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O presente trabalho tem por objetivo principal explorar o cenário feminino do Brasil agrário do
século XIX, a partir da leitura do romance “A Menina Morta” de Cornélio Penna. O romance
trata de uma família que habitava a fazenda do Grotão localizada no Vale do Paraíba e se passa
em fins do século XIX, pouco antes da abolição da escravatura. O autor narra a história a partir
do universo feminino dentro da fazenda. Assim podemos perceber a multiplicidade de funções
ocupadas pelas distintas mulheres que habitavam este cenário brasileiro. No enredo vemos a
estrutura social rígida de submissão, sendo rompida por uma mulher, que ao fim passa a tomar
conta da fazenda de café. Desta forma é possível abordar o romance como objeto para investigar
quais os papéis das mulheres no sistema patriarcal, suas influências na criação dos pequenos,
bem como de que forma elas conseguiam se apartar do sistema de dominação. Para isto busco
dialogar o romance com demais fontes entre elas, “Vassouras, um município brasileiro do café”
de Stanley Stein, “Vida Privada e Ordem Privada no Império” de Luiz Felipe de Alencastro,
“Casa-Grande e Senzala” de Gilberto Freyre, “A Arte da Sedução: sexualidade feminina na
colônia” de Emanuel Araújo, entre outras.
Luiz Costa Lima nos aponta que no primeiro momento Mariana pode ser
caracterizada como uma presença ausente no Grotão que “resultava do conflito com a
ordem masculina e da incapacidade (ou disponibilidade) de combatê-la em nível igual.”
(LIMA, 2005, p. 144). Mariana, que não cedia ao poder legitimado do marido e nem
teria forças suficientes para desbancá-lo, prefere seu isolamento e se vê diante de seu
fim. Não suportando o luto nem à ordem a qual estava submetida, foge do Grotão para
retornar louca. É somente no limite da ausência, ou seja, na loucura, que foi possível
escapar da ordem imposta.
O senhor estava sempre rodeado por seus serviçais em casa e na lavoura por
seus trabalhadores livres, os feitores. “O pajem do senhor ficava junto da cabeceira
atento aos gestos e desejos de seu dono” (PENNA, 1970, p. 49). Em casa, além dos
empregados, as agregadas também recebiam ordens provenientes dele. “__A prima vai
buscar minha filha... Sim, Carlota! Ela deverá sair do colégio, definitivamente, e vir
para aqui a fim de ficar ao meu lado!” (PENNA, 1970, p. 85).
Com a morte da menina, Mariana esposa do Comendador e mãe da pequena, é
acometida pela loucura e foge da fazenda. Depois de perder sua filha mais nova e sua
esposa, o Comendador manda buscar sua outra filha, Carlota que morava na Corte e
para lá havia se mudado ainda jovem a fim de estudar. Quando retornou ao Grotão,
Carlota se viu diante de um impasse. Seu pai havia lhe arrumado casamento. “_ Pois
bem... – pareceu hesitar e sua respiração era difícil – creio não ter podido explicar por
escrito o que devia dizer-lhe, porque você está moça, e já foi pedida em casamento. Em
breve será uma senhora, e nos deixará...” (PENNA, 1970, p. 233).
Em uma das visitas empreendidas pelo noivo à fazenda do Grotão, Carlota se
revolta interiormente com uma atitude que presencia de seu noivo em relação a um
escravo.
Carlota pôde ver bem a dificuldade com a qual o negro retirava a bagagem,
e só compreendeu o acontecido quando viu o escravo receber em cheio o
caixote sôbre um dos pés, pois não o conseguira reter na sua queda brusca,
ao se romperem as correias que o prendiam às grades do assento. Mais
rápido ainda, o moço agarrou o prêto pelo peito da japona por êle vestida e
fustigou-o às cegas em furiosos golpes com o chicote que trazia na mão
direita.
Carlota teve vontade de correr, de gritar, de rasgar o seu vestido, mas pôde
manter-se imóvel agarrada ao balaústre do alpendre e tinha certeza de que
se dêle desprendesse os dedos cairia no chão sem amparo. (PENNA, 1970,
p. 353).
Um dia, sem nada que fizesse prever qualquer coisa de novo, os escravos
receberam à noite, das mãos dos feitores irritados, suas cartas de alforria, e
voltaram para as senzalas, atônitos, sem saberem explicar a si próprios o
terem passado de sua miserável condição de escravos para a de homens
livres, assim de repente, sem cerimonial algum. (PENNA, 1970, p. 445).
A figura boa da ama negra que, nos tempos patriarcais, criava o menino lhe
dando de mamar, que lhe embalava a rede ou o berço, que lhe ensinava as
primeiras palavras de português errado, o primeiro ‘padre-nosso’, a
primeira ‘ave-maria’, o primeiro ‘vôte!’ ou ‘oxente’, que lhe dava na boca o
primeiro pirão com carne e ‘molho de ferrugem’, ela própria amolengando
a comida – outros vultos de negro se sucediam na vida de brasileiro de
outrora. (FREYRE, 1998, p. 335)
A ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo que com a comida:
machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para
a boca do menino branco as sílabas moles. [...] Amolecimento que se deu
em grande parte pela ação da ama negra junto à criança; do escravo preto
junto ao filho do senhor branco. Os nomes próprios foram dos que mais se
amaciaram, perdendo a solenidade, dissolvendo-se deliciosamente na boca
dos escravos. (FREYRE, 1998, p. 331).
No romance, Carlota é enviada à Corte para estudar. Este fato revela que o
romance trata de uma fazenda do fim do século XIX, momento em que houve abertura maior
dos costumes, e alguns fazendeiros passaram a permitir que suas filhas aprendessem mais do
que bordar e costurar.
Um fato triste é que muitas noivas de quinze anos morriam logo depois de
casadas. [...] Morriam de parto. [...] Ficava então o menino para as
mucamas criarem. Muito menino brasileiro do tempo da escravidão foi
criado inteiramente pelas mucamas. (FREYRE, 1998, p. 349).
REFERÊNCIAS
ALENCASTRO, Luiz Felipe. Vida privada e ordem privada no Império. In: _____________
(org.) História da Vida Privada No Brasil.Vol. 2. São Paulo: Cia das Letras, 1997. p. 11-93.
ARAÚJO, Emanuel. A Arte da Sedução: Sexualidade Feminina na Colônia. In: PRIORE, Mary
Del. (org.) História das Mulheres no Brasil. 2.ed. São Paulo: Contexto, 1997. p. 45-77
D’ INÁCIO, Maria Ângela. Mulher e Família Burguesa. In: PRIORE, Mary Del. (org.) História
das Mulheres no Brasil. 2.ed. São Paulo: Contexto, 1997. p. 223-240.
LIMA, Luis Costa. O Romance em Cornélio Penna. Minas Gerais: UFMG, 2005.
PENNA, Cornélio. A menina morta. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1970.
STEIN, Stanley J. Vassouras um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1990.