A celebração do ano litúrgico como caminho espiritual
Ione Buyst
1. A celebração dominical da Palavra de Deus acompanha o ano litúrgico. No decorrer do ano é
revelado todo o mistério de Cristo, desde a encarnação e natividade até a ascensão, o dia de Pentecostes e a expectativa da feliz esperança e vinda do Senhor (Cf. SC 102). Na atual organização do ano litúrgico na Igreja católica romana, distinguimos o ciclo do natal, o ciclo da páscoa e o tempo comum. Neste último se destacam os 33 ou 34 domingos, com textos bíblicos repartidos em 3 anos (A, B, C). Além disso, temos o ciclo das festas do Senhor durante o tempo comum e o ciclo das testemunhas do mistério pascal (Maria, apóstolos e evangelistas, outros santos e santas). A celebração destes vários mistérios - enfocando vários ‘aspectos’ (lados, ângulos, faces) do único mistério de Cristo e como que trazendo-os presentes no hoje de nossa história – nos permite participar dos mesmos, para que sejamos penetrados por eles e repletos da graça da salvação (Cf. SC 102). 2. O ano litúrgico é como que o eixo ao redor do qual vamos estruturando nossa vida espiritual. “De ano em ano, percorremos assim o caminho pascal: passando pela espera ardente do advento da definitiva vinda do Senhor, a divinização pela encarnação e manifestação do Filho de Deus em nossa humanidade celebrada no natal e na epifania; o deserto da quaresma; a paixão da cruz e a vitória da ressurreição; o fogo de pentecostes; a lenta perseverante identificação com o Cristo Jesus ao longo do tempo ou festa do ano litúrgico re-vela, realça, manifesta, nomeia as experiências pascais (na vida pessoal, comunitária, social...) feitas no dia-a-dia, à luz da páscoa de Cristo. É essencial a constante busca e o diálogo entre liturgia e vida. Se usarmos a imagem de uma montanha, podemos dizer que o ano litúrgico nos convida a subir como que em espiral. De ano em ano passamos pelas mesmas ‘paisagens’; porém, a celebração dos mistérios nos atinge a cada vez de modo diferente, devido à nossa realidade sempre ‘inédita’, sempre nova. Depende também da intensidade de nossa participação na celebração e de nossa abertura ao mistério. A possível partilha das experiências pascais em momentos como a recordação da vida e a homilia, possibilitam um enriquecimento maior para todos. 3. Vejamos três exemplos de como cada mistério celebrado corresponde a uma dimensão espiritual de nossa caminhada pascal no dia-a-dia de nossas vidas, seja a nível pessoal, social ou cósmico. Um primeiro exemplo: a celebração da vinda do Senhor no tempo do advento vem ao encontro de nossa busca fundamental. Somos seres de desejo, inacabados, sempre ‘em devir’, assim como a realidade social e cósmica da qual fazemos parte. Elementos rituais próprios deste tempo litúrgico expressam e nos ajudam a incorporar esta dimensão do mistério em nossas vidas: leituras bíblicas, cantos, a prece ‘Vem, Senhor Jesus!’, a cor roxa ou rosada, a coroa de advento, as antífonas do Ó... Ouvindo a promessa da plena realização do Reino de Deus, cresce a expectativa e podemos afirmar confiantes: ‘um outro mundo é possível!’ Cheios de esperança, suplicamos ‘Venha a nós o vosso Reino!’ e atendemos ao convite para a vigilância e a espera ativa, preparando os caminhos do Senhor. – Um segundo exemplo: a festa de Pentecostes (na qual desemboca todo o tempo pascal) é celebração do Espírito Santo, Dom do Pai, Amor de Deus derramado sobre nós, condição de nossa comunhão no Cristo Ressuscitado, fonte da transformação pascal de toda a realidade. Esta festa ativa em cada um de nós a vocação e a capacidade para o encontro, para o amor, para a união, para a doação, como pede a aclamação ao evangelho: “Vinde, Espirito Santo, enchei os corações dos vossos fiéis e acendei neles o fogo do vosso amor”. Não é o amor a força fundamental e única capaz de unir pessoas e povos de diferentes visões políticas, credos e culturas? A força secreta de comunhão presente no âmago do universo e que levará tudo e todos a se encontrar em Deus? Vários elementos rituais medeiam o mistério celebrado: leituras bíblicas, cantos (por exemplo, a seqüência de Pentecostes), a cor vermelha, em alguns lugares também a fogueira e a bandeira do Divino, o abraço da paz... Um terceiro exemplo ainda: nos domingos de tempo comum, a tônica é dada pela leitura continua de um dos evangelistas. Cada evangelho nos coloca no seguimento de Jesus Cristo, desde o chamamento dos discípulos até os ensinamentos a respeito do fim dos tempos. No ano A, ouvimos atentamente o evangelho de Mateus. O Cristo, qual novo Moisés, nos leva, em comunidade, como Igreja, a nos despojar de nosso tradicionalismo para nos abrir ao novo que Deus vai revelando no hoje da história; não são nossas práticas que nos salvam, mas a fé, a adesão a Cristo, a partir de nossa pequenez, a partir de nossa pobreza. No ano B, Marcos é nosso guia. Coloca-nos frente a frente com Jesus Cristo que é Messias que vem instaurar o reino de Deus, sim, porém, não de maneira clara, explícita; e não vem de forma triunfante, mas como servo sofredor, perseguido, executado na cruz. No ano C, é Lucas quem nos conduz; ele insiste no seguimento radical de Jesus, ensina-nos a orar, a amar, a perdoar, a nos deixar guiar pelo Espírito, a levar em conta as mulheres, a colocar no centro de nossa vida o acolhimento e a preocupação com os pobres... Toda esta lenta e progressiva caminhada do tempo comum vem de encontro a uma clara característica de nossa vida: somos chamados a descobrir nosso caminho, passo a passo; somos chamados a crescer no amor, a amadurecer, aprendendo muitas vezes a duras penas, através do sofrimento e do acúmulo de experiências. 4. Assim, participando dos ritos, somos chamados a participar sempre mais plenamente do mistério pascal de Jesus Cristo para sermos transfigurados, transformados nele. Cf. Gl 2,20: Já não sou mais eu que vivo, é Cristo que vive em mim. Trata-se de um processo espiritual pascal. É passagem do ‘homem velho’ para o ‘homem novo’ do qual fala São Paulo. É a “...atitude permanente ou um estilo de vida cristão baseado na assimilação ou identificação com Cristo, produzido pelo batismo e pela confirmação e a seguir nutridos pela plena participação à Eucaristia, aos sacramentos em geral e à oração da Igreja: tudo isso no âmbito fundamental do ano litúrgico e seguindo o ritmo cíclico que lhe é próprio”. Trata-se da recriação de nosso eu, adquirindo a forma de Jesus Cristo ressuscitado, segundo o Espírito de Deus. É processo lento e sofrido, e ao mesmo tempo alegre e esperançoso, que deverá durar até a nossa morte. Cada celebração se inscreve neste processo. Perfazendo seu próprio caminho pascal, cada pessoa está ao mesmo tempo participando e colaborando na páscoa de todo o tecido social, de toda a realidade cósmica (Cf. Rm, 8, 18-25), até à plena comunhão, quando Deus será tudo em todos (Cf. 1Cor 15,28). 5. A transformação espiritual a partir da participação na liturgia não se produz automaticamente. O Espírito atua, mas é preciso garantir nossa colaboração. Depende de um trabalho de cada participante e também de um trabalho dos ministérios que atuam na celebração. Cada participante é chamado a ‘entrar no jogo ritual’, com todo o seu ser (‘corpo’, mente, coração, espírito), aberto à atuação de Deus, colaborando com o ‘ofício’ divino. Os ministros e ministras têm função mistagógica: conduzir para dentro do mistério, levando a uma experiência do mistério celebrado. Trata-se do “... zelo pedagógico que devemos ter para comunicar às pessoas este mistério divino (...) para que as pessoas sejam de fato tocadas pela misericórdia de Deus, reconhecendo-se amadas, remidas e restauradas. (...) Por trás deste conjunto pedagógico está a ação do Espírito Santo, que é de fato o mistagogo que nos conduz no caminho espiritual”. De que forma os ministros podem cumprir essa missão? De duas maneiras: a) celebrando bem, proclamando os textos e realizando as ações rituais conscientemente, atentamente, imbuídos do espírito da festa, cheios de fé e de fervor, deixando-se guiar pelo Espírito de Deus; b) ajudando a comunidade, com breves motivações e principalmente na homilia, a perceber e acompanhar o caminho progressivo oferecido pelo ano litúrgico e que pede de cada um de nós atenção, seriedade no seguimento, revisão de vida..., assim como entrega confiante na misericórdia de Deus em relação aos nossos fracassos e gratidão por aquilo que Deus vai realizando ao longo de nossas vidas...
Obs.: Texto elaborado por Ione Buyst, para a Semana de Liturgia, realizada em outubro de 2002, em São Paulo.