramente menos positivos – dessa sociedade à que estavam se referindo os palestrantes.
Isso aconteceu quando uma estudante afro-brasileira criticou a visão positivada da

329
migração e, lembrando o recente assassinato de Zulmira152, interrogou os palestrantes
sobre o caráter racista da sociedade brasileira. Nesse momento, também de comum acordo
e se complementando os uns aos outros, vários aspectos negativos foram elencados. Em
minhas notas de campo, registrei alguns desses aspectos listados que apresento a
continuação sem identificar o expositor de cada um:

Es necesario aprender de los errores europeos y no cerrarse a la migración, hay


diferentes niveles de acogida, sabemos que es un mito que en Brasil no exista
prejuicio, ¿de qué habría que proteger a la nación?, en la experiencia visual ya
comienza la discriminación, la discriminación no tiene que ser ostentosa ella
también pasa por pequeñas cosas como no validar los diplomas de los
extranjeros, no hay ningún país que no sea racista eso es una mistificación.

Essa forma um pouco enlouquecedora de afirmar uma coisa e seu contrário sem que
apareça a necessidade de resolver a contradição estiveram presentes em muitos outros dos
espaços institucionais do refúgio que frequentei. Repentinamente, chegou-se a reconhecer
ou a enunciar a existência de discriminações, preconceitos e atos racistas de um modo
geral ou afetando particularmente aos refugiados. Contudo, essas práticas apareceram
como espectros que não desencaixaram nem desestabilizaram esse discurso que fala de
uma nação idealizada e das políticas de acolhida para refugiados como sendo ações
exemplares. Como um último exemplo, considero ilustrativo comparar dois fragmentos de
uma mesma entrevista com a mesma funcionária, na qual aconteceu esse movimento
contraditório descrito.

Fragmento 1
[...] Pelo Brasil ser um país acolhedor, em relação as suas diversidades, de ter
questões de homossexuais, o país o aceita. Então eles entendem que o Brasil é
um país acolhedor, aceita bem as diferenças e, por isso, pelo geral, eles escolhem
o Brasil [...] O Brasil acolhe bem aos refugiados, aos estrangeiros, aqui não tem
problema de diversidade, de ter racismo, não é? Até tem, mas não é como nos
países de, de... então por isso eles escolhem o Brasil, por ser acolhedor.

Fragmento 2
[...] também alguns alunos que se interessam fazem pesquisas para o juízo. Por
quê? As nossas advogadas também fazem pesquisa, só que é assim, elas têm todo
um trabalho de fazer essas pesquisas, e isso auxilia bastante. De repente, elas até

152
Zulmira de Souza Borges Cardoso é uma estudante angolana que foi assassinada no dia 23 de maio de
2012, na cidade de São Paulo, depois que elas e o grupo de amigos que lhe acompanhava foram agredidos
com insultos racistas. O incidente, em que foram também feridos três dos acompanhantes de Zulmira,
provocou protestos por parte da comunidade angolana, particularmente dos estudantes organizados que
enfatizavam a existência do racismo e da discriminação contra eles. A partir do assassinato de Zulmira,
também se mobilizaram vários setores da sociedade civil brasileira que apoiaram as denúncias realizadas
pelos estudantes angolanos e exigiram um pronunciamento por parte das autoridades locais de São Paulo e do
governo angolano, que devia, segundo eles, cobrar explicações e ações do governo brasileiro.

330
falam para a professora: “Olha estou precisando que você pesquise para mim tal
região do Congo que tá acontecendo tal situação”. E os alunos fazem. Então isso
nos ajuda bastante, envolve a academia, os alunos também abrem um pouco:
“Poxa, refúgio, nossa, é isso o que acontece, poxa, é uma população que precisa
de apoio, nossa é tão complexo assim, pô, tem uma lei, pô, o governo faz isso”.
Quando as pessoas chegam, o Brasil não é um país que acolhe, que têm recebido
muitos refugiados: 4500, não chegam nem a 5000 no Brasil, é pouco. Mas são
pessoas que estão vindo e que a gente tem que acolher. E pelo menos para cada
um da sua família desses alunos que viram só na televisão: “Olha, um
bombardeio aí”, ai então: “Olha você sabia que essas pessoas podem vir para cá,
tem uma instituição que faz esse trabalho”. “Nossa, é? Ah! Então eles não estão
fugindo, não estavam matando?” Não, eles estavam fugindo para não ser mortos.
Então, minimamente, a coisa já começa a abrir um pouquinho, e as pessoas
começam a perder um pouco o preconceito, então esse é algo de nosso trabalho.
[grifos meus]

Se, em algum momento, os agentes do universo institucional do refúgio chegaram a


reconhecer discriminações, preconceitos ou algum tipo de tratamento desfavorável contra
os refugiados, os responsáveis dessas ações sempre foram apontados do lado de fora dessa
rede institucional de atendimento. A apresentação da rede ampla de recepção de refugiados
como um espaço livre de racismo e discriminações baseou-se na ideia da igualdade de
tratamento para todos os refugiados. O atendimento caso a caso, em que as profissionais
buscavam identificar as situações de maior vulnerabilidade para a entrega de benefícios
materiais, também foi descrito como tendentes a melhorar as condições de quem estivesse
em uma situação de maior desigualdade econômica e social.

Outros critérios – tanto técnicos como morais – entraram em jogo nas relações entre
funcionárias e refugiados. O Acnur, como premissa técnica, recomenda entregar apoios
financeiros somente a aqueles sujeitos que tenham chance de serem aceitos como
refugiados. Em muitos casos, essa orientação significou que alguns solicitantes, de quem
as advogadas não pensavam que correspondessem com os critérios para o refúgio, não
receberam apoios financeiros apesar de se encontrar em uma situação de maior dificuldade
econômica que outros solicitantes para quem foram aprovados os apoios. A metodologia
de ação caso a caso também criou descontentamentos nas pessoas administradas quem não
tinham claro qual era o critério da entrega diferenciada de bens ou da celeridade de alguns
processos em detrimento dos outros. Isso não apenas nos escritórios da Cáritas, mas
também em albergues – em especial em A Casa do Migrante – onde a distribuição de vagas
era sempre disputada e motivo de inconformidade por ser o albergue mais apreciado em
segurança, higiene e tratamento dispensado, quando comparado com os albergues da
prefeitura.

331
[En el albergue] Estuvimos dos meses y no sé por qué nos dijeron que nos
fuéramos, cuando hay gente que lleva un año y no tienen hijos, y no tienen
menores de edad. A nosotros nos tocaba irnos. Según el señor Emanuel
[funcionario del albergue] las personas que moran allí tienen tres meses, pero
hay gente que lleva ahí un año y hay gente que no trabaja. Y hay gente que no
merece estar ahí, no lo digo porque yo haya salido, hay gente que no merece
estar ahí. Pero el padre nos ha dado cosas tan bonitas que es darme un techo,
darme comida, alimentación, sentirme bien con mi familia; que yo no soy capaz
ni de reprocharle a xxxxxxx porque nos dijo que teníamos que desocupar.
Alguien me dijo: "A ustedes no los pueden sacar, primero tienen menores de
edad, segundo son una familia, tercero todos están trabajando". Pero prefieren
tener vagos, prefieren tener viciosos. Porque yo sé quien mete droga ahí, quien
mete vicio y quien roba, porque roban también, porque a mí me robaron mis
zapatillas, a mi mujer le robaron otro par de zapatillas y nadie me solucionó
nada. Pero yo no puedo hacer nada porque es más lo que me ha dado el padre
que lo que me han quitado. Y nos sacaron sacados: "Tienen plazo hasta el 15
para que se vayan". Ahí me fui para Cáritas y les dije ¿Qué hago? Necesito que
me manden para otra parte porque somos 5, somos 6. Cáritas me dijo, bueno
Cáritas no sino Amanda [asistente social] me dijo que si nosotros alugavamos
(sic) un lugar que Cáritas nos podía de pronto ayudar con un dinero, nos dijo así
y de ahí ella no ha vuelto a hablar con nosotros. ¿Por qué? Pues porque como
que la reprimieron, la regañaron y no la he vuelto a ver. Una negrita haitiana me
dijo: “Yo llevo 6 meses y Cáritas me da a mi 900 reales cada mes ¿Por qué a ella
le dan cada mes? Otra persona me dijo: A mí me dan 1.000 reales. Entonces eso
me motivó a ir a pedir allá, yo no sabía. Fui a hablar con Marcela [assistente
social] y me dijo: "Vamos a ver, vamos a llevar eso a coordinación a ver si le
aprueban" Y yo le dije: ¿y por qué a la haitiana si le ayudan? (Solicitante de
refúgio)153

Se essa disparidade engendrou ressentimento entre alguns solicitantes, para outros a


moléstia foi paradoxalmente a igualdade com a que se sentiram tratados. Esse tratamento
indiferenciado resultava contrário às suas próprias intenções de distinção, que já foram
referidos.

[…] También lo que pasa es que la Cáritas está acostumbrada a tratar con
africanos y quieren venir a tratarlo a uno igual. Los africanos hablan como
peleando y por eso a ellos los tratan muy duro y ya varias veces ha habido
incidentes de fuerza con ellos. Yo me acuerdo de todas las veces que me tocó ir a
esperar allá y cómo me trataron y me da mucha rabia. Yo siempre fui muy
educada como para que me vinieran a tratar de esa manera. (Entrevista con
refugiada)

Muitos dos solicitantes colombianos se encontravam em meio a uma contradição


desencadeada por sua situação de estrangeiros, pois as condições do êxodo os equipararam
a grupos nacionais, raciais e sociais ao respeito dos quais eles tinham construído noções de
distância e alteridade. Concomitantemente, no mundo institucional encarregado de sua

153
Com contadas exceções, doravante não identificarei as pessoas citadas nem sequer com os nomes fictícios
usados ao longo do texto, com o intuito de não pessoalizar as referências com expressões que possam ser
ofensivas para outros dos sujeitos envolvidos na pesquisa.

332
integração, defende-se e promove-se um discurso de igualdade genérica como um valor
não apenas próprio da nação, mas exigido daqueles que desejam integrar. Não foi raro
então escutar declarações que afirmavam que a vida no Brasil lhes tinha ensinado o caráter
democrático e inter-racial para o estabelecimento de relações, ao mesmo tempo que antigos
e novos preconceitos, classismos e racismos desbordavam a tentativa de correção política
com a que se ecoavam esses discursos.

[…] lo del albergue fue bueno porque aprendí convivencia, a respetar a los
negritos, uno con esa rabia, pero uno tiene que ponerse a que uno es igual que
ellos: emigrante. Seas negro, seas blanco, seas amarillo, todos somos lo mismo:
estamos de caridad. No jodas a los demás, no molestes a los demás, no te metas
con los demás, respeta. A mí a veces me provocaba coger a un negrito, cogerlo
del cuello y le decía ¡respeta!: "Você respeta y yo respeto. Si no me respeta le
digo a Emanuel o le digo al Padre”. Pero ¿qué pasa?: Ahora yo voy y mira la
alegría cuando yo voy: [me dicen] "¿Qué hubo Colombia?" Todos los saludos
para mí. Pensar que una vez los miraba yo de otra manera, ahora los miro como
si fueran mis propios ojos. No importa la nacionalidad, somos emigrantes, ellos
tienen problemas, yo también tengo problemas. Entonces así como yo los miraba
a ellos, como ellos me miraban, yo no quiero que me miren en Cáritas. Porque en
Cáritas lo miran a uno todos por igual, ovejas, rebaños, háganse para allá, lo
tratan feo a uno. ¿Por qué no sale una psicóloga a atenderme, por qué no sale una
persona que me diga cuál es su problema, durmió bien, comió bien? Algo bonito,
pero no. Allá es: "no, no, no, no, no, 3° feira, 4° feira, 5° feira, no, no, no, no".
No es Cáritas si no la “oficina no”. Eso es degradante, no quiere decir que nos
tengan pesar, que nos tengan lástima, pero si les pagan para que atiendan
enfermos pues que atiendan enfermos. Si les dan asco los enfermos entonces no
trabajen con enfermos.

Em diferentes momentos, e segundo os elementos que estivessem em jogo, muitos dos


solicitantes, refugiados e migrantes com quem falei posicionaram-se em espaços diferentes
dentro desse mundo institucional e administrativo do refúgio. Esse posicionamento
transcendeu os limites dessa institucionalidade circunscrita e interagiu com outros grupos e
atores presentes nos lugares – geográficos e sociais – aonde chegaram. Enquanto em
alguns casos, a coincidência de interesses lhes fez se sentir mais próximos dos migrantes
ou refugiados; em outros momentos, a proximidade se estabeleceu com os agentes do
refúgio.

Como visto na segunda parte da tese, conforme Vianna (2002, p. 42), muitas das soluções
administrativas tornam-se efetivas graças à existência de interesses mútuos entre
administradores e administrados. Em diferentes níveis de autoridade,
refugiados/solicitantes e agentes de refúgio agiram de maneira conjunta para cumprir com
propósitos, objetivos e ideais que lhe servem de base moral ao exercício da governança do

333
refúgio. O vínculo de algumas pessoas com os agentes da administração de refugiados
transcendeu a agência sobre seu próprio processo de refúgio e se estendeu para o de outros.
Algumas pessoas ao serem avaliadas como casos exitosos de integração viraram referentes
locais para os novos reassentados ou refugiados. Para elas, foram colocadas tarefas
(sempre controladas e submetidas à autoridade administrativa) de agentes locais de
integração. Assim, eram elas quem deviam acompanhar as pessoas a realizar processos de
documentação, orientá-las nos lugares de acolhida, auxiliá-las como tradutores, etc.

Esse vínculo chegou a ser enunciado, algumas vezes, pelos agentes de refúgio como uma
relação de amizade, sugerindo que as pessoas tinham avançado um nível, passando de
administradas ao nível de sócias e coadjuvantes nesse processo de integração dos outros.
Essa ascensão no status funcionou, no meu critério, como uma espécie de reconhecimento
da condição coetânea de determinados sujeitos, conforme Fabian (1983, p. 17). Se, além
disso, assumimos que o processo de integração é, conforme Seyferth (2000, p. 46-47), um
conjunto de práticas nacionalizantes, podemos observar que esses sujeitos – localizados no
mesmo tempo e espaço dos administradores – estavam, enfim, concebidos como sujeitos
capazes de ajudar no processo civilizador dos outros, em condição de quase nacionais, com
a capacidade que outorga a maioridade e o pertencimento a um tempo civilizado. Esses
outros, pelo contrário, chegariam e estariam em uma distância temporal, cultural – e, às
vezes, também geográfica – que requereria ainda ser muito intervinda.

Várias das características de estadia de Lucas em A Casa do Migrante podem ser


eloquentes a respeito dessa aliança civilizadora entre administradores e administrados.
Lucas chegou a São Paulo em um contexto de migração forçada, aliciado por falsos
empregadores de uma suposta agência de publicidade. Ele foi recebido no albergue
enquanto conseguia solucionar sua situação migratória e terminar os processos
administrativos que seu caso tinha gerado nos escritórios da Polícia Federal. Lucas chegou
em datas próximas da chegada de outros colombianos com quem eu também conversei.
Porém, quando eu fiz contato com o pessoal da instituição, Lucas já ocupava um espaço
bem diferenciado a respeito do lugar ocupado pelos outros conterrâneos. Embora
continuasse dormindo no quarto compartilhado que lhe adjudicaram ao chegar, gozava de
alguns privilégios que os outros não tinham. Podia se banhar de manhã e não apenas de
tarde, comia com os funcionários e não com os outros hóspedes, não tinha de abandonar a

334
casa às 7h da manhã, podendo permanecer o dia todo no albergue. Além disso, tinha acesso
a internet e telefone no escritório da administração graças a que foi informalmente
contratado para assessorar a administradora na renovação da imagem institucional do
lugar.

A profissão e os conhecimentos de Lucas em desenho e informática foram parte da


explicação que deram os agentes para esse tratamento diferenciado. Contudo, nenhum dos
outros hóspedes colombianos que entrevistei foi empregado nessas condições na instituição
ou beneficiado pelos serviços profissionais que pudesse oferecer. A explicação de Lucas,
por sua vez, incluiu outros elementos que ilustram melhor a complexidade de relações e
interpretações que estavam em jogo nesse tratamento que o diferenciava dos outros
migrantes e o aproximava de alguns dos funcionários:

Mariana [administradora da casa] se dio cuenta quien era yo. Ella me ayudó
mucho desde el comienzo. Yo siempre fui súper bien, tuve de todo y no me faltó
nada. Yo estudié comunicación social en la xxxxxx [universidad privada en
Colombia] y tú sabes que allá sólo hay gente bonita. Todos somos súper bonitos,
súper plays y ahora tengo que vivir en un albergue con este tipo de personas.
Pero yo me lo tomo como un aprendizaje. Mira que cuando yo llegué vuelto
mierda, acá de una me acogieron y Mariana me mandó para psicóloga y todo. Y
acá, yo he podido ver cómo son las cosas, las historias de las personas, yo los
escucho llorar de noche, entonces yo también he aprendido estando con ellos.

Na experiência de Lucas no albergue, que ele assumiu como um aprendizado, há uma


expressão de surpresa pelo fato precisamente de ter aprendido alguma coisa, pois, segundo
ele, “a essas pessoas é preciso lhes ensinar tudo”. Ele não esperava que pessoas
desprovidas dos que ele considera “os códigos básicos da vida em sociedade” pudessem
lhe fornecer conhecimentos e reflexões para sua vida. Em uma ocasião, me contou
surpreso que “um dos africanos não sabia o que era um desodorante”. Segundo seu relato,
quando desesperado pelo odor do seu companheiro de quarto lhe perguntou por que não
usava desodorante, descobriu que o homem interpelado não conhecia o produto. Lucas
ficou muito contente de ter podido lhe ensinar “uma coisa tão básica” e de ter lhe
presenteado com seu próprio desodorante. As conversas com Lucas foram especialmente
valiosas para minha pesquisa de campo, já que ele me contava sobre alguns dos diálogos
que tinha com os funcionários da casa, particularmente com a administradora, mas o fazia
com outros critérios de censura diferentes daqueles dos próprios funcionários. Entretanto,
em várias ocasiões, ele sentiu a necessidade de me explicar que nem ele, nem os

335
empregados do albergue eram racistas e que não era por isso que determinados juízos eram
emitidos sobre os hóspedes da instituição.

Muitas vezes, me disse, por exemplo: “Yo no soy racista para nada, así sean negros,
blancos, amarillos, rojos, etc. Pero todos sabemos que esos negros tienen sus mañas”. Em
uma ocasião, se referia notadamente ao debate que se gerou no albergue por conta da
chegada de uma família com mulheres adolescentes. Ele, como alguns outros dos
refugiados colombianos, consideravam que a sexualidade dos “negros” era uma ameaça,
achando-a potencialmente descontrolada e, por isso, perigosa. Contudo, Lucas, depois de
lançar a crítica, me explicou que parte do seu aprendizado sobre a diferença, graças a sua
relação com os funcionários da casa, consistia em que agora ele sabia que esse
comportamento não era mal-intencionado: “si no que es la cultura de ellos y también
porque como la religión de ellos los reprime tanto entonces cuando ellos llegan a Brasil
son como niños o adolescentes explorando su sexualidad. Porque llegaron a un país en
que el sexo se vende como empanadas”. Esclarecimentos esses bem-intencionados que
amiúde escutei dos agentes de refúgio e que Lucas encontrou pertinentes e adequados
como explicação. Essa infantilização dos homens “negros” somada à enunciação da uma
diferencia cultural radical me parece constituir outras formas de negar a simultaneidade
dos sujeitos, conforme Fabian (1983), neste caso, não apenas em termos civilizatórios, mas
também em estádios de desenvolvimento da vida pessoal.

A outra crítica que Lucas me disse compartilhar com os administradores tinha a ver com
aquilo que ele qualificava de “pereza y suciedad de las personas”, que segundo ele
“quieren todo listo, no lavan ni un plato y quieren que todo se los den”. Esse juízo sobre o
comportamento remete a críticas já mencionadas sobre a predisposição à dependência, à
falta de desejo de se integrar e à preferência por viver assistidos. Aspectos que, como visto,
os agentes da tríade consideram elementos deformadores das pessoas que terminam
atrapalhando o processo de integração.

A última critica, compartilhada por Lucas e por vários agentes dessa rede ampla de
atendimento, focava na dinâmica que as pessoas tinham para o uso do dinheiro. Um dos
sacerdotes em uma paróquia de outra cidade me disse, um dia, que ele havia decidido
deixar de ajudar uma família de refugiados quando percebeu que haviam gastado o

336
dinheiro em um equipo de som. Esse mesmo juízo levou a Lucas a considerações
semelhantes: ele achava absurdo que, na situação em que viviam os hóspedes da casa, eles
investissem dinheiro em computadores, telefones celulares, sapatos caros, vontades
alimentícias ou, ainda pior “esas negras que se gastan 150 reales para que las peinen”.

As explicações que ofereceu Lucas, assim como suas opiniões, foram diretas, em grande
parte, porque foram expressas em contextos descontraídos de conversas e entrevistas
informais. Por isso, não pretendo dizer que essas representem nem seu ponto de vista mais
elaborado sobre as relações sociais e raciais em um contexto migratório, nem que elas
possam ser assumidas como a exposição do pensamento velado dos agentes. Se estou
evocando-as no texto, é porque considero que noções desse tipo circulam, são utilizadas e
consideradas como explicações válidas entre muitas das pessoas – administradoras ou
administradas – no universo do refúgio e nos arredores com os quais esse se comunica, nas
cidades onde realizei a pesquisa.

Como um último exemplo dessas relações, é também interessante que Beatriz e Rafael, um
casal que me foi apresentado como um caso exitoso de reassentamento, contaram a história
de outra família que decidiu regressar à Colômbia. Nas primeiras explicações que me
ofereceram sobre as razões do retorno, eles apontaram algumas falhas do programa e da
ONG que o administrava. Segundo eles, as funcionárias do programa tinham deixado essa
família muito sozinha em uma cidade com moradores muito fechados e sem possibilidades
reais de emprego. Porém, quando a história da família continuou sendo apresentada,
Beatriz concluiu que, em grande parte, era culpa das pessoas reassentadas. A afirmação
estava baseada no que ela considerava uma falta de iniciativa, preguiça e, de maneira geral,
um comportamento que ela resumiu na frase: “es que ellos no se ayudan, complementando
ya la tienen difícil por ser negros y además no se arreglan para mejorar la apariencia y se
la pasan quejándose”. No final da história, apesar das enunciadas falhas do programa, a
explicação da falta de integração e do fracasso desse reassentamento familiar recaiu nos
sujeitos; novamente, de maneira coincidente com as explicações que oferecem as
autoridades brasileiras do refúgio e os agentes encarregados de administrar os refugiados.

Gostaria de salientar, dessa longa descrição de relações, que a integração é sempre


apresentada como um processo positivo. Como tal, parece que somente os aspectos

337
louváveis de uma sociedade e de seus representantes entraram no jogo nesses processos de
nacionalização que buscam transformar estrangeiros em cidadãos. Pelo contrário,
considero que os casos e as histórias que foram apresentados como “casos exitosos” de
integração mostram que esse processo também compreende aspectos negativos, tanto das
sociedades de acolhida e das de procedência quanto dos segmentos sociais aos quais se
pretende acessar e daqueles dos que se quer sair. Alguns dos aprendizados que as pessoas
realizam em seus processos vitais, embora sejam socialmente condenáveis, podem lhes
resultar úteis nos processos de integração que, muitas vezes, parece mais uma luta que uma
entrada acolhedora e restituidora. Uma visão romantizada e sempre positivada da
integração pode contribuir a reforçar as distâncias entre as imagens idealizadas produzidas
nos processos de formação de Estado e as complexas e difíceis condições da maioria das
pessoas cujas vidas têm sido marcadas pelo êxodo.

9.3. O tempo da descendência, o tempo da integração

Retornando de maneira mais direta ao assunto dos ritmos e dos tempos, gostaria de focar
novamente no programa de Reassentamento Solidário, para refletir sobre a relação do
tempo com os outros dois elementos da integração que foram apontados constantemente
pelos agentes do refúgio: língua e escola. A diferença do trabalho cuja importância estava
sempre referida aos adultos, à língua e, em maior medida, à escola estiveram mais
relacionados com o processo de integração das crianças.

O assunto da competência linguística apareceu de diferentes maneiras, segundo os


contextos nos quais eu perguntei por ele ou dos outros elementos com os quais estivesse
relacionado em um momento específico. Em muitas ocasiões, a proximidade do espanhol
com o português foi utilizada como um elemento facilitador da comunicação e, portanto,
da integração nas comunidades locais. Outras vezes, ao contrário, as dificuldades das
pessoas para concluir exitosamente trâmites e processos foram atribuídas à dificuldade que
esses sujeitos teriam de compreender adequadamente as instruções dadas em português.
Apesar dessa oscilação constante, a ideia recorrente é que, se for avaliada a experiência de
outros grupos nacionais que falam “línguas muito diferentes do português”, os
colombianos teriam uma imensa vantagem comparativa.

338
Por sua vez, as famílias reassentadas, notadamente os adultos desses grupos familiares ou
as pessoas que chegaram sozinhas, falaram da diferencia idiomática como uma barreira
difícil de superar nos primeiros meses de vida no Brasil. No caso das famílias, me foram
geralmente narradas diferenças na velocidade e a capacidade de aprendizado entre seus
membros. No entanto, em todos os casos escutei reclamações sobre a insuficiência de
sessões, intensidade e duração das aulas de português oferecidas pelo programa. As
pessoas que estavam interessadas em concluir seus estudos universitários ou em arrumar
empregos melhor remunerados tiveram de pagar aulas extras para conseguir um
aperfeiçoamento da língua e superar o nível básico de interação cotidiana. Também uma
sorte de prestígio associado a um bom desempenho linguístico esteve presente. Muitas
pessoas se empenharam em me contar sobre seus esforços para falar português
adequadamente e várias me perguntaram minha opinião sobre seu desempenho linguístico.
Houve alguns poucos casos, todos em pessoas adultas, em que o aprendizado da língua foi
muito difícil e um motivo permanente de angústia.

Para os agentes do refúgio, o nível de português básico que aprendem os refugiados nos
cursos oferecidos é suficiente para se desenvolver em seus empregos – também básicos – e
esperam que, com o passar do tempo, o aprendizado das crianças – que é notoriamente
mais rápido e de “melhor qualidade” – vá empurrando o nível idiomático dos adultos. Ou
seja, o aprendizado linguístico das crianças marcaria, segundo essa lógica, boa parte do
aspecto linguístico da integração da família como um todo. Contudo, essa expectativa de
que as crianças se tornem multiplicadoras de integração não foi enunciada somente a
respeito do português. A escolarização, em geral, também foi apresentada como uma
importante estratégia de integração. Os agentes explicaram que é uma norma brasileira que
as crianças estudem e que, graças à interação com outras crianças, os menores refugiados
iriam se integrando muito mais rápido à sociedade. Essa visão geracional do processo de
refúgio permite encará-lo como um processo que se estende no tempo, em um longo prazo
para conseguir sua completitude. Nesse sentido, as unidades familiares da gestão inicial,
vistas como núcleos coesos, aparecem desde esta perspectiva como passíveis de serem
fracionadas.

Conforme de Swaan (1992), a educação elementar supõe uma iniciação nos “códigos de
comunicação nacional”. Isto é, supõe uma formação em “la lengua estándar, la

339
alfabetización, la aritmética, la historia del país y la geografía nacional” (DE SWAAN,
199, p. 18). Esses aspectos da escolarização e seu peso na construção de ideais de nação
também foram apontados em alguns dos trabalhos de Seyferth (2000, p. 47, 1997, p. 111),
quem, apoiada nos postulados de Hobsbawm sobre os nacionalismos, identificou a
importância atribuída à educação na configuração de uma consciência nacional nos
processos de assimilação durante as campanhas de nacionalização empreendidas no Estado
Novo.

Língua e escola, como aspectos fundamentais da integração e como elementos


especialmente direcionados às crianças, oferecem uma leitura geracional para a integração,
já que a capacidade real desse processo não estaria nas mãos dos adultos, mas de seus
filhos. A preferência por núcleos familiares com filhos pequenos, em idade escolar,
alimenta esse formato de integração que está necessariamente irrigado pela ideia do tempo.
O tempo do crescimento, da formação e da descendência dessas crianças reassentadas é
simultaneamente o tempo da integração completa.

Uma funcionária do programa de reassentamento afirmou em uma conversa que: “los


colombianos con el tiempo se vuelven brasileros, aunque sigan comiendo arepa”. No
entanto, havia sempre algo de dúvida sobre suas verdadeiras “lealdades políticas sobre o
país adotivo” – utilizando a fórmula de Seyferth (2000, p. 47), e amiúde foi expressa a
possibilidade de que as pessoas regressassem a seu lugar de origem ou não se sentiram tão
integrados como os seus filhos. Diferentemente, dessas crianças se presume que vão se
tornando cada vez mais brasileiros e perdendo paulatinamente sua “essência” colombiana.
A mesma funcionária supracitada me disse em outro momento:

[...] Essa mulher, porque agora já é toda uma mulher, chegou de 14 anos e agora
está com 20 anos. Bem-sucedida, dona do marido dela, empregada,
brasileiríssima. Fala muito bem, ela faz speaker no aeroporto onde trabalha, Ela!
Em português! É lindo! É lindo!

A beleza que a funcionária encontrou nessa transformação que levou uma criança
reassentada a se tornar uma “mulher brasileiríssima”, segundo me disse, obedecia ao fato
de ela ter feito parte dessa transformação. Como agente de integração lhe parecia que todos
os esforços realizados tinham valido a pena e as histórias dessas integrações eram uma
amostra de que o programa de reassentamento funcionava. Agregando, ao finalizar nossa

340
conversa, que as crianças que já viraram pais, “esses então, já não voltam ou só voltam
durante as férias”. Essas apreciações, como as de outros agentes, salientam que, só com o
tempo, é possível saber com certeza se os esforços integradores foram realmente bem-
sucedidos.

A noção de integração, como processo e como objetivo do programa de reassentamento,


está firmemente baseada na ideia de que há uma “essência” da “brasilidade” que vá se
adquirindo aos poucos. Aliás, a absorção dessa essência seria mais efetiva na infância,
assumida como um dos momentos mais maleáveis dos sujeitos que poderiam facilmente se
tornar na matéria-prima de futuros brasileiros. Igualmente, supõe-se que o tempo, como
elemento crucial do processo de integração, faria que essa essência se afiançasse e se
expandisse para os outros membros da família. Desse modo, embora os pais não se sintam
completamente parte da nova comunidade que os acolhe, os filhos mais brasileiros que
colombianos e os netos nascidos no Brasil, terminariam por integrá-los ao território e à
nação.

À habitual fórmula de sangue/solo, o processo de reassentamento parece estar agregando a


relação terra/tempo. Ou seja, sedentarizar-se, aceitando os pressupostos dessa fixação, e
permanecer na terra até que o processo da integração se complete – quer dizer, até chegar o
tempo da descendência por e para o território brasileiro – seriam os requisitos para poder
reclamar o pertencimento total à nação. Os reassentados que ainda não sabem qual será seu
lugar encontram-se ainda ativos nesse jogo do provisório e do permanente que atua sobre a
possibilidade da terra e do pertencimento.

9.4. Uma morte lenta e algumas formas de subverter a mensagem da salvação


Às vezes o exílio é melhor do que ficar para trás ou não sair, mas somente às
vezes. (Eward Said)

Durante uma de minhas primeiras temporadas da pesquisa de campo no Rio Grande do


Sul, algumas pessoas com as quais falei chamaram minha atenção sobre o acontecido com
uma família colombiana que, pouco tempo antes, tinha regressado ao seu país. As
diferentes reconstruções da história que escutei ofereceram informações e detalhes um
pouco diferentes entre si, dependendo da proximidade que os narradores tiveram com essa
família e da forma direta ou indireta em que se relacionaram com essa história. Contudo, as

341
versões coincidiram em que o casal e seus filhos decidiram regressar à Colômbia apesar de
considerar que lá ainda poderiam correr risco de morte. Porém, nem todas as pessoas que
conheceram a história me contaram sobre elas, alguns agentes de refúgio não a
mencionaram em nossos encontros, apesar de minhas perguntas sobre os casos de
reassentados que abdicavam do programa. Os silêncios e as omissões já têm sido tratados
ao longo da tese, interessa-me aqui focar nesse novo movimento que empreenderam os
membros da família citada nessa história. Movimento que a maioria das pessoas, que me
falaram a respeito, se referiram com o termo retorno.

O retorno da família, segundo as narrações, foi um processo difícil. Parte das dificuldades
consistiu precisamente em que eles desejavam um retorno (ou repatriação voluntária), e
não um simples regresso. Esse movimento que as pessoas estavam tentando fazer apelava à
gestão do Acnur na medida em que foi essa agência supranacional a que promoveu e foi
intermediária de seu reassentamento no Brasil. Esse retorno ou repatriação é um
movimento definido como voluntário que o Acnur descreve e classifica com suas ONGs
parceiras, dentro dos parâmetros estabelecidos para administrar os movimentos e as
pessoas classificados e produzidos dentro do universo institucional do refúgio.

El propósito de la protección internacional no es, sin embargo, que los


refugiados sigan siendo refugiados por siempre, sino garantizar que se restaure la
pertenencia del individuo a la comunidad y se restablezca la protección nacional,
ya sea en su patria o mediante la integración en otros lugares. La repatriación
voluntaria suele considerarse como la solución más deseable a largo plazo por
los propios refugiados y la comunidad internacional. La acción humanitaria del
ACNUR en la búsqueda de soluciones duraderas a los problemas de los
refugiados está orientada, ante todo, a permitir que un refugiado ejerza su
derecho a retornar con seguridad y dignidad. (ACNUR, 1996, p. 4)

No caso da família citada, o retorno solicitado não foi aceito. Sem a aprovação de sua
solicitação, também não contaram com assessoria, acompanhamento e financiamento dessa
agência para regressar à Colômbia, como era seu desejo. Apesar de os documentos do
Acnur falarem em retorno ou (repatriação voluntária) como a solução mais desejada para
“o problema dos refugiados”, neste caso, a negativa foi categórica. O argumento, oferecido
às pessoas que queriam voltar, para justificar essa negativa foi que a situação de perigo não
tinha cessado e que o Acnur não promoveria transferências de pessoas que colocaram em
risco a segurança delas. Segundo um conterrâneo que lhes ajudou a sobreviver durante os
últimos meses que a família passou no Brasil, a decisão negativa se manteve inclusive

342
quando as pessoas solicitaram ser enviadas a uma cidade diferente de seu lugar de origem,
onde elas consideravam que estariam a salvo. O fato de que os agentes do Acnur se
outorguem a autoridade de avaliar e decidir a conveniências ou não de um possível retorno,
lembra a proposta de Souza Lima (1995; 2012) sobre o poder tutelar, não apenas pela
fixação e pela proibição dos movimentos não consentidos pela agência, mas pela
consequente incapacitação que os constrói como sujeitos que não poderiam ponderar por si
mesmos o risco e tomar a decisão de assumi-lo.

A família, ainda assim, manteve sua decisão de regressar e, para poder fazê-lo, teve de
renunciar à proteção do Acnur e à assistência da ONG administradora do programa de
Reassentamento Solidário. Estando em uma situação de muita precariedade, com bastante
preocupação sobre seu futuro e com problemas de saúde, apelaram à solidariedade de
alguns conhecidos, notadamente colombianos organizados em grupos sociais e políticos.
Também acudiram a uma paróquia da Igreja Scalabriniana e ao cônsul honorário da
Colômbia em Porto Alegre. Segundo os relatos do cônsul, de um dos colombianos
vinculado a um grupo político e de um sacerdote da igreja citada, foi preciso organizar uma
espécie de campanha de arrecadação de fundos para pagar as passagens e alguns dos gastos
da viagem da família. Essa medida, porém, teve um caráter extraordinário e foi produto da
decisão autônoma de seus organizadores, pois nenhum dos participantes – incluindo o
cônsul – atuou de acordo com um protocolo de assistência a refugiados ou algo similar. De
fato, o cônsul disse ter agido mais por dever ético do que profissional, já que não existem
orientações do governo nacional da Colômbia a respeito de casos como o descrito.

Vários elementos dessa história foram tomando força à medida que eu avançava na minha
pesquisa de campo. Quando fui, aos poucos, conhecendo os detalhes de funcionamento da
administração dos refugiados e de seus movimentos geográficos, a história descrita ia
reaparecendo obstinadamente em minha memória. Particularmente, quando me encontrava
com outras situações similares de refugiados e, sobretudo, de reassentados, querendo sair
do país, ou obter um passaporte de viagem, ou regressar de férias ou de visita à Colômbia
ou voltar definitivamente para morar lá. As proibições, os receios, as permissões
provisórias e parciais, as autorizações para uns e negativas para outros – sempre explicadas
em função de sua própria integridade o segurança – foram se mostrando claramente como
uma forma de controle sobre os movimentos das pessoas.

343
Nesse sentido, o controle dos movimentos também me remeteu à definição foucaultiana de
poder, já que se trata da posta em andamento de determinado tipo de relações que
condicionam e limitam as ações dos outros (FOUCAULT, 1998, p. 15). Não se trata
somente de repressão e dominação por meio da força, de fato, apela-se à proteção e ao
cuidado como motor da relação que permite a fixação das pessoas produzidas como
refugiadas. Para que essa relação seja possível, como visto, necessita-se da comunidade de
interesses entre os organismos reguladores dessas vidas e desses trânsitos e as pessoas que
os realizam. Novamente, estamos diante de formatos de governança que incluem a
participação ativa dos sujeitos e não diante de movimentos de poder meramente repressivo.

Outro exemplo dessa história que foi se decantando com o tempo, foi a mistura de registros
e categorias que ela expressa. As pessoas que conheceram os membros dessa família
coincidiram ao afirmar que sobre eles não havia dúvida a respeito de sua “verdadeira
necessidade de proteção”. Ou seja, enquanto sobre outras famílias de reassentados se dizia
que eram, na realidade, migrantes econômicos que tinham conseguido driblar os filtros de
seleção, sobre essa família havia consenso em que se tratava de um grupo perseguido pela
guerrilha que havia tido, além disso, um de seus membros sequestrado. Porém, as razões
pelas quais esse grupo de pessoas tentou ativar o retorno eram de caráter econômico. Desse
modo, enquanto um movimento (aquele que os trouxe ao Brasil) foi justificado o tempo
todo em função de sua condição de refugiados – isto é, de não serem, migrantes
econômicos – seu retorno, solicitado em função da precariedade econômica na que se
encontravam, foi negado pelas mesmas razões. O Acnur somente autorizaria movimentos
de proteção baseados em um “fundado temor de perseguição” ou que sejam realizados para
um reorno seguro. Assim, as causas econômicas não estariam entre as origens legítimas do
medo (GOOD, 2006, p. 98) e, nesse caso, também não configuraram um sofrimento digno
de retorno.

Essa história transformou-se em um exemplo das formas de controle e tentativas de fixação


das pessoas, não como uma consequência lógica dos movimentos esperáveis dos
refugiados, mas como o resultado de esforços constantes para governar e administrar essas
populações em êxodo. Não é em vão que o maior controle é exercido sobre as pessoas
reassentadas, cujo programa reitor é apresentado como exitoso e tem se consolidado como

344
a bandeira do Brasil para expor suas leis e práticas de refúgio no plano internacional. Não é
de se estranhar então que a informação sobre os retornados me fosse negada em uma das
ONGs administradoras – afirmando que esses casos não existiam – e apresentada, de
maneira parcial na outra, afirmando a insignificância desses casos e mostrando-os como
sempre motivados por desejos e contingências dos reassentados, e nunca por falhas do
programa.

Já sobre os refugiados espontâneos, a explicação sobre seu regresso e sua renuncia à


“proteção do Acnur” foi explicada como uma amostra de que as pessoas podiam regressar
a seu país à vontade, ativando, mais uma vez, a suspeita sobre seu fundado temor de
perseguição. Também me foi explicada, de uma maneira positivada, afirmando que nem as
ONGs administradoras, nem o Acnur podem obrigar as pessoas a permanecerem contra sua
vontade, que a decisão do regresso dos refugiados espontâneos é autônoma e que a única
coisa que os agentes podem fazer é lhes aconselhar quando, segundo suas “pesquisas
objetivas”, o retorno a uma região que considerem perigosa. Ainda assim, o retorno
voluntário, quando não conta com a aprovação do Acnur, exige a renúncia à proteção dessa
agência, mediante a firma de documentos com os que a eximiria de responsabilidades. Isso
significa também que as pessoas não contaram com apoio financeiro, nem assistência
nenhuma para a viagem (ou as viagens) de regresso e que se perderam chances de voltar a
ser aceito como refugiado no futuro.

Um dos conterrâneos que narrou parte da história da família que decidiu voltar, comparou
esses documentos que livram de responsabilidades ao Acnur, com documentos similares
que devem ser firmados em hospitais quando o paciente recusa um tratamento sugerido
pelos profissionais médicos ou quando, contrário às indicações dos especialistas, solicita a
saída do centro hospitalar. A comparação proposta me pareceu muito apropriada, já que,
em ambos os casos, trata-se de um desafio à prática profissional e ao controle dos corpos
que ela implica. Em ambos os casos, os profissionais decidem não assistir, nem ajudar na
decisão tomada pelo sujeito, mas solicitam ser eximidos das consequências dessa decisão.
Em palavras de meu interlocutor: “Te devuelven la vida, te devuelven la responsabilidad
sobre tu vida y te dicen: ‘Vea a ver usted qué hace con ella’”.

345
Se o meu interlocutor se expressou dessa maneira e se tinha refletido a respeito, não foi
apenas por ter estado próximo e ter sido solidário com a família que quis regressar. Ele
mesmo, em sua primeira experiência como refugiado, tinha decidido voltar para Colômbia
apesar de saber que lá ele ainda corria risco de ser assassinado. Essa primeira experiência
de refúgio foi insuportável para ele, sentia que tinha deixado tudo pendente, que não tinha
conseguido se despedir e que tinha aberto uma fenda imensa entre ele e aquilo que ele
considerava sua própria vida. Em outras palavras, sentia que sua vida tinha ficado na
Colômbia e que necessitava de seu regresso para continuá-la. Necessitava reativar a vida e,
para isso, teve de contradizer as agências que tinham intermediado na sua saída como
refugiado do país e que tinham lhe “premiado con el país con el que sueña cualquier líder
de derechos humanos” enviando-o para Europa. Essa rejeição da dádiva do refúgio,
aumentada pelo oferecimento de um país com prestígio, lhe significou a solidão do
regresso e a responsabilidade sobre seu próprio futuro, sem ajudas para diminuir os perigos
que ainda ameaçavam sua vida.

[…] Y yo reflexionando esas cosas, yo decidí volverme. Cuando yo llegué a


Colombia, nadie me quería dar trabajo. Cuando yo regresé fue diferente de
cuando yo me fui, cuando yo me fui, hasta la silla del avión me acompañaron los
de Brigadas Internacionales de Paz y ahí estuvieron hasta que el avión saliera.
Pero cuando yo regresé, yo regresé solo y nadie me quería ver, porque yo decidí
no quedarme. O sea, yo contradije todos los programas de protección que hay
[…]

A decisão de voltar, de regressar, de ir um tempo para ver como estão as coisas, foi
frequentemente evocada por outras pessoas com as quais falei. Muitas razões diferentes me
foram expostas como motor desses movimentos ou desejos. Algumas coincidiam com as
razões expressadas por Francisco, ou seja, com a necessidade de ressarcir a ausência que
implicava sua presença em outro país, conforme Sayad (1991, p. 111) ou de conjurar a
imensa tristeza de ter sido arrancado do lugar e as relações que configuravam a vida,
conforme Said (2001, p. 51-54). Contudo, também houve muitas outras razões expressas
para realizar esses movimentos provisórios ou definitivos até a terra natal: vontades
alimentícias, desejo de participar em comemorações familiares (em uma sorte de nostalgia
calendarizada), aspiração de passar as férias em casa, necessidade existencial de que os
filhos conheçam a família que ficou, doença ou morte de parentes, ansiedade de saber se o
perigo tinha desaparecido, necessidade de confrontar as lembranças, etc.

346
Quando as pessoas refugiadas que viajaram quiseram concretizar suas viagens temporárias,
todas essas motivações tiveram de ser convertidas em uma carta com uma justificativa
apropriada, pedindo a autorização da viagem e, em alguns casos, a emissão do passaporte
do Acnur para os refugiados. Tudo isso para poder fazer o percurso sem o perigo de perder
a condição de refugiados e seus documentos no Brasil. Algumas pessoas, porém, haviam
realizado esses movimentos de ida e volta sem ativar as permissões exigidas e assumindo a
carga emocional do medo de serem descobertos e o perigo de perderem o status de
refugiados com suas possíveis consequências na situação de regularidade migratória.

A decisão do retoro apareceu também, de maneira reiterada nas declarações das pessoas,
não como um desejo de vida, mas como uma opção de morte, que, em qualquer caso,
parecia preferível a o refúgio. Ou melhor, a o que seu êxodo administrado significou para
eles, a essa configuração especial de precariedade, angústia e humilhações que, para
muitos, transformou-se na experiência e na realidade chamada refúgio:

[…] Yo no sé para qué Colombia tiene esos tratados con países que tratan mal a
su gente. Si yo hubiera sabido lo que me esperaba, yo hubiera preferido la muere
ahí, porque es más cruel que lo maten a uno a poquiticos con humillaciones y no
que le den unos tiros allá […]. (Edna)

Edna fez essa afirmação depois de me contar, com detalhes, as dificuldades e os maus
tratos que tiveram de suportar durante a viagem. A sensação de desassossego se fez
especialmente dura em São Paulo, pois o resto do tempo, durante a viagem, ela e sua
família acreditavam que as precariedades obedeciam a que eles estavam atravessando
lugares periféricos da geografia brasileira, locais pequenos e pobres, segundo sua
explicação. Ao chegar a São Paulo, onde eles acreditavam que as coisas seriam diferentes,
deram-se conta que as dificuldades experimentadas no caminho não se esvaeceriam, mas
virariam constantes, seriam a marca de sua situação de refugiados. O descobrimento de que
a carência e a humilhação seriam a norma e o tratamento “desumano” – segundo suas
palavras – a fórmula do atendimento a devastou animicamente. A irmã de Edna me contou
que, durante as primeiras semanas em São Paulo, Edna chorava todos os dias, inclusive
quando ia caminhando pela rua. Ver a sua irmã grávida, com fome, chorando em uma rua
de uma cidade desconhecida e hostil, também a arrasava e então caminhava e chorava
junto com ela.

347
Quando Edna e sua família falaram que teria sido preferível ser assassinados na Colômbia
a condenados a uma morte lenta no Brasil, já haviam passado 11 meses da sua chegada a
São Paulo. Considero que essa frase expressa, claro, o que é lido em suas palavras, ou seja,
o perigo da morte e a morte mesma são, às vezes, preferíveis às características da vida
como refugiados e a determinados sofrimentos a ela associados. Mas acredito que a frase,
além de aludir a essa sensação forte de desamparo e sofrimento pior que a morte, também
encerra um potencial desafiador das premissas sobre as quais são construídos e difundidos
os programas de refúgio. Dizer que tivesse preferido a morte ao refúgio é uma rejeição da
mensagem de salvação, da ideia de restauração e da suposta bondade que, segundo os
agentes do refúgio, são a base desse bem precioso. Em outras palavras, considero que Edna
e sua família estão muito felizes de estarem vivos; assim me deixaram saber com suas
palavras, com sua forma alegre de me receber e de estar no mundo e com seu interesse
porque eu conhecesse sua história. Não é uma recusa à vida o que configura o cerne dessa
expressão, é uma rejeição à imagem humanitária que produz a tríade do refúgio, tanto do
Estado brasileiro quanto do Acnur, usando como matéria-prima seus sofrimentos. É, me
parece, uma disputa (ainda que desigual) pelo poder de produzir imagens sobre a nação,
sobre o Estado e sobre os princípios que os guiam. É também uma denúncia do tempo –
particularmente da lentidão – como um elemento de castigo e de sofrimento por meio do
qual se constroem refugiados.

Não é surpreendente assim que não somente Edna tenha lançado esse desafio. Melhor uma
morte rápida a uma agonia lenta, foi a fórmula que escutei também de outras pessoas,
solicitantes ou refugiadas:

Pero lo que me da esa decepción es que si salimos de Colombia porque somos


víctimas de la violencia, yo creo que no deberíamos de llamarnos ni emigrantes,
ni asilados, ni refugiados, sino condenados y condenadas a morir lentamente
porque una persona difícilmente sale del hueco donde yo estoy, difícilmente sale
del abismo donde yo estoy porque lo más seguro que esa persona tome es el
camino del mal […] Yo considero que si queremos ayudar a alguien, saquémoslo
del abismo en donde se encuentra pero aquí no te sacan del abismo, aquí te dan
un pedazo de pan y una bolsa con agua y vive con eso: o sea que tu muerte va a
ser más lenta, te condenan a morir lentamente […]. (José Alberto, solicitante de
refúgio)

Das imagens de bombardeios e guerras, de mulheres e crianças sofrentes sem contexto, o


Acnur-Brasil (grande produtor de imagens do refúgio brasileiro) pula para imagens de
pessoas felizes e integradas, com negócios próprios e esperança no futuro. Os tempos e os

348
processos que se infiltram entre as duas etapas não aparecem nessas imagens. Também não
aparecem os filtros que transformam uma guerra de mais de 50 anos (que continua
causando morte, destruição, deslocamento e medo) na imagem exitosa de umas poucas
famílias “integráveis”. É por isso que considero desafiador a rejeição das pessoas dessa
mensagem de salvação, de esquecimento, de gratidão e de silêncio. Essa resistência a
entrar nos moldes, essa obstinação de encontrar outras formas, outras explicações, de
contar sua própria versão da historia (apesar de não saber se vai servir para alguma coisa
tudo isso que me contaram), de não sucumbir ao convite da vida nova, lembra-nos de que o
movimento de êxodo não é uma linha reta, que não termina com a integração, que não se
submete à razão da ordem nacional e que não se reduz à reparação da razão de estado.

Rocío: Ellos tal vez piensan que yo no entiendo las cosas, que yo no estudié,
pero yo me dedico mucho porque yo digo: después de todo lo que mi familia
pasó, de todo lo que pasamos, ¿yo voy a dejar que ya, que fuera en vano? No, no
puede ser así, no vamos a ser unos más que sufrieron y ahora ¡ah la vida nueva y
ya ¡No! No hay vida nueva no es recomienzo, es continuar. Y yo creo que hay
que luchar y que hay que... uno no puede simplemente dejar que ya que fue y ya.

Yo: ¿si tú pidieras la residencia, eso te daría una historia diferente a la del
refugio?

Rocío: Yo creo que no. Porque para mí yo siempre voy a ser refugiada, no por el
nombre sino por lo que es. Porque ser residente no va a cambiar que vine
escapándome. Va a ser siempre así, yo creo que no va a haber una cosa de
recomienzo y eso, no es olvidar, es asumir. No simplemente: Ay! no ya, mi vida
va a ser nueva, eso no existe.

O exílio das pessoas que encontrei ao longo da pesquisa de campo se compôs de perdas e
rupturas – umas menos voluntarias que outras – e do começo de uma existência
descontínua. No entanto, como me mostrou Rocío, a experiência administrativa que os
transformou em solicitantes, refugiados ou reassentados não foi um recomeçar, mas uma
continuação – ainda que fragmentada – de alguns dos aspectos da vida tal como ela era
antes, de algumas das ordens de poder que compunham suas existências e da experiência
de desterro que marcou seus movimentos. As renegociações que, como refugiados, tiveram
de fazer dessas formas e ordens de poder não deveriam fazer que acreditássemos que se se
recomece do zero e se chega a uma nova vida. Não é salvação, mas administração o que
está em jogo com a figura contemporânea do refúgio.

349
COSIDERAÇÕES FINAIS

Da intimidade do exílio ao anonimato do refúgio


E logo adiante da fronteira entre “nós” e os “outros” está o perigoso
território do não pertencer, para o qual, em tempos primitivos, as pessoas
eram banidas e onde, na era moderna, imensos agregados de humanidade
permanecem como refugiados e pessoas deslocadas (SAID, 2001, p. 50).

Tentei mostrar, ao longo das páginas deste texto em forma de tese, por meio de diferentes
ângulos, processos e detalhes, que o refúgio é um registro possível do sofrimento. Segundo
a proposta de autores que trabalharam a ideia de uma teodiceia secular (DAS, 1997b;
HERZFELD, 1992), considero, conforme Veena Das inspirada em Durkheim, que as
sociedades administram o sofrimento como uma forma de se legitimar a si mesmas,
separando por meio dele o mundo sagrado do profano e tornando o preço do pertencimento
à sociedade (DAS, 1997b, p. 564).

Considero assim, que, ao falar em refúgio – tentando não obliterar suas causas e os poderes
que o mantém – nos encontramos em um duplo movimento que, como proposto por Fassin,
nos faz movimentarmos entre os efeitos de dominação dos quais o sofrimento é a
expressão e os jogos de construção nos quais o sofrimento e o objeto (FASSIN, 2010, p.
20). No entanto, essa tentativa de apropriação do sofrimento da parte do Estado-nação,
para o qual são desdobradas tecnologias de governo e são tecidas relações com variados
setores, é apenas um registro possível, porque o sofrimento, ou melhor, os sofrimentos são
inapreensíveis e só se conhecem – tornam-se penas e dores com conteúdos concretos – nos
espaços do ordinário, onde não são alcançados pela administração nem pelos
administradores.

Apesar disso, a separação entre sofrimentos sagrados e sofrimentos profanos não é


significativa somente para o Estado-nação que oferece receber os refugiados. A distinção é
transcendental também para as pessoas que veem seu sofrimento convertido em algo
valioso, com a importância que daí se deriva para suas vidas que pouco tempo atrás eram
produzidas como extermináveis. A tênue fronteira que existe, em variados e amplos
contextos regionais colombianos, entre ser um “indesejável” e ser um “exterminável”
(FASSIN, 2010, p. 196) aumenta a confusão sobre quem deveria e quem não deveria ser
reconhecido como refugiado. Isso engrandece também a dificuldade de estabelecer o

350
pertencimento do próprio sofrimento a alguma das categorias que, dentro dos marcos
jurídico-administrativos do Estado-nação, tentam os catalogar.

O difícil trabalho com o qual me enfrentei nessa pesquisa, além de reconstruir, descrever e
analisar a figura contemporânea do refúgio no Brasil, foi o esforço de não ofender, nem
somar dores às histórias das pessoas que têm encontrado nessa figura do refúgio um
território apropriado para acalmar seu sofrimento, para dignificar as injúrias, um espaço de
tempo para significar as lembranças (e para esquecê-las) e um lugar no qual domesticar o
mundo e pertencer a ele não sejam uma luta à morte. Como me disse um amigo: “aonde ir
ao cinema não seja uma operação de alto risco”.

A difícil tarefa se fez ainda mais penosa quando essas experiências subjetivas do exílio e
suas possibilidades de reflexão são elas mesmas uma tradução, polida e decantada de uma
guerra acirrada e cruel que, para outros, está, nesse momento, sendo traduzida em
extermínio, tortura e um desarraigo ao qual a pobreza piora. Além disso, quando os filtros
dessa tradução polida não são apenas aqueles da administração do refúgio brasileiro, mas
aqueles da minha própria localização no mundo. Ou seja, minha presença como
pesquisadora no universo brasileiro e minha consequente ausência de outras traduções que
são feitas em outros lugares – talvez muito mais penosas – das violências e da guerra do
país no qual cresci.

Ainda que, com o medo de engendrar ofensas e de ser acusada ou julgada por minhas
ausências, continuo considerando importante propor questionamentos sobre o que é o que
acontece quando aquilo que as pessoas experimentam como sofrimento é levado para um
discurso público que, além disso, oferece identificá-lo, compará-lo com aquele de outros e
remediá-lo. Essa obstinação tem a ver com que considero, inspirada em Said (2001), que o
refúgio maciço de populações – inclusive aquele que é filtrado para produzir uma recepção
de conta-gotas tentando ocultar do panorama aos outros que ficaram de fora – está longe de
ser o exílio romantizado de intelectuais e poetas que renunciaram à mesquinha noção de
pátria para engrandecer o mundo. De fato, lembra Said “Ao contrário da romantização de
outrora, o exílio num novo cenário amplo e impessoal de deslocamento e refúgio em massa
não pode ser posto ao serviço do humanismo” (SAID, 2001, p. 47). Tal como proposto

351
pelo autor, considero que “é preciso deixar o modesto refúgio proporcionado pela
subjetividade e apelar para a abstração da política de massas” (SAID, op. cit., p. 49).

Os esforços por administrar as pessoas, de fixá-las em territórios, jurisdições e lugares


morais, de conseguir a obrigação de sua gratidão e de produzir constantemente sua
existência como precária também são, parece-me, uma fonte de sofrimento e indignidade.
O nacionalismo e o exílio são duas caras da mesma moeda e, como sugerido por Said
(2001, p. 50) não podem ser discutidos separadamente, “os dois termos incluem desde o
mais coletivo dos sentimentos coletivos até a mais privada das emoções privadas […]
dificilmente há uma linguagem adequada para ambos”. Os projetos nacionalistas, os
Estados-militares, os Estados-capital, os para-Estados – de exércitos decapitadores – são
quem hoje têm o poder na Colômbia de definir as condições do pertencimento e os
contornos da nação. Dessa maneira, são expulsadas as vidas que não têm valor para esse
projeto e que o Estado que as recebe precariza como condição para sua recepção,
ocupando-se ostentosamente do sofrimento e ignorando descaradamente suas causas.
Conforme afirma Fassin: “…on s’efforce de rendre viables des vies précaries et d’oculter
les causes sociales de leur condition” (FASSIN, 2010, p. 64).

Nesse sentido, o refúgio, precisamente porque ele é o preço da pertença à nação, pode ser
pensado também como “uma punição política contemporânea” (SAID, 2002, p. 49). Já que
uma vida expulsável em um lugar torna-se pelo sofrimento – e, sobretudo por seu
sofrimento – uma vida passível de ser recebida, reformatada e integrada a um novo lugar
social e territorial. O transitar do refugiado pela terra e pelos escritórios da administração,
seu encontro com autoridades portando armas ou formulários, sua plegária154 para ser
recebido, são em si mesmos o processo de construção da fronteira entre o país que expulsa
e o país que recebe.

Talvez, seja devido a esses difíceis trânsitos e humilhantes itinerários que, uma vez que o
reconhecimento é conseguido, os refugiados apegam-se a essa condição registrada e
carimbada com as marcas do Estado-nação e a protejam como um lugar próprio. Algo que
é conseguido com tanto esforço e que originou tantos novos sofrimentos adquire um valor

154
Na introdução do livro La Raison Humanitaire, Didier Fassin explora a ideia da produção de vidas
precárias, aludindo à origem latina da palavra precário (precarius) para propor que se trata de vidas obtidas
pela plegária (FASSIN, 2010, p. 11).

352
redobrado pela esperança de quem o obteve de que essa conquista esteja marcada pela
singularidade e a exclusividade, trazendo, mais uma vez, as inspiradoras reflexões de Said,
podemos dizer do refúgio que:

[...] é uma condição ciumenta. O que você consegue é exatamente o que


você não tem desejo de compartilhar, e é ao traçar linhas ao seu redor e
ao redor de seus compatriotas que os aspectos menos atraentes de estar no
exílio emergem: um sentimento exagerado de solidariedade de grupo e
uma hostilidade exaltada em relação aos de fora do grupo, mesmo
aqueles que podem, na verdade, estar na mesma situação que você
(SAID, 2001, p. 51).

Uma forma de estar desconfiada e ciumenta, quer dizer, o refúgio, é também um dos
resultados exitosos dessa forma de governança de populações que descrevi ao longo do
texto. Se sentir protegido somente à custa de que exclusivamente uns possam pertencer ao
lugar que eu pertenço parece ser a incorporação no sujeito da lógica de esse Estado-nação
que protege suas fronteiras e sua própria segurança por meio de filtros e tecnologias tanto
de expulsão quanto de sedentarização.

[...] O exilado sabe que em um mundo secular e contingente, as pátrias


são sempre provisórias. Fronteiras e barreiras, que nos fecham na
segurança de um território familiar, também podem se tornar prisões e
são, com frequência, defendidas para além da razão ou da necessidade. O
exilado atravessa fronteiras, rompe barreiras do pensamento e da
experiência (SAID, 2001, p. 58)

Se proteger a si mesmo por meio da proteção dessas fronteiras e desses filtros poderia ser
pensado, então, como o logro da hospitalidade ambígua e restringida do país receptor, pois
o refugiado exitoso não pode – e, às vezes, não quer – questionar o poder soberano da
hospitalidade brasileira, já que, ao fazê-lo, poderia se tornar um indesejável (FASSIN,
2010, p. 175) e correr o risco de deixar de pertencer. Entre outras razões, porque o
oferecimento de salvação da vida que o refúgio faz é um oferecimento que não tem opção.
Dizer que não seria traição ou, como o descobriram muitas das pessoas que conheci
durante a pesquisa, dizer que não e rejeitar a salvação, nos termos em que ela é oferecida, é
um ato de rebeldia que pode chegar a subverter a mensagem sacrossanta da bondade do
refúgio.

353
A trajetória por meio dos territórios do refúgio

Para poder empreender meu próprio itinerário de pesquisa, para mim, foi fundamental
construir o argumento desta tese ao redor de uma premissa formulada por Butler e Spivak
(2007) sobre o refúgio e que, de maneiras diferentes, já havia sido apontada por outros
autores. Trata-se de rejeitar a ideia de que o refúgio é um estado anormal, ou melhor, fora
da ordem e do poder do Estado. Pelo contrário, anota Butler que, para que exista o refúgio,
necessita-se da manutenção dos vários poderes – particularmente, mas não exclusivamente
do poder estatal – que mantêm a situação de espólio e banimento dos sujeitos e que, de
fato, os produzem previamente como sujeitos expulsáveis. O segundo passo foi pensar na
forma para capturar etnograficamente esses poderes do “Estado” partindo da necessidade
de não o essencializar ou o reedificar e, pelo contrário, o desnaturalizar e o entender como
relação e processo (ABRAMS, 2000; ELIAS, 2006).

Para esse segundo objetivo, baseei-me na proposta de poder tutelar de Souza Lima (1995),
que, além de um marco teórico para a interpretação de algumas formas e relações de
governo de populações, descortina exemplarmente a transcendência da gestão cotidiana
para a produção e a manutenção das relações de poder e governança envolvendo povos,
notadamente povos errantes. Dessa proposta, são tributários os trabalhos de Vianna (2002)
e Lugones (2012), que, para esta tese, constituíram uma inspiração para abordar o detalhe
das disposições burocráticas ordinárias de gestão dos sofrimentos – matéria-prima do
refúgio – na maquinaria do Estado. As gestões cotidianas, as técnicas de controle e registro
e as mais variadas interações rotineiras tornaram-se o espaço ideal para observar de que
maneira o sofrimento das pessoas ia se transformando em administração de populações
refugiadas.

Essa eleição teórica e metodológica marcou as trajetórias da minha própria circulação no


universo institucional do refúgio e em suas margens. A principal característica concreta
que marcou meu trabalho foi a disseminação espacial dos lugares de pesquisa, o que me
exigiu múltiplos deslocamentos a várias cidades e municípios e entradas igualmente
diferenciadas a dependências de governo, escritórios administrativos, sedes de ONG,
albergues, moradias, praças, ruas, e postos de controle diversos. Ou seja, fui mapeando os
distintos lugares de refúgio à medida que ia os visitando e os conhecendo, sempre com

354
permissões e formas distintas de habitá-los. Nesse sentido, a etnografia que alimentou este
texto pode ser descrita como multissituada, não apenas no sentido de abordar diferentes
locais de pesquisa contestando as divisões entre o global e o local, mas de repensar o lugar
das experiências (íntimas, coletivas, privadas, públicas, enunciadas, caladas) na construção
desses processos administrativos, assim como os desafios metodológicos que elas
representam em uma pesquisa antropológica.

Tive dificuldades para chegar e ser recebida fisicamente em alguns espaços, e não foi
sempre fácil me movimentar entre as cidades que visitei, porém o maior desafio não foi
esse, mas o fato de ter que mapear os “territórios de experiência” (SAID, 2001) das
pessoas que conheci. Territórios que são eles mesmos multissituados, difíceis de apreender
e que se expandem e se contraem na sua relação com os outros que os limitam, os agregam
e os visitam como eu própria na minha condição de antropóloga em campo.

À medida que algumas das relações com as pessoas foram se estreitando, os espaços
cotidianos me receberam com um potencial desafiador, não apenas pela sua força política
mas também pelas exigências teóricas e emocionais que dali se derivaram. A depender do
tipo de relação e dos contextos dos encontros, a proximidade e a entrada que as pessoas me
permitiram fazer a seus espaços íntimos converteram-se em coisas muito diferentes.
Lugares tranquilos, de conversas animadas, espaços de misérias e vergonhas,
manifestações de solidariedade incondicional, formas rançosas e renovadas de racismos e
machismos, solicitações de ajudas materiais e petições de assessorias burocráticas dentro
do universo institucional, no qual os refugiados me percebiam com mais poder de
incidência do que eles e nos que eu fracassei sistematicamente.

Provocar a palavra, pedir descrições e reativar uma forma possível de lembrança em meio
a relações nas quais eu apareci, ainda que pedindo permissão de entrada, foi outro dos
aspectos difíceis de contornar. Especialmente quando estabeleci diálogos com as pessoas
de uma mesma família ou de um mesmo grupo de referência. Muitas vezes, as experiências
e as emoções que me foram confiadas eram desconhecidas para as outras pessoas
significantes nessa relação. Aspecto que me obrigou a medir e renunciar à publicação de
alguns relatos que pudessem afetar ou confrontar as relações entre as pessoas ou seus

355
próprios processos de construção de um lugar para si mesmos, em meio a dolorosos
eventos de deslocamento e desarraigo.

Outras vezes, experiências muito importantes para entender a relação das pessoas com o
exílio me foram contadas em espaços que sobrepassavam os limites da pesquisa, espaços
de amizade e camaradagem. Não pude evitar me sentir muito incomodada com o fato de
utilizar dados e relatos que fizeram parte de encontros afetivos profundos. Por isso, sempre
que pude, contei às pessoas o que tinha pensado nesses encontros e lhes pedi autorização
para – algumas vezes – o tecer no corpo do texto.

Apesar de meus esforços, chegou um momento em que os limites da pesquisa e os


encontros vitais com amigos e conhecidos tornaram-se mais difusos e quase
irreconhecíveis. Nos espaços de militância política, de encontro com outros estudantes e de
socialização com amigos compatriotas, foram aparecendo histórias de refúgio, reflexões
sobre o êxodo mais recente de milhões de conterrâneos e relatos sobre a vida no exílio de
conhecidos e amigos. Diálogos que necessariamente influíram na minha reflexão, que me
deixaram novas perguntas, iluminaram aspectos nos que eu não tinha pensado e mostraram
o exílio em sua existência imbricada com outros processos de deslocamento, com buscas
vitais e relações cotidianas, incluindo aquelas da gestão administrativa.

A dissolução desses limites também guarda relação com a minha presença na pesquisa de
campo como colombiana interessada, além disso, em indagar por perseguições que muitos
de meus interlocutores consideraram arriscado reviver na palavra pelo potencial perigo que
elas engendrariam para quem as colecionasse e as pudesse confrontar. A ambiguidade se
manifestou, de uma parte, em que vários de meus interlocutores, tanto administradores
quanto administrados, tiveram dúvidas em algum momento – nossos primeiros encontros –
sobre se eu mesma me encontrava no Brasil em condição de refugiada. Em outros
momentos, o contato com os administradores, com aqueles com os quais não me
identifiquei como pesquisadora, permitiu-me ser tratada nos espaços burocráticos do
refúgio como mais uma das pessoas que esperavam do outro lado do balcão, conforme a
expressão de Lugones (2012).

356
Por outra parte, muitas das pessoas solicitantes de refúgio ou refugiadas que conheci –
particularmente, as que as ONGs me apresentaram – pensaram, em algum momento, que
eu era mais uma funcionária dos organismos que administram os programas de refúgio.
Nesses casos, foi preciso deixar passar vários encontros e ir construindo, aos poucos,
relações de maior confiança, para que as pessoas se convencessem de que eu não tinha
vínculos institucionais com esses organismos e, sobretudo, que eu não ia comunicar as
coisas que falássemos para as funcionárias que têm poder sobre suas vidas ou seus
processos administrativos. Essas posições diferenciais, com todos seus incômodos, foram
também importantes para construir categorias de análise a partir desses espaços de gestão e
de posições diferenciadas que os sujeitos podem ocupar neles.

Outra das grandes dificuldades manifestou-se na hora de transformar a experiência de


campo em texto escrito. Nesse momento, duas exigências contraditórias apareceram. A já
referida necessidade – por múltiplas razões diferentes – de ocultação das histórias e
dissimulação das identidades das pessoas misturou-se com a sensação de estar lhes
restando protagonismo, de não estar reconstituindo suas experiências com a mesma
capacidade poética com a qual elas haviam as dotado e de estar condenando todo o detalhe
dessas experiências, que viveram como singularidades, ao anonimato da administração de
“muitos como eles”. Passagem metodológica que, mesmo que necessária, não deixou de
resultar-me algo triste e melancólica.

Tratei de remediar parte dessas inconformidades na última parte da tese na qual, com mais
força do que nos outros capítulos, reflexiono sobre as diversas formas pelas quais as
pessoas escapam e subvertem o controle administrativo sobre suas vidas. Reconhecendo,
contudo, que a compreensão dessas resistências somente foi possível por meio do recorrido
completo pelos espaços mais frios e desdenháveis da administração cotidiana, dos rituais
burocráticos e dos encontros com as variadas formas que adquirem as fronteiras.

Ao longo da pesquisa de campo e do processo de escrita, foi aparecendo, com mais clareza
para mim, o vínculo dessa categoria administrativa e figura de gestão com outros campos
de governança e outras formas de administrar as mobilidades. A divisão entre “migrantes”,
“refugiados” e outras categorias de trânsito ou de permanência – que, com tanto esforço,
tentam ser diferenciadas no universo institucional do refúgio – fazem parte de mundos

357
comuns com substratos compartilhados. Por isso, interessou-me também enfatizar nos
efeitos que se conseguem por meio da superespecificidade com a qual o refúgio tenta se
caracterizar por meio da mobilização de imagens e representações de guerra e de salvação
de vidas no limite da sobrevivência.

A rejeição de assumir como verdadeiros os limites e as jurisdições que tentam se


naturalizar na administração do refúgio e a desconfiança sobre a construção de vidas
limítrofes com a extinção nos permite, em meu critério, ver com clareza os complexos
debates e disputas globais que estão em jogo sobre a circulação de pessoas, sobre as
condições desiguais dessa circulação e sobre os diversos poderes que as produzem e as
mantêm. Nesse sentido, são inspiradoras as propostas como as de Piscitelli (2013) e
Sprandel (2012) que têm desentranhado os mecanismos por meio dos quais uma suposta
proteção às pessoas em trânsito age como uma renovada forma de controlar a liberdade de
seus movimentos; de restringir suas possibilidades (muitas vezes, já limitadas) para decidir
as condições desses deslocamentos e deslegitimar os desejos que provocam e animam as
migrações e que, muitas vezes, servem de alento quando as migrações se tornam um exílio
ou outras formas mais cruéis de ser estrangeiro.

Finalmente, o percurso por meio e ao redor dos diferentes territórios do refúgio me levou a
visualizá-lo como uma figura de restrição da circulação das pessoas e não apenas como
uma figura de redenção e reparação. Com o refúgio, os trânsitos das pessoas somente são
autorizados se elas conseguem salvo-condutos que lhes são continuamente desautorizados
por sua condição de potenciais migrantes. Para sua gestão, é ativada uma economia política
do sofrimento na qual o reconhecimento de umas dores significa a obliteração imperiosa de
outras. Dessa maneira, o compromisso desta tese – que, igual ao refúgio, tem um final
meramente contingente – consiste exatamente em questionar e interrogar as categorias e os
processos instituídos e, muitas vezes, naturalizados. Exercício que me parece ponto-chave
não somente em termos antropológicos mas também em termos de reflexão política sobre a
construção, a expulsão, a fixação e a sedentarização de sujeitos no mundo.

358
BIBLIOGRAFIA
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in the world of crisis. New York: Columbia University Press, 1945.

WOLF, Eric. Peasant Wars of the Twentieth Century. London: Faber and Faber, 1969.

ZELIZER, Viviana. La negociación de la intimidad. México: Fondo de Cultura


Económica, 2009.

ZAMBRANO, Marta. Trabajadores, Villanos y amantes: encuentro entre indígenas y


españoles en la ciudad letrada. Santa Fe de Bogotá (1550-1650). Bogotá: Instituto
Colombiano de Antropología e Historia, 2008.

369
ANEXO 1: Algumas das pessoas contatadas para a pesquisa.

Entrevistas com pessoas refugiadas, solicitantes de refúgio e apresentadas ou autodeclaradas usando outras categorias.
Nome Forma de contato Entrevistas e encontros Outras informações
Encontros diversos não gravados. Caso “exemplar” de refúgio político. Mobiliza mais a categoria
1 Francisco Redes pessoais Conversas em POA e RJ. asilo político do que refúgio. Continua com trabalho político e
Uma longa entrevista gravada. militância.
Chegou através do programa de reassentamento. É um caso de
Encontros em diferentes cidades e
ONG de refúgio por orientação sexual. Apresentado pela ONG no primeiro
2 Juan Felipe longas conversas. Duas entrevistas
reassentamento ano como caso exitoso de integração e posteriormente aparecem
gravadas. Contacto permanente.
inconformidades com o programa e suas administradoras.
Chegaram com o primeiro grupo de reassentados colombianos.
Conversa extensa de mais de meio dia,
Foram apresentados pelo programa como caso exitoso de
Beatriz e ONG de somente uma parte como entrevista
3 integração. Ambos são críticos com o programa, mas defendem a
Rafael reassentamento gravada. Comunicações telefônicas
possibilidade do refúgio estão satisfeitos com a solidariedade da
posteriores.
“sociedade brasileira”
Solicitante de refúgio com tentativas prévias de pedido de refúgio
Uma entrevista gravada.
Encontro num em outros países. Frequentemente tratado como “haitiano” ou
Várias conversas informais.
evento de “africano”, especialmente sensível às diferencias no atendimento
4 Santiago Vários acompanhamentos para realizar
“integração” para segundo os atributos raciais supostos. Mesmo depois de vários
trâmites burocráticos e em espaços de
refugiados. meses no país não tinha conseguido nem carteira de trabalho,
socialização.
nem protocolo de solicitante
Refugiada por elegibilidade há mais de 10 anos. O momento de
Muitas conversas extensas, diversas nosso encontro é de reavaliação da sua vida no Brasil. Critica
Redes pessoais e de
5 Victoria atividades de socialização e tipos de Cáritas e me ajuda na reconstrução de outras épocas do programa
pesquisa.
encontro. Contato permanente. de recepção de refugiados, inclusive das mudanças físicas no
local.
Tem ainda o status de refugiada. Tem vivido mais tempo como
Vários encontros informais, uma
Redes pessoais e de refugiada que como cidadã de algum país. Dessa condição ela
6 Rocío entrevista gravada e contato por redes
pesquisa. deriva suas dificuldades de adaptação a seu entorno social,
sociais.
especialmente no colégio, e também seu compromisso político.

370
Refugiado por elegibilidade, apresentado por varias pessoas como
Entrevista não gravada. Vários um caso exemplar de refúgio político. Coloca-me em contato com
Redes pessoais e de
7 Andrés encontros posteriores. Por meio dele pessoal do Acnur a quem apresenta como sendo amigos. Sua
pesquisa.
conheci outras pessoas refugiadas. imagem e testemunha têm sido utilizadas na produção de imagens
e vídeos.
Refugiado apresentado como tipo exemplar de refúgio por
Una entrevista não gravada e outros perseguição política. Historia referida pelos agentes como una
8 Camilo Redes pessoais.
encontros e conversas informais. historia sem dúvidas. A tortura apareceu como elemento
fundamental para explicar o êxodo.
Múltiplos encontros não gravados e Chegou ao país num processo de reunificação familiar pelo
9 Aurora Redes pessoais. contatos frequentes. Acompanhamento refúgio de seu esposo. Ela é fundamental para a manutenção da
em alguns trâmites administrativos. vida no exílio e é ela quem lida com a burocracia institucional.
Solicitantes de refúgio com mais de um ano de espera. O Filho
Contacto por meio Entrevista coletiva gravada. mais novo nasce no Brasil e oferece outra possibilidade de
Álvaro, Edna
10 de outras pessoas Conversas informais individuais. permanência. História de desarraigo com deslocamento interno
e Yurani.
refugiadas. Alguns contatos posteriores. prévio na Colômbia. Critica fortemente Cáritas e albergue onde
ficaram os primeiros meses.
Encontro em Entrevista gravada com José Alberto e
José Alberto, Solicitantes de refúgio numa relação muito tensa com Cáritas.
espaço de encontros em diferentes cidades. Com
Diana (esposa) Criticam também outros solicitantes. Don Margarita quer voltar
socialização de dona Margarita conversas em sua casa.
11 e dona para Colômbia, e seu filho não permite. A família se mudou
imigrantes, Com Diana conversas em presença de
Margarita várias vezes de Estado dentro do Brasil durante o tempo da minha
apresentado por seu marido e uma conversa na sede de
(mãe) pesquisa de campo.
outro refugiado. Cáritas.
Solicitante de refúgio com poucos meses de ter chagado ao país.
Encontro em uma Considera que seu processo têm sido fácil pelo fato de ser filho de
Entrevista não gravada e duas conversas
12 Agustín aula de português um refugiado já reconhecido. Não critica Cáritas, mas outros
informais.
para refugiados. solicitantes. Em pouco tempo obteve o protocolo e a Carteira de
Trabalho.
Refugiado há dois anos sem queixas do trabalho de Cáritas e com
Encontro nos
muitas críticas aos outros solicitantes. No momento do nosso
13 Augusto escritórios de Una conversa informal não gravada.
encontro estava avaliando a possibilidade de voltar para
Cáritas.
Colômbia.

371
Chegou ao país aliciado por um colega que lhe ofereceu um falso
Encontro em um
Múltiplas conversas não gravadas e emprego. Quando nos conhecemos fazia parte do programa de
albergue para
14 Lucas encontros em diversas atividades da proteção a vítimas de trata de pessoas. Ele foi integrado
imigrantes e
rede ampla de trabalho com imigrantes. extraoficialmente às tarefas do albergue onde mora e é crítico dos
refugiados.
outros hospedes do local.
Apresentado por Chegou por meio do programa de reassentamento. Assumido ao
uma funcionária de começo como caso problemático, vira um caso apresentado como
Entrevista não gravada e várias
15 Miguel ONG de exemplar quando começa um curso universitário. Politicamente
conversas informais.
reassentamento a ativo sobre a realidade colombiana e muito crítico dos programas
titulo pessoal. de refúgio.
Chegou como reassentada pouco meses antes de nosso primeiro
contato. Primeiro tem receios para falar comigo por uma
ONG de Entrevista extensa não gravada e proibição expressa da ONG de falar sobre o programa. Depois me
16 Alba
reassentamento. contato posterior por redes sociais. contata com maior autonomia e realiza duras críticas do programa
de reassentamento.

Chegaram como reassentados há sete anos e há tempo não têm


Uma primeira conversa com ele, que
Ex-funcionária do acompanhamento das ONG. São muito críticos com o programa
Rodolfo e quis me conhecer antes de me
17 programa de de reassentamento. Dizem ter recebido mais apoio da Igreja
Hilda apresentar sua família. Entrevista com o
reassentamento protestante à que pertencem do que do programa de
casal e conversa com toda a família.
reassentamento solidário.
Chegaram como reassentados há quatro anos. São apresentados
Ex-funcionária do Entrevista extensa não gravada e pelas ONGs como caso exemplar de integração e ela tem
Sandra e
18 programa e outros conversa informal. Contatos eventuais participado dando depoimento em alguns eventos do Acnur. São
Silvio
reassentados por e-mail e redes sociais. críticos do programa e disseram se sentir usados para fazer
propaganda, mas pouco apoiados em seus projetos pessoais.

O conheci como solicitante de refúgio insatisfeito com o


Família Conversa na casa de seus parentes e atendimento em Cáritas. Durante o processo de pedido de refúgio
19 Jonathan
reassentada. contatos posteriores por redes sociais. foi ativada a opção de cidadania do Mercosul e ele optou por essa
opção para permanecer no Brasil.

372
Chegou há quase uma década como reassentado com sua esposa e
Família filhos. No momento de nosso contato trabalhava numa ONG de
20 Enrique Conversa por skype.
reassentada. direitos humanos e é muito crítico do programa de
reassentamento.
Pilar chegou como solicitante de refúgio. Mora na casa de sua
filha que já morava no Brasil. Ela esteve antes no Equador. Seu
processo de refúgio foi muito rápido e recebeu importante apoio
21 Pilar e Oscar Redes pessoais Conversa informal e entrevista gravada. de Cáritas. No momento de nosso contato, poucos meses depois
de sua chegada, já tinha recebido resposta afirmativa a seu
pedido. Poucos meses depois dela chegou seu filho Oscar quem ia
solicitar reunião familiar.
Chegou a finais de 2013 como reassentada com seu esposo e
Família filhos. Procurou meu contato para me contar sua inconformidade
22 Gladis Conversa por skype e redes sociais.
reassentada. com o programa que estava prestes a finalizar o período de
assistência.

373
ANEXO 2: Atividades pesquisadas durante o período de pesquisa de campo

Atividades acompanhadas
Nome da atividade Cidade e Data Organizadores Alguns dados relevantes

Importância fundamental dada ao emprego como elemento para a


Segunda oficina sobre Rio de Janeiro, “integração exitosa”. Presença de ONGs e representantes de
trabalho e emprego para 24 e 25 Ministério de trabalho e Emprego do empresários e sindicatos. Apesar do número reduzido de refugiados
1
solicitantes de refúgio e de outubro Governo Federal do Brasil, ACNUR foram apontados problemas para a inserção na vida laboral brasileira.
refugiados (as) de 2011 Foi elogiada a organização tripartite. Insistência em impedir práticas
assistencialistas.

Evento dedicado à discussão do projeto para uma nova Lei de


Migração. Foi pensado como convite aberto para amplos setores, mas a
participação foi marcada por investigadores universitários, autoridades
PNUD Brasil, ICMPD, Ministério do de governo, representantes de ONGs e refugiados convidados para
O Direito dos Migrantes no Rio de Janeiro,
Trabalho e Emprego, Ministério das fazer depoimentos. Presença discreta do ACNUR, que relembra a
Brasil: o novo estatuto do 16,17 e 18
2 Relações Exteriores, Secretaria importância da neutralidade política que lhe é exigida. Apesar da
estrangeiro como uma Lei de maio
Nacional de Justiça e o Ministério da polemica e o desagrado de algumas pessoas, o evento destacou-se por
de migração. de 2012
Justiça apresentar uma visão do Brasil como país acolhedor e historicamente
receptivo à migração, contrastando com a preocupação sobre a
segurança nacional expressa por agentes da Polícia Federal que
estavam na plateia.

Desafios e perspectivas no
Mescla de atores de grupos universitários com as ONGs que
campo da migração e do
administram os programas de refúgio. Apelo constante ao Brasil como
refúgio. Mesa no ciclo de São Paulo,
Ministério da Cultura, Banco do um país que historicamente recebeu migrantes com os braços abertos.
3 palestras “Imigrantes e 12 de junho
Brasil, PUC-São Paulo e USP Crítica à criminalização da migração como uma tendência global. Em
Refugiados Deslocamentos de 2012
várias ocasiões o migrante foi apresentado como um trabalhador que
em um mundo em crise”
toma conta do trabalho não desejado pelos nacionais.

374
Presença mesclada de autoridades estaduais, federais e representantes
de ONGs de refúgio. A maioria da plateia foi de estudantes de relações
internacionais, área que domina a produção universitária sobre o tema.
Comissão de refugiados, exilados e Destacou-se a exemplaridade da Lei de refúgio no Brasil. Todos os
São Paulo,
Palestra “Dia do refugiado: proteção internacional da Ordem palestrantes se reconheceram como filhos da migração e da
4 20 de junho
reflexões”. dos Advogados do Brasil de São hospitalidade nacional. Foram apresentados os programas de refúgio e
de 2012
Paulo. falou-se brevemente do programa de reassentamento. Houve uma
discussão final centrada sobre o “caso haitiano”, especialmente
motivada pelas perguntas da plateia. Preocupação da plateia de que os
haitianos descaracterizarem a “identidade brasileira”.
Evento contou basicamente com a participação de professores
universitários e investigadores nacionais e internacionais. Para a
Seminário internacional
São Paulo, abertura e a clausura, convidados representantes do ACNUR e do
“Fronteiras em Movimento: Ministério da Cultura, Banco do
5 1-5 de agosto de governo. Público amplo, estudantes de relações internacionais e
Deslocamentos e outras Brasil e Universidade de São Paulo
2012 funcionários de ONGs que trabalham sobre refúgio. Não houve
dimensões do vivido”
refugiados convidados para fazer depoimentos. Foram exibidos vários
filmes sobre os temas da migração e do refúgio.
Basicamente os convidados foram de ONGs que administram
programas de refúgio. Não se falou, nem houve representantes do
29 e 30 Cáritas Arquidiocesana de São
Seminário de mobilidade programa de reassentamento. Vários representantes do governo
6 de setembro de Paulo e Missão Paz. Promovido pela
humana estadual. Uma visão dos refugiados como vítimas. Exaltaram a tradição
2012 Arquidiocese de São Paulo.
de acolhida dos migrantes no Brasil. Seminário dominado por um tom
religioso de salvação e por rituais religiosos dentro do seminário.
Mescla de funcionários de ONGs e representantes da sociedade civil
ampliada. Alguns refugiados convidados, mas não participaram na
Ordem dos advogados do Brasil – mesa. Apresentação de dados sobre refúgio a nível mundial e de dados
Comemoração do dia do Rio de Janeiro RJ aproximados no Brasil. Entrega de reconhecimentos a líderes da
7
refugiado. Junho de 2013 Acnur “sociedade civil” por seu trabalho com os refugiados, entre eles líderes
Cáritas Rio de Janeiro religiosos de diferentes religiões. Na comemoração uma jovem
refugiada tomou a palavra para contar sua história e fazer um protesto
público sobre a forma em que é tratada e atendida como refugiada.

375
ANEXO 3. Programas e reportagens sobre refúgio

Notas, programas e pequenos documentários na televisão.


Vários programas de televisão têm se dedicado ao tema do refúgio nos últimos anos, especialmente em canais de televisão públicos e estatais. A questão
aparece com alguma frequência nestes espaços acompanhei alguns deles percebendo a recorrência de certos temas e a forma como alguns assuntos
sempre aparecem acoplados com outros. Também foram úteis para observar a enunciação pública oficial sobre os programas de refúgio no Brasil,
confirmando a existência de “scripts” que eu já tinha observado durante as entrevistas com funcionários da “tríade” do refúgio. Por outro lado, alguns
canais privados, universitários ou estaduais (particularmente em São Paulo) realizam notas sobre a questão do refúgio. O tratamento que dão ao tema, a
estética que é usada para apresentá-lo e as diferentes maneiras de assumir aos refugiados também são úteis para apontar tanto elementos recorrentes,
quanto mudanças na forma de tratar o assunto. Todos esses vídeos estão disponíveis no YouTube e , por vezes, nos sites dos programas que os
produziram

1. CENAS DO BRASIL - 12.01.12 (TVNBR)


http://www.youtube.com/watch?v=4kh0TJcepnk
CENAS DO BRASIL - 12.01.12: O Cenas do Brasil discutiu o tema "refugiados" com o secretário-executivo do Ministério da Justiça, Luiz Paulo
Barreto, que participou, em Genebra, nos dias 7 e 8 de dezembro de 2011, da Reunião Ministerial dos Estados Membros das Nações Unidas para o 60º
aniversário da Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados e o 50ª aniversário da Convenção para Reduzir os Casos de Apátrida. O programa contou,
também, com a participação do Sr. Andrés Ramirez da ACNUR - representante do Alto Comissariado para Refugiados das Nações Unidas (ACNUR) no
Brasil.
Agregado o 13/01/2012 Duração: 57min. 57seg. Visitas: 747

2. NBR ENTREVISTA: Situação dos refugiados no Brasil (TVNBR)


http://www.youtube.com/watch?v=B4g2mKgSTBA
O Brasil abriga cerca de 4.500 refugiados de 77 diferentes nacionalidades, incluindo África, Ásia, América Latina e Europa e 900 solicitantes de
refúgio. Desse total, quase a metade vive no Rio de Janeiro. Para explicar sobre a situação dessas pessoas no país, o convidado do programa é o
presidente do Comitê Nacional para Refugiados do Ministério da Justiça (MJ), Luiz Paulo Barreto.
Categoria: Noticias y política

376
Licencia: Licencia de atribuição de Creative Commons (permite reutilização).
Agregado 01/11/2011 Duração: 12mn57sg Vistas: 230

3. REPORTER JUSTIÇA – Refugiados (três vídeos)


1\3
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=YSHEVuzWQCE
O Repórter Justiça mostra a difícil realidade de quem precisa recomeçar a vida em uma nação completamente diferente. Atualmente no Brasil existem
mais de 4.300 refugiados, oriundos de 75 diferentes nações, reconhecidos e vivendo legalmente no país.
Categoría: Educación Licencia: Licencia estándar de YouTube
Agregado o 08/02/2011 Duração: 8mn58sg Visitas: 266
2\3
http://www.youtube.com/watch?v=SwJ_o_jzb6MO
Repórter Justiça mostra a difícil realidade de quem precisa recomeçar a vida em uma nação completamente diferente. Atualmente no Brasil existem
mais de 4.300 refugiados, oriundos de 75 diferentes nações, reconhecidos e vivendo legalmente no país.
Categoría: Educación Licencia: Licencia estándar de YouTube
Agregado: 08/02/2011 Duração: 9mn21sg Visitas: 130
3\3
http://www.youtube.com/watch?v=5wm9HsNqXXk
O Repórter Justiça mostra a difícil realidade de quem precisa recomeçar a vida em uma nação completamente diferente. Atualmente no Brasil existem
mais de 4.300 refugiados, oriundos de 75 diferentes nações, reconhecidos e vivendo legalmente no país.
Agregado o: 08/02/2011 Duração: 7mn 29sg. Visitas: 94

4. VEJA.COM ENTREVISTA: É importante conhecer a questão dos refugiados. (Três vídeos)


1\3 É importante conhecer a questão dos refugiados
http://www.youtube.com/watch?v=5L5YJ9LV7BA
O advogado e professor universitário Manuel da Furriela fala com Branca Nunes sobre refugiados. Ele comenta também como é feito a parceria entre a
universidade FMU e a ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados).
Agregado: 18/06/2010 Duração: 4min. 35 seg. Visitas: 828

2\3 Quem são os refugiados


http://www.youtube.com/watch?v=B4fRh9LgZvc

377
Branca Nunes e o advogado e professor Manuel da Furriela conversam, na segunda parte da entrevista, sobre o que faz uma pessoa se tornar refugiada.
Eles conversam também sobre a situação de Afeganistão, Angola, Brasil e Colômbia.
Agregado: 18/06/2010 Duração: 6min. 52 seg. Visitas: 541

3\3 Quem são os refugiados ambientais


http://www.youtube.com/watch?v=voEO-4KTUmA
Na terceira parte da entrevista, o advogado e professor Manuel da Furriela conversa com Branca Nunes sobre refugiados ambientais.
Agregado: 18/06/2010 Duração: 5min. 41 seg. Visitas: 751

5. VEJA.COM ENTREVISTA: Refugiado não é o único migrante forçado (Três vídeos)


1\3 O Refugiado não é o único migrante forçado
http://www.youtube.com/watch?v=Iiqkr1Sb8PQ
Nesta primeira parte da entrevista, o padre Ubaldo Steri, diretor da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, fala sobre seu trabalho com refugiados. Ele
conta o que é um refugiado e fala sobre como era feita a assistência aos refugiados durante a ditadura e qual o trabalho feito hoje. Ele explica por que os
haitianos não poderiam pedir refúgio no Brasil
Agregado: 21/01/2010 Duração: 7min. 40 seg. Visitas: 611

2\3 São 4.300 refugiados no Brasil


http://www.youtube.com/watch?v=-uBv6DWQBZ4
Na segunda parte da entrevista, o padre Ubaldo Steri conta quantos refugiados existem no Brasil. Ele explica o que são 'refugiados reassentados' e conta
que tipo de assistência o governo brasileiro e as Nações Unidas dão àqueles que chegam ao Brasil.
Agregado: 21/01/2010 Duração: 4min. 40 seg. Visitas: 387

3\3 Cesare Battisti não preenche os requisitos de refugiado


http://www.youtube.com/watch?v=weWvtXpjzg8&feature=endscreen&NR=1
Na terceira parte da entrevista, o padre Ubaldo Steri fala como o Conare julgou o caso de Cesare Battisti e explica por que este é um problema político.
Ele também fala sobre os refugiados da Colômbia e Angola e suas experiências nas Comunidades Eclesiais de Base e como assessor de D. Paulo
Evaristo Arns durante a ditadura no Brasil.
Agregado: 21/01/2010 Duração: 8min. 12 seg. Visitas: 442

6. JORNAL DA GAZETA (De São Paulo): Refugiados no Brasil


http://www.youtube.com/watch?v=6tiqAa0FTQY

378
O Brasil tem quatro mil refugiados de 69 países, segundo a ONU. Imigrantes. Refugiados. Eles vêm da África, do Oriente Médio e até de países
vizinhos da América Latina. Chegam sem recursos e sem dominar nosso idioma. E trazem na bagagem terríveis lembranças de violência e perseguição.
São os refugiados de guerra, acolhidos pelo Governo brasileiro. Aqui, eles têm que se adaptar a uma nova cultura, longe de suas raízes. E em comum,
mantêm o desejo de, um dia, poder retornar para a terra natal.
Agregado o 05/09/2007 Duração: 4min. 10seg. Visitas: 4573

7. JORNAL DA GAZETA (De São Paulo): Refugiados buscam trabalho e adaptação aqui no Brasil
http://www.youtube.com/watch?feature=endscreen&v=16lrEosJJJk&NR=1
Dados do IBGE divulgados hoje mostram que o número de imigrantes cresceu quase oitenta e sete por cento em dez anos. Boa parte deles são
refugiados, entraram no país de forma ilegal e por isso enfrentam dificuldades para arrumar emprego.
Agregado o 27/04/2012 Duração: 4min. 01seg. Visitas: 338
[5 anos depois da nota anteriormente resenhada]

8. JORNAL DA GAZETA (De São Paulo): Refugiados recebem aulas de português.


http://www.youtube.com/watch?v=zbWzU947IMw
Em menos de três anos, o número de solicitações de refúgio para o Brasil praticamente triplicou. E uma das barreiras enfrentadas por essas pessoas é a
língua. Em São Paulo, aulas de português para refugiados e imigrantes tem ajudado os estrangeiros a se adaptarem ao país.
Agregado o 21/11/2012 Duração: 4min. 05seg. Visitas: 150
[7 meses depois da nota anterior]

9. JORNAL DA CULTURA (De São Paulo): Imigrantes no Brasil


http://www.youtube.com/watch?v=SluLMqDq53Y&feature=player_embedded
Imigrantes refugiados sofrem com o idioma e o preconceito no Brasil.
Agregado o 21/04/2011 Duração: 2min. 30seg. Visitas: 955

10. TV PUC: Cátedra Sérgio Vieira de Mello na PUC SP


http://www.youtube.com/watch?v=wbN1ZhCFda4
A cátedra Sérgio Vieira de Mello, da PUC-SP, realizou seu III Seminário Nacional, no qual foram debatidas questões acerca dos quase 4700 refugiados
que residem no país atualmente.
Agregado o 07/11/2012 Duração: 5min. 32seg. Visitas: 33

Ver também:

379
1. Jornal SBT: Série: Estrangeiros vêm ao Brasil buscando fugir da crise.
http://www.youtube.com/watch?v=9-5SPvlsWPU
[Brasil como a “Terra das oportunidades” e que abriga todas as raças]
Publicado o 27/03/2012
2. Fantástico: Situação de imigrantes no Brasil
http://www.youtube.com/watch?v=iHrtky5zeGc
Reportagem motivada pelo atentado contra estudantes africanos da UNB que tiveram alojamento queimado por brasileiros.
[Falam de vários grupos migrantes e dos refugiados da guerra do Iraque].
Publicado o 01/04/2007
3. Canal Futura. Sala de Notícias: De braços nem tão abertos
http://www.youtube.com/watch?v=wEc8kXqcYE4
Com a economia aquecida, o Brasil vem atraindo um número cada vez maior de imigrantes. Apesar de o país ser tido como uma nação que recebe os
estrangeiros de braços abertos, a verdade é que muitos sofrem com a burocracia da Polícia Federal para conseguir o visto de permanência. A dificuldade
que os imigrantes em situação irregular enfrentam para obter o documento brasileiro oficial é o principal assunto deste programa. Mas ele também lança
um olhar sobre outros desafios que os estrangeiros ainda enfrentam para consolidar a plena cidadania no país, como a conquista do direito ao voto.
[IMPORTANTE: Discurso de Lula, sobre nação formada por migrantes]
Publicado o 23/06/2012
4. TV BRASIL. Outro Olhar: Refugiados Palestinos.
http://www.youtube.com/watch?v=4xK9hGwnNDU
O vídeo mostra a situação de um grupo de palestinos que saíram da Jordânia no ano passado, por causa da guerra no Iraque, para se refugiar aqui no Brasil.
Três deles estão acampados em Brasília, há quatro meses, em frente ao escritório do alto comissariado das nações unidas para os refugiados. Eles afirmam
que o atendimento médico prometido pelo órgão até hoje não foi cumprido.

380
ANEXO 4. Nota programa de Reassentamento Solidário I

381
382
383
ANEXO 5: Nota programa de Reassentamento Solidário II

ONU Brasil
http://www.onu.org.br/por-meio-do-trabalho-refugiados-colombianos-se-integram-a-sociedade-
gaucha/

De segunda a sexta-feira, o refugiado colombiano Juan Pablo (*) acorda cedo. Da casa
simples (dois quartos, sala, copa e cozinha) e alugada onde mora, no interior do Rio Grande
do Sul, sai com o filho mais velho dirigindo seu próprio carro, um modelo popular ano 2010
cujas prestações ainda estão sendo pagas.

Após deixar o filho no emprego, às 7h30 Juan Pablo se apresenta na fábrica de componentes
de calçados, onde exerce a função de operador de máquinas. Ele sairá de lá por volta das
18hs e retornará à sua casa para reencontrar sua esposa Johanna*, também colombiana, que
está em licença maternidade cuidando do pequeno Pedro*, filho brasileiro que nasceu em
dezembro do ano passado. Em breve, Johanna também estará de volta ao seu trabalho.

A rotina de Juan Pablo pode parecer comum à esmagadora maioria dos brasileiros, mas é
uma grande conquista para ele e sua família, que foram forçados a deixar a Colômbia em
2008 devido às ameaças que sofriam na sua propriedade rural, na região de Cali.
Reconhecidos como refugiados no Equador, continuaram sob ameaça naquele país, por
agentes de perseguição da Colômbia. Então, foram reassentados no Brasil, onde chegaram
em dezembro de 2009.

Juan Pablo sempre soube que só poderia reconstruir sua vida de forma digna se tivesse um
trabalho decente. Após os primeiros meses sob assistência do Alto Comissariado das Nações
Unidas para Refugiados (ACNUR) e da Associação Antônio Vieira (ASAV), conseguiu um
emprego de pedreiro. Depois, trabalhou numa metalúrgica e, desde junho de 2010, está
empregado com carteira assinada na Discover, uma empresa de 130 funcionários que vende
componentes de calçados para toda a região sul do Brasil.

Neste período, a mulher também conseguiu trabalho na mesma empresa, e o filho mais velho
foi contratado em uma fábrica de embalagens de papelão. “Sem o trabalho, não teríamos
chegado onde estamos. O emprego traz segurança, pois tenho mesmos direitos que qualquer
trabalhador brasileiro. Quero aposentar-me e fazer um empréstimo para adquirir minha
própria casa”, afirma Juan Pablo, ecoando o sonho de todo brasileiro.

Numa cidade vizinha à de Juan Pablo, também no interior gaúcho, outro refugiado
colombiano consolida sua integração no Brasil como gerente de um bar noturno. De terça-
feira a domingo, Ricardo* coordena a equipe de 29 garçons, seis cozinheiros e quatro caixas
do movimentado Estação Bangalô, que recebe pelo menos 600 clientes a cada noite.

Ex-policial no seu país e enólogo amador, Ricardo participou dos processos de paz entre o
governo e os grupos armados irregulares em seu país. Mas foi obrigado a se refugiar no
Equador em meados de 2004, por causa da perseguição destes mesmos grupos. Devido a
problemas de integração no primeiro país de refúgio, foi reassentado no Rio Grande do Sul,
em agosto de 2005. Desde então, trabalhou como garçom em um grande hotel da cidade e

384
retomou os estudos de enologia. Tornou-se sommelier e maître do hotel, sendo
posteriormente chamado para orientar cursos para garçons. Foi em um desses cursos que foi
convidado a assumir a gerência do bar onde trabalha atualmente.

“O trabalho é tudo. Sem um salário, é impossível se sustentar e se integrar na comunidade


onde se vive. Tenho meu próprio carro e moro em um apartamento alugado, no meu próprio
nome”, orgulha-se Ricardo.

A autossustentabilidade dos refugiados que vivem em áreas urbanas é um dos principais


objetivos dos projetos implementados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados (ACNUR). Em vários países, inclusive no Brasil, o ACNUR e seus parceiros
apoiam os esforços dos refugiados na busca pelo emprego e atuam com autoridades públicas
e o setor privado para facilitar a inserção dessa população no mercado de trabalho.

No Brasil, os refugiados têm acesso a aulas de português, cursos profissionalizantes e a


recursos para iniciar negócios que sejam economicamente viáveis. Além disso, a avançada
legislação brasileira sobre refúgio garante aos refugiados a documentação necessária para
buscar empregos formais, como Carteira de Trabalho, CPF e identidade.

“O emprego é um caminho seguro para a autossustentabilidade, assegurando soluções


duradouras para refugiados no primeiro país de refúgio ou reassentados em outros países. É
também uma poderosa ferramenta de integração”, afirma o representante do ACNUR no
Brasil, Andrés Ramirez. Ele lembra que o ACNUR lançou, em 2009, uma política específica
para a proteção de refugiados em áreas urbanas. “Atualmente, mais da metade dos
refugiados em todo o mundo vivem em áreas urbanas, e as cidades são um espaço legítimo
de proteção e direitos para os refugiados”, completa Ramirez.

De acordo com dados oficiais, cerca de 4.500 refugiados (de 77 nacionalidades diferentes)
vivem nas cidades brasileiras. No Rio Grande do Sul estão cerca de 250 refugiados, a maioria
de origem colombiana e palestina. Esta população é atendida pela Associação Antônio Vieira
(ASAV), em 13 diferentes municípios do Estado.

Os refugiados que vivem no Rio Grande do Sul são beneficiados pelo Programa de
Reassentamento Solidário, implementado pelo governo federal com apoio do ACNUR e da
sociedade civil.

O programa foi concebido para proteger refugiados que são perseguidos ou não têm
condições de integração no primeiro país de refúgio. Cerca de 10% dos refugiados no Brasil
são beneficiados pelo Programa de Reassentamento, e a maior parcela da população de
refugiados reassentados no país reside no Rio Grande do Sul.

Evento trata do tema


Para identificar oportunidades de emprego e mecanismos que favoreçam a qualificação
profissional, o micro-crédito e o acesso desta população ao mercado de trabalho no Rio
Grande do Sul, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e o ACNUR e realizam hoje e

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amanhã, 16 e 17 de abril, em Porto Alegre, a 3ª Oficina sobre Trabalho e Emprego para
Solicitantes de Refúgio e Refugiados.

O evento tem apoio da ASAV e do Comitê Nacional para Refugiados (CONARE), e


acontecerá no auditório da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego no Rio Grande
do Sul (Avenida Mauá, 1013, 10º andar, Porto Alegre, Centro), com abertura às 15hs desta
segunda-feira (16/04). Participarão técnicos governamentais, sindicalistas, empresários,
refugiados e especialistas em refúgio.

A integração de Juan Pablo e Ricardo proporcionada pelo trabalho e a certeza de que querem
viver no Brasil se confirmam quando são perguntados se querem voltar para seus países.
“Não queremos ir para nenhuma outra parte. Se Deus permitir, morrerei no Brasil”, afirma
Juan Pablo. “Aqui somos muito respeitados”, completa Johanna, sua esposa. “Quero voltar à
Colômbia, mas apenas para visitar meus amigos e parentes. É no Brasil que sou valorizado e
tenho meu trabalho reconhecido”, declara Ricardo.

(*) Nomes trocados por razões de proteção.


(Por Luiz Fernando Godinho, de Porto Alegre, para o ACNUR)

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ANEXO 6. Renda e redes das pessoas contatadas durante a pesquisa

As condições da viagem, de chegada e de instalação das pessoas mudam muito a depender


de vários fatores como seu conhecimento sobre as técnicas da viagem, a informação prévia
do país de destino, a época do ano e a cidade de chegada, as redes prévias de parentes ou
conhecidos e os recursos econômicos disponíveis. No quadro a seguir tentei relacionar dois
desses fatores: redes prévias e recursos econômicos disponíveis, cruzando essa informação
com o tempo que as pessoas levavam morando no Brasil no momento de nosso encontro. O
intuito é mostrar algumas das diferenças que esses elementos representam e as
diferenciações que eles encarnam no mundo administrativo e na vida cotidiana. Contudo, o
quadro não pretende ser uma tipificação geral dos solicitantes ou de suas condições de
chegada. Isso não somente seria um propósito contraditório com a discussão que esta tese
propõe sobre esse tipo de tentativas classificatórias, mas também uma tentativa frustrada,
na medida em que no quadro somente estão tecidos alguns elementos entre todos aqueles
que podem engendrar diferenças importantes nas experiências de êxodo das pessoas.

Primeira situação: Segunda Situação:


Vários anos no Brasil com redes prévias, com Vários anos no Brasil sem redes prévias, sem
recursos econômicos. recursos econômicos.
- Viagem de avião com chegada à cidade onde - Viagem terrestre com diversas escalas em
solicitaram refúgio. outros países e cidades brasileiras.
- Aceitos como refugiados sem muitos receios. - Longos e difíceis processos para serem
Raramente colocada em questão a “verdadeira reconhecidos como refugiados.
necessidade de refúgio”.
- Usualmente caiu sobre eles a suspeita de
- Usualmente encaixados na figura mais serem migrantes econômicos.
estereotipada do refúgio político com
perseguições individualizadas. - Encaixados em categorias de perseguição
individualizada não necessariamente
- Viajaram com documentos pessoais, escolares, politizada.
às vezes médicos e mesmo com “probas”
documentais da perseguição. - Viajam com documentos básicos: carteira de
identidade e, às vezes passaporte. Menos
- Sua vinda ao Brasil representou um frequente: registros civis, atestados médicos e
rebaixamento nas condições de vida, na recortes de jornais sobre sua perseguição.
possibilidade de conseguir fontes de renda e no
status social. - Muitos com filhos e às vezes netos brasileiros.
- Empregados usualmente como professores de - Às vezes melhoria de status social, mas rara vez
espanhol, assessores privados na Colômbia e acompanhada de uma condição financeira
no Brasil, tradutores e, raramente, nas suas estável.
profissões.
- Empregados em prestação de serviços não
- As redes políticas ou familiares ajudaram na qualificados ou pequenos negócios próprios ou
sua instalação. de conterrâneos.
- Sobre eles não cai a suspeita administrativa de - Primeiros meses alojados em albergues ou
serem “migrantes econômicos”. quartos precários em bairros populares.
- Contatos através de redes pessoais. - Contatos através de ONGs da sociedade civil
ampla ou de outros refugiados.

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Terceira Situação: Quarta Situação:
Poucos meses no Brasil, com redes prévias, com algo Poucos meses no Brasil, sem redes prévias, sem
de recursos econômicos. recursos econômicos.
- Viagem terrestre com diversas escalas, mas - Viagem terrestre com diversas escalas. Às
com a intenção clara de chegar à casa de vezes tendo vivido em outros países.
parentes ou amigos. Parentes financiaram a Empréstimos para pagar a viagem e trabalhos
viagem ou eles pouparam ou emprestaram durante seu percurso para poder comer e
para fazê-lo. pagar as passagens dos trechos seguintes.
- Quando têm parentes previamente - A maioria das pessoas e suas histórias viram
reconhecidos o processo é mais rápido e mais objeto de suspeita no mundo administrativo do
fácil. Especialmente nos primeiros grados de refúgio.
parentesco ou para filhos menores.
- Viajam com documentos básicos, mas muitos
- Empregos em serviços pouco qualificados, com “probas” das perseguições na Colômbia.
usualmente conseguidos por meio de redes
prévias. - Usualmente foram qualificados nas instituições
como “migrantes econômicos”.
- Viajam com documentos de identidade
básicos: carteira de identidade e somente às - Situação financeira muito precária e muitos
vezes passaporte. deles com dificuldades para obter os
documentos de solicitantes.
- As redes pessoais ajudam na instalação no país.
- Geralmente sem empregos, com casos de
- Contatados em cursos de português, locais de exploração aboral não remunerada e “bicos”
socialização de conacionais ou indicados por temporais em ofícios não qualificados.
outros refugiados.
- Hospedados em albergues ou em bairros
populares.
- Contatados em albergues, por meio de redes
de refugiados ou de ONGs da sociedade civil
ampla.

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