Você está na página 1de 11

Senado Federal

Secretaria de Biblioteca
Subsecretaria de Pesquisa e Recuperação de Informações Bibliográficas

Pesquisa realizada

pela

BIBLIOTECA do SENADO FEDERAL

Praça dos Três Poderes


Anexo li, Térreo ICEP70165-900 I Brasília
DF
Fones: 061 3303.1267 I 3303.1268
E-mail: biblioteca@senado.gov.br
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (ClP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Constituição e Estado social: os obstáculos à concretização


da constituição / organização de Francisco José Rodrigues
de Oliveira Neto... [et al.]. - São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais; Coimbra: Editora Coimbra, 2008.
Vários autores.
Outros organizadores: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho,
Orides Mezzaroba, Paulo de Tarso Brandão.
Bibliografia.
ISBN 978-85-203-3354-9 (Revista dos Tribunais)
ISBN 978-972-32-1609-7 (Coimbra Editora)
CONSTITUIÇÃO E ESTADO SOCIAL:
1. Direito constitucional 2. O Estado I. Oliveira Neto,
Francisco José Rodrigues de. 11. Coutinho, Jacinto Nelson OS OBSTÁCULOS À CONCRETIZAÇÃO
de Miranda. 111. Mezzaroba, Orides. IV. Brandão, Paulo de
Tarso.
DA CONSTITUIÇÃO
08-08821 CDU-342

índices para catálogo sistemático: 1. Direito constitucional 342


2. Estado de direito: Constituição: Direito constitucional 342

ORGANIZAÇÃO
DE
FRANCISCO JOSÉ RODRIGUES DE OLIVEIRA NETO

JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO

ORIDES MEZZAROBA

PAULO DE TARSO BRANDÃO

Co-edição

«5
AR VNO AD Ol'vINES

Coimbra Editora
EDITORA
REVISTA DOS TRIBUNAIS
256 Luiz Edson·Fachin

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert, Teoria de los derechos fundamentales, Madrid: Centro de Estúdios


Constitucionales, 1993.
AVRITZER, Leonardo, A Moralidade da Democracia, Belo Horizonte: Editora UFMG,
1996.
BARCELLONA, Pietro, EI individualismo propietario, Madrid: Trotta, 1996.
CARVALHO, Orlando de, A Teoria Geral da Relação Jurídica - seu sentido e seus limi- UMA CRÍTICA À PONDERAÇÃO
tes, Lisboa: Centelha, 1981. DE VALORES NA JURISPRUDÊNCIA RECENTE
DussEL, Enrique, Ética da Libertação: na idade da globalização e da exclusão, Petrópolis: DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
Vozes, 2002. O HC N. 82.424-2 (1)
FACHIN, Luiz Edson, Teoria critica do direito civil, 2. edição revisada e atualizada. Rio
de Janeiro: Renovar, 2004
MARCELO ANDRADE CATTONl DE OLIVEIRA (l)
HINKELLAMERT, Franz, EI Mapa deI Emperador, San José: DEI, 1996.
LOCKE, John, Segundo Tratado sobre o Governo Civil: Ensaio sobre a origem, os limi- "[Initium] ergo ut esset, homo est cre-
tes e os fins verdadeiros do governo civil, trad. Magda Lopes e Marisa Lobo da atus, ante quem nullus fuit"
Costa, Petrópolis: Vozes, 1999.
LUHMAN, Nildas, Sociologia do Direito, trad. Gustavo Bayer, Rio de Janeiro: Tempo Bra- (Agostinho)
sileiro, 1983. "Human plurality, the basic condition
MACPHERSON, C. B., A Teoria política do individualismo possessivo: de Hobbes a Locke, of both action and speech, has the twofold
trad. Nelson Dantas, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. character of equality and distinction. If men
MARQUES NETO, Agostinho Ramalho, Introdução ao estudo do Direito: conceito, objeto, were not equal, they could neither understand
método, Rio de Janeiro: Forense, 1996. each other and those who carne before them
MEIRELLES, Jussara, O ser e o ter na codificação civil brasileira: do sujeito virtual à clau- nor plan for the future and foresee the needs
sura patrimonial, in FACHIN, Luiz Edson (coord.), Repensando Fundamentos do of those who will come after them. ]f men
Direito Civil Brasileiro Contemporâneo, Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 87-114. were not distinct, each human being distin-
NEVES, Marcelo, Autopoiese e Alopoiese, Anuário do Mestrado em Direito da Univer- guished fiom any other who is, was, or will
sidade Federal do Recife, 1992. ever be, they would need neither speech nor
PERLINGIERl, Perfis do direito civil, Rio de Janeiro: Renovar, 1997. action to make themselves understood. Sigus
RUBlO, David Sanchez, Filosofia, Derecho y Liberación en America Latina, Bilbao: and sounds to communicate immediate, iden-
Desclée, 1999. tical needs and wants would be enough." (3)
SARLET, Ingo, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. Na Constituição
Federal de 1988, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. (Hannah Arendt)
SARLET, Ingo, Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em tomo
da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, in A Constituição Con- Todo processo de alteração de paradigma, quer seja na ciência,
cretizada: construindo pontes com o público e o privado, Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2000, p. 128.
quer seja na vida, não se dá sem resistências. Afinal, não são todos os
STRECK, Luiz Lênio, Diferença (Ontológica) entre texto e norma: Afastando o Fantasma
do Relativismo, Separata, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa, vol. XLVI - n. I, Coimbra Editora, 2005. (I) Este artigo é dedicado aos meus caros Lenio Streck e Theresa Calvet de
Magalhães.
(2) Mestre e Doutor em Direito (UFMG), Professor de Filosofia do Direito
(PUC-MG) e de Teoria da Constituição (UFMG).
(3) ARENDT, Hannah, The Human Condition. Chicago: University of Chicago,
1958, p. 175-176, tradução livre: "A pluralidade humana, a condição básica tanto da ação
17 - Consto e Estado Social
258 Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira Uma crítica à ponderação de valores na jurisprudência... 259

que, abertamente, reconhecem o esgotamento de uma concepção de riedade, aprendizado e renascimento: não há, pois, outro modo de se
mundo na qual construíram seu modo de compreender o trabalho cien- garantir o prosseguimento, quer de uma ciência digna do nome, quer de
tífico, assim como a si próprios. O paradigma no qual nos movemos é uma vida autêntica, que só se constróem na luta, no reconhecimento
constitutivo de nós mesmos. Ultrapassá-lo no sentido de sermos capa- recíproco e no debate intersubjetivo que as constituem.
zes de adquirir um novo horizonte de possibilidade de doação de sen- Percebe-se essa resistência ao novo, por exemplo, no tratamento
tidos à nossa auto-compreensão e à sociedade, ao mundo e à vida, mais dado pelo Supremo Tribunal Federal ao Mandado de Injunção, um ins-
amplo, rico e complexo do que o anterior, é saltar para além da linha de tituto introduzido pela nova ordem constitucional, para a garantia do
Rhodes, que um paradigma pode representar. Implica reconhecer, por exercício de direitos constitucionais, na falta de norma infra-constitucional
um lado, o caráter finito, falível e precário da condição humana, algo que regulamentadora. Na determinação sobre quais seriam os efeitos jurídicos
exige o aprendizado crítico e reflexivo em face de tradições sempre de uma decisão concessiva de tal injunção, ao arrepio de uma recons-
carentes de justificação, e requer o quase sempre doloroso abandono trução mais consistente da história constituinte e de uma doutrina cons-
daquilo que mais óbvio, natural, certo e assentado até então nos parecia. titucional comprometida com a efetividade dos direitos fundamentais, o
Por outro lado, implica reconhecer, com Hannah Arendt, em The Life 01 Supremo Tribunal Federal, no MI n. 107, assentou o entendimento
the Mind (4), que o que caracteriza a condição humana, não é um ser- segundo o qual não caberia ao Judiciário regulamentar, para e em cada
para-a-morte, como dizia Heidegger, inexoravelmente presente enquanto caso concreto submetido à sua apreciação, o exercício desses direitos,
finitude, mas um ser-natal, em aberto, capaz de liberdade por seu poder sobre a justificativa de que, se assim procedesse, estaria rompendo a
de inovar, de dar início, de se reinventar, de fazer nascer e renascer separação dos poderes e assumindo o papel de legislador positivo.
um mundo intersubjetivamente construído entre e em nós (5). Preca- Como procurei mostrar em oportunidade anterior (6), o pressuposto
do qual partia o STF era o de que, sem a interposição legislativa, nada
poderia fazer o Judiciário, a não ser informar ao legislador omisso da falta
quanto do discurso, possui o duplo caráter de igualdade e diferença. Se os homens de regulamentação. Na expressão crítica de José Carlos Barbosa Moreira,
não fossem iguais, eles não poderiam ser capazes de compreender-se uns aos outros e o Supremo Tribunal fez do Mandado de Injunção "um sino sem
àqueles que vieram antes deles, nem planejar o futuro e prever as necessidades daque-
les que virão depois. Se os homens não fossem diferentes, cada ser humano distinto de
todos os outros que existiram, existem ou virão a existir, eles não necessitariam nem do
discurso nem da ação para se fazerem entender. Sinais e sons, para comunicar neces-
sidades e carências imediatas e idênticas, seriam suficientes." rito, p. 348, que julgo extremamente pertinente à presente reflexão: "A própria capaci-
(4) ARENDT, Hannah, The Life ofthe Mind, San Diego: Harcourt, 1978, p. 108-110 dade de começar tem raiz na natalidade, e de forma alguma na criatividade, não em um
Tradução brasileira, A vida do espírito. O pensar, o querer, o julgar, trad. Antônio dom, mas no fato de que os seres humanos, novos homens, continuamente aparecem no
Abranches, César Augusto R. de Almeida e Helena Martins, Rio de Janeiro: Relume mundo em virtude do nascimento. Estou bem consciente de que o argumento, mesmo
Dumará, 2002, p. 266-267. Sobre o tema, ver, sobretudo, MAGALHÃES, Theresa Calvet na versão agostiniana, é um tanto opaco, e não nos parece dizer nada além de que esta-
de, "Hannah Arendt e a desconstrução fenomenológica da atividade de querer", in: mos condenados a ser livres parque nascemos, não importando se apreciamos a liber-
CORREIA, Adriano (coord.), Transpondo o abismo: Hannah Arendt entre a filosofia e a dade ou abominamos sua arbitrariedade, se ela nos 'apraz' ou se preferimos escapar à
política, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002; MAGALHÃES, Theresa Calvet de, sua terrível responsabilidade, elegendo alguma forma de fatalismo. Esse impasse, se é
"Compreensão e perdão em Hannah Arendt: a política como problema filosófico", in: que é um impasse, só pode ser desfeito ou resolvido pelo apelo a uma outra faculdade
BINGEMER, Maria Clara Lucchetti e YUNES, Eliana (arg.), Mulheres de palavra. São Paulo: do espírito, não menos misteriosa do que a faculdade de começar, a faculdade do Juízo,
Loyola, 2003; e BIGNOTTO, Newton, "Totalitarismo e Liberdade no pensamento de Han- cuja análise poderia no mínimo nos dizer o que está em jogo em nossos prazeres e
nah Arendt", in: MORAES, Eduardo Jardim de e BIGNOTTO, Newton (org.), Hannah desprazeres."
Arendt: Diálogos, reflexões, memórias, Belo Horizonte: UFMG, 2003, p. 111 a 123. (6) CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, Tutela Jurisdicional e Estado Demo-
(5) Sobre a questão da natalidade, de sua relação com a liberdade e seu caráter crático de Direito: Por uma reconstrução constitucionalmente adequada do Mandado
contingente, cabe citar um trecho de Hannah Arendt, mais uma vez, em A vida do espí- de Injunção, Belo Horizonte: Del Rey, 1998.
260 Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira Uma crítica à ponderação de valores na jurisprudência.., 261

badalo" (7), uma garantia que nada garante. Vencia, mais uma vez, o público" (9), com base numa nova compreensão, segundo a qual o racio-
entendimento tradicional segundo o qual "normas programáticas, depen- cínio jurídico deve ser compreendido como uma "ponderação de valo-
dentes de regulamentação legislativa" não teriam eficácia plena e apli- res", em que os princípios constitucionais passam a ser tratados, seguindo
cabilidade imediata, mesmo diante do enfático dispositivo do parágrafo a tradição da jurisprudência dos valores na Alemanha, como "comandos
primeiro, do art. 5.° da Constituição da República. Tanto do ponto de otimizáveis" (10), que colidem entre si para reger um caso concreto.
vista dos pressupostos de legitimidade, quanto dos pressupostos meto- Esses "princípios" devem ser aplicados em diferentes graus, mediante
dológicos, acolhia o STF, mais uma vez, supostos dificilmente susten- a utilização de "regras de prioridade" e do princípio da proporcionalidade,
táveis no horizonte de sentido constitucionalmente descortinado. a uma mesma decisão judicial, vista como um meio preferível, conve-
Esse julgado, que passa a ser considerado o precedente na matéria, niente ou ótimo para a realização de um ideal totalizante de sociedade, que
consagra não somente uma interpretação inadequada da separação dos estaria pressuposto à Constituição: uma pretensa ordem concreta de valo-
poderes, como, em razão de uma compreensão da norma jurídica redu- res, supostamente compartilhados por todos os membros da nossa sociedade
zida à regra, não reconhece ao ordenamento o seu caráter principiológico, política. Ou seja, a ponderação de princípios como valores, sob condições
carente não somente de concreção legislativa mas também jurisdicio- de prioridade e do princípio da proporcionalidade - que exige indagar pela
nal, pois cada uma dessas distintas tarefas cumpre papel próprio e espe- adequação, necessidade e estrita proporcionalidade da decisão a valores e
cífico no processo de possibilitar que a liberdade e a igualdade que a finalidades pretensamente compartilhados - submete a aplicação das
reciprocamente nos reconhecemos tenham garantida a chance de se normas a um cálculo de tipo custolbenefício, rompendo com a doutrina ante-
enraizarem em nossa vida concreta cotidiana de tal sorte a efetivamente riormente assentada das questões políticas, mas não necessariamente com
regerem as expectativas de comportamento internalizadas e por nós a sua compreensão do princípio da supremacia do interesse público.
compartilhadas. É de se perguntar, como acertadamente faz Baracho Junior (11),
Seguindo as reflexões de José Alfredo Baracho Junior (8), pode- quais as conseqüências dessa perspectiva de compreensão do raciocí-
mos afirmar que tal entendimento jurisdicional se encontraria assentado nio jurídico, típico da jurisprudência dos valores, para a proteção dos
em jurisprudência do STF, fundada numa compreensão equivocada da direitos fundamentais. Tal raciocínio garantiria uma tutela jurisdicional,
chamada doutrina das questões políticas e na tradicional interpretação mais consistente e adequada, dos direitos fundamentais?
do que seria uma supremacia do interesse público (leia-se estatal e Um bom exemplo de uso do raciocínio de ponderação proporcio-
governamental) sobre o interesse privado, a justificar a não proteção de nal é o julgamento do HC 82.424-2, Rio Grande do Sul, Relator Minis-
direitos pelo Judiciário.
Em casos mais recentes, contudo, o Supremo Tribunal Federal
estaria revendo sua jurisprudência, através daquilo que Baracho Junior
chamou de "relativização do princípio da supremacia do interesse (9) BARAcHO JUNIOR, José Alfredo de Oliveira, "A nova hermenêutica na juris-
prudência do Supremo Tribunal Federal", in: SAMPAIO, José Adércio Leite, Crise e desa-
fios da Constituição, Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 513 e segs.
(lO) ALEXY, Robert, Teoría de los derecho fundamentales, trad. Ernesto Garzón
Valdés, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2001. ALEXY, Robert, "On the struc-
(7) BARBOSA MOREIRA, José Carlos, "SOS para o Mandado de Injunção", Jornal tural of legal principIes", Ratio Juris, Malden, v. 13, n. 3, set. 2000, p. 294-304. ALEXY,
do Brasil, 11/09/1990, 1.0 caderno, p. 11. Robert, "Constitutional rights, balancing and rationality", Ratio Juris, Malden, v. 16,
(8) BARACHO JUNIOR, José Alfredo de Oliveira, "A interpretação dos direitos fun- n. 2, jun. 2003, p. 131-140.
damentais na Suprema Corte dos EUA e no Supremo Tribunal Federal", in: SAMPAIO, (11) BARACHO JUNIOR, José Alfredo de Oliveira, "A nova hermenêutica na juris-
José Adércio Leite, Jurisdição constitucional e direitos fundamentais, Belo Horizonte: prudência do Supremo Tribunal Federal", in: SAMPAIO, José Adércio Leite, Crise e desa-
Del Rey, 2003, p. 315-346. fios da Constituição, Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 513 e segs.
262 Marcelo Andrade Cattoni de ·Oliveira Uma crítica à ponderação de valores na jurisprudência... 263

tro Maurício Correia, o chamado HC sobre o racismo ou Caso Ell- acordo com os fins ou valores a serem realizados, na maior medida
wanger. Os advogados de Ellwanger, um editor de Porto Alegre, impe- possível, pela decisão a ser tomada. Assim, refletindo o posicionamento
traram esse habeas corpus, como sucedâneo recursal, em face de deci- majoritário, o Min. Gilmar Mendes procurou dar seguimento aos prin-
são proferida pelo Superior Tribunal de Justiça que, em última instância, cípios da dignidade humana e da liberdade de expressão como se fos-
mantinha condenação, proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do sem valores, hierarquizando-os, em face do caso, segundo o entendi-
Rio Grande do Sul, por crime de racismo. Por meio desse habeas cor- mento de que se tratava de uma violação, proporcionalmente injustificável,
pus, procurou-se argumentar que uma série de publicações, de natureza da dignidade humana, pelo exercício da liberdade de expressão. No
anti-semita, levadas a cabo por aquele editor, embora fossem reconhe- seu entendimento, a dignidade humana seria, não somente prima jacie,
cidamente discriminatórias aos judeus, não poderiam ser consideradas também mas em definitivo, um valor superior à liberdade de expres-
racistas. E, em sendo assim, por não se tratar de crime de racismo, são. Ao contrário, pois, de se reconhecer, em toda a sua extensão, a liber-
art. 20 da Lei 7.716/89, na redação dada pela Lei 8.081190, e Consti- dade de expressão, a não concessão do HC levaria à manutenção da
tuição da República, art. 5.°, XLII, o crime já estaria prescrito, ensejando condenação por crime de racismo e à conseqüente censura às publica-
a concessão do HC. ções discriminatórias, decisão que na maior medida alcançaria a promoção
Nesse julgado, vários Ministros do Supremo Tribunal Federal, e da democracia, do bem-estar e de uma cultura pluralista, já que, assim,
não somente a maioria vencedora, procuraram compreender o caso a melhor se estaria coibindo a intolerância social.
partir de uma suposta colisão entre valores, liberdade de expressão e Já o Min. Marco Aurélio, no seu voto, também buscou tratar os
dignidade da pessoa humana, solucionável a partir da ponderação. princípios da dignidade humana e do direito à liberdade de expressão
Comparando-se o posicionamento adotado pela maioria, que deci- como valores, bens ou interesses ponderáveis, hierarquizando-os, em
diu pela improcedência do HC, e o posicionamento da minoria, que face do caso e dos fins a que a decisão judicial deveria alcançar. Toda-
votou pela sua concessão, tomo por base, por exemplo, os votos dos via, segundo seu entendimento, embora até mesmo se pudesse reconhe-
Ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio. Cade dizer, desde já, que cer no caso uma violação da dignidade humana pelo exercício do direito
os Ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio chegaram a soluções dife- à liberdade de expressão, a concessão do HC, que levaria a não conde-
rentes, em razão, justamente, de pré-compreensões divergentes acerca de nação por crime de racismo e, conseqüentemente, a não censura às
como compreender as finalidades e os valores a serem alcançados ou publicações, mesmo que discriminatórias, seria proporcionalmente melhor
priorizados pela decisão a ser tomada. É possível perceber, pois, como à promoção da democracia, do bem-estar e de uma cultura pluralista, pois
a equiparação de princípios a valores, e de direitos a bens ou interesses deixaria a cargo da própria opinião pública a livre escolha ou decisão
ponderáveis, pressupõe, assim, premissas axiológicas, elas próprias, não sobre o tema.
discutidas, no curso do processo, a preorientar, de modo não proble- Várias críticas podem ser feitas ao raciodnio da ponderação de
matizado, o julgamento, do que resulta a que sejam privilegiados pon- valores (13). Afinal, ou nós estamos diante de uma conduta ilícita, abu-
tos de vista normativos em face de outros (12). siva, criminosa, ou, então, do exercício regular, e não abusivo, de um
Os dois votos pretenderam, a partir do chamado raciodnio de pon- direito. Tertium non datur (14)! Como é que uma conduta pode ser con-
deração, apresentar uma solução objetiva, justificável, para o caso, de

(13) Sobre essas críticas, ver HABERMAS, Jürgen, Facticidad y validez, trad.
(12) Nesse sentido, a arguta crítica de Klaus Günther em GÜNTHER, Klaus, The Manuel Jiménez Redondo, Madrid: Trotta, 1998, p. 326-334.
sense 01 appropriateness, trad. John Farell, Nova York: State University of New York, (14) Nesse ponto, ver a crítica precisa em CHAMON JUNIOR, Lucio Antônio, "Ter-
1988, p. 240-241. tium non datur: Pretensões de coercibilidade e validade em face de uma teoria da argu-
Uma crítica à ponderação de valores na jurisprudência... 265
264 Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira
de que houve racismo sim, sem que para isso tenhamos de renunciar ao
siderada, ao mesmo tempo, como lícita (o exercício de um direito à caráter normativo, deontológico do Direito. Considerando os argumen-
liberdade de expressão) e como ilícita (crime de racismo, que viola a dig- tos dos impetrantes do HC, a argumentação do MP e dos seus assistentes,
nidade humana), sem quebrar o caráter deontológico, normativo, do as fundamentações das decisões anteriores, do TJ-RS e do STJ, de modo
Direito? Como se houvesse uma conduta meio lícita, meio ilícita? a reconstruir imparcialmente as diversas pretensões apresentadas pelos
Esse entendimento judicial, que pressupõe a possibilidade de aplica- envolvidos no caso, podemos afirmar que não se tratava simplesmente
ção gradual, numa maior ou menor medida, de normas, ao confundi-las de uma discriminação religiosa, ou até mesmo de revisionismo histórico;
com valores, nega exatamente o caráter obrigatório do Direito (15). Tra- mas da atribuição intolerante, estigmatizada, a todo um povo, de uma pre-
tar a Constituição como uma ordem concreta de valores é pretender jus- tensa natureza comrpta e má, portanto indigna, a ser denunciada e com-
tificar a tese segundo a qual compete ao Poder Judiciário defInir o que pode batida. Tratava-se, assim, de crime de racismo (16) e não do exercício
ser discutido e expresso como digno desses valores, pois só haveria demo- regular do direito de liberdade de expressão (17), justificando-se, assim,
cracia, nesse ponto de vista, sob o pressuposto de que todos os membros a não concessão do HC (18).
de uma sociedade política compartilham, ou tenham de compartilhar, de Se na decisão sobre o Mandado de Injunção n. 107, o STF ainda
um modo comunitarista, os mesmos supostos axiológicos, uma mesma manteve o que seria uma práxis hermenêutica tradicional, na decisão
concepção de vida e de mundo. Ou, o que também é incorreto, que os do Habeas Corpus n. 82.424-2, bem se ilustra a tentativa de superação
interesses majoritários de uns devem prevalecer, de forma utilitarista, daquela práxis, no sentido de se construir uma nova hermenêutica jurí-
sobre os interesses minoritários de outros, quebrando, assim, o princípio
do reconhecimento recíproco de igual direitos de liberdade a todos.
A questão, no Caso Ellwanger, não deveria ter sido compreendida (16) Sobre história e crítica do anti-semitismo, ver ARENDT, Hannah, As origens
como uma colisão entre valores, em que se julga se a liberdade de do totalitarismo, trad. Roberto Raposo, São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Tam-
expressão é melhor ou pior do que, ou para, a promoção da dignidade bém a crítica ácida ao anti-semita e ao anti-semitismo em SARTRE, Jean-Paul, Refle-
humana; mas sim julgar se houve, afinal, em face do caso concreto, xões sobre o racismo. Reflexões sobre a questão judaica, São Paulo: Difusão Européia
do Livro, 1968. Como uma homenagem a Sartre, no seu centenário, cabe citar, por exem-
crime de racismo ou não, à luz das pretensões normativas, defendidas na
plo: "O anti-semitismo, em suma, é o medo diante da condição humana. O anti-semita
argumentação sustentada pelos envolvidos, e que poderiam ser reputadas é o homem que deseja ser rochedo implacável, torrente furiosa, raio devastador: tudo
abusivas ou não. E, assim, é possível chegar à conclusão, neste caso, menos ser homem." (p. 31).
(17) Sobre a liberdade de expressão como uma questão de princípio e não de
política, ver DWORKIN, Ronald, Uma questão de princípio, trad. Lnis Carlos Borges, São
Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 497 e segs. Sobre "Hate Speech" e os limites da liber-
mentação jurídica no marco de uma compreensão procedimental do Estado Democrático dade de expressão, ver a análise comparada em ROSENFELD, Michel, "Hate Speech in cons-
de Direito", in: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (org.), Jurisdição e Herme- titutional jurisprudence: a comparative analysis", Cardoso Law School, Working Papers
nêutica Constitucional no Estado Democrático de Direito, Belo Horizonte: Manda- Series n. 41, abro 2001, p. 1-63.
mentos, 2004, p. 79-120. Ver também COURA, Alexandre de Castro, "Limites e pos- (18) Em termos práticos, qual a diferença de se tratar princípios como normas ou
sibilidades da tutela jurisdicional no Estado Democrático de Direito: para uma análise como valores se, no caso, concordamos com o dispositivo da decisão, e não com a fun-
crítica da jurisprudência de valores", in: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (org.), damentação? O que está em questão é o reconhecimento de um princípio da integridade
Jurisdição e Hermenêutica Constitucional no Estado Democrático de Direito, Belo do Direito, subjacente ao projeto constituite de um Estado Democrático de Direito, da
Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 403-446. construção no tempo de uma sociedade de cidadãos solidários, livres e iguais, em detri-
(15) CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, "Jurisdição e hermenêutica consti- mento de um critério de eficiência, ou seja, o exercício dos direitos e a sua garantia não
tucional no Estado Democrático: um ensaio de teoria da interpretação enquanto teoria podem ser submetidos a um cálculo de custo/benefício (DWORKIN, Ronald, "The 1984
discursiva da argumentação jurídica de aplicação", in: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo McCorkle Lecture: Law's ambitions for itself', Virginia Law Review, University of Vir-
Andrade (org.), Jurisdição e Hermenêutica Constitucional no Estado Democrático de ginia Law School, v. 71, n. 2, mar. 1985, p. 173-187).
Direito, Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 66-70.
266 Marcelo Andrade Cattoni de ,Oliveira Uma crítica à ponderação de valores na jurisprudência... 267

dica, preocupada com a garantia dos direitos fundamentais - embora a estar garantindo a separação de poderes, assume um papel secundário de
perspectiva tradicional ainda esteja presente, num certo sentido, no voto buscar garantir o mínimo, como se fosse possível garantir os princípios
do Ministro Moreira Alves. do Estado de Direito sem democracia.
Com o Caso Ellwanger, o STF assume explicitamente a tarefa de Já a segunda visão paradigmática, embora reconheça os limites dos
empreender uma reflexão sobre o que seria uma metódica constitucio- pressupostos metodológicos e dos pressupostos de legitimidade da pri-
nal adequada à proteção dos direitos fundamentais. Contudo, a alternativa meira, judicializa a política e a julga à luz de pretensos valores supre-
que se delineia, fortemente influenciada pela jurisprudência dos valores, mos da comunidade, a que os tribunais superiores teriam acesso privi-
não corresponde a uma garantia consistente dos direitos, já que, por um legiado. Partidários desse tipo de ativismo judicial atribuem ao Judiciário
lado , submete o exercício desses direitos a um cálculo de custo/benefí- o papel de tutor da política, um super-poder quase constituinte, e per-
cio, e, por outro, faz do Tribunal um poder legislativo de segundo grau, manente, como pretensa e única forma de garantia de uma democracia
a controlar, de uma perspectiva legislativa e não jurisdicional, as esco- materializada e de massa, sem, contudo, considerar os riscos a que
lhas políticas legislativas e executivas, assim como as concepções de vida expõe o pluralismo cultural, social e político próprios a um Estado
digna dos cidadãos, à luz do que seus onze Ministros considerem ser o Democrático de Direito. É o Judiciário, ou melhor, os Tribunais supe-
melhor - e não o constitucionalmente adequado - para a sociedade bra- riores e, na sua crista, o Supremo Tribunal Federal, quem deve zelar pela
sileira. E, tudo isso, em função da realização de premissas materiais, dignidade da política e sua orientação a uma ordem concreta de valores,
elas próprias, não discutidas, ao logo dos votos. paradoxalmente a única possibilidade de exercício de "direitos" e de
Comparando-se, portanto, as decisões judiciais no MI n. 107 e no realização da democracia. Assim, o Supremo Tribunal Federal conver-
HC n. 82.424-2, uma disputa entre dois paradigmas jurídicos tomar-se ter-se-ia em guardião da moral e dos bons costumes, uma espécie de
explícita. Por um lado, o paradigma jurídico da velha escola formalista, sucessor do Poder Moderador, ou, quem sabe, do Santo Ofício, a ditar
liberal-conservadora e, por outro, o paradigma jurídico de uma tardia juris- um codex e um index de boas maneiras para o Legislativo e para o
prudência dos valores. Executivo. Trata-se, ao final, de uma postura que esconde uma intole-
O primeiro paradigma, fundado numa concepção privatista do rância extrema e preconceituosa para com os processos políticos, com a
Direito, compreende os conflitos sociais tão-somente como inter-indivi- qual quem perde, mais uma vez, é a cidadania.
duais, e a isso acrescenta uma concepção autoritária de Estado, para a Todavia, as duas visões paradigmáticas, a formalista e a materiali-
qual, mesmo agindo em prol de questões sociais, assume caráter poli- zante, podem ser compreendidas normativamente como alternativas con-
cialesco, ao apropriar-se paternalisticamente das demandas político- correntes, embora equivocadas, de garantia dos direitos privados, que des-
sociais. Nesse sentido, uma postura excessivamente individualista com- consideram o ponto central para a realização, no tempo, do projeto de
bina-se com a velha doutrina da segurança nacional e das razões de constituição de um Estado Democrático de Direito: nas palavras de Jür-
Estado, em que direitos sociais devem ser concedidos "de cima para gen Habermas (19), a coesão interna entre autonomia privada e autono-
baixo", os conflitos coletivos devem ser resolvidos de modo populista e mia pública, de que não se asseguram direitos privados sem direitos
peleguista, sem mobilização social autônoma, sem participação política, políticos, e vice-versa.
quando e como a tecnocracia assim o definir. Afinal, tratar-se-ia de Pois da mesma forma que cidadania não é algo natural, que se
"questões políticas" com as quais o Judiciário nâo deve se intrometer. garante tão-somente pelo reconhecimento de direitos privados e de uma
Lavando as mãos para os problemas sociais, tal postura paradigmática
vê a política como uma questão de composição quase privada, entre
Legislativo e Executivo, em que na maioria das vezes, o primeiro deve (19) HABERMAS, Jürgen, A inclusão do outro, trad. Gerge Sperber e Péulo Astor
ceder ao segundo, e o Judiciário, sob a desculpa suicida de pretensamente Soethe, São Paulo: Loyola, 2002, p. 285 e segs.
268 Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira Uma crítica à ponderação de valores na jurisprudência... 269

esfera de livre-arbítrio, cidadania não se ganha nem se concede, mas se ticipação e de representação do Estado Democrático de Direito. Nesse
conquista. Exige luta, reconhecimento recíproco e discussão, através sentido, não se pode esquecer que a tomada de decisão jurisdicional, que
de todo um processo de aprendizado social, capaz de se corrigir a si envolve, inclusive, o exercício de poder coercitivo, administrativo, tam-
mesmo, todavia sujeito, inclusive, a tropeços. bém pode assumir um papel "contramajoritário". O problema, pois, é
Ambas as posições estão cegas, portanto, para características como o Tribunal deve decidir, com base em pressupostos metódicos e
estruturais da sociedade e do Direito modernos, o que as impossibilita de legitimidade, adequados à Constituição de um Estado Democrático de
de lidar construtivamente com os riscos e com a complexidade das Direito, que leva a sério o nexo interno entre autonomias pública e pri-
questões jurídicas contemporâneas. Mais uma vez, estamos diante vada.
do esgotamento de perspectivas paradigmáticas, de se tentar lidar com Assim, para concluir, considero bastante instigante a proposta feita
questões normativas, típicas das teorias jurídicas da "Velha Europa" por Baracho Junior (22), quanto à necessidade de se reconstruir a dou-
(Luhmann). trina das questões políticas, reconhecendo o caráter hermenêutico da
Como já afirmado por Álvaro Ricardo de Souza Cruz (20) e por distinção "Direito-Política".
mim (21), o constitucionalismo democrático necessita da atuação de uma A doutrina das questões políticas foi construída ao longo dos pri-
jurisdição constitucional comprometida com a democracia, na garantia meiros anos da República Velha. O que se pretendia, com base nela, seria
das condições processuais para o exercício da cidadania, que leva em con- o estabelecimento de um critério para determinação da competência
sideração as desigualdades sociais e o pluralismo de identidades cultu- jurisdicional do Judiciário, em face do Legislativo e do Executivo, de
rais e individuais, mas que não deve, nem precisa, ser um substituto modo a se determinar a chamada "possibilidade jurídica do pedido",
para a cidadania que deve garantir. mas também a "legitimação para a causa", como diriam os processua-
Nesse ponto, todavia, é preciso certo cuidado. Não se defende, listas mais tradicionais. Seria, pois, necessário, nos termos da juris-
aqui, de modo algum, o esvaziamento das competências jurisdicionais do prudência construída pelo Supremo Tribunal Federal, alegar uma lesão
Supremo Tribunal Federal ou dos demais órgãos judiciais. Não se trata a direito individual, em princípio do próprio autor, para que o Judiciá-
de se transferir, em nome de uma pseudodemocracia, o poder de deci- rio pudesse conhecer da causa.
são para a sociedade civil ou para a opinião pública informal. Quem deve É claro que uma compreensão naturalizada da distinção entre "ques-
decidir sobre a licitude ou ilicitude, em face da apreciação de um caso tões de direito" e "questões políticas", típica do paradigma liberal, a
concreto, é o Poder Judiciário - e não somente porque, como no caso definir o que seria a matéria jurisdicionâvel, acabava por excluir da
do "HC sobre o racismo", o Direito Penal só se aplica através do Pro- apreciação do Poder Judiciário os chamados "atos políticos" e os "atos
cesso Penal. discricionários" do Executivo, assim como toda a chamada "matéria
Não se pode desconsiderar que a livre formação da opinião, a mobi- interna corporis", no caso do Legislativo.
lização social e política, que se dá numa esfera pública mais ampla, A partir da Revolução de 1930 e mais propriamente do golpe do
exige a devida mediação institucional, que corresponde aos canais de par- Estado Novo, em 1937, a chamada "supremacia do interesse público
sobre o privado" passa a ser tratada como critério para o julgamento de

(20) SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de, Jurisdição constitucional democrática,


Belo Horizonte: Del Rey, 2004. (22) BARACHO JUNIOR, José Alfredo de Oliveira, "A interpretação dos direitos
(21) CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, Devido processo legislativo: uma fundamentais na Suprema Corte dos EUA e no Supremo Tribunal Federal", in: SAMPAIO,
justificação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do José Adércio Leite, Jurisdição constitucional e direitos fundamentais, Belo Horizonte:
processo legislativo, Belo Horizonte: Mandamentos, 2006. Del Rey, 2003, p. 337-338.
270 Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira Uma crítica à ponderação de valores na jurisprudência... 271

mérito. Alega-se lesão a direito individual, o Judiciário tem jurisdição; Acredito, portanto, não somente ser possível, mas imperativo, recupe-
mas na hora de se julgar o mérito, ou a lesão se justifica, em razão do rar criticamente a intuição normativa, já presente na jurisprudência do
interesse público do Estado, ou então não é "realmente" lesão, é "res- Supremo Tribunal Federal, quanto à distinção "Direito-Política", e que
trição", "relativização", "limitação", "suspensão", "excepção", "estraté- a tese axiologizante vem agora obscurecer. Qual intuição normativa?
gia", em função de uma nova compreensão "social" (sic) do Direito e A do reconhecimento de que, embora a Constituição articule, de forma
do papel do Estado, segundo a qual os direitos só seriam direitos, atri- complexa, questões políticas - éticas, morais e pragmáticas - a ques-
buídos pelo Estado, na medida em que esses "direitos" ou o seu "exer- tões jurídicas, deve-se corretamente compreender tal articulação de um
cício" atendessem aos fins "objetivos" do Estado. O mesmo também se ponto de vista normativo, constitucionalmente adequado ao Estado
intensifica com a Ditadura Militar, pós-1964, com base na ideologia da Democrático Direito, de tal modo que a proteção de direitos não fique
segurança nacional. prejudicada por razões de Estado.
O que eu discordo, em princípio, é quanto à afirmação de parte da Contudo, o Judiciário, para isso, não deve ou necessita, por um
doutrina atual segundo a qual, recentemente, o STF estaria relativizando lado, assumir erroneamente o papel de poder constituinte permanente ou,
o "princípio da supremacia do interesse público", ao ponderar, usando ao menos, de um legislativo concorrente de segundo grau, ao confundir
como critério a proporcionalidade, interesse público (estatal) e interesse "argumentos de princípio" com "argumentos de política" (Dworkin),
privado. Não penso assim. Há uma tendência jurisprudencial a se rela- "normas com valores" (Habermas); nem deve ou necessita, por outro lado,
tivizar, isto sim, a distinção entre questões políticas e questões jurídicas, abdicar do seu lugar de autoridade democrativamente legitimada, quer
com consequências para a compreensão da separação de poderes, para cedendo à vontade política dos demais poderes, quer rendendo-se, de
o papel do STF, para a práxis e para a metódica constitucionais. Por modo não mediatizado institucionalmente, a uma formação da opinião
exemplo, ao considerar que, no exercício do controle concentrado, o pública informal.
STF exerce "tarefas não somente jurídicas mas políticas", ele é "legis-
tador negativo", mas também "legistador positivo", ainda que excep-
cional, em prol de um "interesse público ou social maior". BIBLIOGRAFIA
A aplicação de um "princípio" (sic) da proporcionalidade, a com-
ALEXY, Robert, Teoría de los derecho fundamentales, trad. Ernesto Garzón Valdés,
preensão dos princípios como valores otimizáveis, assim como a
Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2001.
compreensão dos direitos como bens ou interesses sujeitos a um cál- ÁLEXY, Robert, "On the structural of legal principIes", Ratio Juris, Malden, v. 13, n. 3,
culo de utilidade, confunde "argumentos de princípio" com "argu- set. 2000, p.294-304.
mentos de política", perspectiva jurisdicional e perspectiva legislativa. ÁLEXY, Robert, "Constitutional rights, balancing and rationality", Ratio Juris, Malden,
E, por isso, não garante direito algum, nem legitimidade à jurisdição. v. 16, n. 2, jun. 2003, p. 131-140.
ARENDT, Hannah, The Human Condition, Chicago: University of Chicago, 1958.
O que eu defendo é a necessidade de reinterpretar, e não de sim- ARENDT, Hannah, The Life of the Mind, San Diego: Harcourt, 1978.
plesmente abandonar ou "relativizar", a distinção entre "Direito" e ARENDT, Hannah, A vida do espírito. O pensar, o querer, o julgar, trad. Antônio Abran-
"Política", todavia, de uma perspectiva procedimentalista que, com ches, César Augusto R. de Almeida e Helena Martins, Rio de Janeiro: Relume
Habermas, considero a adequada à compreensão do Estado Demo- Dumará, 2002.
ARENDT, Hannah, As origens do totalitarismo, trad. Roberto Raposo, São Paulo: Com-
crático de Direito.
panhia das Letras, 2004.
Cabe notar: O que está em questão, quando se discute a distinção BARACHO JUNIOR, José Alfredo de Oliveira, "A interpretação dos direitos fundamentais
entre Direito e Política, questões jurídicas e questões políticas, é a pró- na Suprema Corte dos EUA e no Supremo Tribunal Federal", in: SAMPAIO, José
pria compreensão de Constituição, subjacente a essas distinções e suas Adércio Leite, Jurisdição constitucional e direitos fundamentais, Belo Horizonte:
compreensões. Del Rey, 2003, p. 315-346.
272 Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira Uma crítica à ponderação de valores na jurisprudência... 273

BARACHO JUNIOR, José Alfredo de Oliveira, "A nova hermenêutica na jurisprudência MAGALHÃES, Theresa Calvet de, "Compreensão e perdão em Hannah Arendt: a polí-
do Supremo Tribunal Federal", in: SAMPAIO, José Adércio Leite, Crise e desafios tica como problema filosófico", in: BINGEMER, Maria Clara Lucchetti e YUNES,
da Constituição, Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 513 e segs. Eliana (org.), Mulheres de palavra, São Paulo: Loyola, 2003.
BIGNOTTo, Newton, "Totalitarismo e Liberdade no pensamento de Hannah Arende', in: ROSENFELD, Michel, "Hate Speech in constitutional jurisprudence: a comparative analy-
MORAES, Eduardo Jardim de e BIGNOTTO, Newton (org.), Hannah Arendt: Diá- sis", Cardoso Law School, Working Papers Series, n. 41, abro 2001, p. 1-63.
logos, reflexões, memórias, Belo Horizonte: UFMG, 2003, p. 111 a 123. SARTRE, Jean-Paul, Reflexões sobre o racismo. Reflexões sobre a questão judaica, São
BARBOSA MOREIRA, José Carlos, "SOS para o Mandado de Injunção", Jornal do Brasil, Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968.
11-09-1990,1.° caderno, p. 11. SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de, Jurisdição constitucional democrática, Belo Hori-
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, Tutela Jurisdicional e Estado Democrático de zonte: Del Rey, 2004.
Direito: Por uma reconstrução constitucionalmente adequada do Mandado de
Injunção, Belo Horizonte: Del Rey, 1998.
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, "Jurisdição e hermenêutica constitucional no
Estado Democrático: um ensaio de teoria da interpretação enquanto teoria dis-
cursiva da argumentação jurídica de aplicação", in: CATTONI DE OLIVEIRA, Mar-
celo Andrade (org.), Jurisdição e Hermenêutica Constitucional no Estado Demo-
crático de Direito, Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, Devido processo legislativo: uma justificação
democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do pro-
cesso legislativo, Belo Horizonte: Mandamentos, 2006.
CHAMON JUNIOR, Lucio Antônio, "Tertium non datur: Pretensões de coercibilidade
e validade em face de uma teoria da argumentação jurídica no marco de uma
compreensão procedimental do Estado Democrático de Direito", in: CATTONI
DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (org.), Jurisdição e Hermenêutica Constitu-
cional no Estado Democrático de Direito, Belo Horizonte: Mandamentos,
2004, p. 79-120.
COURA, Alexandre de Castro, "Limites e possibilidades da tutela jurisdicional no Estado
Democrático de Direito: para uma análise crítica da jurisprudência de valores",
in: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (org.), Jurisdição e Hermenêutica
Constitucional no Estado Democrático de Direito, Belo Horizonte: Mandamen-
tos, 2004, p. 403-446.
DWORKIN, Ronald, "The 1984 McCorlde Lecture: Law's ambitions for itself', Virginia
Law Review, University of Virginia Law School, v. 71, n. 2, mar. 1985,
p. 173-187.
DWORKIN, Ronald, Uma questão de princípio, trad. Luis Carlos Borges, São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
GüNTHER, Klaus, The sense of appropriateness, trad. John Farell, Nova York: State Uni-
versity of New York, 1988.
HABERMAS, Jürgen, Facticidad y validez, trad. Manuel Jiménez Redondo, Madrid:
Trotta, 1998.
HABERMAS, Jürgen, A inclusão do outro, trad. Gerge Sperber e Paulo Astor Soethe, São
Paulo: Loyola, 2002.
MAGALHÃES, Theresa Calvet de, "Hannah Arendt e a desconstrução fenomenológica da
atividade de querer", in: CORREIA, Adriano (coord.), Transpondo o abismo:
Hannah Arendt entre a filosofia e a política, Rio de Janeiro: Forense Univer-
sitária, 2002.
18 - Consto e Estado Social

Você também pode gostar