Você está na página 1de 2

Análise do poema “ Ela canta, pobre ceifeira “, de Fernando Pessoa

Esta composição poética é constituída por seis quadras (de notar que o uso da quadra
é uma marca «popular» da poesia pessoana) de versos octossílabos e rima cruzada, de acordo
com o esquema abab.
O tema do texto é a dor de pensar, de ser racional, lúcido, do qual derivam outras
temáticas tão caras ao ortónimo:
. a consciência da efemeridade da vida;
. o tédio existencial;
. a dispersão e o aniquilamento finais.

O assunto assenta no confronto entre a pessoa de uma ceifeira que o sujeito poético
vislumbra fugazmente e ele próprio. Note-se que não há qualquer referência concreta à
ceifeira que a individualize (por exemplo, nome, rosto...), o que sugere esse carácter fugaz da
«visão» tida pelo sujeito poético.

Em suma, estaremos perante um instantâneo constituído por:


. uma ceifeira;
. um dia luminoso de Verão (v. 6);
. o canto da ceifeira (vv. 1, 3, 8, 11);
. o trabalho da ceifa enquanto canta (vv. 3, 10).

Nas três primeiras estrofes (1.ª parte), encontramos a descrição da ceifeira e do seu
canto. Com efeito, o “eu” vislumbra uma ceifeira a cantar, sinónimo (aparente) de alegria,
felicidade, suavidade, serenidade, inocência e espontaneidade. No entanto, em simultâneo, a
descrição é marcada por notas dissonantes: ela é "pobre" (isto é, "infeliz", "coitada") e a sua
voz encontra-se cheia de dor, de amargura ("... e a sua voz, cheia / De alegre e anónima
viuvez" - vv. 3-4 – de notar a metáfora e o paradoxo). Deste modo, o canto da ceifeira, que
aparentemente exprime sentimentos eufóricos, revela, na perspetiva do sujeito lírico,
superficialidade, irreflexão e inconsciência, ideia comprovada na terceira quadra.

Este quadro provoca uma reação antitética no sujeito poético: por um lado, alegra-se por
a ver feliz, graças à sua voz alegre e cheia de vida que o encanta e prende; por outro lado,
entristece, pois sabe que, se a ceifeira tivesse consciência do seu mundo, da sua situação, não
encontraria motivos para cantar. No entanto, "canta como se tivesse / Mais razões para cantar
que a vida" (comparação), mas o sujeito poético vê na sua voz "curvas", metáfora que poderá
sugerir diversas oscilações melódicas, sugerindo a suavidade do seu canto; vê ainda "o campo
e a lida", isto é, o trabalho árduo, excessivo e mal remunerado, o sofrimento, o rebaixamento
do ser humano, a mulher transformada em instrumento de produção. Como se explica, então,
que, não obstante este quadro, ela continue a cantar? O que acontece é que a ceifeira não
reflete (na sua vida), logo é inconsciente, e é esta inconsciência que justifica o seu canto e a
sua alegria.

A segunda parte do poema abarca a 4.ª, a 5.ª e a 6.ª estrofes, nas quais o sujeito poético
tece pedidos e exprime desejos.

Na quarta estrofe, começa por confessar a submissão em si do sentimento à razão,


que conduz à dor de pensar: "O que em mim sente 'stá pensando" (v. 14). Dito de outra
forma, a sua racionalidade está na base da sua incapacidade de sentir, o que revela um
contraste profundo entre ele e a ceifeira: ela é feliz porque inconsciente; pelo contrário, o
sujeito poético é infeliz porque consciente (pensa).
Esta constatação leva-o a formular um desejo impossível, dirigido à ceifeira, para
que continue a cantar, mesmo "sem razão", e que derrame dentro dele o seu canto ( verbo
“derramar”, utilizado metaforicamente, remete para a comparação entre o canto e o
bálsamo capaz de amenizar a dor de pensar ). Por outro lado, o “eu” deseja transformar-se
na ceifeira e possuir a sua inconsciência, mantendo a sua própria consciência, paradoxo
que revela a impossibilidade de concretização desse desejo.

Verificada a impossibilidade de ser conscientemente inconsciente, como a ceifeira, o


sujeito poético invoca (apóstrofe) o céu, o canto e a canção, pedindo-lhes que entrem nele
disponham da sua alma como sombra própria e o levem. Perante a dor de pensar que o
atormenta, o sujeito poético manifesta o desejo de dispersão, de aniquilamento - traduzido
pelo recurso ao imperativo e pela gradação ("entrai", "tornai", "passai"), bem como pela
personificação daqueles três elementos - , que culmina no derradeiro verso do poema, de
alguma forma eufemístico: "Depois, levando-me, passai".

Em suma, frustrada a possibilidade de possuir a alegria inconsciente da ceifeira com a


"consciência disso" e porque "a vida é tão breve" (referência à temática da brevidade /
fugacidade da vida), o sujeito poético entrega-se aos responsáveis pela alegria da ceifeira (o
ceú, por onde o canto se espalha; o campo, sinónimo do seu trabalho, e a canção,
reveladora da sua alegria inconsciente), sabendo de antemão que o seu caso é insolúvel.
Procura, então, um anestésico para a sua dor de pensar, a sua incurável angústia: a
dissolução, o aniquilamento.
Em suma, o poema revela-nos uma dupla perspetiva sobre a existência / vida:
- o sujeito poético é infeliz porque pensa, porque racionaliza em excesso: "O que
em mim sente 'stá pensando"; daí que ele inveje, admire e deseje a serena e alegre
inconsciência da ceifeira;

- a ceifeira, por sua vez, julga-se feliz, porque apenas sente, não racionaliza, não
intelectualiza a sua realidade, as suas emoções, o que leva o sujeito poético a exclamar "Ah,
canta, canta sem razão!" e a desejar "Ter a tua alegre inconsciência". Deste modo, a
ceifeira e o seu canto constituem a metáfora da felicidade inatingível.

Além disso, a sua figura simboliza:


» a simplicidade da vida;
» a identificação com a terra;
» a possibilidade de o sujeito poético ser feliz, caso possuísse a alegre inconsciência
dela.

O poema oscila entre a objetividade ( observação de uma ceifeira ) e a subjetividade


( presente nos juízos de valor que o sujeito de enunciação tece a propósito da ceifeira e
também no carácter reflexivo e introspetivo que assume a composição poética) :

Você também pode gostar