Você está na página 1de 6

Título do trabalho: FILME DOCUMENTÁRIO E ETNOGRAFIA: APLICAÇÃO DE

ALGUNS PRINCÍPIOS DA ANTROPOLOGIA FÍLMICA NO ESTUDO DE UM


GRUPO AGRO-DESCENDENTE DE SALVADOR
Autor: José Francisco Serafim
Instituição: Universidade Federal da Bahia -UFBA

RESUMO

Através do instrumental teórico/metodológico da antropologia fílmica serão examinadas,


dentre outras questões, aquelas relativas à auto-mise en scène dos processos observados e
da profilmia das pessoas filmadas, no âmbito de uma pesquisa fílmica exploratória
referente ao grupo carnavalesco de Salvador, Malê Debalê. Serão abordados igualmente
aspectos relativos ao método de trabalho do pesquisador-cineasta junto ao grupo
estudado. A título de exemplo, será apresentada uma seqüência videográfica sobre os
pontos abordados.

I - Introdução

O presente trabalho apresenta resultados parciais de uma pesquisa que realizo junto ao
grupo afro-descendente Malê Debalê (Salvador, BA). Utilizo durante a pesquisa o
instrumental teórico da antropologia fílmica, ou seja, uso a câmera videográfica como
forma privilegiada para coletar dados sobre o grupo estudado. O instrumental fílmico
passa a ser fundamental para a compreensão dos processos observados. Trabalho este
instrumental tal qual o define C. de France 43 , ou seja, a câmera está presente desde o
início da pesquisa, após ter obtido o acordo do grupo com o qual desejamos trabalhar.
Exploro, desta forma, os diferentes processos que se apresentam, sem o conhecimento
prévio destes, utilizando uma câmera videográfica digital, método de trabalho que a
pesquisadora citada acima define como exploratório, ou seja, que concerne “a supressão
da observação direta como etapa preliminar indispensável para a pesquisa; ou, o que dá
no mesmo, a instauração do registro fílmico precedendo qualquer observação
aprofundada” (France 1998, p.343).

A utilização da imagem em movimento permite a apreensão de um determinado


processo, mas ao fazê- lo, outros elementos, digamos, secundários, podem estar
igualmente presentes na imagem, ocorrendo desta forma uma saturação da imagem, que
segundo C. de France “não é outra coisa senão a expressão particular de uma lei
cenográfica geral, que qualificaremos de lei da saturação da imagem, segundo a qual
mostrar uma coisa é mostrar outra simultaneamente” (Id, ibid, p.43). A imagem tem este
poder de ao mesmo tempo em que apreende um determinado processo, desvenda outros
simultaneamente, podendo estes se apresentar tanto no campo visual e/ou sonoro.

Se práticas espetaculares têm o poder de ser facilmente apreendidas pelo sensível


(película, vídeo etc.) também podem ocorrer de formas diversas e muitas vezes
complexas, em razão do grande número de agentes e da simultaneidade de atividades.
43
As bases teóricas desta disciplina foram formuladas pela antropóloga-cineasta Claudine de France, que as
expõe em seu livro Cinema e Antropologia (1998).
Pois como observa Jean Rouch, certos processos e, sobretudo processos rituais,
“apresentam um grande número de ações simultâneas, um certo numero de gestos podem
parecer sem interesse, sendo que outros podem parecer mais importantes, mas quando da
análise percebemos freqüentemente que destes gestos, é o menos visível, o mais discreto,
que é o mais importante”. (Rouch 1968, p.463).

O cinema etnográfico tem nesses processos espetaculares e, sobretudo no


espetáculo, um de seus temas recorrentes; mas que dizer quanto aos seus bastidores, ou
seja, ao tempo e trabalho necessários para que o espetáculo possa acontecer? Que dizer
quanto às formas de aquisição e transmissão desses saberes (musicais, coreográficos
etc.)? Como estes se articulam no tempo/espaço?

Através deste instrumental teórico será possível analisar diferentes processos


relativos aos bastidores de um grande espetáculo, o carnaval de Salvador, através de um
dos seus protagonistas, o Malê Debalê.

II – O Malê Debalê

O bloco afro-descendente Malê Debalê foi criado em 1979 por um grupo de


pessoas habitantes do bairro de Itapuã (Salvador, BA). 44 O bloco desfilou pela primeira
vez em 1980 com o tema “Reino Dourado dos Achantes” 45 . O tema musical daquele ano,
“Diz meu povo”, fazia referência a existência do próprio grupo. O nome escolhido para o
grupo, “Malê”, é uma homenagem, aos negros islamizados trazidos como escravos da
África para o Brasil e que promoveram duas importantes revoltas em Salvador nos anos
de 1807 e 183546 . Quanto a “Debalê”, esta foi uma palavra inventada. Podemos
evidenciar já na formação do nome do grupo, Malê (palavra de origem africana) e Debalê
(palavra inventada) as formas de sincretismo que ocorrerão nas configurações de
espetacularidade do grupo, ou seja, busca-se uma identidade nas raízes africanas, mas que
serão revisitadas pelas influências da cultura brasileira. Será então esta matriz identitária,
a afro-descendência e a localização no bairro de Itapuã, que congregará os membros do
grupo. Estes são na sua maior parte oriundos de locais desfavorecidos do bairro de
Itapuã 47 e estão inseridos no mercado de trabalho como pescadores, lavadeiras,
quituteiras, empregados domésticos, entre outros, ou encontram-se desempregados.

No início dos anos 1990 os membros do grupo conseguiram, através de várias


reivindicações, um local situado nas proximidades da Lagoa de Abaeté para sediar o
44
Cf Lucia Lobato, Malê Debalê: Um espetáculo de resistência negra na cultura baiana contemporânea
(2001).
45
É interessante notar que o grupo até os anos 1990 privilegiou temas fazendo referência a países africanos
(Sudão, África do Sul, Namíbia etc.). A paritr desta data o bloco privilegiará temas mais próximos de seu
contexto ( Bahia, Itapuã, Lagoa do Abaeté etc.)
46
Cf. Nei Lopes, Bantos, malês e identidade negra (1988).
47
È interessante notar que o tema escolhido para o carnaval de 2003 foi o de “Quilombos Urbanos”, que
procurará dar visibilidade as regiões periféricas e não privilegiadas da região de Itapuã (Baixa da Soronha,
Nova Brasília, Bairro da Paz, entre outras).
bloco. Este local apresenta instalações que permitem o funcionamento do grupo: salas de
reunião, local de depósito para os instrumentos musicais, sanitários, quadra para ensaio
etc. Este local é, sobretudo, utilizado para os ensaios da banda e das diferentes alas
coreográficas, que ocorrem freqüentemente aos domingos, atraindo um grande número de
pessoas da comunidade de Itapuã 48 .

Atualmente o grupo conta com uma diretoria composta por sete membros, sendo
um presidente e os outros ocupando a função de diretores. O bloco desfilou no carnaval
de 2002 com aproximadamente 3.000 membros na avenida. Uma das particularidades do
bloco é a de somente desfilar no circuito central da cidade (Campo Grande). Quatorze
alas compareceram este ano ao desfile, que teve por tema a Mandinga. Estas alas foram
acompanhadas de duas alegorias: no primeiro estavam o rei e a rainha malê e no outro os
cantores e os equipamentos de iluminação e sonorização. O desfile contou também com
uma bateria composta por 150 músicos, que utilizam somente instrumentos percusivos.

Se o desfile no carnaval é um dos ápices da atividade do Malê, isto não significa


que seja o resumo do conj unto de atividades nas quais o grupo está atualmente envolvido.
Neste sentido, podemos citar, entre outras, o trabalho de resgate de práticas tradicionais
da comunidade de Itapuã, a elaboração de material didático referente a estas práticas,
objetivando um maior conhecimento destas pelos alunos das escolas do bairro e a
participação em diferentes festas populares da comunidade (Lavagem de Itapuã, Festa da
Baleia, etc.).

III-O registro fílmico

Sabemos, como pesquisadores, da importância de uma das fases iniciais e


fundamentais para o êxito de toda pesquisa de campo, ou seja, do trabalho (e do tempo)
necessários para a inserção do pesquisador junto ao grupo estudado. No que diz respeito
ao Malê, Lúcia Lobato pondera que uma “característica tribal, presente no Malê, é a
desconfiança àqueles que chegam de fora. Apesar de serem bem recebidos e sentirem um
clima hospitaleiro e acolhedor, não partilharão da confiança e da intimidade do grupo. Há
o que pode ser revelado e o que constitui uma espécie de segredo. Pode-se reconhecer
um comportamento secreto no grupo, face àquele ou àquilo que vem de fora, o que
determina um autocentramento, e que até certo ponto foi determinante para sua
perdurância”.(Lobato 2001, p. 47). Mais adiante, a autora justifica este comportamento
acrescentando que “assim, não é de estranhar que a personalidade da Tribo Malê seja
arredia, caracterizada pela teimosia, a desconfiança e o autocentramento, mesclados a
uma certa ingenuidade própria dos que vivem na aldeia” (Id., ibid., p. 47). Apesar deste
comportamento de desconfiança face ao outro, aludido por Lobato, iniciei a pesquisa
fílmica junto ao Malê em dezembro de 2001, momento que correspondia às fases finais
dos preparativos para o carnaval de 2002. O grupo aceitou minha presença nos seus
ensaios públicos e gradualmente seus membros se habituaram também à presença da
câmera e neste momento de contato inicial, somente observei e filmei atividades públicas

48
Lúcia Lobato qualifica este espaço de sociabilidade como sendo o “clube social” da população de baixa
renda local (comentário pessoal).
(ensaios, shows etc.) 49 . Deverei, em uma fase posterior da pesquisa, me ater às relações
existentes entre vida cotidiana e religiosidade, no contexto do carnaval, tal qual o
vivenciam o grupo Malê.
O documento que serve de base de análise deste trabalho, Malê I, foi realizado na quadra
de ensaios do bloco em Itapuã, em dezembro de 2001. Entretanto, após esta data realizei
outros vídeos sobre o Malê Debalê.
A filmagen foi realizada com uma câmera videográfica digital que, em razão de sua
pequena dimensão, possibilitou que o meu comportamento enquanto cineasta passasse
quase desapercebido das pessoas filmadas, e fosse assim possível apreender, entre outras
atividades, momentos fugazes correspondendo a aprendizados difusos tanto musicais,
quanto coreográficos.

Desde já podemos nos questionar sobre as opções de mise en scène passíveis de


apreender a complexidade das atividades desenvolvidas, bem como o desenvolvimento
destas no espaço. Quais postos de observação 50 adotar a fim de possibilitar uma maior
compreensão dos processos observados?

No que concerne ao cinema documentário, uma das melhores opções


cinematográficas consiste na concordância (ou adaptação) da mise en scène do cineasta
àquela das pessoas ou dos processos filmados (auto-mise em scène). Quando esta regra é
obedecida teremos um produto final já pré-editado que segue a cronologia do processo.
Claro, para que isto ocorra teremos igualmente de ter obedecido à regra cinematográfica
que consiste na variação de ângulos e enquadramentos, ou, como sublinha Jean Rouch,
utilizando o método do “filmar- montar”. Temos que estar igualmente atentos à duração
de cada plano, para que no documento final, seja visível na imagem não o ritmo do
cineasta, mas sim, o das pessoas filmadas.

Tratando-se, como é o caso do Malê Debalê, de atividades incluindo


simultaneamente coreografia e música, congregando um grande número de participantes,
optamos em apresentar na imagem os diferentes componentes dos processos, mas
também as pessoas que se encontram no local. Desta forma, o fio condutor da filmagem
buscou delimitar e descrever através da imagem animada estes processos observados em
um determinado local (a quadra de ensaio) e durante uma variação temporal (das 18h00
às 21h00).
Os espectadores do Malê como podemos vê- los no documento Malê I, pertencem
a duas categorias. A maioria adota uma atitude passiva face ao espetáculo e assiste ao
ensaio, outros, ao contrário, e, sobretudo, as crianças, não somente observam a geração
mais velha no desenvolvimento de suas atividades como também vão imitá- la exercendo-
se na execução de certos comportamentos. A imagem revela então não somente o ensaio
musical e coreográfico de uma parte do bloco, como também mostra formas de
transmissão e de aquisição dos saberes51 .

49
Convém observar que o fato de ter sido introduzido no grupo por um de seus membros, contribuiu para
despertar a confiança do grupo para com o pesquisador.
50
Noção formulada por Jane Gueronnet em Le geste cinématographique (1987).
51
Em relação à filmagem dos aprendizados humanos ver Annie Comolli (1995, 2000).
O documento Malê I nos coloca face à questão dos aprendizados, quando mostra
no início de um plano, uma criança batendo em um tambor. Após um plano fixo de
alguns segundos, um trajeto efetuado da esquerda para a direita apresenta os membros da
bateria tocando seus instrumentos de percussão. Um plano posterior apresenta o maestro
da banda orientando o conjunto de músicos. Esta seqüência em sua aparência simples,
revela duas formas de transmissão e aquisição de saberes que podem ser observados no
que diz respeito aos aprendizados humanos, que podem ser pontuais ou difusos52 .
Incluímos o ensaio da banda sob a orientação do maestro como uma situação de
aprendizado pontual. Já a criança que se exerce com o tambor, estaria em um asituação
de aprendizado difuso. É necessário observar que uma das características do aprendizado
difuso é a de ocorrer freqüentemente envo lvido no fluxo de outras atividades, ou seja é
menos perceptível ao observador-cineasta.
Uma outra seqüência do mesmo documento desvenda uma situação de aprendizado
difuso de um outro tipo: duas meninas dançam tendo como modelo suas mães, que por
alguns momentos “guiam” gestualmente os movimentos do corpo de suas filhas.

É interessante observar a complexidade destes processos, pois muitos ocorrem de


forma simultânea. Privilegiando alguns destes fios condutores, apresentei estes momentos
de aprendizado difuso buscando enquadrá- los no contexto dos processos observados.

A filmagem de atividades envolvendo um grande número de agentes e


desenvolvendo-se no espaço de forma compacta (grupo de músicos, de dançarinos) não
permite que o cineasta ocupe postos de observação que estejam no meio eficiente53 da
ação, pois sua presença poderia dificultar a evolução dos agentes filmados. Desta forma,
o cineasta deve se contentar em buscar postos de observação que se situem nas
proximidades do grupo mas que não interfiram nas atividades das pessoas filmadas. Os
postos de observação que adotei, no caso do documento Malê I, situam-se, em razão
desses impedimentos, exteriormente ao meio eficiente, havendo uma grande variação de
ângulos e enquadramentos que tentam compensar este problema.

IV-Conclusão

Como foi observado anteriormente, esta pesquisa encontra-se ainda em fase inicial,
mas podemos desde já ressaltar alguns resultados no que concerne as diferentes
formas de transmissão e aquisição dos saberes empregadas pelo grupo Malê Debalê e
visíveis no documento videográfico. Notamos que uma das vias seguidas pelo
aprendizado da criança neste grupo corresponde, inicialmente, à observação dos
processos e, posteriormente, à imitação de certas atividades.
A adoção de estratégias cinematográficas, como a filmagem em planos largos e em
planos-seqüência, revelou atividades secundárias não previstas durante a filmagem.
Temos desta forma uma idéia de diferentes processos que ocorrem neste local durante um
ensaio do bloco.
52
Os conceitos de aprendizado pontual e difuso foram analisados por Annie Comolli (1995).
53
“O meio eficiente inclui todos os elementos do ambiente direta ou indiretamente necessários ao exercício
da atividade do agente do processo observado”. (France, 1998, p. 410).
Uma etapa importante do trabalho que deverá ser realizada brevemente
corresponde ao feed-back do documento que será apresentado à comunidade filmada.
Tentaremos desta forma obter comentários e questionamentos dos agentes filmados que
serão importantes no momento das próximas filmagens. O filme tem este poder
comunicacional de poder ser visto, comentado, inclusive pelas pessoas que dele
participaram. Desta forma, estamos trabalhando na direção de uma “antropologia
compartilhada”, tão importante a Jean Rouch.

V-Bibliografia

COMOLLI, Annie.
- Cinématographie des apprentissages. Fondements et stratégies, Paris, Editions
Arguments, 1995.
- “A pesquisa fílmica das aprendizagens”, In Claudine de France (ed.), Do filme
etnográfico à antropologia fílmica, Campinas, Unicamp, 2000.
FRANCE, Claudine de.
- Cinema e antropologia, Campinas, Unicamp, 1998.
- “Antropologia fílmica – Uma gênese difícil, mas promissora”, In Claudine de
France (ed.), Do filme etnográfico à antropologia fílmica, Campinas, Unicamp,
2000.
GUERONNET, Jane
- Le geste cinématographique, Nanterre, Université Paris X-Formation de
Recherches Cinématographiques, 1987.
LOBATO, Lucia F.
- Malê Debalê: Um espetáculo de resistência negra na cultura baiana
Contemporânea, tese de doutorado em Artes Cênicas, Salvador, UFBA, 2001.
LOPES, Nei
- Bantos, malês e identidade negra, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1988.
ROUCH, Jean
- “Le film ethnographique”, In Jean Poirier (ed.), Ethnologie générale, Paris,
Gallimard, 1968.
- “La caméra et les hommes”, In Claudine de France (ed.), Pour une
anthropologie visuelle , Paris, Mouton, 1979.

Você também pode gostar