Você está na página 1de 13

"Pés-de-chumbo" e "Garrafeiros": conflitos e

tensões nas ruas do Rio de Janeiro no Primeiro


Reinado (1822-1831)
Gladys Sabina Ribeiro*

Augustos, e Digníssimos Senhores Representantes da


Nação. Tudo quanto tenho de expor é triste; e mais melan-
cólico ainda o futuro, que se me antolha, se a Providência
Divina não dirigir os importantíssimos trabalhos da
presente Sessão. Talvez que minha imaginação assombrada
com tantos acontecimentos desastrosos, que rapidamente
têm-se sucedido uns aos outros em todo o Império, que
minhas forças estancadas na luta com tantas dificuldades;
e que minha razão pouco fecunda em recursos, sejam a
causa de prever males tão próximos, e que por ventura se
acham a tão grande distância; mas sou Brasileiro: interesso
pela minha Pátria: e antigos, e novos exemplos, me fazem
estremecer a vista da marcha progressiva do espírito
revolucionário no Brasil.

Não era à toa que o Ministro da Justiça fazia previsões tão


pessimistas para os anos vindouros. Havia algum tempo que a Corte
vinha vivendo um clima intenso de agitação e presenciando variados
conflitos. João Armitage, testemunha daqueles anos, escreveu que houve
uma "exaltação de ideias" a partir do final de 1828. Ressurgiram
jornais e pasquins " incendiários".
Liberais "exaltados" ou "moderados, homens patriotas" e cidadãos-
ativos~ protestavam contra o Governo . A população do Rio de Janeiro

* Prof." Ms. Departamento de História — UFF.


Relatório do Ministro da Justiça referente ao ano de 1832, Ministério da Justiça, A.N.
Palavras proferidas em Sessão da Assembleia Legislativa de 1832.
ARMITAGE, João, História do Brasil: desde o período da chegada da família de Bragança,
em 1808, até a abdicação de D. Pedro, em 1831, compilada à vista dos documentos públicos
e outras fontes originais formando uma continuação da história do Brasil de Southey/ por
João Arrnitage. Belo Horizonte, Editora Itatiaia; São Paulo, Editora da Universidade de São
Paulo, 1981, p. 171
3 Cf. MATTOS, limar R. de, O Tempo Saquarema. São Paulo, Hucitec; Brasília INL, 1987,
pp. 109-129. Segundo limar R. de Manos, o pensamento conservador brasileiro, da época,
atribuía ao termo povo o conjunto de cidadãos ativos, de acordo com a Constituição de 1824.

\Rev.Bras.deHist. [ S.Paulo | v.12 n° 23/241 pp. 141-165 |set. 91/ago. 92 j

141
dava sobejas mostras de descontentamento com a situarão v i v i d a . João José Reis, em artigo intitulado "O Jogo Duro do Dois de
Manifestava-se em ajuntamentos - - que se tomaram celebres j » • ! < > • . J u l h o : O Partido Negro na Independência da Bahia", mostra o
constantes pedidos de devassas por parte do Governo —, e cm t u m u l t o s , a t i c v i m e n t o " dos "negros" na ocasião da Guerra da Independência.
a princípio sem motivo aparente, nos quatro cantos da cidade c1 nas Argumentação semelhante, relacionando igualmente aumento de fugas e
bandas de além-mar [Niterói]. Os incitamentos antilusitunos, a Independência, é defendida por Peter Wood em " The Dream Deferred':
necessidade de construção de uma identidade calcada na diferença com Black Freedom Struggles on the Eve of White Independence". Portanto,
relação ao "outro" - estrangeiro, em geral, e português, em pai liai a emancipação política significaria para escravos e libertos, naquele
lar —, e a situação da população pobre e marginalizada da cidade, contexto, a possibilidade de uma vida livre e melhor; a liberdade não
serviram como uma bomba-de-tempo. seria apenas uma questão de autonomia pessoal.
Na época da Independência percebe-se, na documentação da Em contrapartida, as atitudes da população servil diferenciavam-
Polícia, um aumento expressivo do número de fugas. Os escravos se daquelas dos seus senhores. Estes eram obrigados, por lei, a ceder um
alistavam-se nos batalhões para lutar na Guerra da Independência e, em cada cinco escravos para o trabalho de "defesa do Império" e "da
posteriormente, na Banda Oriental. ( ' a u s a Nacional". Por conta do serviço de construção de pontos de
delesa, as confusões e reclamações eram muitas. O Intendente queixava-
E necessário que Vm com a brevidade possível averigiic se se dos Comandantes das Ordenanças e dos Batalhões, que não faziam
José Bento Barbosa morador nesse Distrito é Snr. de um l i s t a dos proprietários com mais de cinco escravos e obstavam o
escravo pardo por nome Manoel, filho de uma esacrava sua < imiprimento das ordens imperiais; os senhores protestavam dizendo ser
.1 lei contra o direito de propriedade e as listas, quando confeccionadas,
de nome Maria; que consta ter assentado Praça voluntário
no Regimento de Artilharia desta Corte, como liberto, eiradas. Reclamavam, ainda, da violência da Polícia no recrutamento de
trabalhadores e do atraso no pagamento das diárias prometidas. O
fugindo a seu senhor ou se era conhecido por liberto (...). em airegado das fortificações da Capital, Coronel Francisco José de
Sou/a Andrea, fazia ver a impossibilidade da conclusão dos fortes em
Casos como o do pardo Manoel pontilhavam a correspondência do lempo hábil.
Chefe de Polícia com os Comandantes de Distrito. A "cidade
Km ofício ao Comandante das Ordenanças da Corte, datado de 23
esconderijo" era já um fato no início do século XIX; abrigava escravos • l' ,i"osio de 1824, o Intendente Estevão Ribeiro de Rezende informava:
fugitivos que se movimentavam com desenvoltura e procuravam trilhar
caminhos para a liberdade. As histórias sugerem que Peter Linebaugh limo. Sr. Em resposta ao ofício, que recebi ontem pelas 10
talvez tenha razão ao dizer existir um "modo de produção, dos navios". horas da noite, vou certificar a V.S., que a parte, que se me
As ideias circulavam , conduziam e moldavam as experiências, de forma
que as discussões dos ideais liberais ingleses do século XVIII podem ter
alcançado os escravos do Novo Mundo e, no caso do Brasil, ter se
revigorado no início da década de 20, momento intenso de debates sobre " I . I N H I i A U C i H , Peter, "Todas as Montanhas Atlânticas Estremeceram, in: Revista Brasileira
a Emancipação Política e libertação do jugo da reescravização do país, ,li l/niinia: a Luta Trabalhadores!. São Paulo, Editora Marco Zero, 1983. Linebaugh
leia-se recolonização. Os escravos podiam estar fazendo uma leitura 1.1 que o navio criava rebeldes por ser abrigo de tradições e "estufa de
mi. i n . i . lonalismo". Os exemplos circulavam através do convívio com marinheiros nos navios
própria dessas ideias. Quem sabe se baseados na concepção africana de 1 i i navio foi um canal de comunicação pan-africana, difusor de uma ideologia
liberdade — relacionada ao sentimento de "pertencer", nascer e crescer • i i n i . i l Ia a argumentação de João Reis, no artigo citado, encontra-se no livro
em uma comunidade, ser membro de uma linhagem — não estariam, no /d('<7« r Cnii/litii. A Resistência Negra no Brasil Escravista. São Paulo, Companhia
caso de sua atuação na Corte, buscando um maior enraizamento naquela Io Letras l W), pp. 79-98. O artigo de Peter Wood faz Parte do livro organizado por
1 ' t i i l l K i » ( i n i Y G., in: Resisíance Studies in African. Caribbean. and Afro-American
sociedade, "nascendo" com a nova Nação e tentando conquistar um
espaço no Estado em construção? HI\IIH\' l l n i v c r s i t y Massachusetts Press, Amherst, 1986, pp. 166-87. A diferença do
no ilr I t l n - n l a d e para as sociedades ditas "pré-capitalistas", que contrastariam escravidão
M I i i n r i i i i ) e crescimento em comunidade, ser membro de urna linhagem, foi abordado
' \ K V A I . I I O . Marcus Joaquim Maciel, Hegemony and Rebellion in Pernambuco (
Na documentação e livros escritos por homens que viveram o período, o termo é também lIII,i i / l /,S'.'/ / A 1 1 S Urbana — Illinois, Thests submitted in partial fulfillment of the
utilizado corno habitantes da cidade, turba, massa, população, portanto, gente até mesmo nau i. .| n loi i h r ilciiree ot Doctor ot Phtlosophy in History, mimeo. 1989, pp. 11-13. Este
qualificada como cidadão. lUloi i | " ' i . i ic r i u M I l i R S , Suzanne e KOPYTOFF, Igor, Slaverv in África. Madtson,
4 CÓDICE 326, A. N., Ofício ao Comandante Iraja, 13 de Agosto de 1824. i n ul Wisconsin Press 1977 e MELLASSOUX, Claude. Anthropologie de I '
5 CHALHOUB, Sidney, Visões da Liberdade . São Paulo, Companhia das Letras, l')')() l ' W n i i r di 1 I Vi el d' Argent. Paris, Presses Universitaires de France, 1986

142 143
deu de terem sido remetidos até os dias passados sou u-n u- O que mais convém é que V. S. faça apenar uma relação de
sete escravos para o trabalho das Fortificações foi a n t c i i o i todos os escravos, que estiveram a jornal desde o mês de
ao do dia 16 do corrente, o que não implica que depois Junho até o último de Julho, que foi o primeiro prazo com
acrescesse o número, que V.S. diz de 51; mas eu hojr .1 a conta do que venceram, e a declaração de quem há de
noite espero saber o número que tem ido, podendo fazer este pagamento, onde, e em que dia, a fim de se
asseverar a V.S., que os trabalhos estão sem ação por l a l t a publicar com toda brevidade, porque há a esse respeito uma
de gente segundo me veio representar o Coronel André a de bulha muito grande, e que assim se vá fazendo, ficando o
viva voz no dia 20 do corrente. segundo prazo: E outra relação dos que deram escravos
Quanto aos meios violentos, que e a pena cominada na gratuitos para também se publicar. Ontem houve pela cidade
Portaria de 19 de Junho dos refratários, e desobedientes, um grande sussurro por esta falta, queimando-se o Povo da
V.S. a pode pôr em prática contra aqueles proprietários, Polícia, e do Ministério, e me tem fervido atrevidos reque-
que tendo o número de escravos exigidos na mencionada rimentos de ataque ao direito de sua propriedade, e que nada
Portaria por serem obrigados a concorrer com um para recebem como ordena a Constituição (...) Em quanto não
cada 5 e não fazem por dolo, e malícia; mas neste caso sossegar o Povo pelo meio indicado não posso ativar o
mesmo parece prudente, que V.S. faça esgotar primeiro apenamento dos escravos de ganho, que e com que eu mais
todos os meios de brandura, e persuasão, fazendo verificai- contava, visto que no primeiro turno, se absolveram quase
se tem, ou não o número de escravos, que aparece na Iodos os dos proprietários (...).
relação dos Comandantes, que muitos se queixam que são
avisados para dar escravos, não os devendo dar pela O Povo, com letra maiúscula e significando os proprietários -
imperfeição e pouco escrúpulo com que os Comandantes e cidadãos ativos — , agitava-se pela falta e atraso no pagamento dos
Cabos das ordenanças têm feito as suas listas, contando jornais devidos. Não convinha ao Governo desagradar a esta parcela da
crianças, e escravos, que não são do cabeça da casa (...).7 população, de tal forma que ela também causasse "bulha" e fizesse
requerimentos atrevidos. Em época de tantas ameaças e problemas de
As brigas entre os senhores e as autoridades mais pareciam descontentamentos daquela outra parcela do "povo" (composta dos não-
pirraça de criança. A documentação da Polícia revela que os proprie- remediados, pobres, escravos, forros ou livres, e que era mantida em
tários cediam os escravos com suma má vontade e, por qualquer motivo, precário controle e ocupava boa parte do tempo da polícia e das classes
tornavam a toma-los, escondiam-nos, ou, em conluio com os Coman- abastadas do país) era preciso acalmar os proprietários e ter o menor
dantes de Distrito, burlavam números. O Intendente, além de ameaçar número possível "de frentes de conflito". Desta forma, é interessante
severamente os Comandantes com toda sorte de punições, armava planos observar a menção à necessidade do- emprego de escravos-de-ganho. Este
mirabolantes para conseguir uma quantidade suficiente de gente para tipo de mão-de-obra regularia a demanda dos serviços das fortificações
trabalhar. Utilizava meios violentos e armadilhas. Chegava a ficar de e aquela dos proprietários por jornais. Há inclusive uma discussão sobre
soslaio esperando os escravos saírem para poder resgatá-los. as remunerações de acordo com a profissão e especialização dos
Efetivamente, apelos à "defesa do Brasil", à "Causa da Inde- escravos. Parece também que homens livres pobres, portugueses, eram
pendência", pareciam palavras ao léu. Podemos entender a preocupação u i i l i / a d o s recebendo melhores "jornais", o que desagradava a todos, quer
dos "homens-de-bem" com o resguardo de seus pertences, mas, diante tossem senhores ou escravos-de-ganho, uma vez que a literatura nos
dos perigos de uma guerra, as suas atitudes demonstravam que não eram mostra às vezes conseguirem estes últimos a alforria através desses
eles os mais interessados naqueles acontecimentos. As questões políticas serviços.
de briga pelo macro poder não os preocupavam tanto. O cotidiano era Assim, para os escravos, trabalhar nas obras podia significar a
mais importante e, afinal, não havia mudado de tal forma que supusesse possibilidade da liberdade e de uma vida melhor: as fugas, na calada da
grandes sacrifícios. Além do mais, os aliados na luta contra os portu- noite, jxini o serviço nos fortes, parecem ter tido este sentido; da mesma
gueses seriam os escravos, conveniência duvidosa... Assim, poucos ofere- lonna como aquelas que consistiam em fugir das obras dos fortes e dos
ciam escravos gratuitos. Muitos reivindicavam os jornais prometidos: públicos para se aquilo mb are m.

CÓDICE 326, A.N., Ofício ao Comandante das Ordenanças desta Corte, 23 de agosto de i i H H( T 126, A. N. Ofício ao Coronel encarregado das diversas Fortificações desta Cidade,
1824. • i l i - 1824.

144 145
Há aspectos interessantes que devem ser observados na consiiui. .1» "massa" eíctivamente encontrava-se presente. Porém, sua presença,
de uma nova interpretação do período. A Guerra de Independeu. Ia alestada nas crónicas, relatos e documentação do cotidiano, revestia-se
normalmente atribuída somente a algumas províncias distantes, n ; n > sempre de uma dupla característica. Ou era heróica, quando vinha
estava tão longe de ameaçar a Capital. Se não houve combates "reais" reforçar o sentido dos acontecimentos e o desejo das elites, ou era
com o "inimigo externo", a ameaça e o medo dos lusos eram cletivos violenta, irracional, quando expressava discordância com o rumo dos
As escaramuças e batalhas "externas" eram possibilidades sempie latos e representava uma alternativa de poder.
presentes. Entretanto, a luta era interna, no próprio espaço urbano l m Dentro do primeiro aspecto, encontramos as narrativas da
ofício ao Intendente Geral da Polícia, o Secretário de Estado do-. participação popular no juramento à Constituição Espanhola, no
Negócios do Reino, o conhecido José Bonifácio - "Patrono d.i entusiasmo que cercou o "Fico" e, nas vésperas da Abdicação, o apoio
as impas c parlamentares.
Independência" - manda, a 5 de Agosto de 1822, que se aiend.i .1
Irrascíveis e cruéis foram os populares ao rejeitarem as propostas
representação de D. Eugenia Maria da Incarnação (sic) "em que expõe levadas pelo Príncipe a D. João VI, no ir e vir incessante do centro da
a necessidade de tomar o Governo medidas vigorosas contra os que cidade ao Paço de São Cristóvão, já nas proximidades da triste data do
pretendem perturbar a tranquilidade pública, seduzindo para isso os massacre da Praça do Comércio, quando aos berros e urros confundiram
escravos com promessa de liberdade. os eleitores; ou, ainda, nos episódios que se antecederam ou sucederam
A imagem daqueles dias, na pena dos ofícios, representações, 0 7 de Abril: a "massa" andava descontrolada, praticando toda sorte de
cartas, leis, manifestos, e outros papéis oficiais, é bem diferente de uma "maldades", principalmente contra os "brancos" e "portugueses".
Independência feita placidamente às margens do Ipiranga, sem Tanto é assim que no final do Primeiro Reinado, o "povo", de
sobressaltos para o Sudeste, principalmente para a Corte. quem toda a documentação escrita do período fala, é bem específico.
Para os escravos, em um primeiro momento, o alento da aliou u "Negros" e "mulatos" são constantemente mencionados adotando atitu-
pode ter embalado noites de sono. O "Povo", que reclamava ler que des inesperadamente ameaçadoras.
fornecer escravos, possuía outras preocupações e pesadelos. O controle No início de janeiro de 1828, durante o desembarque de irlandeses
das suas peças de ébano e a garantia da propriedade pautavam as sn.r, que engrossariam as fileiras da Tropa dos Estrangeiros, a "população" -
atitudes, os "sussurros" e "os atrevidos requerimentos". O outro "povo", uma "multidão de negros" - reagiu batendo palmas e insultando
aquele aliado nos alistamentos, nos combates externos e na consirueao aqueles "escravos brancos". A antipatia por este batalhão era geral.
das fortificações, era uma ameaça. Durante o processo de Independência, vários conflitos ocorreram com os
À semelhança da descrição de Jean Delumeau, em sua História corpos lusos. Aos alemães, súditos da Primeira Imperatriz, eram
do Medo no Ocidente, 1300-1800, que diz, ao analisar as atitudes dói .imbuídas regalias. Agora, em 1828, segundo Armitage, 12 desembar-
cavaleiros e dos violões nas obras literárias, ser a coragem atribuída aoi eavam os irlandeses sem qualquer aviso prévio. Vinham com a promessa
príncipes e a covardia aos "de nascimento baixo", no período estudado de serem colonos. Vá ilusão! O seu,destino era mesmo o das armas. De
D. Pedro aparece glorificado pelos documentos e historiografia, apesar de qualquer forma, ou combatendo no Sul, ou deixando-se ficar na cidade,
toda controvérsia sobre suas atitudes e personalidade. Sua vontade .iiiaíram a ira dos "negros". Afinal, podiam competir no mercado com
prevaleceria e daria rumo aos acontecimentos. Ele teria tido a coraivm OS escravos-de-ganho ou ocupariam posição pleiteada pela escravaria nos
de se separar de seu pai e pátria. Com a figura de D. Pedro bradando combates, meio pelo qual, já vimos, muitas vezes obtinham a alforria.
"Independência ou Morte" contrasta à do "povo", que tudo assisti,i Velhas rixas também se davam entre os soldados estrangeiros e o
pacificamente e de pés descalços. Batalhão de Libertos.
Os irlandeses, levados para os quartéis da Rua dos Barbonos e
A exaltação de D. Pedro e a inércia do "povo" podem sei
v i v e n d o miseravelmente, uniram-se aos alemães em uma revolta no
pensados como formas de esconder o medo, dissimulá-lo para mellioi mesmo ano da sua chegada. O Ministro da Guerra, Bento Barroso
lidar com ele. Elidir a atuação da população nas ruas signiííeon, 1 Vi eira. ordenou o combate às forças insurgentes.
certamente, a necessidade de construir uma determinada versão dos latos,
obviamente ligada à forma como o Estado foi construído e à cidadania i n l Sridlcr esclarece quais as "raças humanas existentes no Brasil. Os mulatos seriam
delimitada. No caso dos acontecimentos desenrolados na Corte, .1 a.|nrlrs nascidos da mescla de brancos com negros", portanto, já "brasileiros". Os negros,
nulos, importados da África. Os crioulos, "negros nascidos no Brasil", confirmando,
9 l ' . ' H a n i o . a olisoivacão da linguagem racial feita por João Reis para Salvador. Cf. nota 12.
J. J J. l , 167 -1822, Ministério do Reino e Estrangeiros, A. N. .1 i i > l l !•• C a i l . Dez Anos no Brasil. Belo Horizonte: Editora Itabaia; São Paulo: Ed. da
) _. . i . l a . l r iIc São Paulo, 1980. p. 335.
10 DELUMEAU, Jean . História do Medo no Ocidente, 130-1800. São Paulo, C o m p a n h i a
das Letras, 1989, pp. 11-37. 1 ' M.-MI l A i i l i , João. op. cit.

146 147
Uma porção de homens libertos de cor, e de escravos, de Não pretendo aqui discutir se os "negros" e "mulatos" eram
m. n.idos por oficiais da tropa ou pelos "exaltados". Desconfio que esta
motu próprio foram cooperar com a tropa nacional, e mais
"ili-sculpa" - a do incitamento - - bem pode ter sido levantada
de sessenta irlandeses foram mortos, e cem feridos no
posteriormente para justificar a necessidade de derrotar os "exaltados" e
combate. Os escravos, a quem imprudentemente confiaram diminá-los do cenário político, ou, quem sabe, para não legitimar as suas
armas, distinguiram-se pela sua barbaridade; muitos sepa- ações políticas. Nos fatos narrados, o que chama a atenção é a
ravam os membros o de suas vítimas moribundas, e os uvoíTêiicia da presença de "gente de cor". Vejamos como o soldado
levavam em triunfo. 13 alemão resumiu uma das "cenas trágicas" que, segundo ele, ocorriam dia
i- noite com os estrangeiros residentes no Rio:
A xenofobia encontrava espaços no cotidiano e nos momentos
mais candentes. Quando podia, a população "negra" ia à forra. Fora o Um moço português, esperançoso filho único de seus pais,
Batalhão dos Henriques, os efetivos comuns de militares tinham um forte um dia se atrasara um pouco num divertimento e
contingente de "homens de cor". Na chegada dos emigrados portugueses, regressava à casa pelas onze da noite. Ao chegar à rua de
vindos da Inglaterra por terem tido seus planos de desembarque em São José, um tanto estreita e escura, cruza-lhe o caminho
Portugal para auxílio a D. Maria da Glória fracassados, mostraram todo um mulato corpulento, com a intimação: "quem viva?(sic)
o seu descontentamento. Alguns deles se integraram às tropas, outros O moço, um pouco esquentado e atordoado pelo vinho do
reforçaram a população portuguesa do meio urbano e adjacências. Um Porto, que no escuro não pode logo reconhecer o
pouco mais tarde o rancor contra os emigrados far-se-ia sentir. interlocutor e supôs que fosse uma patrulha, respondeu:
Tropa, liberais "exaltados" e o "povo" acompanhavam a movi- "Amigo!"(sic). O mulato chega-se mais a ele, levanta o
mentação acelerada dos acontecimentos políticos. Parcela desse povo cacete e repete a pergunta, o português reconhece o seu
pertencia às tropas e ao Corpo da Policia. Demonstravam com seus atos engano e compreende o sentido da intimação. Mas como
aprovação ou reprovação às atitudes do Governo. Se por um lado a não se julga obrigado a manifestar a sua opinião política a
recolonização era um fantasma sempre presente, principalmente depois um vagabundo, também ele corajosamente levanta sua
do entrometimento do Imperador na gestão do Reino Português, da bengala e reclama do mulato em palavras enérgicas que lhe
chegada dos emigrados e de uma partida de armamentos capaz de deixe o caminho livre. Mas o brasileiro "sans culotte" (sic)
abastecer 10.000 praças (armas compradas por Barbacena na Inglaterra), desanca o pau e num momento os dois se engalfinham. A
por outro, acusava-se as "facções exageradas" de promoverem distúrbios. destreza do moço contrabalança a forca do mulato e a luta
"Exaltados" e tropas uniam-se gradativamente. A notícia da Revolução parece indecisa, nisso saltam dois outros da tocaia e
em Paris excitava os ânimos. Havia um boato que oficiais da marinha atravessado de cinco facadas traiçoeiras o moço infeliz
francesa ajudariam o plano português de recolonização. Os franceses, tomba sem vida, banhado de sangue. Em seguida os
muitos comerciantes e de profissões variadas, 14 eram maltratados nas patrióticos assassinos ainda tomam o dinheiro, o chapéu e
ruas. A prevenção contra o estrangeiro crescia nas vésperas da Abdicação o relógio ao morto e muito calmamente se vão, dizendo:
e continuaria ao longo da Regência. "Um filho do reino de menos!" (sic)
Cari Seidler, escrevendo sobre o momento, diz que "mulatos" e
"negros" andavam em bandos pelas ruas da Capital . Muitos eram Os "negros", "pardos" e "mulatos" participaram ativamente da
soldados, ou tinham adotado o hábito de parar transeuntes para, a "noite-das-garrafadas". A devassa do evento acusa-os de defensores do
imitação do "Quem vem lá?" das patrulhas, perguntarem: - - "Quem Federalismo e da República. Estariam influenciados por Evaristo e
viva?" Esperavam como resposta "A República" ou "o Federalismo". jornais como o "Repúblico" e o "Tribuno". Ainda na primeira noite
daquele acontecimento, dia 11 de março, prendeu-se vários "negros",
o >mo José Honório, José Bernardo, António José Lopes, e os pardos, José
Idem p. 165. Bonifácio, Alexandrino António, Albino Joaquim da Costa.
Sérgio Buarque de Holanda, no artigo "Herança Colonial — Sua Desagregação", afirma A queixa do sapateiro José António foi a seguinte: quando
que o número de franceses na cidade, durante o Primeiro Reinado, era elevado. Perdiam para raminhava pela rua Formosa, acompanhado por dois pardos, foi obstado
os espanhóis e, naturalmente, para os portugueses. É curioso que até o presente momento da por sujeitos que mandaram que tirassem os laços porque estavam forros.
pesquisa não encontramos conflitos da população com os espanhóis residentes no Rio de
Janeiro. HOLANDA, Sérgio Buarque de, "A Herança Colonial — Sua Desagregação", in: S I • ! D l .UR, Cari, Dez. Anos no Brasil. Belo Horizonte, Editora Itatiaia; São Paulo, Ed. da
HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.) História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II,
Universidade de São Paulo, 1980. p. 298.
Vol. l , O Progresso de Emancipação. São Paulo / Rio de Janeiro, Difel, 1976, pp. 112.

148 149
O Governo não quis, à custa do sangue brasileiro, castigar
Observação no mínimo instigante! É bem possível que, de novo, a
os crimes de um outro Brasileiro" (...) Os soldados ou
população "de cor", escrava e forra, entendesse o momento como u i n . i
possibilidade de libertação. Juntos pretendiam uma nova v i v ê n c i a da reconhecem o erro, ou detestam os que os seduziram (...).
cidadania, da nação, e, possivelmente, uma mudança nos rumos qm- ,i
construção do Estado estava tomando. Assim, não é de se admirai i|iir O oficialato era composto por "portugueses" e "brasileiros"
se juntassem aos republicanos e federalistas. pertencentes à elite. A soldadesca, em contrapartida, era de homens
As lutas davam-se entre a população "de cor" e os "brancos", a pouco remediados, muitos "de cor". A exemplo da época da
população "de cor" e os portugueses natos, "brasileiros" e "portugueses", Independência, usava-se a clivagem nacional, distinguindo-se entre o
"povo" e "Povo" . Os portugueses de nascimento não eram considerados "sangue brasileiro" e os crimes de um "outro Brasileiro", com o objetivo
estrangeiros pelas autoridades porque tinham jurado a Constituição de dominar a situação. Queria-se, assim, mostrar a adesão daqueles que
Eram tratados como os outros homens livres pobres, mas "brancos" abiacaram a "Causa" e, consequentemente, a traição dos "portugueses",
Muitas vezes trabalhavam lado a lado com os escravos e forros . brasileiros ou portugueses natos, ricos ou pobres, contestadores do
Entretanto, para os "negros", "pardos" e "mulatos" eram "o outro", o (iovcrno. Apesar das divisões internas, a Tropa não estava satisfeita com
estrangeiro, elemento de maior confiança das autoridades, considerado os privilégios dados aos "cidadãos armados". Uma Carta de Lei, datada
mais especializado e, por isso, preferido nos serviços públicos c de 6 de Junho de 1831, dizia que até a formação das Guardas Nacionais
concorrente no mercado de trabalho — predominantemente, mas, não aimar-se-iam os eleitores no número julgado necessário para reprimir o
exclusivamente, negro e escravo . Os conflitos, rixas e tensões pareciam "ajuntamento noturno de cinco ou mais pessoas nas ruas, praças e
possuir um caráter racial, nacional e classista. Na "Abrilada", nome do estradas, sem algum fim justo ou reconhecido, debaixo da pena de um a
movimento que derrubou o Imperador, os bandos de "mulatos", "pardos" ires meses de prisão".22 Ao mesmo tempo, extingiiia-se os Oficiais de
e "negros" percorriam as ruas enfrentando os "portugueses". Um deles,
o pardo João António, foi morto pela quadrilha do lusitano José Vivas Quarteirão.
na noite do 4 de Abril. Na Tropa, apesar das divergências de nacionalidade, também
Nos meses seguintes o pânico continuou. Em aviso do dia 12 de provocadoras de conflitos, como veremos mais adiante, todos juraram a
julho ordenou-se uma investigação sobre um motim no Largo de São Constituição e, portanto, julgavam-se "brasileiros" e não receberam bem
Domingos. Houve conflitos com a ronda municipal e a morte de um a convocação dos "cidadãos armados". Dentre estes útimos, a preferência
"preto". No seu enterro houve manifestações.17 recaia sobre os taverneiros e caixeiros portugueses de nascimento. Eles
Uma provisão de 16 de julho mandou os senhores guardarem os seriam mais confiáveis do que os portugueses e brasileiros da Tropa, e
seus escravos dentro de casa "em grande vigilância", porque naqueles dias mais aptos do que os brasileiros, em geral. Deveriam debelar reuniões
constava que os libertos estavam aliciando a população cativa para rou- ilícitas, prender indivíduos suspeitos, não consentir escravos parados de
bar armas. pé nas vendas e outros lugares e, por fim, evitar aproximação com os
Pudera, a 14 e 15 de julho, no bojo dos descontentamentos Ouartcis c Guardas Militares.23 A Portaria de 27 de Julho reforçava a
populares, aconteceu uma revolta do Corpo de Polícia. O "povo" pegou Instrução que, entre outras ordens, mandava prender "negros efetivos
em armas e concentrou-se na Praça da Constituição e no Campo da capoeiras".
Honra. Houve "consternação e susto" no Governo: "não é porém com Parece que as Autoridades Regenciais, apesar do discurso
armas na mão que se dirigem súplicas às Autoridades constituídas"...19 anliportuguês que acentuava o medo da recolonização (e aí também se
O "susto e o terror" se apoderaram da Capital.20 Houve roubo de armas pode, no mínimo, relativizar aquela ameaça), preferiam os "cidadãos"
pela cidade e ameaça de invasão do Arsenal. aunados, portugueses, para resguardar a segurança em tempos tão
Pelos avisos percebe-se que a oficialidade nada fez, ou, por outra, conlurbados! Uma espécie de hierarquia de confiança, respeitabilidade e
também chegou a integrar os sediciosos. Eram eles que incentivavam a competência sobreviveu ao calor da hora dos episódios que cercaram as
soldadesca. !•.n raladas". Em 30 de novembro de 1833, em plena Regência, o Juiz
Aviso de 14 de abril de 1831, A.N.
Aviso de 12 de junho de 1831, A.W. ' 1'iiK-líiiniição de 22 de agosto de 1831, A.N.
Provisão de 16 de julho de 1831, A.N. < ma ilr Lei de 6 de junho de 1831, A.N.
Proclamação de 22 de julho de 1831, A.N. 1 ilu 24 de julho de 1831./4.JV.
20
Avisos de 22 e 23 de julho de 1831, A.N. ' ' l ' , , i i , , i KI do 27 de julho de 1831, A.N.

151
150
Dentre os habitantes da freguesia, provavelmente brasileiros natos, não
de Paz da Freguesia da Lagoa Rodrigo de Freitas endeu\ou umi
h a v i a "pessoas hábeis para este emprego", o que ocasionava o
resposta ao Juiz de Direito e Chefe da Polícia:
padecimento do "Serviço da Nação". Além disto, os "Cidadãos" não
podiam "serem distraídos de suas lavouras e oficinas" e consideravam
Em resposta ao ofício de V.Sá. de 26 do corrente, em qm- "pouco decorosas" a tarefa de "acompanhar capoeiras, e escravos fugidos
exige ser informado de Domingos José Airosa, e Agostinho p a i a o calabouço". Assim a hierarquia formada era: "Portugueses",
Pedro de Souza Guimarães, propostos por m i n i p.u.i
"cidadãos", "Cidadãos", capoeiras e escravos. Quer dizer, os
Pedestres, são ou não Brasileiros, cumpre-me di/.er a V.Sá "Portugueses" seriam os preferidos para o "Serviço da Nação", já que os
que são Portugueses: mas que tem sido c m p i r < M . I . .
brasileiros escapavam inventando desculpas. Havia um certo tom de
constantemente no serviço da Nação, e desempenhado i i o n i a ao dizer ser a ausência dos "cidadãos" de certa forma justificada
cumpridamente muitas diligências, de que tem sido
"pelas lavouras e oficinas" e também ao comentar o pouco decoro na
encarregado: por isso, e a exemplo de alguns PorlutMicse•. condução dos capoeiras e escravos. Diante dos "Portugueses" diligentes
que segundo me consta, pela sua adesão à Causa do H i . r . i l
e devotados à Causa, os "cidadãos" eram apresentados preocupando-se
têm sido alistados, e se acham com praça no Batalhão il,i com o cotidiano e escapando das suas obrigações. Os brasileiros eram
Guarda Municipal Permanente, que também os d i t o s
"Cidadãos" apenas perante os capoeiras e escravos, porém, como não
Airosa, e Souza devem continuar no exercício de Pedcsiirs. quisessem fazer mais este tipo de trabalho, a solução seria adotar os
em que se andam, mandando V.Sá. passar os seus Títulos "Portugueses" para "Pedestres", "cidadãos armados". Eles cuidariam da
Devo também lembrar a V.Sá. que não há nesta Frcguesu segurança e bem-estar da Freguesia, encarregar-se-iam dos capoeiras e
pessoas hábeis para este emprego, e que por isso padeci- i > escravos. Com tudo isto, só resta acrescentar mais um ponto de conflito
Serviço da Nação, tendo eu deixado de fazer a l g u m a s
entre a população "negra" (aí incluídos os "pardos" e "mulatos") e os
diligências, por não ter quem as auxilie, vendo-me algumas
portugueses de nascimento...
vezes na necessidade de recorrer ao Exmo. Ministro d.i Assim, os conflitos na Tropa eram múltiplos: entre os
Justiça, pedindo lhe Guardas Municipais para diligências "brasileiros", entre as Guardas Municipais Permanentes ("cidadãos
do Serviço, não podendo contar com os Guardas Nacionais
aunados") e a Guarda Nacional; entre as Guaridas Municipais Per-
desta Freguesia, que pela maior parte, a exemplo do sen
manentes e os outros Corpos Regulares e, finalmente, entre a população
Capitão Comandante, com frívolos e fantásticos pretextos
"branca" e a "de cor".
se negam ao Serviço, e até mesmo porque muitas diligên No dia 28 de setembro de 1831, nas proximidades do Teatro,
cias só podem ser feitas por Pedestres, não só por serem
aconteceu um fato exémplificador das rixas entre os diferentes corpos
assaz pesadas para cidadãos, que não podem sem grande
militares e o entranhamento dos conflitos, raciais e nacionais, no
prejuízo seu, serem distraídos de suas lavouras e oficinas,
cotidiano e vivências da população. O fato foi narrado pelo Juiz de Paz
como por serem pouco decorosas aos mesmos Cidadãos,
da Freguesia do Sacramento, Saturnino de Souza e Oliveira:
que se vexam quando são mandados acompanhar capoeiras,
e escravos fugidos para o calabouço. Portanto, espero qm-
É o meu dever levar ao conhecimento de V. Ex. os
V.Sá. tomando em consideração o que acabo de expor, h;i|;i
desastrosos acontecimentos do Teatro que na noite de
de providenciar a este respeito, mandando passar os
ontem tanto perturbaram a tranquilidade desta Capital.
competentes Títulos aos indivíduos, que tenho proposto, ou
Pelas dez horas foram chamar-me alguns cidadãos ao
pondo outros quaisquer à minha disposição, para que i-u
camarote para acomodar uma desordem que havia no
possa desempenhar as obrigações do meu cargo.
Largo, perto aos arcos do Teatro, corri imediatamente e
achei em desordem um Tenente de nome António Caetano
A despeito da cidadania estar mais uma vez relacionada à "adesão com um Oficial do Estado Maior F. Paiva, queixando-se
à Causa do Brasil", esta resposta do Juiz de Paz ao Chefe de Polícia
este de que aquele o tinha ateado com mais seis, e lhe
mostrava a preferência das autoridades pelos portugueses natos. liles arrancaram a espada, de que mostrou arrebentadas as
tinham sido alistados no "serviço da Nação" e utilizados nas diligências,
correas do talabarte, e aquele de que este o tinha acometido
que não podiam ser feitas por "cidadãos" por serem "assaz pesadas" com a mesma espada, de que depois a entregara a um seu
camarada; prendi a ambos, e ordenei a uma patrulha das
25 rondas municipais da Cavalaria, que estavam presentes, que
IJJ 666, Secretaria de Polícia da Corte, Ofícios com anexos, A.N.

153
152
os conduzisse à guarda municipal; e então respondeu n u - n A pancadaria começou e tiros foram trocados. Morreram três
dito Tenente António Caetano que iria preso, mas nau pela pessoas c vários foram os feridos. Por volta da meia noite, no Rossio
patrulha, porque era Oficial. Apesar da futilidade da i a / a o h a v i a perlo de mil e quatrocentos homens da Guarda Municipal, só
por evitar maior motim, roguei ao Comandante da C i u a i d a dispersados às quatro da manhã.
do Teatro que o conduzisse, ao que anuiu o dito Amónio Para além do medo provocado pelo motim, que chegou a reunir
Caetano, imediatamente porém um grupo de povo que nos u n i a quantidade razoável de Guardas Municipais - - e não devemos
rodeava começou a gritar que o Brasileiro António Caetano i-squecer que na sua maioria estes eram portugueses de nascimento —,
não iria preso, e a força o puxaram (...) a este lempo o ha niiiros elementos merecedores de uma análise mais detalhada.
outro Oficial Paiva evadiu-se (...) esta evasão deu um novo O primeiro elemento a chamar a atenção é a briga entre um
pretexto aos amotinadores, que de novo começaram a grilai Tenente e um oficial do Estado Maior. O conflito começou perto do
que eu havia soltado o Chumbo e queria prender o Teatro quando o Tenente e mais seis agrediram o oficial e investiram
Brasileiro; debalde lhe fiz ver que prendera a ambos ( s i c ) conira a sua espada, símbolo do seu poder. A princípio parecia uma
C..).26 escaramuça sem importância, problema corporativo. Porém, os fatos
loram se avolumando e a narrativa passou a deixar entrever tensões
A confusão continuou dentro do Teatro, para onde todos foram iTii/.adas que afloraram naquele momento.
levados. Lá António Caetano começou a berrar "que estava preso por Na verdade, a agressão não atingiu apenas elementos fardados,
causa de um chumbo" e provocou um enorme alarido. O Juiz de Pa/, "brasileiros" e "portugueses". Acabou por envolver a população da rua
depois de ter discutido com o Major de Frias, que se responsabili/ava e os assistentes do espctáculo, no Teatro. A rixa era entre "brasileiros"
pelo preso, foi para as arcadas acalmar a população. Porém, a esta altura, e "chumbos". Havia, sim, um problema de hierarquia : ser preso ou não
o quadro do conflito tinha se agravado com a chegada de mais de por um guarda da ronda municipal, mas isto e.ra menos importante do
duzentos homens da Guarda Municipal. Os presentes passaram a assobiar (|iie a questão da autoridade de fato sobre a "terra", ou sobre o desfecho
e a xingar os ditos guardas. do episódio, ou, ainda, em outras palavras, quem mandava ali?
"Brasileiros" ou "Chumbos"?
(...) tanto eu como o Comandante Geral da Freguesia os Evidentemente, esta não era uma razão fútil. Além de um
exortávamos com todos os esforços a que desprezassem tais "Brasileiro" preso em uma pendenga de rua com um "Português", isto
insultos como nascidos da embriaguez, as nossas exortações estaria acontecendo por intermédio de um "municipal", provavelmente
porém não faziam senão aumentar o arrojo dos loucos que lambem português nato.
furiosos saíram à frente várias vezes a provocar as guardas, O problema extrapola uma rixa eventual. Dentre os oficiais que
com os maiores insultos e palavras obscenas que a decência acodem para solucionar o conflito, igualmente a divisão se instaura. Os
não permite aqui empregar; eu tinha quase perdido a partidos" a favor de um ou de outro, para usar uma linguagem de
esperança de conter os guardas, mandando fechar o Teatro época, haviam se instalado de todos os lados com grande velocidade, o
para depois dispersar os amotinadores, quando chegou o i|iie demonstra claramente que este era uma problema à flor-da-pele. Não
digno Comandante Geral Sebastião do Rego Barros, e me se discutia mais quem tinha ou não razão, quem ofendera ou não o
exortou a que fizesse prender aqueles insultantes para que nutro. A ofensa era maior do que o ataque inicial de António Caetano e
os guardas desesperados não rompessem em excessos que seus colegas a Paiva, se é que o episódio deu-se desta maneira. Dizendo
impossível era conter, e então chamei quatro homens que di- outra forma, a agressão entre os oficiais expressava as rivalidades
aproximei a arcada, lhes ordenei que prendessem os maiores subjacentes à sociedade.
primeiros que chegassem ao saguão a insultar e provocar; O Major de Frias e um outro Oficial tentaram proteger o
chegaram logo quatro, a testa estava um pardo com cacete Brasileiro e acabaram por brigar com o Juiz de Paz. Este passou a seguir
na mão (sic) (...). 27 as ordens do Comandante Geral . Para os últimos, a população era
< omposta de "loucos", "furiosos", "amotinadores" capazes de insultar e
d i / c r obscenidades provocadoras da ira dos guardas. Linguagem, no
m í n i m o curiosa. O "povo" - e neste caso muito provavelmente uma
Relatório do Juiz de Paz do Sacramento ao Ministro da Justiça, sobre os acontecimentos "massa de brasileiros", ao que tudo indica "de cor" - só podia estar
da noite de 28 de setembro de 1831, no Teatro, A.N. 101 a de si e em estado de embriaguez, enquanto os "municipais"
27
Ide m.

154 155
apareciam como sujeitos de bom senso e que só cometeriam sandices se vadios, capoeiras e oulros malfeitores.' Durante todo o segundo semestre
muito injuriados e provocados. Aliás, foi justamente isto o que o J u i / do ano de 1831, apesar da Abdicação, a "anarquia" continuou. Ainda em
disse ter acontecido. novembro houve ajuntamentos, ameaças de motins, sedições e insultos
A ordem de prisão indiscriminada dos que protestavam levou a dos soldados comuns àqueles das Guardas Municipais Permanentes.'
multidão à fúria. Naquele momento, os guardas começaram a ai irai Mas, devemos lembrar que a palavra "anarquia" tinha muitos
porque "provocados" por um grupo liderado por um pardo . signiticados. Podia referir-se simplesmente a inimigos políticos do
Assim, o conflito descortina não só as clivagens entre a população governo, ou, aos "partidos" ou "facções sediciosas" perturbadores das
de rua, mas, demonstra também terem chegado às perverções, prccon tentativas de ordenação da sociedade em uma determinada direção.
ceitos e atitudes hostis ao Exército e à Guarda Municipal. De cerla Contudo, significava também o medo da "massa", da sua movimentação
forma, podemos dizer que transpassavam a sociedade de alto a baixo, nas ruas, ou as indiossincrasias, temores gerais e de maior amplitude,
transparecendo não só a luta entre "brasileiros" e "portugueses", mas, do que atravessavam aquela sociedade.
mesmo modo, questões raciais entre os "brancos" e "negros". A prevenção contra os "portugueses" era a mais óbvia, embora a
A situação era tão complicada, e o medo tamanho, que mesmo definição do "ser português" obedecesse a critérios extrapoladores do
após as mortes, pancadaria e tiros, convocaram-se mil e quatrocentos local de nascimento.
guardas municipais. O "perigo" rondava a cidade. Como já comentamos, Os "portugueses" eram acusados de conspirarem contra o governo.
permanentemente a "gente de cor" ameaçava e a toda hora um molim. Se não fosse assim, ao menos recaía sobre eles a suspeição de poderem
assuada ou revolta podiam desembocar em algo mais grave. Afinal, não sempre estar planejando o retomo à condição colonial e, mais tarde, o
é demais, ainda para os padrões hodiernos, uma simples briga móbil i/.ar regresso de D. Pedro.
tanta força, tantos "cidadãos armados"? Na documentação aparecem várias denuncias contra os "lusos".
Retomemos ao dia 27 de Julho de 1831. Um episódio interessante Com uma roupagem diferente, retornava novamente a questão da adesão
aconteceu: "patrulhas que rondavam o sítio do Catete foram insultadas à "Causa Brasileira". Avisos, editais, portarias e outros instrumentos
e apedrejadas por diversos pretos e pardos". Eram todos conhecidos nas legais e de controle cuidavam da movimentação dos "portugueses",
redondezas. O Intendente soube listar os nomes de João dos Santos, embora, como já vimos, contraditoriamente preferia-se entregar o
carpinteiro; Camilo, canteiro, e Caetano, também carpinteiro. Todos cuidado da cidade a Pedestres de nacionalidade portuguesa.
escravos do advogado Fillipe Justiniano da Costa Ferreira. Os "pretos" Desta forma, a título de exemplo, no Aviso de 11 de abril,"
e "pardos" lutavam com todas as armas contra a população "branca". portanto, logo após a Abdicação, a Regência Provisória mandava que o
Agrediam guardas da municipalidade encarregados de reprimi-los ou súdito português José Bonifácio deixasse o Império no prazo de oito dias.
prendê-los, quando fugitivos. lira acusado de ter "abusado da hospitalidade" conduzindo-se de maneira
Em Aviso de 13 de agosto foi expedida uma ordem mandando suspeita, possivelmente fabricando uma conspiração contra as autoridades
observar a casa do Monsenhor Duarte Mendes de Sampaio Fidalgo, onde recentemente constituídas. Ainda no 'mesmo mês, um outro português foi
mulatos — talvez fugidos de seus senhores, e que andavam de noite, fora denunciado e preso para explicar porque mantinha um barril de pólvora
das horas, de cacetes e punhais — possivelmente se escondiam. dentro de casa."" Assim, nos meses posteriores, também decretos e
Mais adiante, no mês de setembro e seguintes, os "brancos" são portarias se seguiram no mesmo sentido.
"aterrorizados" no Cosme Velho e Laranjeiras. O responsável era o pardo Em dezembro ainda persistia a preocupação com planos sediciosos.
forro Domingos José do Espírito Santo, bastante conhecido de todos; No dia 7, António José Francisco Guimarães foi declarado inimigo do
malvado, aterrava as pessoas e prejudicava a tranquilidade pública. Brasil "porque jamais aderira à sua Causa" e, além disto, foi enquadrado
Sucessivos requerimentos chegavam à Polícia pedindo a sua prisão . no artigo 301 do Código Criminal. Logo dois dias depois, a Polícia
A legislação repressiva, e os muitos avisos, editais e proclamações, mandava demitir, do lugar do Oficial-Maior Graduado da Secretaria de
preocupavam-se, prioritariamente, com o controle dos escravos, forros e
capoeiras. Mandava-se proceder buscas em casas suspeitas, verificar
impressos incendiários, descobrir armamentos roubados — crime bastante "' Cl', contra Avisos de 27 de abril de 1831, 27 de julho de 1831, 29 de julho de 1831, 29
(Ir (iilho de 1831, 2 de agosto de 1831, Edital de l de agosto de 1831, entre outros, A.N.
comum naqueles dias! —, distribuir armas pelos alistados, prender
Cf., entre outros, avisos de 24 e 28 de novembro de 1831 Instruções de 29 de novembro
«Ir 1831, A.N.
Portaria de 29 de julho de 1831, A.N. '•' Aviso de l l de abril de 1831, A.N.
29
Aviso de 3 de setembro de 1831, A.N. de 30 de abril de 1831, A.N

156 157
Estado dos Negócios do Império, Francisco Gomes da Silva. Sobre ele Soiiu-nlc em 1831 passava-se a querer observar com rigidez os
havia sido feita a denúncia de ter forjado uma doença e "trabalhar [OS mi-iicioiiados da Constituição e a mapear, com precisão, quem
ativamente no serviço de Portugal e do ex-lmperador"/ . M U I os portugueses não-cidadãos brasileiros — sendo "portugueses"
Outros tantos avisos passaram a regulamentar a entrada e saída de i r l m d n s com letra minúscula e cidadãos "Brasileiros" grafados com
portugueses natos da Corte. A partir de maio de 1831 avolumaram-se maiúscula.
as ordens proibindo o seu desembarque (entretanto, continuaram Hm especial, os portugueses, mas, os estrangeiros, em geral, eram
migrando e chegando em bandos ao porto do Rio de Janeiro). i > l i | r i o s de suspeição reiterada . Estes últimos eram olhados de soslaio,
Costumavam usar como artifício a clandestinidade; vinham como "peso" krondemos aqui a já mencionada rivalidade entre o Batalhão dos
nos navios com destino à ex-Colônia. Apesar disso, e das proibições, não l i l u - i i o s c aquele dos Estrangeiros, a participação da "gente de cor'", "de
se intimidavam. Desembarcavam, muitas vezes com o auxílio dos inolii próprio" e sanguinolento, na repressão à revolta dos irlandeses ;
comandantes da embarcação, e embrelhavam-se pelas ruas da cidade. A r . i < > se não trouxermos à lembrança a recepção que fizeram no
princípio, quando pegos, eram deportados. Posteriormente, obtinham a .Irsi-mbarque daqueles infelizes! Franceses também eram suspeitos:
possibilidade de ficar no Brasil, contanto que fossem para o interior. (li-sconliava-se que auxiliariam D. Pedro em seus planos "recolo-
Em agosto de 1831 a Regência decidiu tomar medidas mais m/adoies". Aliás, devemos destacar aqui ser a prevenção entre
drásticas contra os "portugueses" e a favor dos "brasileiros". Passou a ln.isileiros" e "estrangeiros" mútua - - e com liames com questões
mandar demitir aqueles não considerados "brasileiros" e a estabelecer I . H iais e de classe!
regras na admissão ao serviço público:
A Regência Provisória, em nome do Imperador, manda
1°) Que os Chefes de cada uma das Repartições Civis, remeter à Vm. a exposição inclusa, que fez Alexandre José
Militares e Eclesiásticas, onde houverem empregados de Nunes, por ter sido esperado e espancado por vários
nascimento portugueses escrupulosamente examine-se se Portugueses do Sítio São Diogo, no dia 17 do
eles são de fato cidadãos Brasileiros adotivos ou corrente(...);36
naturalizados, na forma da Constituição (...) e quando tal
legitimidade se torne duvidosa a respeito de alguns dos Não só "brasileiros" espancavam "portugueses". A recíproca era
primeiros, farão que eles justifiquem perante os Juizes \ dadeira. A preocupação com a "ordem" e com o seu contrário, os
territoriais as condições determinadas do citado tit. 2°, art. lumultos, era enorme. Para a mesma freguesia do espancamento, no dia
4°, e da Constituição do Império dando-se de tudo conta ao ' / de abril era enviada um ordem ao Juiz de Paz com o objetivo de
Governo para sua completa inteligência; 2°) que toda "pacificar a sua freguesia e dispersar qualquer ajuntamento de que se
autoridade perante a qual se apresente qualquer indivíduo possa receiar consequência funestas". Colocava igualmente à disposição
que não seja nascido no Brasil para usar de algum direito ,1 l orça de Cavalaria e Infantaria. A'mesma recomendação foi enviada
ou regalia pertencente a cidadão Brasileiro, não consinta aos Juizes de Paz das freguesias da Candelária, Santa Rita, Santa Anna,
que assim use se ela não estiver perfeitamente certificada San José e Engenho Velho; isto porque
de que tal indivíduo e cidadão adotivo ou naturalizado,
segundo o direito ou regalia de que pretenda aproveitar-se o povo desta cidade tumultuara pelas ruas dela, fazendo
na forma da Constituição; 3°) por via dos Cônsules alguns insultos na noite procedente, e ainda hoje continua
Portugueses residentes no Império, se remeta, na Corte, à o desassossego, que pode perturbar a tranquilidade
Secretaria de Estado dos Negócios do Estrangeiros, e nas pública(...)"
Províncias às Secretarias dos respectivos Governos lislas
exatas de todos os indivíduos da sua nação, ora existentes Hm 30 de abril, um francês, taberneiro, na freguesia de São José,
no Brasil e que não são cidadãos Brasileiros bem como de n > l.miou de malfeitorias feitas em sua casa. No mês anterior, quando
todos os outros que forem chegando com intenção de os ânimos estavam bastante quentes, um conterrâneo seu foi insultado e
residir no País"."

.Ir 23 de abril de 1831, A.N.


35 Aviso de 7 de dezembro de 1831; Decreto de 9 de dezembro de 1831, A.N.
Decreto de 18 de agosto de 1831, A.N. !•• '.' ilr abril de 1831, A.N.
.1.- to ilr abril de 1831, A.N.
158
159
que pede declaração ao que na mesma data se lhe dirija por
sofreu ferimentos "da parte de um ajuntamento de mulatos c negros qui csia Secretaria de Estado para mandar abrir assento de
o acometeram"/ na Praça da Aclamação. prisão, à ordem da mesma Intendência, a todos os
O Desembargador encarregado da Intendência Geral da Poli< 1.1 indivíduos presos em flagrante como perturbadores do
informando sobre o acontecimento disse: sossego público, sobre o que devo obrar a respeito do
Inglês Alexandre Stolmes da Casa de Comercio de Moon
(...) na tarde desse dia, pelas 6 horas, ouvindo o O l i u . i l < l " e C., preso por ser encontrado com uma pistola em uma
Expediente da Intendência, Manoel José Moreira, um g das noites, em que os perturbadores da tranquilidade
na Praça da Aclamação, que apelidava de Cahi.i ao pública tumultuaram pelas ruas desta Cidade, cometendo
brasileiros, ocorreu ao dito grito e achou o mesmo riam 6s ferimentos e mortes, reclamando, como reclamava, a sua
que o dera já agarrado e espancado por uma multidão do soltura o Conservador da Nação Britânica: manda a mes-
povo, em razão do que o prendeu (...). As a u t o r i d a d e s ma Regência Provisória, em nome do Imperador, que se
Policiais fizeram, pois, o que cumpria fazer em s e m e l h a n t e s declare a Vm. que o assento de prisão a ordem da Inten-
casos, que foi, com uma aparente prisão salvai estC dência se deve entender não só pelo que respeita aos
estrangeiro, perturbador da tranquilidade publica, de sei indivíduos já presos, como aos que se forem prendendo, até
morto entre as mãos da multidão que ele tão indignamenie que se restabeleça a pública tranquilidade desta Corte,
havia provocado (...).40 alterada tão escandalosamente pela animosidade dos
perturbadores esperançados da sua impunidade sem que
Tal qual os "portugueses", o francês Garriot havia chamado um para isso haja nova ordem: e, quanto ao sobredito Inglês
grupo de Brasileiros de "Cabras", insulto sempre referido à gente "de Alexandre Stolmes, que ele está na mesma razão dos mais
cor" por parte dos "pés-de-chumbo", gente "branca". Apesar desta iri indivíduos, porque os Estrangeiros não gozam entre nós de
sido uma sociedade marcada por rivalidades raciais - - que m u i t o maior favor do que os Nacionais.
frequentemente davam margem a conflitos como o descrito acima e
pelo racismo e prevenção contra os negros, a autoridade não pestanejou No início da Regência, o Governo passou a defender uma
em incriminar o francês, que "indignamente" havia provocado a igualdade de tratamento e de julgamento na Justiça, para estrangeiros e
multidão. Observe-se que a "multidão do povo" era constituída, neste nacionais. Os estrangeiros não tinham razão para serem privilegiados se
episódio, por mulatos e negros, o que reforça o nosso argumento anlciioi eram colocados sob suspeição frequente. Logo depois da decisão de só
a respeito da diferenciação dos dois "tipos" de "povo" designados pelos admitir "brasileiros" no serviço público, demitindo "estrangeiros", em 30
documentos de época ( escritos com letra maiúscula e minúscula). de agosto há um aviso mandando prender estrangeiros que estivessem
A xenofobia dava-se, portanto, igualmente por parte do governo, andando pela cidade fora de hora. O medo não era apenas dos pobres,
e era especificamente política, como tentamos demonstrar ao longo de especialmente dos negros, os "estrangeiros" eram também odiados e
todo este trabalho. Mas, também manifestava-se no cotidiano v i v i d o temidos, por motivos variados e por diferentes parcelas da população.
pelos populares ... E, em alguns momentos é muito difícil separar estes
dois tipos de manifestação contra os estrangeiros, mesmo para efeilos de
análise. A título de conclusão:
No episódio da morte do pardo João António pela quadrilha de .Io
sé Vivas, a polícia estava preocupada com o sossego e tranquilidade Em documento de 17 de março de 1831, os " Representantes da
públicos, no bairro de São José. Estrangeiros faziam parte do grupo que Nação" pediam satisfações a D. Pedro pelos acontecimentos do dia 13 do
havia enfrentado os pardos. mesmo mês. Para eles, a confiança no Governo estava abalada. Referiam-
se ao episódio da "noite-das-garrafadas".
Sendo presente à Regência Provisória o ofício do Por três dias consecutivos houve distúrbios na cidade envolvendo
Intendente Geral da Polícia, datado de 5 do corrente, em poiiutuicses" e "brasileiros". Os lusos tinham resolvido comemorar o

Aviso de 9 de maio de 1831, A.N. Aviso .Ir 12 de abril de 1831, A.N.


Idem. i l nota U) c aviso de 30 de agosto de 1831, A. N.
Cf. nota 17.
161
160
regresso do Imperador de Minas Gerais, e do que haviam considciado ponio de visla da produção/trabalho e das relações de poder. Isto
uma vitória política. Na Corte, a leitura era outra. A Proclamação l r i i : i Ignificava não somente a extração da mais valia, mas, principalmente
nas Gerais tinha sido entendida como uma declaração de guerra c h a v i a a c u lusao de iodos, mesmo da maioria dos cídadãos-ativos, fios espaços
convencido os "moderados" a participar da tentativa de dcrruhada do ler.us da cidadania.
Imperador. Ao menos é esta a versão corrente na memória h i s i i n i o A definição entre "cidadão-ativo" e "inativo", de acordo com a
gráfica. Constituição de 1824, era já limitativa. Entretanto, estreitava-se ainda
Para os festejos armaram fogueiras nas freguesias do centro tia mais na prática, quando se considerava que este "cidadão-ativo", para
cidade. As ruas escolhidas foram as da Quitanda, do Piolho (Carioca), votar nas eleições censitárias, deveria ter a sua participação corroborada
Lavradio e Largo do Rossio. Os conflitos começaram na noite do dia 1 1 pelos "homens-de-bem".
de março e estenderam-se até o dia 15. "Brasileiros" apagavam A experiência compartilhada da "gente-de-cor", nas ruas do Rio
sistematicamente as fogueiras "portuguesas" . Guerras aconteceram com de Janeiro, dava-lhes um caráter de classe. Lutavam contra a escravidão
cacos de garrafas jogados das janelas. e contra os "brancos", na sua maioria portugueses de nascimento ou
A representação pedia providências contra os "portugueses"; luso descendentes.
exigia reparos aos brios dos valorosos "brasileiros" e a coibição das A questão era também nacional e racial. Primeiro, racial, depois,
desordens. Foi redigida por Evaristo da Veiga e publicada nos jornais: veio a ser nacional. Passou-se a entender o "português" como o "outro",
ameaçador da nacionalidade em construção. Desta forma, aproveitou-se
(...) por ocasião dos festejos que se dispuseram, não tanto uma experiência de conflito anteriormente vivida - - j á que os lusos
para solenizar o feliz regresso de V.M.I. e C., como .empre monopolizaram setores fundamentais da economia, como o
principalmente para ludibriar e maltratar os Brasileiros abastecimento de carnes verdes, e chegaram a concorrer como mão-de-
amigos da Liberdade e da Pátria, que forarn de fato ohia - - para revigorar o antilusitanismo. Q "ser português" era a
cobertos de opróbios pelo Partido Lusitano, que se inssur nacionalidade antagónica e politicamente produzida.
giu de novo no meio de nós entre gritos de -- Vivam os Sc tomarmos Rio de Janeiro e Salvador, parece que "ser brasi-
Portugueses —, entre morras sediciosos e anárquicos, leiro" e "ser português" tinham significações diferentes nos dois lugares.
violências de todo género, de que tem sido vítimas alguns Na Bahia, "brasileiro" e "português" eram termos mais ligados a
Patriotas, cujo sangue foi derramado em uma agressão pátria de nascimento, à terra natal, portanto, menos relacionados a uma
pérfida, e já de antemão premeditada por homens que, no construção política da nação, priorizada como elemento de união com o
delírio de seus crimes, eram claramente protegidos pelo icsio do país. Lá. os "brasileiros" eram os senhores-de-engenho, alguns
Governo e pelas Autoridades(...).44 poucos portugueses de nascimento, o "povo branco" e "de cor"
escravos, forros ou livres, lutavam- contra o monopólio português. A
Nesse momento voltava-se a denominar as facções em disputa de construção da nação não estava tanto vinculada a unidade territorial,
"Partido Brasileiro" e "Partido Português". Entretanto, continua sendo mas, prioritariamente, à busca de símbolos regionais, tais como o índio
falacioso tentar entender a história política do Primeiro Reinado e as e o caboclo, até hoje representantes da Independência naquele estado,
manifestações e conflitos de rua somente através destas designações. O comemorada a 2 de julho.
Senador Vergueiro, um daqueles aos quais se atribuiu a conspiração Já os "portugueses" seriam os comerciantes e as tropas lusas. O
contra o Governo, era português de nascimento, contudo, considerado leu desejo seria o de manter o monopólio e ligarem-se mais estreita-
"brasileiro" por suas posições. Muitos oficiais das tropas, que volta c mente a Coroa Portuguesa. Quem sabe se não desejariam restabelecer os
meia se rebelavam e auxiliaram patrioticamente a deposição do ICUS anligos privilégios e hegemonia comerciais, detidos desde os finais
Imperador, também eram gente lusa. Portanto, tal qual na época da do século XVIII pelos comerciantes de grosso-trato do Sudeste. 47
Independência, talvez mesmo com maior ênfase, agora as rixas e tensões
possuíam, para além de um caráter nacional, constituído politicamente, •H
momento os graus de branqueamento estavam relacionados à posição socio-
uma marca racial e classista. ......... nica.
No Rio de Janeiro, a população pobre -- "branca" ou negra, l m n a i i i i i s como base, para esta comparação, o artigo já citado de João José Reis,
escrava, forra ou livre — sofria a mesma forma de coação e coerção, do M i l n i 1 ii p . n i i d i ) IIC-LTO" na Independência da Bahia.
v i . -m iLis ohms já citadas de João Fragoso e Manolo Florentino, conferir também, destes
mi' i. c \ como Projelo: Rio de Janeiro, c. 1790- c. 1840 . Rio de Janeiro,
44 SEIDLER, Cari, op. cit., p. 298. Dlmlorln l 1 ' 1 "

162 163
n Código Criminal ou o. Código de Processo Penal. Certamente, estes
Na cidade do Rio de Janeiro, os "brasileiros" eram na sua m. ú l t i m o s loram elaborados tendo como referência os movimentos
os comerciantes portugueses, também os "brancos" e os "de coi populares na Corte e Províncias, que tanto atemorizavam as elites,
escravos, forros ou livres. "Facção" extremamente dividida, mas qn< pi iripalmente a partir de 1828.
a Independência. A construção da nação buscava símbolos m.u
O "povo", na sua maioria negro, podia buscar não só a liberdade
genéricos, que representassem a extensão de todo o território h u . i l . Iro
como sinónimo de autonomia individual, direito do cidadão, mas
tais como o hino nacional e as cores da bandeira. Após a Independeu- i i
também a liberdade no sentido de pertencer a uma comunidade específica
ao menos na documentação analisada até o presente momento, n;'u> h
e a uma Nação da qual fosse, na pratica, cidadão — cidadania que vinha
efetiva luta externa contra as tropas portuguesas. Entretanto, o P C M - M . < ri
t e n t a n d o delimitar desde a Independência.
iminente e preparavam-se para a guerra construindo fortes. Havia o m r i l n
Então, o Ato de 1834 teria como objetivo barrar a ascensão da
dos "portugueses", mais concretamente, da recolonização e dos piv|in o
eonsirução da nação; não aquela construção nascida das leis e decretos
para os rumos dos negócios dos comerciantes do Sudeste. "PorlutMi.
emanados do poder estabelecido, mas a que nascia a partir das
talvez só mesmo as tropas expulsas, ou, quem sabe, algum ou onim
experiências, das vivências e práticas do cotidiano. Seria a tentativa de
indivíduo que preferisse continuar afirmando-se luso de c i d a d a n i a \a tratou de se dizer a favor da "Causa Nacional".
l i m i t a r a nacionalidade dentro dos estreitos limites da definição jurídica
do Estado, centralizado e tomado pelas classes dominantes — que
Na Corte, a luta era interna, melhor dizendo, preocupa. Io
l i/.eram a Independência e perpetuaram-se, alternadamente, no poder.
permanente com o movimento do "povo" nas ruas e em esiahckvei
estratégias de controle capazes de serem também aplicadas ao resiauk- dn
Império. Neste sentido, a atenção e repressão às ruas foi constante. <.)uem
sabe se não foi mesmo maior do que nas províncias!
Na Bahia, a luta serviu para os grupos políticos dominantes na
Corte intervirem e reestabelecerem os laços de dominação c RESUMO ABSTRACT
centralização. Desta forma, o "partido brasileiro" do Rio de J a n c u o O urtiga unulisu os conflitos e The article analites The First Em-
acabou sujeitando os "portugueses" radicados na Bahia, ou, por outra, os t i i i \ t n - s durante o Primeiro Reinado, pire tensions and conflicts throitgii an
"brasileiros" da Corte fizeram uma aliança com os "brasileiros" injatitando u participação popular no enphazis on popular participation on lhe
prvctsso dt Independência. Aborda quetões cotirse ofindependence proccess. It f acuses
considerados bahianos, da elite, naturalmente, que passaram a participai
11 l i ' i fntes à formação da identidade issues reluted to lhe formation of national
na construção do Estado Nacional, mu iniiiil, ao unlilusitanismo e suas relações identity, the anti-portuguese altitudes, the
O estrangeiro, na cidade da Bahia, parecia ter contornos m a i s iiim ti construção do novo estudo relaliom to the building H) the newly inde-
definidos do que no Rio de Janeiro. Efetivamente, a briga dava-se com independente e tios limites da cidadania. pendem stste and the limits of citiienship.
maior clareza entre os brasileiros natos e os portugueses de nascimento
Na Corte, a confusão entre "ser brasileiro" e "ser português", nas
praticas políticas mais gerais e no cotidiano miúdo, provavelmente c i a m
devidas à necessidade de formação e construção de um Estado amplo,
abarcador de todo território e diversidades regionais, que deveria sei
delineado a partir de elementos jurídicos, da definição legal dos poda c-,
e da cidadania relacionada aos direitos políticos constitucionalmente
estabelecidos, ou seja, de participação no Estado. O conceito de nação
apelava para a adesão aos costumes, tradições e amor à terra . Excluía
se a questão do nascimento e da língua; priorizava-se a renda e o amoi
à "Causa Nacional".
Estes dois últimos elementos a renda e a adesão a
nacionalidade — muitas vezes se misturavam, Porém, em alguns nu»
mentos percebemos ser a renda a chave para a definição legal do cidadan
participante do Estado e o amor à Causa, o divisor-de-águas para o
estabelecimento do conceito de cidadania referido à Nação, conceito que
não cabia nos estreitos limites da Lei, fosse esta a Constituição de I X . ' l

165
164

Você também pode gostar