Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
“Todos nós distinguimos intuitivamente entre as coisas que fazemos das coisas que nos
acontecem. Nas coisas que fazemos, há uma certa causalidade ou iniciativa que parte de nós.
Nas coisas que nos acontecem, limitamo-nos a ser receptores de efeitos que não iniciámos.
Comprar um bilhete é algo que eu faço; que me saia a lotaria é algo que me acontece. (...)
Quando um assaltante me rouba a carteira, o roubo da carteira é algo que o assaltante leva a
cabo ou faz, mas é algo que a mim me acontece. A causa ou origem da acção está no assaltante,
não em mim. Ele rouba-me; eu sou roubado.
A distinção entre a voz passiva e a voz activa dos verbos – comum a muitas línguas –
reflecte esta dicotomia: acção e paixão; o que fazemos e o que nos acontece.
Entre as coisas que fazemos, fazemos umas voluntariamente, porque queremos fazê-las,
enquanto outras fazemo-las sem querer.
Fazemos voluntária ou intencionalmente as coisas que fazemos querendo fazê-las,
consciente e propositadamente. Em tais casos dizemos que temos a intenção ou o propósito de
fazer o que fazemos.”
Jesús Mosterín in G. E. M. Anscombe, Intención, Barcelona, Paidós, 1991, p. 9
Causação
Receptores
Passividade Actividade
Acidental Iniciativa
(somos a causa/origem do acto)
Ex. Escorregar e cair.
INVOLUNTÁRIO VOLUNTÁRIO
ACTOS DO HOMEM ACÇÕES HUMANAS
inconsciente (ex. ressonar) consciente (ex. ir ao médico)
consciente (ex. actos reflexo)
“Deixando de lado alguns usos puramente técnicos da palavra ‘acção’ (…) o núcleo
significativo da palavra estriba na produção ou causação de um efeito. A palavra ‘acção’
emprega-se às vezes para falar de animais não humanos (diz-se que a acção das cigarras é
benéfica para a agricultura) ou, inclusive, de objectos inanimados (diz-se que a gravitação é uma
forma de acção à distância ou que a toda a acção exercida sobre um corpo corresponde uma
acção igual de sentido contrário). Mas, sobretudo, usamos a palavra ‘acção’ para nos referirmos
ao que fazem os humanos. Aqui só nos interessa este tipo de acção, a acção humana.”
(...)
As nossas acções são (algumas das) coisas que fazemos. (...) Tudo quanto realizamos é
parte da nossa conduta, mas nem tudo o que realizamos constitui uma acção. Enquanto
dormimos realizamos muitas coisas: respiramos, suamos, damos voltas, apertamos a cabeça
contra a almofada, sonhamos, talvez ressonemos alto ou falemos em voz alta ou andemos
sonâmbulos pela casa. Todas estas coisas são realizadas de forma inconsciente, enquanto
dormimos. Realizamo-las mas não damos conta delas, não temos consciência que as
realizamos. A estas coisas que fazemos inconscientemente não lhes vamos chamar acções.
Vamos reservar o termo ‘acção’ para as coisas que realizamos conscientemente, dando-nos
conta do que fazemos.
Por outro lado, há coisas que fazemos conscientemente (…) mas sem que à sua realização
corresponda uma intenção nossa. Damo-nos conta dos nossos ‘tiques' e de muitos dos nossos
actos reflexos, mas realizamo-los involuntariamente, constatamo-los como espectadores, não os
efectuamos como agentes. (...). Por algo que sentimos depois de comer damo-nos conta que
estamos a fazer a digestão. Mas fazer a digestão não constitui uma acção. Pelos sorrisos dos
que nos observam damo-nos conta que estamos a ser ridículos. Mas ser ridículo (praticar actos
ridículos) não é uma acção, mas uma reacção, algo que nos passa despercebido e que
lamentamos (a não ser que o façamos de propósito, como provocação; neste caso já seria uma
acção). Também não chamamos acção a esses aspectos da nossa conduta de que nos damos
conta, mas que não efectuamos intencionalmente.
MOSTERÍN, Jesús (1987). Racionalidad y Acción Humana. Madrid: Alianza, p.141-142, in J. Neves
VICENTE (1997). Razão e Diálogo. Porto: Porto Editora, p. 98)