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O FEMININO NO BRASIL DO SÉCULO XIX: A QUESTÃO DA

SUBMISSÃO E A MULTIPLICIDADE DE FUNÇÕES

Bethânia Cristina Gaffo (UEL)

O presente trabalho tem por objetivo principal explorar o cenário feminino do Brasil agrário do
século XIX, a partir da leitura do romance “A Menina Morta” de Cornélio Penna. O romance
trata de uma família que habitava a fazenda do Grotão localizada no Vale do Paraíba e se passa
em fins do século XIX, pouco antes da abolição da escravatura. O autor narra a história a partir
do universo feminino dentro da fazenda. Assim podemos perceber a multiplicidade de funções
ocupadas pelas distintas mulheres que habitavam este cenário brasileiro. No enredo vemos a
estrutura social rígida de submissão, sendo rompida por uma mulher, que ao fim passa a tomar
conta da fazenda de café. Desta forma é possível abordar o romance como objeto para investigar
quais os papéis das mulheres no sistema patriarcal, suas influências na criação dos pequenos,
bem como de que forma elas conseguiam se apartar do sistema de dominação. Para isto busco
dialogar o romance com demais fontes entre elas, “Vassouras, um município brasileiro do café”
de Stanley Stein, “Vida Privada e Ordem Privada no Império” de Luiz Felipe de Alencastro,
“Casa-Grande e Senzala” de Gilberto Freyre, “A Arte da Sedução: sexualidade feminina na
colônia” de Emanuel Araújo, entre outras.

Palavras-chave: História, mulheres, patriarcalismo.


O FEMININO NO BRASIL DO SÉCULO XIX: A QUESTÃO DA
SUBMISSÃO E A MULTIPLICIDADE DE FUNÇÕES

Bethânia Cristina Gaffo (UEL)

O romance “A Menina Morta” escrito por Cornélio Penna e publicado em 1954,


trata de uma família que habitava a fazenda do grotão localizada no Vale do Paraíba,
Rio de Janeiro. Trata-se de uma literatura intimista, onde os personagens são expostos a
partir de seu interior. O enredo é apresentado pelo autor a partir das várias mulheres que
habitavam a fazenda, em sua multiplicidade de funções e as relações entre elas com o
masculino.
A história começa com o falecimento da filha mais nova do Comendador,
proprietário do Grotão. A partir desta morte a fazenda passa por mudanças extremas,
tendo seu ponto mais alto na ruptura que se dá entre o masculino e o feminino, onde a
administração da fazenda passa às mãos de Carlota, a filha mais velha do Comendador.
Ela é quem leva a fazenda à sua ruína.
A parir da morte desta criança é que as mudanças passam a acontecer no seio da
família patriarcal. Neste sistema econômico e político de organização social, o homem é
quem ocupava a posição de dominante. Sob a autoridade do senhor, proprietário de
terras, estavam todos os que viviam sob a sua proteção e que dependiam de sua renda.
Assim, do masculino dependiam tanto a sua família (esposa, filhos e parentes
agregados1) e também aqueles que trabalhavam em suas plantações, no caso do
romance, os escravos africanos e os homens livres, que seriam os feitores ou capatazes.
A figura do senhor inspirava temor, pois com ordens rígidas ele comandava
todos os que viviam em sua fazenda. Respeitado por todos, era figura onipotente. A
partir dele emanavam todas as ordens e regras as quais a sociedade em questão estava
submetida. No fragmento a seguir, percebemos a hierarquia presente no patriarcalismo.
1
Agregados correspondiam aos parentes que haviam perdido suas terras e riquezas, ou então as mulheres
que ficavam viúvas ou que ainda moças, perdiam os pais e passavam a viver nas fazendas de parentes que
as acolhiam. No romance, trata-se de mulheres, primas do Comendador ou de Mariana, sua esposa, que
passaram a viver no Grotão, sob a tutela do Comendador, pois não possuíam mais ninguém que pudesse
as amparar.
Com viva surprêsa verificou ser o fazendeiro em pessoa quem dirigia a
prece da noite, e ajoelhara-se diante do oratório com seu grande lenço
branco nas mãos. [...] Ainda na porta, Dona Virgínia viu o grupo formado
por êle, poucos passos à frente dos outros e logo seguido pelos quatro
homens hóspedes então da fazenda. Mais atrás, as senhoras vestidas todas
de negro, e formavam a vanguarda das mucamas de dentro, uniformizadas
de xadrezinho prêto e branco com as cabeças ocultas pelos lenços em
harmonia com as rendas das mantilhas postas nos cabelos das parentas e
da governante. (PENNA, 1970, p. 50)

Podemos observar ainda, que os homens ocupavam a posição à frente de todos,


mais especificamente, à frente das mulheres. As mucamas ou denominadas “escravas de
dentro”, ficavam por último na escala de proximidade em relação ao senhor. Os lenços
que levavam em seus cabelos compunham parte do uniforme que utilizavam e que
também seria uma maneira de firmar sua posição diante das demais senhoras da casa. A
vestimenta negra simboliza o luto pela morte da menina.
Com a leitura e análise do romance e de diversos historiadores que se
propuseram a investigar este período, podemos identificar as inúmeras funções que as
mulheres exerciam no cenário agrário do Brasil do fim do século XIX, bem como a
relação entre o masculino e o feminino neste período da história de nosso país. Podemos
refletir acerca das inúmeras funções que a mulher exercia na sociedade patriarcal, bem
como as posições sociais, sejam por laços sanguíneos ou pela cor da pele, as influências
comportamentais sobre as crianças e também como o feminino se sobrepunha, como
esta mulher respondia, ou sobrevivia aos laços rígidos do patriarcalismo.

Dependendo unicamente de sua ‘beleza física e riqueza’, as mulheres eram


consideradas inferiores aos homens. As jovens aprendiam a cortar,
costurar, bordar, fazer renda, preparar bolos e doces e supervisionar as
cozinheiras, arrumadeiras, copeiros e costureiras da fazenda. Algumas
aprendiam a assinar o nome e a cuidar das contas da casa. (STEIN, 1990,
p. 188).
Na sociedade patriarcal as mulheres estavam divididas entre dois grandes
grupos. As mulheres brancas (esposa, filhas, agregadas) e as mulheres negras (escravas
de dentro e escravas de fora). Entre as escravas de dentro havia as cozinheiras, as
mucamas, as faxineiras, as lavadeiras e as amas-de-leite. Entre as escravas de fora
estavam aquelas que trabalhavam nos eitos.
No romance dona Mariana era a matriarca. Por ser esposa do proprietário
da fazenda, todos os empregados e agregados lhe deviam obediência, apesar de não
apreciar o modo soberano como ela se portava. “O negro, vestido de surtum alvadio,
estava furioso com o trabalho dado pelos animais e ainda com a agravante de saber que
todos os seus sacrifícios eram para aquela dona impertinente, a qual nunca o saudava
sequer com um ‘para sempre seja louvado’.” (PENNA, 1970, p. 6).

A senhora, todos diziam ter ela porte de rainha, e a governante verificava


todos os dias que a sua figura e seus gestos eram muito mais imperiosos e
altivos do que o das louras e adiposas princesas por ela entrevistas em sua
cidade. (PENNA, 1970, p. 7).

Luiz Costa Lima nos aponta que no primeiro momento Mariana pode ser
caracterizada como uma presença ausente no Grotão que “resultava do conflito com a
ordem masculina e da incapacidade (ou disponibilidade) de combatê-la em nível igual.”
(LIMA, 2005, p. 144). Mariana, que não cedia ao poder legitimado do marido e nem
teria forças suficientes para desbancá-lo, prefere seu isolamento e se vê diante de seu
fim. Não suportando o luto nem à ordem a qual estava submetida, foge do Grotão para
retornar louca. É somente no limite da ausência, ou seja, na loucura, que foi possível
escapar da ordem imposta.
O senhor estava sempre rodeado por seus serviçais em casa e na lavoura por
seus trabalhadores livres, os feitores. “O pajem do senhor ficava junto da cabeceira
atento aos gestos e desejos de seu dono” (PENNA, 1970, p. 49). Em casa, além dos
empregados, as agregadas também recebiam ordens provenientes dele. “__A prima vai
buscar minha filha... Sim, Carlota! Ela deverá sair do colégio, definitivamente, e vir
para aqui a fim de ficar ao meu lado!” (PENNA, 1970, p. 85).
Com a morte da menina, Mariana esposa do Comendador e mãe da pequena, é
acometida pela loucura e foge da fazenda. Depois de perder sua filha mais nova e sua
esposa, o Comendador manda buscar sua outra filha, Carlota que morava na Corte e
para lá havia se mudado ainda jovem a fim de estudar. Quando retornou ao Grotão,
Carlota se viu diante de um impasse. Seu pai havia lhe arrumado casamento. “_ Pois
bem... – pareceu hesitar e sua respiração era difícil – creio não ter podido explicar por
escrito o que devia dizer-lhe, porque você está moça, e já foi pedida em casamento. Em
breve será uma senhora, e nos deixará...” (PENNA, 1970, p. 233).
Em uma das visitas empreendidas pelo noivo à fazenda do Grotão, Carlota se
revolta interiormente com uma atitude que presencia de seu noivo em relação a um
escravo.
Carlota pôde ver bem a dificuldade com a qual o negro retirava a bagagem,
e só compreendeu o acontecido quando viu o escravo receber em cheio o
caixote sôbre um dos pés, pois não o conseguira reter na sua queda brusca,
ao se romperem as correias que o prendiam às grades do assento. Mais
rápido ainda, o moço agarrou o prêto pelo peito da japona por êle vestida e
fustigou-o às cegas em furiosos golpes com o chicote que trazia na mão
direita.

Carlota teve vontade de correr, de gritar, de rasgar o seu vestido, mas pôde
manter-se imóvel agarrada ao balaústre do alpendre e tinha certeza de que
se dêle desprendesse os dedos cairia no chão sem amparo. (PENNA, 1970,
p. 353).

Neste momento, Carlota assume atitude de repulsa em relação ao seu noivo,


sentimento que a ajudaria a tomar a decisão de se negar ao matrimônio. Inicialmente,
submissa à vontade de seu pai, ela aceitou seu noivo, porém o patriarca a deixou
sozinha no Grotão e foi à Corte a fim de resolver alguns negócios da fazenda. Ao se ver
abandonada por sua mãe, que fugira, e por seu pai, Carlota é embebida por um
sentimento de solidão e de revolta contra o comportamento do rapaz e se recusa ao
matrimônio imposto.
Não aceitando a imposição do patriarca, ela se colocou contra a sua autoridade
negando o casamento arranjado, e consequentemente à ordem social vigente. Desta
maneira, Carlota estaria se “libertando do sagrado masculino.” (LIMA, 2005, p. 148).
Optar pelo matrimônio seria uma maneira de prosseguir vivendo os dias sombrios com
os quais se deparou quando retornou ao seu lar. Com isto, Carlota rompe não só com a
autoridade patriarcal, mas também com o mundo de costumes em que estava imersa a
fazenda.
Prosseguir nas ações de costumes que já estavam sendo praticadas há anos na
fazenda significava não só se submeter ao sistema patriarcal, mas sim reforçá-lo
enquanto unidade dominadora e irreversível. Seu pai é vitimado por uma enfermidade,
que o leva à morte deixando a fazenda nas mãos de Carlota, a única herdeira que restara,
pois o filho mais jovem também havia falecido e o mais velho envolvido em seus
afazeres na Corte, havia negado a herança de seu pai, abrindo mão da fazenda do
Grotão.
O poder a instiga e a leva a decisões extremas. Após receber as notícias da Corte
sobre as novas leis da escravatura, Carlota, que sempre se colocara contra o regime de
escravidão dos negros, alforriou os escravos antes da abolição.

Um dia, sem nada que fizesse prever qualquer coisa de novo, os escravos
receberam à noite, das mãos dos feitores irritados, suas cartas de alforria, e
voltaram para as senzalas, atônitos, sem saberem explicar a si próprios o
terem passado de sua miserável condição de escravos para a de homens
livres, assim de repente, sem cerimonial algum. (PENNA, 1970, p. 445).

Com esta medida, Carlota leva a fazenda à sua decadência e consequentemente à


sua ruína. Fora abandonada pelos convivas, que um a um partiram do Grotão, deixando
a menina na mais completa solidão. Sem contingente de trabalhadores, não havia
produção, não havia como dar continuidade ao que seus antepassados construíram.
Entre as demais mulheres que habitavam o Grotão estavam as agregadas que
exerciam algumas funções, entre elas, dona Virgínia ocupava a posição de governanta
da casa-grande. As outras se dedicavam a bordados, costuras e às orações na capela, ou
em seus quartos. Nos momentos de bordados elas eram acompanhadas pelas mucamas.
As senhoras trariam os seus bordados finos, os lenços para neles serem
abertas as bainhas de olho ou pregadas as rendas finíssimas vindas de
Bruxelas ou Malinês e as negras já estavam sentadas em seus bancos
abertos em ângulo, tendo no regaço as almofadas onde os bilros dançavam
àgilmente. (PENNA, 1970, p. 47)
Entre as escravas de dentro cada qual exercia a sua função sem que uma
interferisse no trabalho da outra. A escrava encarregada de cozinhar não poderia exercer a
função de limpar a casa, ou de lavar a roupa, por exemplo. “As senhoras sabiam que não podiam
mandar uma cozinheira realizar outras tarefas domésticas. Lavadeiras ou babás escravas
recusavam-se a lavar o chão ou o faziam de maneira relaxada, manchando paredes e cortinas.”
(STEIN, 1990, p. 175). Às mucamas cabia a função de servir às senhoras auxiliando-as a se
vestirem, escovar os cabelos, tomar banho e as acompanhavam quando precisavam sair ou
quando se dedicavam aos bordados e costuras.

Na casa, as mulheres mais jovens e tias solteironas, costuravam e bordavam


e preparavam guloseimas para dias festivos, enquanto a dona da casa
assumia mão firme na direção dos afazeres. Geralmente, uma sinhá ativa
carregava as chaves das despensas, que eram abertas duas vezes por dia
com o intuito de repartir mantimentos para as principais refeições
domésticas, e dos armários de roupas de cama e mesa, louça e prataria. Sob
sua direção, as escravas faziam as camas, arrumavam, varriam e
espanavam a poeira, enquanto as babás cuidavam das crianças menores e
as amas-de-leite amamentavam bebês aos gritos. (STEIN, 1990, p. 175).

Libânia, a ama-de-leite da menina morta, era filha de branco com escravo.


Proibida pelo senhor de comparecer ao funeral da menina, desacatou a sua ordem
perdendo sua carta de alforria, tornando-se ainda mais dependente da ordem
escravocrata. O apego à menina a impede de cumprir a ordem de seu senhor, pagando
com sua liberdade o ato de insubmissão.
No sistema patriarcal, muitas escravas amamentavam os filhos dos senhores e se
encarregavam de cuidar deles junto dos seus. Nesta fase, brancos e negros eram criados
juntos, talvez a única fase de suas vidas que obtinham o mesmo tratamento. Na criação,
as crianças recebiam influência direta no comportamento, na fala e também nos hábitos
alimentares. A criança desenvolvia afeto pela ama e passava a chamá-la de mãe preta.

A figura boa da ama negra que, nos tempos patriarcais, criava o menino lhe
dando de mamar, que lhe embalava a rede ou o berço, que lhe ensinava as
primeiras palavras de português errado, o primeiro ‘padre-nosso’, a
primeira ‘ave-maria’, o primeiro ‘vôte!’ ou ‘oxente’, que lhe dava na boca o
primeiro pirão com carne e ‘molho de ferrugem’, ela própria amolengando
a comida – outros vultos de negro se sucediam na vida de brasileiro de
outrora. (FREYRE, 1998, p. 335)

Para Gilberto Freyre é na fala que os pequenos receberam a maior influência da


ama-de-leite.

A ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo que com a comida:
machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para
a boca do menino branco as sílabas moles. [...] Amolecimento que se deu
em grande parte pela ação da ama negra junto à criança; do escravo preto
junto ao filho do senhor branco. Os nomes próprios foram dos que mais se
amaciaram, perdendo a solenidade, dissolvendo-se deliciosamente na boca
dos escravos. (FREYRE, 1998, p. 331).

Em outros casos o senhor se aproveitava das amas-de-leite de sua fazenda para


um comércio lucrativo, alugando-as a quem necessitasse. “O aluguel das amas-de-leite
representava uma atividade econômica importante nas cidades.” (ALENCASTRO, 1997, p. 63).
“Igualmente freqüentes eram os anúncios do tipo: ‘Aluga-se uma rapariga para ama-de-leite,
moça e sadia.” (STEIN, 1990, p. 105).

Os anos de infância, meninice e início da adolescência na fazenda eram


iguais para os filhos dos fazendeiros e de seus escravos. As parteiras negras
atendiam suas senhoras no parto, e estas retribuíam; ‘tias’ negras
amamentavam seus próprios filhos e os de suas senhoras e tomavam conta
dos bebês assim que começavam a engatinhar, a falar e andar. A constante
atenção carinhosa da escrava nutria nos filhos dos fazendeiros a imagem da
‘Mãe Preta’, que muitos carregavam pelo resto da vida. (STEIN, 1990, p.
185.)

As diferenciações começavam cedo. Ao atingir os 10 ou 12 anos de idade os


meninos negros começavam a trabalhar nos eitos, enquanto que os filhos dos fazendeiros
passavam a freqüentar as escolas, ou internatos localizados no centro urbano mais próximo, no
caso do romance, na Corte.
O programa de estudos destinados às meninas era bem diferente do dirigido
aos meninos, e mesmo nas matérias comuns, ministradas separadamente, o
aprendizado delas limitava-se ao mínimo, de forma ligeira, leve. Só as que
mais tarde seriam destinadas ao convento aprendiam latim e música; as
demais restringiam-se ao que interessava ao funcionamento do futuro lar:
ler, escrever, contar, coser e bordar. (ARAÚJO, 1997, p. 50).

No romance, Carlota é enviada à Corte para estudar. Este fato revela que o
romance trata de uma fazenda do fim do século XIX, momento em que houve abertura maior
dos costumes, e alguns fazendeiros passaram a permitir que suas filhas aprendessem mais do
que bordar e costurar.

Na segunda metade do século XIX, tornou-se mais comum os fazendeiros


permitirem que suas filhas aprendessem a ler, escrever, tocar piano e falar
francês, embora alguns fazendeiros fizessem pouco dessas inovações sob o
pretexto de que suas filhas tivessem poucas oportunidades de utilizar esses
conhecimentos. (STEIN, 1990, p. 188).

As meninas estavam sob constante vigilância, “durante o dia, a moça ou menina


branca estava sempre sob as vistas de pessoa mais velha ou da mucama de confiança.”
(FREYRE, 1998, p. 339). Mesmo quando dormiam, seus aposentos geralmente se
localizavam no centro, rodeados pelos aposentos dos adultos. “Mais uma prisão do que
aposento de gente livre. Espécie de quarto de doente grave que precisasse da vigília de
todos.” (FREYRE, 1998, p. 339).
Logo cedo os pais começavam a arranjar os casamentos, principalmente para as
meninas que deveriam se casar muito jovens, geralmente aos 12 anos elas já eram
consideradas maiores para se casar “A influência paterna e considerações políticas e
econômicas conspiravam para produzir uma alta proporção de casamentos endogâmicos
entre primos, casamentos extremamente controlados das filhas com sócios comerciais
ou com subordinados do pai.” (KUZNESOFF, 1989, p. 45).
Como envelheciam rápido por causa da vida que levavam, morriam antes
mesmo de chegar à terceira idade. Muitas faleciam mesmo antes de atingirem a vida
adulta, pois como eram mães muito jovens, não suportavam e morriam no parto.

Um fato triste é que muitas noivas de quinze anos morriam logo depois de
casadas. [...] Morriam de parto. [...] Ficava então o menino para as
mucamas criarem. Muito menino brasileiro do tempo da escravidão foi
criado inteiramente pelas mucamas. (FREYRE, 1998, p. 349).

No caso do romance, Carlota possuiu o privilégio de estudar para que depois, um


pouco mais velha, seu pai manifestasse o desejo de lhe arrumar casamento. Talvez por
não ter crescido na fazenda e sim na Corte, onde a modernidade chegava mais cedo,
Carlota possuiu forças para impor a sua vontade negando o matrimônio e rompendo
com a ordem de seu pai. Os estudos e a vida longe do ambiente familiar podem ter
levado Carlota a desenvolver certa autonomia e deixar para trás os laços de obediência e
submissão da casa de seus pais.
As mulheres casadas eram criadas para ser passivas, obedecer às vontades e
ordens de seus maridos, cuidar da educação dos filhos, dos criados da casa e também da
educação das filhas no período da adolescência.
As escravas de fora eram as que trabalhavam nos eitos e em suas hortas, onde
cultivavam gêneros para alimentação própria ou então para serem vendidos.
“Cultivavam gêneros alimentícios em seus pedaços de terra para vender, dessa maneira,
algumas, às vezes ajudadas por estranhos, compravam a liberdade.” (FREYRE, 1998, p.
187).
As que trabalhavam nos eitos levavam consigo as crianças e as mantinham sob
sua vigilância. “As mães carregavam crianças de peito em pequenas cestas tecidas
(jacás) às costas ou carregavam-nas montadas numa de suas ancas.” (FREYRE, 1998, p.
198).
Os castigos empreendidos contra os negros eram também aplicados com a
mesma brutalidade nas escravas mulheres. No romance, os castigos também aparecem,
horas para punir, horas sob forma de ameaça para advertir.
O feitor com uma praga gritou-lhes qualquer coisa que não entenderam.
Entretanto já conheciam o que era, puseram-se todas no meio da grande
quadra, elas mesmas desprenderam as pesadas camisas que lhe cobriam os
bustos de formas opulentas e exageradas, e ficaram nuas até a cintura.
Sabiam que não podiam receber palmatoadas como as outras porque então
não poderiam lavar a roupa naquele dia porque ficariam com as mãos
inchadas e sangrentas...e também não queriam rasgar os vestidos que
tinham de chegar até o dia de festa próxima, quando seriam feitas novas
distribuições! (PENNA, 1970, p. 65).

As escravas de mais idade exerciam atividades menos desgastantes,


como cozinhar na casa-grande, ou até mesmo nas senzalas. “A maioria das fazendas
possuía duas cozinhas: uma externa para os escravos e outra interna, onde era preparada
a comida da família do senhor.” (STEIN, 1990, p. 213). Estas se incumbiam de fabricar
utensílios que poderiam ser úteis na lavoura ou nas atividades da casa. “Na sombra do
engenho, uma velha escrava tecia esteiras e cortinas com tiras de bambu. Lavadeiras,
batendo e espalhando roupas para quarar ao sol, trabalhavam ritmicamente ‘no tom das
melodias tristes.” (STEIN, 1990, p. 202). Quando muito velhas, não possuíam mais
serventias e eram acomodadas em cantos onde repousavam aguardando o último suspiro
de vida. “A negra velha está muito mal, não pode andar, não pode mais trabalhar para os
brancos, e fica jogada aqui nesta cama, tanto tempo, tanto tempo!” (PENNA, 1970, p.
116).
As negras velhas também exerciam a função de parteiras, eram elas as
responsáveis pelo nascimento dos filhos do senhor e também das escravas. Dado as
condições em que eram feitos os partos, estas eram encarregadas tanto da vida como da
morte dos nascituros. Pois muitos morriam em função de complicações na hora do
parto, frequentemente vitimados pelo tétano umbilical ou outras doenças que os
levavam a óbito. “Dado que seu ofício tratava tanto da vida como da morte, as parteiras
tinham um sinal lúgubre pintado na frente das casas que habitavam – uma cruz preta -,
indicativo de sua profissão.” (ALENCASTRO, 1997, p. 71).
A distinção entre senhoras ricas e pobres, ou entre as senhoras e as escravas não
estava somente nas tarefas e ordem que ocupavam na hierarquia, mas também se fazia
através do vestuário. Era nos centros urbanos que as senhoras adquiriam os tecidos para
as roupas e entravam em contato com a influência da moda européia. “Foi grande a
influência das lojas de moda francesa do Rio de Janeiro sobre as senhoras de fazendas
prósperas, e muitas preferiam ir à capital em busca de modelos e materiais e, quando
podiam arcar com os preços, encomendavam os trajes lá mesmo.” (STEIN, 1990, p.
220).

O tecido e a forma do vestido indicavam o mundo em que vivia a mulher, as


abastadas exibiam sedas, veludos, serafinas, cassa, filós, debruados de ouro
e prata, musselina; as pobres contentavam-se com raxa de algodão, baeta
negra, picote, xales baratos e pouca coisa mais; as escravas estavam
limitadas a uma saia de chita, riscado ou zuarte, uma camisa de cassa
grossa ou vestido de linho, ganga ou baeta. Além de chapéus variados, as
mulheres ricas caprichavam no penteado. (ARAÚJO, 1997, p. 54).

No século XIX a sociedade sofreu grandes transformações comportamentais


inclusive no setor feminino. O nascimento da burguesia e o desenvolvimento de uma vida
urbana com novas formas de convivência social propiciaram o desenvolvimento de uma nova
visão sobre a sociedade em questão. Presenciamos nesta etapa o surgimento de uma nova
mulher, agora marcada pela valorização da intimidade.

A idéia de intimidade se ampliava e a família, em especial a mulher,


submetia-se à avaliação e opinião dos ‘outros’. A mulher de elite passou a
marcar presença em cafés, bailes, teatros e certos acontecimentos da vida
social. Se agora era mais livre – ‘a convivência social dá maior liberdade
às emoções’ -, não só o marido ou o pai vigiavam seus passos, sua conduta
era também submetida aos olhares atentos da sociedade. Essas mulheres
tiveram de aprender a comportar-se em público, a conviver de maneira
educada. (D’INÁCIO, 1997, p. 228).

Se antes a mulher estava presa à casa-grande e às amarras da fazenda, agora ela


passa a conviver em grupo. Para isto ela renova seu comportamento sempre destinado
ao olhar do outro. Desta forma a mulher passa a desenvolver certa autonomia, pois antes
ela agia de acordo com as regras impostas por seu marido e estava sempre sob seu olhar
vigilante. Agora, no convívio social, ela passa a ser responsável por seus próprios atos e
palavras, afinal passa a ter uma vida longe do olhar repressivo do homem.
O convívio com outras senhoras em meios públicos trouxe outras possibilidades
de entretenimento e, entre bordados e receitas, as novelas românticas passaram a ser
consumidas, trazendo um novo ideal sobre o amor. “As histórias de heroínas
românticas, langorosas e sofredoras acabaram por incentivar a idealização das relações
amorosas e das perspectivas de casamento.” (D’INÁCIO, 1997, p. 229).
Nesta nova visão de mundo, as mulheres casadas contribuíam para a ascensão da
família. “Mulheres casadas ganhavam uma nova função: contribuir para o projeto
familiar de mobilidade social através de sua postura nos salões como anfitriãs e na vida
cotidiana, em geral, como esposas modelares e boas mães.” (D’INÁCIO, 1997, p. 229).
Boa mãe significava participar desde cedo da criação dos filhos e ser a grande
responsável pelo ser humano que eles seriam no futuro.

Os cuidados e a supervisão da mãe passam a ser muito valorizados nessa


época, ganha força a idéia de que é muito importante que as próprias mães
cuidem da primeira educação dos filhos e não os deixem simplesmente
soltos sob influência das amas, negras ou ‘estranhos’, ‘moleques’ da rua.
(D’INÁCIO, 1997, p. 229).

Mas mesmo com mudanças no comportamento e estilo de vida nos meios


urbanos, a mulher continuou numa posição inferior ao homem. Os laços de obediência e
servidão não são facilmente rompidos. O que vemos são características de uma
sociedade que em seu seio se desenvolveu patriarcal e com o passar do tempo continuou
sendo. Mudanças comportamentais, visão de mundo diferentes apenas acrescentaram
características ao comportamento feminino, porém mudanças mais drásticas em relação
à subserviência poderemos perceber apenas no século XX.
No patriarcalismo do século XIX vemos a mulher condicionada à vontade
masculina, sempre servindo, seja branca ou negra. Neste ponto encontramos uma
semelhança que ultrapassa a cor da pele. De maneiras distintas a mulher ocupava a
posição inferior.
O romance nos faz pensar no sistema sendo rompido. A mulher que, com
autonomia, se nega a obedecer a ordem paterna e que por interferência do destino, ou
mais precisamente da morte, passa de posição inferior à superior. Porém, vemos que
quando Carlota obtém o poder, a fazenda não sobrevive. Se primeiro temos uma visão
mais moderna do autor em relação à sociedade patriarcal, em um segundo momento
temos uma visão mais conservadora e masculinizada sobre a falta de capacidade da
mulher em governar.
No patriarcalismo cabia à mulher o papel de obediência e respeito. Talvez a
maneira mais acertada de subverter a ordem seria através dos estudos que propiciavam à
mulher mais autonomia e sabedoria que fazia nascer nelas o grande sentimento da
coragem. Coragem para se impor à vontade do pai e sobretudo, para inverter o sistema
de mandonismo proveniente do patriarcalismo.

REFERÊNCIAS

ALENCASTRO, Luiz Felipe. Vida privada e ordem privada no Império. In: _____________
(org.) História da Vida Privada No Brasil.Vol. 2. São Paulo: Cia das Letras, 1997. p. 11-93.

ARAÚJO, Emanuel. A Arte da Sedução: Sexualidade Feminina na Colônia. In: PRIORE, Mary
Del. (org.) História das Mulheres no Brasil. 2.ed. São Paulo: Contexto, 1997. p. 45-77

D’ INÁCIO, Maria Ângela. Mulher e Família Burguesa. In: PRIORE, Mary Del. (org.) História
das Mulheres no Brasil. 2.ed. São Paulo: Contexto, 1997. p. 223-240.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. Rio de Janeiro: Record, 1998.

KUZNESOFF, Elizabeth Anne. A Família na Sociedade Brasileira: parentesco, clientelismo


e estrutura social. In: Revista Brasileira de História Vol. 9, Nº 17. São Paulo, set.88/fev.89.
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Acesso em 27/12/2011.

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