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Imagens da Turquia: O Cinema de Nuri Bilge Ceylan

Ferreira, Leonardo Luiz (org.)

1ª Edição
Março de 2017
ISBN 978-85-65564-14-4

Coordenação editorial e revisão de textos: Leonardo Luiz Ferreira


Capa & projeto gráfico: Guilherme Lopes Moura

Todos os direitos reservados.


É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais
sem prévia autorização dos organizadores.
É com grande honra que a CAIXA apresenta a mostra Ima-
gens da Turquia – O Cinema de Nuri Bilge Ceylan. Com o
objetivo de difundir a produção desse país tão rico e ao
mesmo tempo tão distante cultural e geograficamente do
Brasil, a mostra é uma grande oportunidade de intercâm-
bio com a produção cinematográfica de um dos mais re-
nomados cineastas da atualidade.
Os projetos que ocupam os espaços da CAIXA Cultu-
ral são escolhidos através de seleção pública, uma opção
da CAIXA que torna acessível e democrática a participa-
ção de produtores e artistas de todo o país.
Sempre com o intuito de promover a pluralidade de
ideias e o acesso do grande público a produções artísticas
de relevância no cenário nacional e internacional, a CAIXA
reafirma seu compromisso com a cidadania e a cultura do
país. Porque a vida pede mais que um banco.

Caixa Econômica Federal


Foi na Espanha, no ano de 2012, enquanto nos prepará- alma muitas vezes sublimados. Naquele momento ainda
vamos para rodar o filme da amiga e parceira de traba- não sabia que a obra de Ceylan me influenciaria a tal pon-
lho Janaína Marques Ribeiro, com quem estudei na Escola to como fotógrafo ou realizador, e muito menos que te-
de Cinema EICTV em Cuba, que conheci o trabalho do ci- ria a honra de apresentá-la em formato de mostra para o
neasta turco Nuri Bilge Ceylan. Durante a pré-produção público carioca.
de seu filme Madrid, Janaína propôs que assistíssemos Nuri Bilge Ceylan (ou “Jeilan”, na pronúncia turca) não
ao longa Climas. Muito impressionado com a obra, logo me fascinou somente pelo seu minimalismo ao retratar
na sequência vi 3 Macacos e Distante. Buscávamos assim complexos personagens (muitas vezes baseados em his-
estabelecer uma ponte de referência entre nós, algo co- tórias pessoais e interpretados até mesmo por parentes
mum entre diretores de fotografia e diretores no proces- seus), nem mesmo pelas belas paisagens dos vastos cam-
so de realização de um filme. E foi naqueles trabalhos, pos turcos, os quais ele viria a retratar inúmeras vezes em
entre outros, que encontramos uma forma de fazer cine- praticamente todo o seu trabalho, quase sempre dotado
ma sensível, aparentemente simples e com poucos recur- de um tom nostálgico. Ceylan me tocou, principalmen-
sos, porém portadora de tamanha expressão através dos te, devido à forma como se envolve intimamente com a
silêncios e altamente apoiada na força da imagem, que linguagem cinematográfica, concebendo histórias e pla-
funciona para revelar detalhes das relações humanas e da nos com tamanha precisão em todos os aspectos, mesmo
nos primeiros filmes nos quais trabalhou com pouquíssi- Nuri Bilge revela-se admirador e influenciado por
mos recursos. Ele aponta para questões humanas que to- grandes cineastas como Abbas Kiarostami, Yasujiro Ozu,
dos carregamos e que muitas vezes temos dificuldades de Tarkovsky, Antonioni, entre outros, dos quais podemos
enfrentar: a inércia, a solidão, o egoísmo, a revolta, a difi- observar influências. A sensação que temos é que Ceylan
culdade em relacionar-se ou mesmo entender-se e saber os transforma, inserindo-os no contexto de seu país e, so-
colocar-se no mundo, o desespero. Tudo isso sem pare- bretudo, de sua intimidade e de sua mente criativa e pes-
cer quadrado ou métrico: suas histórias são sobre o ho- simista sobre o mundo, que tende a indicar os defeitos
mem comum, desenvolvem-se em espaços comuns, e seus dos homens e mulheres que observa, mas sem julgar. Seu
personagens têm suas personalidades reveladas de forma intuito parece ser mais o de “dissecar”: entender e ana-
quase “inocente”, mas não por isso menos crítica, política, lisar os sentimentos para quem sabe conseguir transfor-
ou planejada. Cada quadro, cada som que se escuta ou que má-los. O sentido de continuidade está presente em seus
não se escuta, cada detalhe é pensado para servir a histó- longas, com histórias que não necessariamente apre-
ria e aqueles que darão “cara” a ela, pois são eles que trans- sentarão um “FINAL”. Característica que vejo certamen-
piram os sentimentos que interessam ao diretor. Seja um te como uma opção de manter-se conectado ao fatídico
homem público dirigindo um carro por uma estrada deser- real: a vida segue, apesar de tudo. Mas... por que não de-
ta, sem saber que seu destino está a ponto de mudar, se- tê-la por alguns instantes usando o aparato mágico do ci-
jam dois irmãos adultos conversando de forma provocante nema e observá-la de perto com poesia?
e rancorosa num frio escritório, seja um casal em confli-
to numa praia deserta: todos vivem um momento de crise
pessoal, muitas vezes silenciosa, e é isso que vamos acom- Julio Costantini é diretor de fotografia, cineasta e curador da mostra Imagens da

panhar de perto quando se trata de um filme de Ceylan. Turquia – O Cinema de Nuri Bilge Ceylan.
Biografia 14

Fortuna Crítica

Koza ∙ A Importância de se Apreciar a Paisagem na Viagem ∙ Octavio Caruso 26

A Pequena Cidade ∙ Primeira Infância ∙ Michel Simões 30

Nuvens de Maio ∙ No Caminho ∙ Aaron Cutler 36

Distante ∙ A Intimidade da Distância ∙ Paulo Santos Lima 42

Climas ∙ Corações Desertos ∙ Leonardo Luiz Ferreira 48

3 Macacos ∙ O Ocultamento como Forma de Sobrevivência ∙ Carlos Alberto Mattos 52

Era uma Vez na Anatólia ∙ Placas para o Inferno ∙ Marcelo Miranda 58

Sono de Inverno ∙ A Maturidade de um Cineasta ∙ Sérgio Alpendre 64


Além das Nuvens: Uma Entrevista com Nuri Bilge Ceylan ∙ Geoff Andrew 72

Ensaios

Um Pequeno Olhar sobre os Primeiros Filmes ∙ Asli Daldal 92

Climas e Sono de Inverno: autoria e contrastes narrativos nos roteiros de Nuri Bilge Ceylan ∙ Sylvio Gonçalves 100

O Cinema de Nuri Bilge Ceylan — Em Busca do Ser ∙ Janaína Marques 110

Ficha Técnica 125

Agradecimentos 127
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Biografia

Nuri Bilge Ceylan nasceu em Bakirköy, Istambul, no dia


26 de janeiro de 1959. Ele passou sua infância em Yeni-
ce, cidade natal de seu pai localizada na província de Ca-
nakkale. Seu pai, um engenheiro agrônomo, trabalhou
no Instituto de Pesquisa Agrícola de Yesilköy, Istambul.
Mas quando, com aspirações idealistas, ele solicitou uma
transferência para Canakkale, a família retornou para Ye-
nice. Nuri Bilge tinha apenas dois anos nessa época.
Para Nuri e sua irmã mais velha, Emine, a mudança
significou uma infância de liberdade pelos campos de Ye-
nice. Isso durou apenas até que sua irmã finalizasse o en-
sino médio. Já que não havia colegial em Yenice naquela
época, a família foi forçada a retornar para Istambul em
1969, como resultado Ceylan passou seu quinto ano de
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escola primária, bem como metade do colegial, em es- um importante papel ao dar combustível a sua paixão por
colas estaduais de Bakirköy. Mas sempre ele escolhia re- artes visuais e música clássica. Enquanto isso, ele partici-
tornar para Yenice passando, pelo menos, parte de suas pou de um curso eletivo de estudos de cinema. A ida ao
férias de verão. cineclube para sessões especiais reforçou seu amor pela
Em 1976, depois da graduação no colegial, ele come- sétima arte.
çou a estudar engenharia química na Universidade Técnica Após a graduação em 1985, Nuri Bilge começou a con-
de Istambul. Estes, entretanto, foram tempos turbulentos; templar sobre o que faria com sua vida. Primeiro partiu
e as aulas eram constantemente interrompidas por boico- para Londres, depois Catmandu. Suas viagens no ociden-
tes, manifestações e polarizações políticas. O seu curso te e oriente duraram meses, e quando retornou à Turquia,
estava baseado na Universidade de Maçka, onde inciden- ele pôs fim a agonia da indecisão ao se alistar no servi-
tes foram mais intensos, e dois anos passaram com pouca ço militar. E durante 18 meses no Exército, em Mamak,
oportunidade de estudo: as circunstâncias simplesmente Ankara, ele descobriu como daria forma ao resto de sua
não permitiam. Em 1978, ele reentrou na Universidade e vida. Através do cinema...
fez exames para trocar de cursos, agora escolhendo Enge- Com o fim do serviço militar, ele decidiu colocar sua
nharia Elétrica na Universidade de Bogaziçi, onde tinha re- decisão em prática. E enquanto estudava cinema na Uni-
lativamente menos problemas naquela época. versidade de Mimar Sinan, Ceylan tirou fotos publicitárias
O seu interesse pela arte da fotografia despertou du- como um meio de sobrevivência. Mas com 30 anos, ele
rante seu período no colegial e aflorou de vez no clube de era o estudante mais velho da Universidade e com pressa
fotografia na Universidade de Bogaziçi, onde ele também para construir uma carreira própria. Então, depois de dois
se envolveu com montanhismo e clubes de xadrez. A ex- anos decidiu abandonar o curso.
tensa biblioteca de livros e música da Universidade teve Ele começou atuando em um curta-metragem dirigi-
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do pelo amigo Mehmet Eryilmaz, mas ao mesmo tempo bém assumiu o cargo de todos os aspectos técnicos possí-
não se limitou a interpretação e participou de todo pro- veis: fotografia, desenho de som, produção, montagem,
cesso técnico de realização, a partir do conhecimento roteiro e direção...
prévio que tinha coletado. Mais tarde, ele comprou uma Quando Distante, o filme final da trilogia, ganhou o
câmera Arriflex 2B, que foi usada para rodar esse filme, Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes 2003, Ceylan
com a vontade de realizar um curta de sua autoria. Nes- rapidamente se transformou em um nome reconhecido
sa época, as câmeras digitais não eram ainda uma opção. internacionalmente. Continuando no circuito de festivais
Próximo do fim de 1993, ele começou a rodar o curta- depois de Cannes, Distante recebeu 47 prêmios, 23 deles
metragem Koza, usando uma combinação de negativos internacionais, e se tornou o filme turco mais premiado
que trouxe em sua mala da Rússia e algum estoque já com da história do país.
data de validade expirada que recebeu de presente da Logo em seguida, em 2006, o filme Climas, que nova-
TRT, um canal do Estado. O filme foi exibido no Festival mente foi apresentado em Cannes levando o prêmio da crí-
de Cannes em maio de 1995 e se tornou o primeiro curta tica internacional (FIPRESCI). Os papeis principais no longa
turco a ser selecionado para Cannes. Iniciando assim uma foram divididos entre Nuri Bilge e sua esposa Ebru Ceylan.
história de amor e prêmios com o festival francês. Competindo no 61º Festival de Cannes, em 2008, com
Três longas-metragens vieram em seguida e estão 3 Macacos, Nuri Bilge recebeu a Palma de Melhor Direção.
relacionados diretamente com Koza; eles também foram Depois o longa se tornou o primeiro filme turco a figurar
descritos por alguns críticos como a sua Trilogia da Pro- na shortlist de indicados ao Oscar de filme estrangeiro.
víncia: A Pequena Cidade (1997), Nuvens de Maio (1999) Em 2009, o diretor retornou à Cannes, mas dessa vez
e Distante (2002). Em todos esses filmes, Ceylan colocou para integrar o júri da competição principal.
no elenco amigos, parentes e os próprios pais. Ele tam- Em 2011, o seu filme Era uma Vez na Anatólia ganhou,
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mais uma vez, o Grande Prêmio do Júri em Cannes mais Curiosidades


uma vez. E três anos depois, Nuri Bilge Ceylan, finalmen-
te, recebeu a Palma de Ouro de melhor filme com Sono » Tem 1,80m de altura.
de Inverno.
Atualmente, ele trabalha em um novo filme, ainda sem » Quando recebeu o prêmio de cineasta estrangeiro do
título, que deve ficar pronto no segundo semestre de 2017. ano, em 2004, ele dedicou ao ator e diretor turco Yilmaz
Güney.

» Ao vencer o prêmio de direção em Cannes (2008) subiu


ao palco e agradeceu da seguinte forma: “Eu dedico esse
prêmio para meu solitário e belo país, que eu apaixonada-
mente amo”.

» Presidente do Júri do Festival de Sarajevo em 2008.

» Os seus 10 filmes favoritos são: Andrei Rublev (1966), de


Andrei Tarkovsky, A Grande Testemunha (Au Hasard Bal-
thazar, 1966), de Robert Bresson, A Aventura (L´Avventu-
ra, 1960), de Michelangelo Antonioni, O Eclipse (L´Eclisse,
1962), de Michelangelo Antonioni, Pai e Filha (Banshun,
1949), de Yasujiro Ozu, Um Condenado à Morte Escapou
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(Un Condamné à Mort s´est Échappé, 1956), de Robert » Geralmente coloca em seu elenco membros da família.
Bresson, O Espelho (Zerkalo, 1975), de Andrei Tarkovsky,
Persona (1966), de Ingmar Bergman, Era uma Vez em Tó- » Baseou grande parte de seu cinema em experiências
quio (Tôkyô Monogatari, 1953), de Yasujiro Ozu, e Vergo- pessoais.
nha (Skammen, 1968), de Ingmar Bergman.
» Gosta de utilizar planos longos e estáticos.
» O ponto de partida de sua carreira aconteceu após ler
a autobiografia do cineasta polonês Roman Polanski, in- » A sua filmografia tem como principais temas a aliena-
titulada Roman, na qual o diretor relata sua vida nos cam- ção, existencialismo e detalhes do cotidiano.
pos de concentração até a chegada em Hollywood.
» O seu escritor favorito é o russo Anton Tchekhov. E o ci-
» Ainda que tenha recebido fama internacional como ci- neasta é o japonês Yasujiro Ozu.
neasta não abandonou a fotografia.

» A sua mise en scène está concentrada na descoberta de


um sentimento muito mais do que uma história guiada
por um roteiro.

» Desenho de som minimalista, mas ao mesmo tempo


estiloso.
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fortuna crítica
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Koza

Koza
Turquia, 1995 Sinopse: Devido a experiências dolorosas do passado, um casal
Roteiro: Nuri Bilge Ceylan vive separadamente. Um dia eles decidem se reencontrar, mas
Elenco: Emin Ceylan, Fatma Ceylan e Turgut Toprak o episódio não gera o resultado esperado. Uma meditação
Seleção Oficial do Festival de Cannes. sobre vida e morte rodada em preto e branco e sem diálogos.
Duração: 17 minutos O curta-metragem acompanha a relação de um casal de idosos
Classificação indicativa: 12 anos com a natureza através de imagens simbólicas e trilha sonora
de música clássica.
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A Importância
de se Apreciar a
Paisagem na Viagem
Octavio Caruso

É fascinante o apreço de Nuri Bilge Ceylan pelo silêncio,


que ele considera uma forma de expressão mais sincera
do que o espetáculo de palavras usualmente lapidadas
pela necessidade de se viver em comunidade. A essên-
cia pura, a nudez de sentimentos, a verdade que não per-
mite ser filtrada pelos plugins intelectuais, a selvageria
instintiva que nos obriga a encarar a origem de tudo. A
experiência dele como fotógrafo facilita o impacto da sín-
tese imagética que propõe na simplicidade narrativa de
Koza, o seu primeiro curta-metragem. Ele utiliza seus
pais, Emin e Fatma, na composição desse retrato poéti-
co, sem diálogos, que pode parecer incrivelmente impene-
trável em uma análise superficial, porém, reserva para os
espectadores mais dedicados um sabor residual intenso e
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verdadeiramente agradável, apesar de abordar temas exis- (The Godfather, 1972), de Francis Ford Coppola, é o mais
tencialmente espinhosos. próximo que chegamos de uma explicação sobre a razão
A breve experiência humana como um casulo tempo- da ruptura emocional, a perda da cumplicidade em algum
rário, a sensação de estar confinado permanentemente momento do relacionamento a dois, simbologia que en-
a um corpo frágil em progressiva degradação, a mórbi- contra rima visual numa cena posterior, como que enfati-
da lucidez que cruelmente se mantém admirando o refle- zando para a personagem a qualidade cíclica da desilusão
xo cada vez menos reconhecível no espelho, a dificuldade amorosa, a lágrima que desce de seu rosto na cama, ele-
de se compreender as necessidades do outro, o peso do mento cênico usualmente conectado ao desejo, o amadu-
tempo nas atitudes impensadas, a dor de se submeter às recimento desfazendo naturalmente o ímpeto sexual da
consequências. Ao optar por iniciar mostrando antigas fo- paixão e abraçando a lúcida amizade entre duas pessoas
tografias, o diretor salienta o conceito do aprisionamento, no crepúsculo de suas vidas. Ao potencializar consciente-
o leitmotif mais forte, reduzindo décadas de vida a mo- mente os sons diegéticos, como o rangido de uma porta
mentos captados em alguns segundos por uma máquina. que soa como um trovão, Ceylan demonstra seu bom hu-
O ser humano percebido como objeto. Vemos o homem e mor e, especialmente nas sequências ao ar livre, salien-
a mulher, de vaidosa juventude, passando pelo ritual frio ta o abismo que se abriu entre o marido e a esposa, entre
do casamento, a cumplicidade amorosa no toque dos bra- ele e a própria natureza, entre aquele menino despreo-
ços, até o desgaste na relação, simbolizado pela separação cupado de outrora e o adulto solitário que encontra di-
dos corpos e pelos braços cruzados, refletindo insegurança ficuldade para expressar um simples sorriso. É quando o
diante do mundo. filme insere a exploratória aventura do menino na flores-
A porta que se fecha diante da esposa, cena que ante- ta, a memória que se recusa a ser esquecida.
cede o título e remete ao desfecho de O Poderoso Chefão O pequeno aborrecido, vivido por Turgut Toprak, caça
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pássaros com seu estilingue, mas não há sinal de alegria em fogo na madeira que ele próprio cortou, a aceitação silen-
seus atos. Ele corre na grama enquanto sua contraparte mais ciosa de que está vivendo as consequências de seus pró-
velha é mostrada frequentemente emoldurada pela janela prios erros. Koza pode tratar da amargura no processo
de sua casa, escondida nas sombras do quarto, aprisiona- de compreensão da finitude na nossa viagem pela estra-
da em estado contemplativo, aguardando o inexorável fim. da tortuosa da vida, mas a caligrafia sensível de seu reali-
O menino se revolta diretamente com sua versão adulta, zador emociona ao insinuar que o segredo pode estar na
numa bela metáfora, quando derruba o caixote com abe- percepção da beleza que quase sempre se perde na paisa-
lhas, prejudicando, sem razão alguma, o trabalho alheio: gem da janela do carro em movimento.
o revide do espírito vigoroso que reside no homem e que
não aceita as limitações físicas da idade. Com o estilin-
gue ele tenta obter controle, mas a implacável natureza
se encarrega do trabalho, o gato é visto se alimentando
e, no segundo seguinte, aparece morto. O vento que leva
a foto do casal, o filhote de pato que enfrenta seu primei-
ro desafio ao nadar, a mulher que retorna para casa e se
assusta ao ver a figura abatida do homem que amava, em
suma, ele não tem poder algum.
O reencontro apenas resgata lembranças ruins: ela é
mostrada aprisionada com ele na moldura da janela. In-
capaz de modificar aquela situação, ela retorna para casa. Octavio Caruso é crítico de cinema, escritor, ator, roteirista e cineasta, membro da

Ele tenta se aquecer na solidão de seus pensamentos, o ACCRJ (Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro) e da FIPRESCI.
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a pequena cidade

A Pequena Cidade (Kasaba)


Turquia, 1997 Sinopse: Narrada a partir da perspectiva de duas crianças, e
Roteiro: Emin Ceylan e Nuri Bilge Ceylan em quatro partes que acontecem paralelamente às estações
Elenco: M. Emin Toprak, Emin Ceylan e Fatma Ceylan do ano, o filme descreve os relacionamentos entre membros de
Prêmio Especial do Júri e da Crítica Internacional (FIPRESCI) uma família turca em uma pequena cidade. A primeira parte é
no Festival de Istambul. ambientada na escola primária onde uma jovem é estudante.
Duração: 85 minutos A segunda acontece na primavera onde ela e o irmão embar-
Classificação indicativa: 12 anos cam em uma jornada pelos campos para reencontrar a família.
Em sequência, uma reunião à beira do fogo mostra aos jovens
as complexidades do mundo adulto. A última parte acontece
em casa e transita entre realidade e sonho.
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Primeira Infância

Michel Simões

Para o cineasta russo Andrei Tarkovsky, encontrar res-


postas para os dilemas da vida adulta exige um olhar ge-
neroso sobre o passado. No livro Esculpir o Tempo (Die
Versiegelte Zeit, Ed. Martins Fontes), o gênio do cinema
russo afirma: “Uma pessoa precisa aprender sobre a sua
infância para se encontrar. Isto significa não se aborrecer
quando se está sozinho, porque uma pessoa que se sente
entediada quando está sozinha está em perigo”.
A infância é uma das principais portas de entrada
dos realizadores no mundo do cinema. François Truffaut,
Manoel de Oliveira, Víctor Erice, Satyajit Ray e o próprio
Tarkovsky são alguns nomes que versaram sobre a infân-
cia em suas estreias. Afinal, direcionar os olhos para as
próprias experiências ajuda a trazer a autoconfiança que
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um jovem cineasta pode precisar. O primeiro longa-me- O primeiro olhar do longa se volta para duas crianças,
tragem do cineasta turco Nuri Bilge Ceylan segue por que transitam entre os seis e os doze anos. Um retrato do
este caminho. Ele busca o resgate do mais pessoal, das pacato dia a dia, as relações com familiares, o tempo livre
lembranças mais íntimas, experimentos e angústias, do e o convívio escolar. A história é subdividida pelas estações
autoaprendizado, da modelagem do seu caráter como do ano, e em cada um dos capítulos pequenos níveis de
adulto e da possibilidade de escapar das armadilhas de se crueldade constroem as relações sociais. Os garotos que
sentir entediado consigo mesmo. preparam uma armadilha para um desavisado escorregar
O roteiro narra descobertas a partir da infância de dois sob o gelo. A imaturidade através da simples leitura, em
irmãos. O cenário é uma pequena aldeia, na região da Ana- voz alta, do conteúdo de um livro, durante a aula, como
tólia, no interior da Turquia, onde a vida parece correr a se treinassem para uma prova de velocidade, distante de
seu tempo, esquecida da loucura dos grandes centros. O qualquer interpretação do texto. O menino que coloca a
argumento foi ideia da irmã do cineasta, Emin Ceylan, que tartaruga, indefesa, de ponta-cabeça, ou o professor que
faz parte do elenco. Juntos, os irmãos escreveram o rotei- procura pela sala de aula por um odor desagradável e cons-
ro. Sob muitos aspectos, é um filme extremamente casei- trange uma das alunas.
ro, da natureza autobiográfica ao nítido baixo orçamento. Ceylan observa estes comportamentos de leves trucu-
O próprio Ceylan assumiu a câmera durante as filmagens lências e aproveita para explorar outro tema tão presen-
e revelou em entrevistas suas dificuldades com a sincronia te em sua carreira: a solidão. Uma solidão da alma, o vazio
de som e outros aspectos técnicos. Boa parte dos atores inconformado. Uma insatisfação não verbalizada, mas tão
faz parte da família do cineasta (até os pais estão no filme), presente no âmago dos personagens.
deixando assim um registro ainda mais pessoal, íntimo e, Por meio de rápidas elipses, o tempo passa entre as es-
porque não dizer, amador. tações do ano. Após o inverno e a primavera, em que o foco
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total permaneceu nas duas crianças, a narrativa coloca toda sua carreira, aprofundada a cada novo trabalho.
a família num piquenique em uma noite de verão. Surge Outro tema que será bastante recorrente em sua fil-
a figura do pai contador de histórias sobre grandes con- mografia, e já pode ser observado na estreia, é a passa-
quistadores, e que sempre trazem algum tipo de “ensi- gem do tempo — uma de suas maiores obsessões. Tema
namento”. Momento oportuno para esmiuçar melhor os este que surge costurado com as mudanças no clima. A
personagens, entre conservadores e idealistas, em temas primeira cena acontece na neve: um bando de garotos
que variam entre globalização, a morte e, sobretudo, a brinca no gelo. Os planos vagarosos de contraste do bran-
guerra. Atenção especial ao embate entre tio e sobrinho, co ou cinza, das nuvens e da neve, repetem-se ao longo
que acaba de retornar do período militar, vagando pelo de sua carreira, sempre permitindo instantes de reflexão,
respeito e a arrogância de uma educação melhor. A dis- como se fossem um ponto final de um parágrafo, enquan-
cordância implícita em pequenas mágoas. to marcam também a passagem do tempo.
Este choque entre a simplicidade do universo infantil e A experiência de Ceylan como fotógrafo, durante seu
a intricada natureza adulta indica traços de um cinema pres- tempo de estudante, nos faz compreender toda a preo-
tes a amadurecer. O importante é notar a força da manipu- cupação técnica com a fotografia. A opção pelo preto e
lação moral de seu estilo narrativo, e o quanto este poder é branco camufla esse universo bucólico de uma pequena
representativo em seus filmes. É fácil notar suas referências aldeia nos rincões do país. A medida exata entre a beleza
literárias em Anton Tchekhov e a proximidade com o cine- do lugar e a tristeza que o sossego pode oferecer à juven-
ma de Tarkovsky e até de Yasujiro Ozu, muito pela forma tude. Saffet, papel do ator Emin Toprak, permite conexão
do filme rotulado como slow movie (ritmo vagaroso). Mas, direta com o jovem Yusuf, personagem de outro longa
sob todos os aspectos, Ceylan está sempre refletindo temas posterior de Ceylan, Distante, interpretado pelo mesmo
da sociedade turca, uma tendência que se mantém por toda Toprak. Um diálogo curioso de uma filmografia que se
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comunica por temas morais, um singular tubo de ensaio


para um cineasta prestes a se tornar um dos mais intri-
gantes da atual safra deste cinema tido como de autor.
Por fim, estão ali os sonhos — seja o sonho da culpa
do garoto que maltratou uma tartaruga, sejam os deva-
neios de Saffet, que não consegue arranjar emprego e se
readaptar ao local. As diferentes fases de angústia que o
amadurecimento traz, e que o filme marca através desta
passagem entre estações do ano, formam uma espécie de
poesia melancólica, a tragédia anunciada de uma deses-
perança pungente. Até a mudança de preço de um corte
de cabelo pode representar no cinema de Ceylan uma for-
ma de diálogo com o público, uma maneira de represen-
tar as mutações de uma sociedade oriental que está cada
dia mais impregnada do capitalismo ocidental. Influência
que se nota pela nítida perda da identidade, das raízes, e
do crescimento das mazelas financeiras e morais, ainda
que sempre tenhamos a infância, com as descobertas e as
inconsequências de espíritos livres.

Michel Simões é host do podcast Cinema na Varanda (http://cinemanavaranda.com) e desde 2002 escreve sobre filmes em seu blog Toca do Cinéfilo (http://tocadocinefilo.com)
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Nuvens de maio

Nuvens de Maio (Mayis Sikintisi)


Turquia, 1999 Sinopse: Muzaffer retorna à sua cidade natal para realização
Roteiro: Nuri Bilge Ceylan de um filme. Seu pai está preocupado em preservar do fisco a
Elenco: Emin Ceylan, Muzaffer Özdemir e Fatma Ceylan pequena floresta que cultiva em sua propriedade. Seu sobrinho
Seleção Oficial do Festival de Berlim. sonha com um relógio musical. E o primo é um trabalhador que
Duração: 130 minutos vê na oportunidade do cinema uma chance para ir a Istambul
Classificação indicativa: 14 anos em busca de um recomeço. Nuvens de Maio narra, através de
metalinguagem e tons biográficos, a história real das filmagens
de A Pequena Cidade.
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No Caminho

Aaron Cutler
Tradução por Mariana Shellard
A vida para mim segue Tchekhov, de certa forma… ele está
sempre comigo quando eu escrevo um roteiro. Pessoalmen-
te, eu acho que minha alma é mais próxima da alma russa.
Eu sou uma pessoa melancólica.
— Nuri Bilge Ceylan (1959-presente)

Para ser internacional é preciso ser, primeiro, local.


— Abbas Kiarostami (1940-2016)

O legado deixado por Anton Tchekhov (1860-1904) inclui


uma atenção especial para a fraqueza humana. O traba-
lho em prosa e teatro do escritor russo narra a luta onto-
lógica do homem comum dentro de seu cotidiano. Seus
personagens são tristes — até mesmo patéticos — na ma-
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neira como revelam suas vulnerabilidades ao definha- cio da carreira de Ceylan, no qual o diretor — nascido em
rem sobre coisas pessoalmente muito significativas, mas Istambul — filma em Yenice, cidade natal de seu pai, onde
que podem parecer de menor valor para outros: um pou- passou a maior parte de sua infância.
co mais de comida, de dinheiro, um vestido, um chapéu, Em O Jardim das Cerejeiras, o velho servente Firs pos-
uma viagem, um beijo. Quando suas pretensões sucum- sui um apego nostálgico à propriedade aristocrática de
bem à realidade, roubando-lhes o sonho, uma reação co- seus patrões decadentes, onde é deixado sozinho para
mum é a risada misturada ao choque e à surpresa. Nesse morrer. Ecoando Firs, o personagem Emin (Emin Ceylan)
momento, o baile de máscaras se encerra e os persona- de Nuvens de Maio é um velho fazendeiro muito apega-
gens levantam suas máscaras para que os leitores e es- do à sua terra e prestes a perdê-la para agentes do go-
pectadores vejam a si mesmos. verno, em uma desapropriação federal. Tanto Firs como
Ao longo de toda a sua carreira, o cineasta turco Nuri Emin acreditam ideologicamente que podem preservar
Bilge Ceylan tem sido muito influenciado por Tchekhov. suas próprias maneiras de viver com seus pequenos es-
O misantropo velho que dá nome à peça Tio Vânia (1897) forços empreendidos contra forças absolutamente maio-
do escritor russo, lembra o ator inativo recluso (interpre- res, resultando em um final tragicômico.
tado por Haluk Bilginer) que se distancia de sua jovem Seria fácil tratar os dois homens como loucos deliran-
esposa (Melisa Sözen) no filme mais recente de Ceylan, tes se os autores fossem incapazes de mostrar a beleza e
Sono de Inverno (2014), cuja história também é inspirada inspiração oferecida pelas vidas às quais os personagens
no conto de Tchekhov A Esposa (1892). Nuvens de Maio, se agarram. Tchekhov transmite pela linguagem (quando
o segundo longa de Ceylan, foi dedicado a Tchekhov. Em Firs e outros falam amavelmente sobre o tempo que pas-
particular, O Jardim das Cerejeiras (1904), última peça do savam em suas terras) o que Ceylan demonstra principal-
escritor, inspira esse surpreendente e íntimo filme do iní- mente por imagens. Nas terras de Emin, os raios de luz do
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sol ondulam pelas folhas verdes de árvores frondosas, as de ajudar a ganhar do pai um relógio musical, se ele con-
quais se tornam ainda mais vibrantes quando o vento val- seguir carregar um ovo intacto em seu bolso durante qua-
sa por entre seus galhos. É essa fazenda de Anatólia que renta dias. Outros aldeões, como os colegas de classe de
Emin apresenta ao seu filho adulto Muzaffer (Muzaffer Ali, seus professores, um ex-ator viúvo e, até mesmo, o
Özdemir), um cineasta vindo de Istambul para fazer um alfaiate de Emin, aparecem ao longo da história dos dois
filme com os moradores de sua pequena terra natal. Nela, filmes (o de Muzaffer e o de Ceylan).
Muzaffer irá filmar com seu pai e sua mãe Fatma (Fatma O cineasta iraniano Abbas Kiarostami é uma referên-
Ceylan) interpretando os personagens principais. cia frequente em artigos sobre Nuvens de Maio e tem sido
Apesar das reclamações sobre a incapacidade de seu citado por Ceylan como um de seus diretores favoritos.
filho de arrumar um trabalho mais lucrativo, Emin concor- Ambos estudaram fotografia com um olhar especialmen-
da em participar do filme, assim como Fatma, que deseja te atento às paisagens em movimento. Ambos mescla-
se aproximar do filho, há muito tempo ausente. Um con- ram ficção e documentário com uma delicada e simpática
junto de personagens envolve a família nuclear, entusias- compreensão do modo como as pessoas frequentemen-
mados com a possibilidade de escape que as filmagens te se sustentam alimentando os próprios sonhos. Ambos
lhes proporcionam. Saffer (Emin Toprak), o primo solitá- se retratam nos filmes, empregando atores profissionais
rio de Muzaffer, concorda em participar do filme em tro- como seus dublês. Três longas de Kiarostami da década
ca de um emprego que o protagonista deve- lhe arranjar de 90 mostram um cineasta urbano chegando a um vila-
em Istambul, longe de sua família e de seu desagradável rejo para trabalhar com atores amadores. Quando as pes-
trabalho em uma fábrica. Ali (Muhammad Zimbaoglu), soas se dirigem à câmera para compartilhar suas histórias
o primo de nove anos do diretor, torna-se assistente de de vida, torna-se difuso o limiar entre a narrativa ficcional
produção devido ao seu apego à Fatma e à promessa dela e o depoimento documental.
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O próprio Ceylan foi o cinegrafista de Nuvens de Maio diretor enfatiza o esforço humano através do enquadra-
e de seus dois filmes anteriores, o curta experimental Koza mento. O personagem de Muzaffer desaparece na meta-
e o longa narrativo A Pequena Cidade. Conforme Muza- de do filme, quando este passa a seguir Saffet, Ali e Emin
ffer filma camponeses interpretando versões de si mes- separadamente — o primeiro em confronto com sua fa-
mo, Ceylan os refilma. Como em Através das Oliveiras mília, numa casa estreita, sobre o futuro de sua carreira,
(Zire Darakthan Zeyton, 1994) — no qual Kiarostami re- e os outros dois em caminhadas sem destino pela cidade.
conta ficcionalmente a filmagem de E a Vida Continua... Quando todos se encontram com Muzaffer e Fatma para
(Zendegi va Digar Hich, 1992) — o filme que vemos Muzaf- as filmagens finais, parecem ter se libertado em um cam-
fer fazer é, na verdade, A Pequena Cidade. Diversos atores po vasto e ensolarado — embora com nuvens escuras fe-
que aparecem nesse longa de estreia filmado em preto e chando o tempo, conforme o dia avança.
branco - um retrato poético das frustrações que permeiam Nos filmes mais recentes de Ceylan, como Sono de In-
a vida de uma família de camponeses, a partir do ponto de verno e Era uma Vez na Anatólia, as paisagens são absolu-
vista de uma criança — reencenam seus papeis no filme se- tamente largas com pequenas figuras humanas que lutam
guinte, colorido e com uma janela mais ampla que expande para não saírem de vista, tornando-se alegorias existen-
a percepção das ações que estão sendo filmadas. Fatma e ciais sobre a morte. O método de observação de Nuvens
Emin Ceylan, os pais do cineasta na vida real, trabalharam de Maio é mais gentil e paciente, com menos movimento
com ele em seus três primeiros filmes, se aproximando ao de câmera e mais close-ups. Em contraste à recente ten-
máximo de interpretar suas vidas reais em Nuvens de Maio. tativa de Ceylan em criar mundos abstratos, seus filmes
Ainda assim, o aspecto metatextual de Nuvens de anteriores são dedicados à documentação de mundos re-
Maio jamais aparenta um formalismo vazio. Tal como os ais que vivem na iminência de serem devastados pela in-
filmes de Kiarostami e muitas produções de Tchekhov, o dustrialização e pelo tempo. O empenho de Muzaffer em
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filmar sua terra natal chama a atenção para a fragilida-


de do local. Quando o velho Emin senta-se sob árvores
prestes a serem destruídas e se esforça para lembrar suas
falas em diversas tomadas, seu filho tenta ajudá-lo antes
que a chuva encerre o dia de trabalho.
Emin Ceylan tem um ótimo desempenho interpretati-
vo como um homem dedicado ao seu ofício. Os olhos fortes
e firmes de Fatma Ceylan também persistem na memória,
ainda que ela apareça com menor frequência. Quanto mais
Muzaffer observa seu pai trabalhando na terra, maior é a
apreciação do filme pelo velho homem, até a derradeira
hora — como Firs em Tchekhov — em que Emin descansa
entre suas árvores. O desfecho de Nuvens de Maio marca o
fim de uma era e uma mudança no cinema de Ceylan. Emin
Ceylan morreu em 2012, após ele e Fatma aparecerem em Aaron Cutler é curador e crítico norte-americano de cinema baseado em São Pau-

apenas outro filme de seu filho. O próprio cineasta é o pro- lo desde 2010. Trabalhou entre 2012 e 2014 como assistente de programação na

tagonista em Climas, um professor de meia-idade que pas- Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Fez a curadoria de retrospectivas

sa por um difícil divórcio. Seus pais interpretam os pais do dos cineastas Lav Diaz (Mostra, 2013) e Kira Muratova (INDIE Festival, 2015). Junto

professor que neles busca consolo. com Mariana Shellard, fez a curadoria de retrospectivas dos cineastas Heinz Emi-

gholz (2015) e Thom Andersen (2016), as duas para o Centro Cultural São Paulo e

o Instituto Moreira Salles – Rio de Janeiro.


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Distante

Distante (Uzak)
Turquia, 2002 Sinopse: Em meio à crise pessoal devido à separação, um
Roteiro: Nuri Bilge Ceylan e Cemil Kavukçu fotógrafo está atormentado pelo sentimento de vazio entre
Elenco: Muzaffer Özdemir, Mehmet Emin Toprak e Zuhal sua vida e seus ideais. Ele se vê obrigado a hospedar em seu
Gencer Erkaya apartamento um jovem parente que deixou para trás a vila
Grande Prêmio do Júri e Melhor Ator no Festival de Cannes. onde morava e está à procura de emprego em Istambul.
Duração: 110 minutos
Classificação indicativa: 14 anos
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A Intimidade da Distância

Paulo Santos Lima

Um homem avança do fundo do quadro, numa vasta pai-


sagem gelada e, finalizado o trajeto, olha para trás, meio
se despedindo. Ele, Yusuf, ruma de sua pequena cidade
arruinada pela crise econômica para tentar a sorte em Is-
tambul, onde mora seu primo Mahmut. Trazendo uma ge-
ografia estanque, sugerindo a melancolia e a solidão que
ecoará ao longo da história, mesmo nas ruas mais movi-
mentadas da metrópole turca, essa primeira tomada diz
qual será a situação em Distante, filme sobre relações hu-
manas enregeladas, num mundo igualmente abatido.
Distante é, também e essencialmente, um filme de es-
paços. O interesse de Nuri Bilge Ceylan pelos cinemas de
Antonioni e Tarkovsky, firmados em Cannes, 2003, quan-
do filme e diretor foram premiados e reconhecidos inter-
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nacionalmente, garante uma tentativa de capturar um vassado, seja por um rato ou por Yusuf (Emin Toprak).
estado de coisas (antonioniano) e uma energia espiritual A chegada do primo e o conflito gerado pela convi-
(tarkovskiana) que, no resultado, é uma atenção especial vência, motor típico dos dramas de transformação, será
ao urbano e à natureza, que se engendram, num certo cli- tão somente uma revelação tanto do estado de espírito
ma, entre os seres em sua vida cotidiana. A filiação a es- de Mahmut, personagem em início obscuro, quanto de
ses dois cineastas, a rarefação de informações e o tempo uma Istambul que passa alguma vitalidade se observada
estendido das situações já eram lugares bastante comuns mais atenta e dedicadamente. Yusuf seria a instância vi-
ali, em 2002, mas Ceylan consegue trazer uma força dra- tal e idealista, aquele que chega pleno de desejos à ter-
mática extraída dos espaços, sobretudo o apartamen- ra prometida, aberto ao mundo e à ação, mas ele é parte
to de Mahmut, centro gravitacional do filme e revelador desse mundo material exaurido e já dado, daí ele tem so-
do conflito entre os dois primos. Mahmut (Muzaffer Öz- nho, mas não tem ânimo. Yusuf parece Terry Malloy, o
demir), aliás, é a grande figura do longa: o homem trági- personagem de Marlon Brando de Sindicato de Ladrões
co que abandonou seus ideais de ser um grande cineasta (On the Waterfront, 1954), de Elia Kazan, mas naquilo
para ceder à fotografia de encomenda e assim sobreviver que tem de mais ingênuo e boçal. Yusuf busca, sozinho,
no mundo capitalista. Uma espécie de exilado, aquarte- uma conexão. Sua projeção trágica é o primo Mahmut,
lado em seu apartamento, espécie de depósito residual cujo casamento não deu certo, o sonho fora eclipsado e
de toda uma passagem de vida que culminou em solidão a arquitetura do apartamento, que é puro isolamento,
e melancolia. Mas, menos determinista do que parece, o tornou-se um atracadouro, um espaço de relação. Não à
filme deixa claro que toda uma vida pulsa no mundo, com toa, Ceylan recorre à facilidade de usar o clima gelado, as
gente namorando, ruas cheias de carros, crianças brin- ruas coalhadas de neve e a vegetação arranhada pelo frio,
cando na neve e até o lar de Mahmut também sendo de- como expressão dessa solitude que abate esses persona-
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gens. Recurso fácil, mas potente na medida em que tam- dança que não a da prestação de contas, quando Mahmut,
bém apresenta o tal “mundo por trás” — porque, afinal, o com razão, reclama da inércia do primo. A presença incô-
apartamento de Mahmut é também um resultado de vida moda de Yusuf não mudará a vida de Mahmut, inclusive
de seu dono, talvez de toda uma lógica material falida, ativará mais ainda a reclusão do primo. Não é a letargia
algo que Ceylan pontua com precisão, cumprindo a “pau- do “nada acontece”, e, diante de personagens quase pre-
ta daquele momento”, a da crise econômica. destinados a um mundo que parece uma paisagem pinta-
O apartamento, como espaço de conflito entre o pri- da, o filme vai acompanhá-los para detectar os fluxos de
mo que deu duro e o primo folgado, salienta as diferenças, vida, pássaros, natureza, pessoas encontrando-se, num
mas também dilui os dois homens num mesmo estado de intuito claro de não consumar um determinismo. As saí-
espírito. A disparidade está entre um Mahmut que repre- das em campo de Yusuf, que busca um amor e um encai-
sou toda uma vida, do espírito à matéria, a um Yusuf oco, xe naquele “novo, mas conhecido” mundo, são de grande
uma espécie de menino sem experiência. Ceylan leva o força, trazendo inclusive os antecedentes e um ao redor
apartamento do desconhecido à revelação total de sua referente a Mahmud. Será, por vias unicamente cinema-
arquitetura, optando por um plano lateral e mais tarde tográficas, de um seguir in loco um ator-personagem, que
outro frontal da sala de TV, por exemplo, ou o escritório, Mahmud será mais reconhecido pelo espectador, terá seu
apresentado como isolado, mas contíguo a essa mesma drama melhor apresentado, suas dores, sua trágica con-
sala. Mais que revelar os espaços deste imóvel e o drama dição de homem moderno. Se a forte expressividade dos
instaurado dentro do plano, o que nos chega é também a planos pode parecer uma facilidade, Distante não os mos-
intimidade de Mahmut, sua história. tra como tableaus, e a câmera poderá mexer um pouco,
Distante seguirá, plácido, em sua exposição do confli- como se afetada pelo olhar dos personagens. O “distan-
to desses dois personagens, que jamais eclodirá numa mu- te” do título, termo vago, porém certamente mais interes-
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sante se entendido como uma distância entre um projeto


de vida que não se consumou, não permanece na relação
que o filme trava com o universo filmado. Essa intimidade
afasta Distante do risco do filme-laboratório ao estilo Lars
von Trier, e coloca Ceylan, sobretudo neste filme, seu me-
lhor, como um cineasta bastante envolvido com o objeto
cinematográfico.

Paulo Santos Lima é crítico de cinema e jornalista. Redator na Revista Cinética, colaborou para a revista Bravo, Folha de São Paulo, Valor Econômico. Ministrou cursos sobre di-

retores como Brian De Palma (CAIXA Cultural), Martin Scorsese (Espaço Itaú de Cinema), Orson Welles, John Cassavetes e Werner Herzog (SESC), além de temas como história

do cinema francês, história do cinema paulista e renovação do cinema americano nos final dos anos 1940 (SESC). Fez curadoria de mostras como O Cinema Francês pós-Nouvelle

Vague e Do Curta ao Longa - A Criação Autoral no Cinema Paulista da Retomada, e, em 2015, a curadoria, ao lado de Francis Vogner dos Reis, das mostras Easy Riders - O Cinema

da Nova Hollywood e Jerry Lewis - O Rei da Comédia (Centro Cultural Banco do Brasil).
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Climas

Climas (Iklimler)
França/Turquia, 2006 Sinopse: O professor universitário Isa é casado com a jovem
Roteiro: Nuri Bilge Ceylan produtora televisiva de arte Bahar. Isa e Bahar são felizes há
Elenco: Nuri Bilge Ceylan, Ebru Ceylan e Nazan Kirilmis muitos anos, mas durante uma viagem com amigos, torna-se
Prêmio da Crítica Internacional (FIPRESCI) no Festival de perceptível que a felicidade e a união não pertencem mais
Cannes. a este relacionamento. Será que o destino os concederá
Duração: 101 minutos uma última chance? Primeiro filme de Ceylan lançado
Classificação indicativa: 14 anos comercialmente nos cinemas do Brasil, em 2008.
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Corações Desertos*

Leonardo Luiz Ferreira

O nome de Nuri Bilge Ceylan é pouco conhecido do pú-


blico brasileiro. A 27ª Mostra Internacional de Cinema de
São Paulo exibiu seu longa Distante, que recebeu o Gran-
de Prêmio do Júri em Cannes; esta láurea fez com que o
cineasta passasse a ser observado pela crítica, que identi-
ficou ligações em sua obra com o cinema de Ingmar Berg-
man e Michelangelo Antonioni. Através de Climas, ele
confirma o talento e já desponta dentro do novo cená-
rio cinematográfico turco ao lado de Fatih Akin, de Con-
*Texto originalmente publicado no portal Almanaque tra a Parede (Gegen Die Wand, 2004), vencedor do Urso
Virtual, atualizado para publicação no catálogo e de Ouro de melhor filme no Festival de Berlim; e Semih
que pode ser encontrado em sua versão original no Kaplanoglu, diretor de Melegin Düsüsü (2004), que se con-
seguinte link: http://antigo.almanaquevirtual.com.br/ler. sagrou na Turquia.
php?id=4461&tipo=&CORACOES+DESERTOS Um rosto de uma mulher contempla o trabalho do
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marido, que está tirando fotos de monumentos históri- de, ou melhor, de não se saber ser feliz. Além dos rostos,
cos. Aos poucos, a expressão de observação da atividade que desejam uma distância dali, os olhares não se cruzam,
cede lugar para uma angústia existencial e um distancia- como na sequência do quarto em que ele permanece dei-
mento evidente entre o casal. Há apenas um diálogo nesse tado na cama e ela mira distraída o horizonte, tão ausen-
período inicial de projeção e ele já demonstra a pré-dispo- te daquele ambiente que o marido tem que perguntar algo
sição de ambos a estar juntos: “Você está entediada?”, simples por três vezes para receber uma resposta. O casal
pergunta o marido, que recebe um “não” com significa- está mesmo invisível um para o outro e, em momentos dis-
do claramente oposto. Após uma lágrima da esposa, sur- tintos, os personagens aparecem desfocados reforçando a
gem os créditos em tela preta, que demarca o início do caracterização de nulidade da relação. A mise en scène de
processo de luto do casal. A trilha sonora de música clás- Nuri Bilge valoriza muito mais a imagem do que a palavra,
sica pontua a aparição dos nomes da equipe de produção, e direciona o olhar do espectador para pequenos detalhes
e depois se percebe que ela toca no rádio dos dois perso- de um quebra-cabeça que ao final, quando montado, re-
nagens que retornam ao lar. presenta o fim de uma relação amorosa.
Ceylan, que também é o ator principal do filme, ao lado A separação é um passo iminente e ela é decretada
de sua esposa na vida real (Ebru), se utiliza de planos mé- por um diálogo na praia em um dia ensolarado. Em Cli-
dios para capturar o vazio de semblantes em conflito. A in- mas, o estado de espírito dos personagens está relaciona-
comunicabilidade entre os indivíduos — uma das marcas do também com a condição climática, como o desfecho
indeléveis de Antonioni —, é transmitida por longos mo- em uma forte nevasca, com o sentimento amoroso já em
mentos de silêncio e pela dificuldade na verbalização dos estado gélido. Esse aparente término de relação provoca
problemas no relacionamento, que em toda a narrativa um desequilíbrio narrativo, e o foco recai sobre o homem
somente aponta para a direção da ausência de felicida- e a sua solidão como professor, mostrando o ato de escri-
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ta de sua tese interminável. Ele busca alívio nos braços de


um antigo caso, que é namorada de um colega. Ao espe-
rá-la na escuridão, o seu estado atual, o homem desfere
um olhar que antecipa a relação sexual explosiva dos pla-
nos seguintes, que ganha contornos dramáticos por inter-
médio de uma montagem de poucos cortes. A repetição
desse encontro, bem como os tempos mortos e toda a
ação do personagem, que é, de certa forma, necessária
para a construção, fazem com que se diminua a intensi-
dade e, por conseguinte, o interesse na obra, que se reno-
va apenas no reencontro do antigo casal na proximidade
do desfecho. Leonardo Luiz Ferreira é jornalista, crítico de cinema e cineasta. Membro da As-

A relação amorosa parece que será retomada no en- sociação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ), trabalha há 18 anos

cerramento, mas os dias ensolarados ficaram no passado no campo da crítica cinematográfica, com passagens por diversos veículos, entre

ou só existem em sonhos, como afirma a moça no plano eles, Revista Paisà e www.criticos.com.br, e colaborações na Revista Variety, Con-

do quarto de hotel. Já que agora a neve, que cai sem parar tracampo e Jornal do Brasil. Codiretor do longa-metragem Chantal Akerman, de cá

do lado de fora, transformou-se em lágrimas. e da série Cinema de Bordas (Canal Brasil, 2013). Em 2014, foi curador da retrospec-

tiva O Cinema de Nicolas Klotz: A França dos Excluídos, na CAIXA Cultural/RJ, entre

outros trabalhos. Diretor e produtor do curta Paisagem Interior (2014) e do longa

NK + EP (2015), que documenta a passagem dos cineastas Nicolas Klotz e Elisabeth

Perceval pelo Rio de Janeiro.


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3 macacos

3 Macacos (Üç Maymun)


França/Itália/Turquia, 2008 Sinopse: Dirigindo por uma estrada escura numa noite deserta,
Roteiro: Ebru Ceylan, Ercan Kesal e Nuri Bilge Ceylan o político Servet comete um acidente deixando um rastro para
Elenco: Yavuz Bingöl, Hatice Aslan e Ahmed Rifat Sungar trás. Um casal reconhece o veículo do estadista e o denuncia.
Prêmio de Melhor Direção no Festival de Cannes. Por ser época de eleições, Servet pede que seu motorista,
Duração: 109 minutos Eyüp, leve a culpa pelo ato, em troca de uma grande quantia
Classificação indicativa: 14 anos em dinheiro. Eyüp aceita, mas o fato trará devastadoras conse-
quências para a família de Servet.
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O Ocultamento como
Forma de Sobrevivência

Carlos Alberto Mattos

Há razões concretas para 3 Macacos ser o filme mais po-


pular de Nuri Bilge Ceylan. É, sem dúvida, o que mais in-
veste numa trama de natureza policial, nisso seguido de
longe por Sono de Inverno.
Depois de atropelar uma pessoa numa estrada, um
político em campanha propõe ao seu motorista assumir
a culpa e a prisão em troca de uma grande soma de di-
nheiro. O que segue é o minucioso relato de uma decom-
posição familiar causada pela ganância, a mentira e a
infidelidade conjugal.
As mesmas razões da popularidade de 3 Macacos ge-
raram algumas críticas a Ceylan por supostamente aban-
donar suas, até então, típicas narrativas de introspecção
poética em troca de um argumento mais factual. No meu
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entender, porém, esse movimento, ao contrário, ilumi- bul. Quando sai desse registro para uma tomada distante,
nou ainda mais o talento extraordinário do diretor. Afinal, produz efeito altamente desestabilizador. Basta ver a do-
3 Macacos contraria vários cânones do filme policial e en- lorosa sequência em que Hacer tenta convencer Servet a
fatiza o discurso interior dos personagens. não abandoná-la. Nesse estado de suspense permanen-
Não vemos, por exemplo, os fatos principais que com- te, os acontecimentos de rotina ganham uma dimensão
põem a história: o atropelamento, a traição, um espanca- às vezes insuportável — seja um ventilador diante de um
mento, um assassinato. Não ouvimos as razões de Eyüp, rosto, seja um celular que toca sua musiquinha romântica
Hacer e Ismail, três dos quatro vértices da equação. Eles nos momentos mais inoportunos.
quase não se expressam oralmente, uma vez que o silên- Em lugar da dialogação incessante que caracteriza
cio e a denegação estão no cerne de tudo. Dessa maneira, muitos filmes turcos, temos aqui o tempo distendido da
Ceylan concatena a narrativa à própria conduta dos per- reflexão. Ceylan sublinha o intervalo existente entre o co-
sonagens, que agem silenciosamente na defesa dos seus nhecimento da verdade e sua assimilação. Em algumas
desejos e da sua ideia de honra familiar. Não ver, não ou- conversas, ele desencaixa os tempos de fala para quebrar
vir, não falar — como os três macacos que simbolizam a o consumo “automático” dos filmes de gênero. Usa as elip-
alienação dos sentidos. ses não apenas para ocultar o óbvio, mas principalmente
A fuga ao verbal e à demonstração visual favorece, para nos sintonizar com a rede de ocultamentos entre os
portanto, um trabalho de extrema habilidade com os olha- personagens. Ocultamentos que vão causar tanto a dana-
res, as expressões faciais e a linguagem corporal. Quase ção do núcleo familiar, quanto a sua eventual salvação.
todo o filme se resolve em closes intensos, muitas vezes Um dado relativamente exógeno a esse jogo de re-
recortando apenas partes dos rostos, como se os senti- lações claustrofóbicas é o aparecimento do fantasma do
mentos brotassem das peles suadas no verão de Istam- filho mais novo. Aqui, uma porta para o sobrenatural se
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abre na qualidade de um consolo para os dois homens, e Ela, por sua vez, pateticamente dá vazão a uma insuspei-
só para eles. Ainda assim, é um pequeno mistério que o tada insatisfação conjugal ao mesmo tempo em que age
filme concilia mais pela parcimônia com que é usado do para beneficiar o filho. Já Eyüp dilacera sua consciência
que pela função que desempenha. entre os papéis do marido ferido e do homem religioso
Na escrita soberba desse roteiro, Ceylan, sua mulher que compreende o valor do perdão. Não há lugar para es-
Ebru Ceylan e o ator Ercan Kesal (Servet) usaram alguns tereótipos em 3 Macacos.
recursos dramatúrgicos curiosos. Um deles foi associar Esse quinto longa-metragem de Ceylan lhe rendeu o
cada personagem com um meio de transporte ou de co- prêmio de direção no Festival de Cannes de 2008 e foi o
municação: Servet e o seu carro, Ismail e os trens, Hacer primeiro filme turco a entrar na shortlist do Oscar de filme
e o celular. Eyüp, o motorista, ironicamente é o que só se estrangeiro. Provou que o maior poeta da incomunicação
desloca a pé. Outro componente silencioso do drama — no cinema contemporâneo podia ser também um exímio
como de hábito nos filmes do diretor — é a paisagem de narrador de prosa. 3 Macacos passou ainda um recado so-
Istambul, sobretudo as vistas às margens do Mar de Már- bre as estruturas de força, poder e interesse numa socie-
mara e do Estreito de Bósforo. O mar representa um pon- dade ao mesmo tempo moderna e arcaica como a turca.
to de fuga que parece bloqueado para os personagens. Eyüp, a vítima proverbial, não hesitará em passar adian-
Marca um limite de ação, prestando-se somente à con- te a proposta indecorosa que recebeu do patrão, embo-
templação muda. ra com o objetivo de proteger a família em lugar de um
No triângulo familiar, o filho extraviado assume o lu- trabalho ou uma carreira. Ismail saberá botar dignidade
gar do pai enquanto esse se encontra na prisão, não so- e extorsão na balança para resolver-se como projeto de
mente recolhendo o salário mensal de Eyüp, mas também homem. Hacer pode ser vista como ícone da condição fe-
sofrendo e indignando-se com a conduta secreta da mãe. minina ainda subjugada a diferentes faces do masculino.
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Em todos eles, a intenção de tirar vantagem se cho-


ca com a ética pessoal e com o impulso de autopreserva-
ção. Assim o filme toma a forma de um conto moral sobre
o ocultamento como forma de sobrevivência. Não chega a
ser uma singularidade turca como o chá em copinho de tuli-
pa, mas o estilo de Ceylan o torna inconfundível e irresistível.

Carlos Alberto Mattos é crítico e pesquisador, já escreveu para O Globo, JB e Estadão, entre outros. Coordenou o cinema do CCBB/RJ entre 1989 e 1997. Criou o DocBlog /O

Globo, hoje extinto. Ex-editor das revistas Cinemais e Filme Cultura, é autor de sete livros sobre cineastas brasileiros e da coletânea Cinema de Fato – Anotações sobre Docu-

mentário. Para o Canal Brasil dirigiu o programa Jurandyr Noronha – Tesouros Quase Perdidos (2010) e apresentou a série Faróis do Cinema (2015). Escreve em carmattos.com
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Era uma Vez na Anatólia

Era uma Vez na Anatólia (Bir Zamanlar Anadolu´da)


Bósnia/Turquia, 2011 Sinopse: Nas planícies da Anatólia, na Turquia, um grupo com-
Roteiro: Ebru Ceylan, Ercan Kesal e Nuri Bilge Ceylan posto por um policial, um médico legista e um advogado conduz
Elenco: Muhammet Uzuner, Yilmaz Erdogan e Taner Birsel dois prisioneiros em busca do local onde enterraram sua vítima.
Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes. Já é tarde da noite e, em meio à escuridão, eles não conseguem
Duração: 157 minutos mais encontrar o lugar exato onde foi colocado o cadáver. Entre as
Classificação indicativa: 14 anos divagações e os deslocamentos, o advogado e o médico começam
a se conhecer melhor, percebendo que eles têm pontos de vista
muito diferentes sobre a vida.
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Placas para o Inferno

Marcelo Miranda

Era outubro de 2011 quando um grupo de amigos cinéfilos


se encontrou numa sala de exibição durante a Mostra de
São Paulo para assistir a Era uma Vez na Anatólia. Nenhum
deles era entusiasta dos trabalhos anteriores de Nuri Bil-
ge Ceylan. Havia certo ar de resignação e o sentimento de
frustração antecipada, ainda que o filme chegasse ao Bra-
sil repleto de elogios e prêmios depois da passagem pelo
Festival de Cannes, em maio do mesmo ano. Não era a pri-
meira vez que Ceylan era ovacionado nos eventos interna-
cionais, o que fazia com que o reconhecimento não fosse
tão motivador à turma em questão. Terminada a sessão,
no avançado da noite de um filme com mais de 150 minu-
tos, os olhares trocados em silêncio davam conta de que
algo estranho tinha acontecido. O filme hipnotizara a pla-
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teia e deixara encantados os amigos com o aparente novo Era uma Vez na Anatólia se constitui numa experiên-
olhar e gesto estético do cineasta turco. Era uma Vez na cia de tempo e de espaço pelos quais o grupo de persona-
Anatólia parecia, naquele instante, reiniciar o cinema de gens transita nos dois primeiros terços de projeção e se
Ceylan, dar-lhe um sentido distinto, reconectá-lo a outras fixa na parte final. O filme é, ao mesmo tempo, objetivo e
investigações formais. digressivo. Situa-se num interior dramático bastante es-
O título algo romântico, com o “era uma vez...” dos pecífico (a busca por um corpo enterrado em algum lugar
contos de fada, remete ao Era uma Vez no Oeste (C´e- inóspito nas paisagens turcas) e se desvia do enredo em
ra una Volta Il West, 1968) e ao Era uma Vez na América pequenos respiros marcados por longos diálogos ou silên-
(Once Upon a Time in America, 1984), ambos de Sergio cios entre determinados personagens. O elemento a unir
Leone, dois monumentos do cinema sobre o imaginário a concisão do relato ao seu próprio desvio é a morte. Pro-
do passado norte-americano. O nome carrega ainda um cura-se um corpo morto enquanto são discutidas varia-
senso de narrativa mais arquetípica, novidade na trajetó- das implicações e consequências da perda de uma vida.
ria de Ceylan, e guarda as aberturas e possibilidades do O administrador de uma pequena comunidade reclama a
ato de narrar. Nada tão fechado como os títulos Distan- necessidade de um necrotério para guardar corpos à es-
te e Climas, palavras únicas que antecipavam ambições pera dos familiares; o promotor, culpado, conta ao médi-
e resumiam os sentidos dos filmes, e nem tão simbólico co a estranha morte espontânea de sua mulher, tentando
quanto 3 Macacos, cujas metáforas grosseiras já começa- se iludir de que ela se foi por pura força de vontade; uma
vam nessa primeira relação dada pelo título. O “era uma maçã despenca da árvore e tem o trajeto na terra e na
vez...” amplia o alcance da fábula e encontra, já nas arti- água acompanhado pela câmera, até chegar a um grupo
culações vistas em cena, o equivalente da história de for- de outras maçãs em avançado estado de decomposição.
mação de uma sociedade através da violência. Por e para onde se olha, há morte em Era uma Vez na Ana-
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tólia. Ainda que não se configure um filme estritamente te as anotações sobre o corpo encontrado, a comparação
político (há um ou outro comentário mais direto sobre a de sua aparência com Clark Gable, a gag do lençol no por-
Turquia no contexto global), a melancolia dos corpos em ta-malas, o militar obcecado por números e distâncias,
trânsito versus os corpos na espera do destino final im- as discussões sobre leite e iogurte no interior do carro e
pregna cada plano. O scope, que permite a visão de gran- a cena da autópsia. A inadequação dos personagens às
des extensões de paisagens esvaziadas da figura humana suas funções dentro de um sistema oficial que lhes dá os
(ocupadas provisoriamente por homens em passagem à respectivos status (o promotor é tratado como superior,
procura do corpo morto), é o mesmo que explicita o futu- os cavadores agem sob gritos do policial) provoca o des-
ro daqueles que cruzam o espaço da tela: a terra é a últi- compasso entre suas atribuições e a seriedade a elas vin-
ma morada de todos eles. culadas. Ceylan não se furta a expor o deboche de alguns
A visão um tanto funesta do filme se apresenta den- oficialismos no interior de um mecanismo automático
tro da ideia de um conto moral próximo ao sentido de que parece ter se especializado em lidar com as tragédias
Walter Benjamin para o que seria um “provérbio ou nor- do cotidiano. A precariedade e a pobreza do ambiente ur-
ma de vida” — cujo objetivo não é o de aconselhamento bano onde acontece o ato final do filme (entre os rostos
ou ensinamento, e sim de “fazer uma sugestão sobre a de sofrimento de uma gente diariamente golpeada pelas
continuação de uma história que está se desenrolando”. circunstâncias históricas) e a simples falta de equipamen-
Esse encaminhamento se dá, no filme, acrescido de um tos adequados para a necropsia de um corpo são tratados
providencial senso de humor. Era uma Vez na Anatólia, pelo filme na mesma sintonia, entre a consciência e o riso
ao seu modo, é uma tragicomédia, e a surpresa disso se nervoso advindos da catástrofe social.
mistura ao estranhamento pelo riso em situações relati- A operação não se faz, em cena, sem boas doses de
vamente duvidosas — como o chiste do promotor duran- cinismo, o que ironicamente é muito positivo à cinemato-
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grafia de Ceylan. A pompa e austeridade inócuas dos três rigor de mise en scène, surge como a possibilidade de ou-
longas-metragens anteriores — que tornaram o cineasta tro cinema vindo de quem, para muitos (que o diga aque-
um queridinho dos circuitos festivaleiros e dos “cinemas la turma de amigos da Mostra de São Paulo em 2011), já
de arte” dos anos 2000 — impediam aos filmes respira- não se esperava tanto mais.
rem para além da blindagem imposta a eles. O clichê da
incomunicabilidade e as relações entre corpos, natureza e
espaço pareciam misturas atabalhoadas de Michelangelo
Antonioni e Andrei Tarkovsky. Era uma Vez na Anatólia se
deixa impregnar por algum mau gosto e pela razão cíni-
ca da qual já tratou o filósofo Vladimir Safatle e que surge
“em épocas e sociedades em processo de crise de legiti-
mação, de erosão da substancialidade normativa da vida
social”. O excesso de autorismo de antes cede espaço à
construção mais equilibrada e direta do drama (de novo
Benjamin: “O senso prático é uma das características de
muitos narradores natos”). Os apontamentos simbólicos Marcelo Miranda é crítico de cinema, jornalista, curador e pesquisador. Escreve

são substituídos pelo uso da palavra em reflexões sobre a na revista eletrônica Cinética (www.revistacinetica.com.br) e colabora em diver-

finitude da vida e a incapacidade de se deter o rumo natu- sas publicações impressas e virtuais. Integrante de várias comissões de seleção de

ral da existência. Permanecem alguns vícios de quem se curtas e longas-metragens em festivais de cinema no Brasil e autor de textos e en-

acostumou a tratar o mundo como receptáculo de senti- saios em catálogos. Coorganizador do livro em dois volumes Revista de Cinema –

dos extravagantes, mas Era uma Vez na Anatólia, no seu Antologia (1954-58/ 1961-64).
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Sono de Inverno

Sono de Inverno (Kis Uykusu)


Alemanha/França/Turquia, 2014 Sinopse: Aydin, um ator turco aposentado, comanda um
Roteiro: Ebru Ceylan e Nuri Bilge Ceylan pequeno hotel na região da Anatólia Central junto à sua esposa
Elenco: Haluk Bilginer, Melisa Sözen e Demet Akbag Nihal, de quem ele se afastou emocionalmente, e à sua irmã
Palma de Ouro de Melhor Filme no Festival de Cannes. Necla, que ainda sofre com seu divórcio recente. No inverno,
Duração: 196 minutos a neve desperta um tédio e ressentimento que fazem Aydin
Classificação indicativa: 12 anos querer partir. O roteiro é inspirado em diversos contos do autor
russo Anton Tchekhov.
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A Maturidade
de um Cineasta

Sérgio Alpendre

Após dois filmes não vistos, um terceiro longa razoável e


derivativo, Distante, e os fracos Climas e 3 Macacos, o di-
retor turco Nuri Bilge Ceylan realiza o surpreendente Era
uma Vez na Anatólia, obra que assinala uma nova pos-
tura cinematográfica, menos referencial e estilosa, mais
dramática e calcada nos atores, na trama e nos diálogos.
Com esse filme, Ceylan parece ter deixado de acreditar no
cinema como um acúmulo de cinefilia e passa a pensar no
cinema como meio para exprimir uma inquietação. A mu-
dança lhe fez bem. Em alguns círculos, Ceylan deixou de
ser visto apenas como um filhote do cinema da rarefação,
tornando-se, enfim, um cineasta. Pairava, porém, a inter-
rogação sobre seu próximo filme, o oitavo de sua carreira,
intitulado Sono de Inverno, principalmente após a pre-
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miação máxima em Cannes (o que é motivo de descon- bretudo o de Distante. Ou já estou delirando com as ar-
fiança para qualquer crítico sério). Mas o que vemos é a madilhas referenciais do tal de cinema contemporâneo.
confirmação da maturidade de Ceylan como diretor afeito De todo modo, parei de brincar de adivinhar de onde vem
à tradição da dramaturgia, na veia de Strindberg e Ingmar cada plano quando ele finalmente entra em sua casa, que é
Bergman (essas referências óbvias da dramaturgia nórdi- também um hotel chamado Othello (justo, Aydin era ator).
ca não desmentem a mudança de postura anunciada no É quando vemos sua bela sala, com janela enorme que dá
início deste parágrafo, uma vez que elas aparecem inte- para a mesma paisagem que observamos anteriormente.
gradas à obra, nunca como motivo de legitimação ou pis- Ele encontra um hóspede, depois chega sua funcionária.
cadela para um público esclarecido, como na cena Stalker Somos assim introduzidos ao protagonista e ao lugar onde
(1979), de Andrei Tarkosvky, em Distante). se passará a maior parte do drama. Aydin é ator aposen-
No início, contudo, o cipoal de referências parece es- tado, que agora é dono de um hotel e herdeiro de várias
tar de volta, uma vez que a imagem do protagonista, Aydin casas na região, cujos rendimentos, apesar da alta taxa de
(Haluk Bilginer), tomada em plano bem aberto e com a pai- inadimplência, permitem que faça o que mais gosta: escre-
sagem exuberante da Anatólia ao redor, remete ao Soku- ver, atividade movida pelo ócio.
rov de Páginas Ocultas (Tikhiye Stranitsy, 1994) e Mãe e Ainda não fomos apresentados à bela esposa, cuja
Filho (Mat i Sin, 1997) — ou seja, ao melhor Sokurov possí- frustração é motor de questionamentos incessantes nes-
vel. As pedras, a névoa, a vegetação escassa, o homem que sa relação (ela só aparecerá com 40 minutos de filme), as-
parece andar a esmo nesse lugar remoto, tudo nos dá uma sim como falta a ação que motivará o julgamento moral
noção de tempo suspenso, de natureza árida rodeando es- de Aydin, o que acontece depois de 10 minutos: um meni-
piritualmente uma pessoa dividida. Sokurov, mas também no atira uma pedra na janela do carro onde ele estava. O
Sharunas Bartas, e — por que não? — o próprio Ceylan, so- motorista e braço direito de Aydin, Hidayet (Ayberk Pek-
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can), vai atrás do menino e consegue alcançá-lo. Evento da de Aydin, Necla (Demet Akbag), com quem Aydin tem
corriqueiro, pensamos inicialmente. O menino é levado um relacionamento envolto em julgamento e crítica, prin-
ao pai, e este se mostra tenso. Dá um tapa na cara do fi- cipalmente da parte dela. É um drama que precisa dessa
lho, que demonstra não ter entendido nada (afinal, aque- longa duração, porque muito de sua força provém dos di-
le homem não é o inimigo?). Depois esmurra a janela de álogos cuidadosamente construídos conforme os perso-
sua própria casa, num ato desafiador. Aos poucos, den- nagens passam por suas provações morais.
tro dessa longa cena, o enredo vai se revelando. Para ter Há, por certo, uma confusão nas prioridades de Ay-
tempo de escrever, Aydin delega seus poderes a gente de din. Quer ajudar uma jovem que nem conhece, mas não
sua confiança, sobretudo Hidayet, ficando confortavel- pensa naqueles que padecem sob suas asas, sendo preju-
mente alheio aos problemas das pessoas que dependem dicados dia a dia por sua indiferença (apesar de Hidayet
de sua tolerância. O pai do menino que atirou a pedra, Is- dizer que ele é muito bonzinho, e que por isso vários in-
mail (Nejat Isler), saiu recentemente da prisão, está de- quilinos não o pagavam em dia). Para completar, ele tra-
sempregado e há meses não paga o aluguel. Deve para ta com desprezo o projeto de caridade que Nihal organiza
Aydin, proprietário de sua casa. O irmão de Ismail, Ham- com carinho. Logo ela, que na cena em que é apresentada
di (Serhat Mustafa Kiliç), procura amaciar a relação entre ao espectador toma conhecimento da intenção caridosa
Aydin e Ismail, estremecida depois que um oficial de jus- de seu marido e não acha uma boa ideia. O desprezo dele
tiça levou deles um aparelho televisor e um frigobar. Ou pelo que ela tentava fazer teria sido uma pequena vingan-
seja, a partir da pedra no vidro surge uma história com- ça? Não importa tanto quem está com a razão, porque
plexa, que se desenrola aos poucos, em mais de três ho- tudo isso é circunstancial. Ambos levarão tombos.
ras, atingindo o casamento de Aydin com Nihal (Melisa E esses impasses nos levarão a momentos em que os
Sôzen) e o relacionamento de ambos com a irmã divorcia- detalhes ganham corpo, em que as palavras não ditas, ou di-
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tas de maneira atravessada, transformam pequenas crises se encontram sozinhos de forma mais duradoura numa dis-
(sociais ou conjugais) em situações incontornáveis, catali- cussão tensa, uma sequência que dura mais de vinte minu-
sadas pelo chiaroscuro nas cenas do escritório e em algu- tos, sem muita saída para qualquer um dos dois.
mas outras internas, em contraponto com as diversas cenas E o acidente do início jamais nos abandona, levando-
ocorridas na sala da grande janela, durante o dia, quando a nos a pensar sobre o que representa aquela pedra. Uma
claridade domina, ou nos impressionantes momentos com mágoa profunda, passada de pai para filho, de subjuga-
neve. Em algumas cenas, a câmera passa por trás de obje- dos contra aqueles que os subjugam? O desejo de resol-
tos, ou os enquadra em primeiro plano, com a ação decor- ver, com um acidente provocado pela raiva profunda,
rendo no fundo do quadro, bem ao gosto do cinema de arte anos e anos de injustiça social? Ou uma simples traves-
pós-Max Ophuls, Deus da mise en scène elegante e estili- sura de um menino que vê seu pai referindo-se negati-
zada. Há belos planos que duram poucos segundos, como vamente àquela figura e procura algum tipo de vingança
aquele em que Nihal oferece café a Necla, num enquadra- impensada? Ou um pouco de todas essas coisas? O mes-
mento que a deixa presa fisicamente entre o reflexo dela mo menino que atirou a pedra encarava Aydin minutos
mesma e outro móvel, como se espremida pela convenção antes, de forma ostensiva. O momento do acidente, por
social e por uma relação mal resolvida com a cunhada. O sinal, revela que a teoria baziniana da montagem proibida
plano dura uns dois segundos, no máximo, e não mais se foi devidamente respeitada. Vemos o menino atirando a
repete. Não é exibicionismo, mas um comentário explícito pedra no fundo do quadro e o vidro se estilhaçando prati-
(para o diretor) e subliminar (na apreensão do espectador) camente na nossa cara, um segundo depois, tudo dentro
da condição da esposa. Nota-se também que, apesar de ca- do mesmo plano. A decisão de não cortar fortalece essa
sada com Aydin, eles raramente são vistos a sós, como um ação decisiva, que vai disparar uma série de acontecimen-
casal em sua intimidade. É um relacionamento frio. Eles só tos dentro do filme e implicará a mudança de atitude de
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todos os envolvidos, direta ou indiretamente. pode ter compaixão, e o proletariado, dotado de inteligên-
Uma cena em especial funciona como um tratado da cia, dignidade e sendo vítima de injustiças sociais terríveis,
humilhação. Hamdi, o conciliador, convence o sobrinho pode ser bruto e até injusto. Uma esposa pode se rebelar
a “beijar a mão” de Aydin. A própria cena em que Hamdi mesmo que o marido só tenha pensado no bem dela, sem
pede a Aydin que receba o menino é, por si só, o retrato que ela seja mostrada como ingrata ou mal agradecida. Se
da humilhação, com o assunto da cobrança do vidro rea- cabe a Aydin as tintas mais negativas (enquanto as mais
parecendo de maneira terrível. Mas empalidece perto do positivas ficam obviamente com Nihal) é porque ele é o
que virá depois. Apesar da resistência de Aydin, receoso centro da crise, o motivador de toda a incerteza.
de ser reconhecido como uma espécie de mafioso local, a O filme mostra, com calma, por meio de longos diálo-
ideia não lhe desagrada de todo. Mas o menino, uma vez gos e imagens bem trabalhadas, mesmo quando constru-
ali, revela, sem de fato afirmar ou dizer qualquer coisa, que ídas na base do campo e contracampo, a complexidade
está contrariado, como peça de um jogo de manipulação de um mundo em que todos têm suas razões, o redemoi-
de Hamdi para conseguir o perdão daquele de quem sua nho dos sentimentos e da vida em sociedade, evitando as
vida financeira depende. Aydin estende a mão, achando facilidades e o oportunismo de quem levanta bandeiras
graça e, ao mesmo tempo, sentindo-se poderoso (o poder automaticamente.
corrompe, já sabíamos). O menino, claramente abalado,
desmaia após a insistência do tio. Uma cena de força e Sérgio Alpendre é crítico de cinema, professor, pesquisador e jornalista. Escreve na

crueldade, momento raro no cinema contemporâneo. Folha de São Paulo desde 2008. Coordenador do Núcleo de História e Crítica da Es-

Não estamos mesmo diante de um filme qualquer. cola Inspiratorium. Edita a Revista Interlúdio (www.revistainterludio.com.br) e o blog

Em Sono de Inverno ninguém é totalmente bom ou ruim. de cinema sergioalpendre.com. Participa de seleções e júris em festivais de cinema,

A elite, mesmo inebriada pelo poder e pela arrogância, além de ministrar cursos de história do cinema e oficinas de crítica por todo o Brasil.
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Além das Nuvens:


Uma Entrevista com
Nuri Bilge Ceylan*
Geoff Andrew
Tradução por Leonardo Luiz Ferreira
Se alguma coisa pode ser dita a respeito de um realiza-
dor com apenas três filmes (e um curta) em seu nome é
que cheguei tarde ao trabalho de Nuri Bilge Ceylan; meu
primeiro encontro com a obra do jovem turco foi no Fes-
tival de Cannes, em 2003, durante a coletiva de imprensa
de Distante. Eu estava bem impressionado com o filme, e
depois fiquei bastante contente quando recebeu dois prê-
mios, mas foi apenas alguns meses depois, quando me
preparava para uma entrevista com Ceylan, que compre-
*Texto originalmente publicado na revista eletrônica Senses of endi o quão notável cineasta ele é. Minha apreciação por
Cinema na edição de número 32, em julho de 2004, e gentilmente suas conquistas foi aprofundada não apenas pela desco-
cedido pelo autor. A versão original em inglês pode ser encontrada berta de seus métodos modestos e pouco usuais de tra-
no seguinte link: balho, mas — mais importante — pelo meu contato com
http://sensesofcinema.com/2004/feature-articles/nuri_bilge_ceylan/ seus dois primeiros trabalhos, A Pequena Cidade e Nuvens
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de Maio. Assistir a esses dois filmes e Distante na ordem — o tempo, o ritmo da vida, os lugares onde eles podem
de realização não é meramente testemunhar um cineas- se sentir livres — mas do social, econômico e fatores his-
ta desenvolvendo suas já consideráveis habilidades e re- tóricos que moldaram esta família e a experiência de vida:
finando sua arte; desde que o segundo e o terceiro filmes mais notavelmente a atração por uma vida melhor ou, ao
refletem e desenvolvem seus predecessores em muitas menos, mais rentável e menos provincial na cidade.
formas, é também uma questão de ver um tipo de au- Nuvens de Maio, ambientado na mesma cidade, cen-
mento orgânico ocorrendo de filme a filme, para que cada tra-se em um diretor (Muzaffer Özdemir) agora vivendo
longa suceda perfeitamente o outro, eles adquirem uma em Istambul que retorna para visitar seus pais e fazer um
maior ressonância por formatarem uma série de progres- filme no qual ele eventualmente consiga que eles inter-
sos passo a passo na carreira de Ceylan. pretem os papeis principais. Novamente, nada de signi-
A Pequena Cidade tem uma gentil, e até mesmo, vaga ficante parece ocorrer: o cineasta vaga ao redor, seu pai
narrativa na sua primeira metade que foca nas experiên- está preocupado com seu orquidário, um primo (M. Emin
cias inconsequentes de uma adolescente e seu irmão mais Toprak) está cansado da vida no campo e tenta ajudar no
novo quando vão para a escola e brincam nos campos e flo- filme para que o diretor lhe consiga um emprego em Is-
restas nos arredores de uma pequena cidade em Anatólia; tambul. Mas aquilo que é mais interessante é que os pais
a segunda parte tem as crianças ouvindo o que se trans- do cineasta (Emin e Fatman Ceylan) — que são de fato os
forma em uma levemente acalorada discussão entre dife- pais de Nuri Bilge Ceylan — são os mesmos personagens
rentes gerações quando a família acampa durante a noite que vimos interpretando os avós em A Pequena Cidade;
no momento da colheita. Pouco acontece de fato, porém que o primo também interpretou um jovem não satisfeito
Ceylan sutilmente assegura que nós nos tornemos cons- no filme anterior; e que nós agora vemos uma recriação
cientes não apenas das percepções do mundo das crianças da filmagem de um piquenique noturno daquele longa. O
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efeito está de alguma forma conectado com Através das um fotógrafo comercial em lugar do cineasta, o filme deve
Oliveiras, de Kiarostami, quando vemos (uma recriação ser visto como uma extensão de Nuvens de Maio — e, re-
ficcional) da filmagem de uma cena de seu longa anterior almente, dado que o primo insatisfeito é interpretado em
E a Vida Continua...; também reminiscente do trabalho todas as instâncias por Toprak. Mas não estamos falan-
do iraniano (mais notavelmente O Vento nos Levará) é o do simplesmente de uma progressão linear aqui: precisa-
(auto)retrato menos elogioso do diretor, que explora to- mente porque os filmes não podem ser reduzidos a uma
dos a sua volta para fazer seu filme, enquanto raramente série de longas que seguem um ao outro de maneira nar-
reflete que eles têm necessidades e problemas próprios. rativamente convencional, existe uma ressonância que
Ainda que Nuvens de Maio tenha uma narrativa um não só ecoa algo de autorreflexivo e preocupações for-
pouco mais justa do que o seu predecessor e que não te- mais de Kiarostami, mas que dá aos filmes certa universa-
nha sido rodado em preto e branco, mas em cor, clara- lidade. Precisamente porque ele não interpreta o mesmo
mente habita o mesmo mundo de A Pequena Cidade. Na personagem em cada filme, Toprak (que era de fato pri-
superfície, então, Distante parece engendrar uma mudan- mo de Ceylan e que morreu tragicamente em um aciden-
ça de alinhamento. Ambientado numa Istambul invernal te de carro logo após as filmagens de Distante) em alguns
(exceto pelo plano de abertura de um jovem — Toprak níveis tem um status quase arquetípico, como uma figu-
— cruzando os campos cobertos de neve para pegar um ra representando todos os primos do campo que deixam
ônibus), mapeia as tensões crescentes no relacionamen- para trás os seus pares por estarem cansados de casa e
to entre um desencantado fotógrafo (Özdemir) e o primo que, quando eventualmente chegam à cidade, não se en-
do campo que está hospedado em seu apartamento en- quadram realmente bem. Assim como com Özdemir (que
quanto procura emprego nos navios, que podem levá-lo aparece apenas de maneira breve no prólogo de A Peque-
para longe dali. Salvo, então, que agora o personagem é na Cidade — como o idiota da cidade!); seus personagens
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eloquentemente evocam as decepções de todos aqueles neira próxima em especificidades. É frequentemente o


que têm talento, porém por uma razão ou outra não con- caso das histórias que ressoam de maneira mais abran-
seguiram confirmar uma promessa inicial ou preencher gente aquelas firmemente enraizadas nas particulari-
seus sonhos, ao invés disso — quase sem notar — vende- dades do cineasta. Ceylan leva isso ao extremo, usando
ram suas almas para Mammon (N.T.: uma entidade maléfi- narrativas claramente inspiradas em parte em suas expe-
ca ou um objeto de falsa devoção). riências, colocando seus familiares no elenco, usando pe-
Ceylan conquista esta universalidade de referên- quenas equipes de filmagem e produzindo, roteirizando,
cia e ressonância de diversas formas. Primeiro, em sua rodando, dirigindo e montando todos os seus filmes. É
pouco usual calmaria, ele confronta grandes questões: o cristalino, através dos filmes de Ceylan, que ele sabe exa-
que estamos fazendo com nossas vidas e por que, como tamente aquilo que quer falar, porque ele tem uma ex-
o passado influencia o presente e o futuro, quantos po- periência pessoal rica em pessoas, lugares e situações;
dem reconciliar suas necessidades e ideais com as decep- e sendo esse conhecimento tão profundo e preciso, ele
ções da realidade, como podem nossos relacionamentos é capaz de comunicar para os espectadores de tal forma
com família e amigos sobreviverem quando o mundo está que sentimos que sabemos também.
mudando rapidamente e as pessoas são para sempre en- Não que a obra de Ceylan possa adequadamente ser
corajadas a se moverem em busca de alguma coisa me- descrita como “realista”. Certamente, existe uma hones-
lhor do que aquilo que já temos? Nesse sentido, Ceylan se tidade, uma autenticidade que serve como uma forte fun-
parece mais com os grandes mestres do cinema de arte dação para o artifício que ele cria, mas como a mistura
do que com a maioria de seus contemporâneos. Mas ele entre “realidade” e “ficção” de Kiarostami, os métodos
também faz com uma extrema (e, claro, de diversas for- de Ceylan são essencialmente poéticos. Ambos os estilos
mas enganosa) simplicidade narrativa, e focando de ma- narrativos e visuais podem ser denominados “impressio-
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nistas”; ele dá preferência a elipses, metáforas discretas, Geoff Andrew: Como surgiu a ideia de Distante para você?
repetições, rimas e flexibilidades rítmicas; e está alerta de Nuri Bilge Ceylan: (risos) É um mistério, de fato. Eu
maneira aguda para o tempo e o espaço: expressados pe- não sei, porque depois de terminar o meu segundo filme,
las estações do ano, pelas mudanças entre som e luz, e minha intenção era fazer algo completamente diferente
como eles afetam nossos humores. Além de Kiarostami, na cidade. Mas o destino... Quando eu olho o roteiro fina-
há dois outros pontos de comparação que gostaria de su- lizado, era novamente muito próximo ao segundo longa.
gerir. A noção de Ceylan em como a experiência dos indi- Eu gosto de fazer filmes que sejam autobiográficos, eles
víduos é afetada pelas mudanças no mundo à sua volta, se transformam de maneira conectada. Primeiro, queria
algo que remete ao trabalho do cineasta Edward Yang; e fazer um filme sobre o fotógrafo — um homem melan-
tem também o humor, tão negro, que inexplicavelmente cólico, que perdeu seus ideais através da falta de moti-
o conecta com uma visão absurda da vida, talvez até trá- vação; que teve muitas oportunidades de conquistá-los,
gica, que outros podem pensar em Buster Keaton. Meu mas não teve a motivação para fazer isso. Eu vivi algo pa-
conselho, se e quando assistir a esses filmes, é duplo. Pri- recido de maneira problemática após começar a realizar
meiro: tente vê-los na ordem em que foram realizados. filmes. Mas então o segundo personagem, o rapaz mais
Segundo: lembre-se de que, ainda que sejam sérios, eles novo, chegou à história; eu pensei que ele pudesse mos-
são ocasionalmente engraçados, e definitivamente foram trar melhor quem era o primeiro personagem.
feitos para apreciação.
A seguir uma versão editada de uma entrevista conduzi- E eles poderiam, de alguma forma, ser dois personagens
da em Londres, em outubro de 2003. de Nuvens de Maio, o diretor e seu amigo. Poderia ser
que o diretor tivesse desistido do cinema e trocado esse
pela fotografia, e seu amigo o encontraria em Istambul.
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Existe uma continuidade forte entre os filmes. não quer nada de outras pessoas, e em retorno não dá nada
Sim, eu também penso nisso. Mas isso aconteceu por acaso. a elas. É como se ganhasse o direito de não ajudar aos ou-
tros, transformando-se em alguém economicamente forte
E você mesmo nasceu em Istambul? o suficiente para não auxiliar aos outros.
Eu nasci lá, mas dois anos depois fomos para o campo, e fi-
quei lá até completar 10 anos. Eu ainda tenho parentes mo- E pode se acostumar a ficar sozinho, apenas vendo pes-
rando lá, costumava visitá-los de maneira frequente, então soas quando queira.
conheço bem essas pessoas — ambas no campo e na cidade. Sim, você controla muito mais a sua vida. E o fotógrafo está
parcialmente com raiva do rapaz porque sua esposa acabou
O problema entre os dois rapazes em Distante é bem tí- de deixá-lo, o que o transforma em alguém mais tenso do
pico de pessoas que vivem na cidade durante um tem- que já é. Então, ele foi para fotografia comercial e ganhou
po e de pessoas que são novas ali. É essa a razão para dinheiro, tendo toda oportunidade de atingir seus ideais,
a distância entre eles, ou é apenas que eles cresceram mas ele não tem crença suficiente para isso. Ele sente dor
afastados? e ansiedade, e não gosta muito de si mesmo. Está pronto
Penso que muito se dá porque o fotógrafo leva uma vida para refletir isso em outros. Eu tenho muitos amigos que
intelectual, ao lado dos amigos, e os valores dos intelec- agem dessa forma, e eu estive em uma situação assim —
tuais são diferentes; os hábitos mudam muito. A maioria antes de encontrar o cinema. Com o cinema, fui capaz de
das pessoas em Istambul não é dessa forma; eles são nor- criar um tipo de paz na minha alma. Foi como uma terapia;
mais, eles vêm do campo. Mas os hábitos de intelectuais você colocar toda a escuridão, lados negativos de si mesmo
são mais problemáticos — especialmente quando ganham nos filmes, para logo se livrar deles — ou ao menos contro-
dinheiro, eles não precisam de outras pessoas. Então você lar esses sentimentos de uma forma melhor.
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É interessante que ele parou de assistir Tarkovsky e Você gosta de usar sempre os mesmos atores em seus
começou a ver pornografia! Isto é algo que quero falar filmes?
a respeito, porque o seu filme é, em muitas formas, Na verdade, meu ideal seria mudá-los. Como Bresson
pungente e melancólico, mas tem também, como to- diz, uma vez que um ator interpreta em um filme, ele não
dos os seus longas, um pouco de humor: por exemplo, é mais virgem... ou algo do tipo. Mas essas histórias es-
quando o fotógrafo coloca Stalker no vídeo para obri- tão um pouco conectadas, ainda que quisesse mudar isso
gar seu amigo a ir para cama. Mas também existe uma em Distante. E queria mudar os atores dessa vez, mas de-
obsessão do pai com sua terra e árvores em Nuvens pois de vários testes acabei escolhendo os mesmos. Na
de Maio. É importante para você ter humor nos filmes verdade, nos testes, o fotógrafo era o pior, mas selecio-
que são tristes? nei mesmo assim!
Sim. Eu não faço meus filmes de maneira muito analítica,
mas vejo humor até mesmo em situações trágicas. Acho Ele é muito bom e tem um grande rosto.
que humor é sempre o irmão da tragédia ou de coisas tris- Sim; o teste era uma cena de diálogo, e ele não era muito
tes; e penso que com humor a tragédia se torna mais con- bom em diálogo. Mas nas cenas silenciosas ele era ótimo,
vincente. Eu gosto bastante de Tchekhov; talvez ele tenha e adequado ao personagem.
me ensinado isso. Se você ler bastante Tchekhov, passa-
rá a ver a vida através do filtro do autor, de alguma forma. Em seus filmes isso é importante, porque você narra a
Então talvez seja sua influência, ainda que pense sempre a história com poucas palavras, com longos trechos sem
vida como algo trágico, ao mesmo tempo vendo o lado di- diálogo, tudo para que descubramos vagarosamente as
vertido. Talvez seja isso que faça a vida ser suportável. coisas. Você despreza o uso de palavras?
Sim, porque até mesmo na vida eu não gosto, eu não acre-
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dito em palavras. No geral, as pessoas mentem, elas não países sentem da mesma forma agora, e todo mundo está
contam a verdade. A verdade se esconde naquilo que está sob a influência dos filmes americanos, ao redor do mundo.
oculto, no não dito. Realidade está na parte não falada de
nossas vidas. Se você tentar falar sobre seus problemas, Mas agora que muitos filmes de Hollywood são mui-
eles não serão convincentes. As pessoas tentam se pro- to ruins, penso que as pessoas estão se aventurando
teger; todo mundo tem algo a esconder. Eles tentam es- um pouco mais, e assistindo a filmes do mundo todo,
conder o lado fraco. Quando contam uma história, eles se e também os independentes. O que me leva de vol-
fazem os heróis. Então sem palavras é melhor, e permite ta para seu primeiro longa; ele não foi escrito por um
ao espectador ser mais ativo; ele deve usar sua experiên- membro de sua família?
cia própria ao tentar resolver... Minha irmã escreveu a história. Na verdade, eu sou muito
grato de ter trabalhado com a minha família nesses dois
É por isso que gosto dos filmes de Kiarostami, ou de filmes, porque sempre me senti culpado sobre não vê-los
Esperando a Felicidade (Heremakono, 2002), de Abder- de maneira suficiente. Dessa forma, nós poderíamos estar
rahmane Sissako. Você tem que trabalhar um pouco... juntos, e tivemos muitos momentos felizes. Mas também
Mas isso é um pouco difícil para você, certamente, nos penso que eles são bons atores. Eles não se preocupavam
dias de hoje quando as pessoas geralmente veem os fil- muito com a filmagem — se um ator tem em mente o seu
mes nos quais se mostra e conta tudo. Como seus fil- provável sucesso, isso o distrai. E quando você não pres-
mes são recebidos na Turquia? ta atenção nisso, tudo se torna mais natural. Primeiro, no
Acho que é o mesmo que aqui; criticamente, é bom; de meu curta-metragem comecei trabalhando com meu pai e
outro modo algumas pessoas gostam dos filmes, e outras minha mãe porque tinha medo de trabalhar com profissio-
não. É basicamente igual, graças à globalização. Muitos nais; eu não sabia o que fazer, queria tentar algumas coi-
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sas, queria estar aberto e disponível para as pessoas. Mas Após realizar A Pequena Cidade, você decidiu mudar os
quando trabalhei com eles, gostei, e queria tentar nova- seus métodos?
mente. E trabalhar com amadores começou dessa forma, Sim. Eu decidi finalmente rodar um filme com som sincro-
também, porque não confiava em mim mesmo; mas ago- nizado. Mas nada mais mudou tanto. Eu ainda prefiro ter
ra quero usar atores amadores. Apenas em Distante, para uma equipe pequena; para A Pequena Cidade éramos ape-
pequenos papeis como o da ex-esposa, usei profissionais, nas duas pessoas: sem som, somente eu e um foquista.
mas acho que usar amadores é melhor. Para o segundo filme, éramos quatro pessoas na equipe,
e para Distante fomos apenas cinco. Isso ajuda bastante,
Em Nuvens de Maio, você mostra uma cena sendo roda- eu penso; eu não gosto de ter muita gente ao meu redor
da — é uma sequência de A Pequena Cidade, na verdade enquanto estou rodando, e com atores amadores, eles
— na qual um membro da equipe de filmagem lê as falas se sentem mais relaxados. É mais íntimo. Também, você
e os atores — os seus pais — repetem. É uma forma bem pode levar o seu tempo.
estranha de filmar; você filmou realmente dessa forma?
Apenas em meu primeiro longa. Nós não tínhamos uma câ- Então você tende a fazer muitas tomadas?
mera de boa qualidade; era muito barata e soava como uma (risos) Não — a película é muito cara! Mas geralmente a
metralhadora, então tivemos que filmar daquele jeito. E é primeira tomada é a melhor. No geral, eu faço três takes.
uma pena, porque os atores amadores normalmente criam Algumas vezes realizo ensaios, outras não. Mas antes de
palavras bonitas de linguagem própria; mas eles não podem filmar, nós nunca ensaiamos diálogos ou fazemos leitu-
reproduzi-las na dublagem, então tivemos que usar profis- ras ou coisas do tipo. E geralmente não mostro o rotei-
sionais para a dublagem, e não ficou muito bom. Se você co- ro aos atores.
nhece a língua turca, verá que existem alguns problemas.
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Então eles só veem a cena quando estão próximos a Sim, eu penso que é a minha maneira de conectar as coi-
realizá-la? sas a um estado cósmico. Nós vivemos em um universo, e
Sim. Eu digo a eles a situação e algumas vezes o que de- penso que nós deveríamos nos conscientizar sobre a rea-
vem falar. Mas primeiro quero ver o que eles podem me lidade todo o tempo. Ao menos, é a minha forma de fazer
dar. Se eu não gostar, então começo a ajustar. Escrevo o o mundo ter mais significado.
roteiro, mas não mostro a eles. Escrevo por segurança,
para que então não esqueça. Você parece ter um sentimento forte para o mundo da
natureza: árvores, animais, som dos pássaros...
Mas você não precisa ter um roteiro para conseguir di- Sim, mas na verdade na minha vida pessoal não sou tão
nheiro para o filme? conectado com a natureza. Posso entender as estações
(risos) Na verdade, eu nunca pedi dinheiro de nenhum lu- mudando em Istambul apenas através de uma única coi-
gar — até agora. Eu me financiei, e todos os meus filmes sa — eu posso ver uma única árvore da minha janela. Um
geraram lucro, felizmente. Então não tenho que finalizar dia vejo muitas folhas; em outro nenhuma. Então quando
os meus roteiros, felizmente, se não quiser — entretanto, vou ao campo gosto bastante — mas depois de três dias
nesse caso, terminei o roteiro porque me senti mais se- aquilo parece a morte.
guro dessa forma. Ainda assim eu não obedeci ao roteiro!
Você soou como o Woody Allen!
Os seus filmes sugerem que você está bastante conscien- Eu deito embaixo de uma árvore, olho para o céu, os pássa-
te das estações, do tempo. Dois dos filmes começam com ros, as folhas no vento... Algumas vezes, sinto que é insu-
neve, e existe um sentido muito nítido de clima, momen- portável: muito bonito ao mesmo tempo..... opressor. E a
to do dia, da qualidade da luz... vida na cidade, as relações humanas lá — faz com que pos-
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sa gostar disso. É difícil sair do campo para Istambul, por- também, mas não sabia o que queria fazer da minha vida.
que é muito grande, e não tem natureza próxima.... Então decidi — que é a coisa mais difícil na vida — começar
a viajar. Pensava nessa época que queria viver no Ocidente,
Você mesmo roda seus filmes — por quê? e vim para Londres. Fiquei aqui por seis meses, e trabalhei
Não é porque não confie em ninguém, mas porque tenho como garçom, coisas desse tipo. Ao mesmo tempo, esta-
ideias. Eu sei o que quero, então por que ter mais uma pes- va pensando sobre o que fazer da vida, tentando encontrar
soa na equipe? Diretores de fotografia gostam de usar mui- uma resposta, então todo dia no meu tempo livre ia para
tas luzes, muitos equipamentos. E eu posso entender as livrarias ler sobre assuntos diferentes. Eu estava muito so-
coisas de uma forma melhor se estiver olhando através da zinho e ia ao cinema todo dia, e naquele tempo sabia que
lente. Eu fui um fotógrafo antes, então estou acostuma- não queria viver no Ocidente. Então um dia numa livraria
do. Talvez um dia tente trabalhar com um diretor de fo- encontrei um livro sobre o Himalaia, e pensei que a respos-
tografia — algumas vezes você pode perder a atuação se ta poderia estar ali! Dessa forma, fui para o Nepal. Mas um
existe um movimento de câmera para aquilo que busca. dia, depois de alguns meses, quando estava meditando em
Mas na maioria do tempo uso planos fixos, então isso não um templo budista olhando para as montanhas, de repente
é de fato um problema! senti muita falta de meu país. Tinha completado talvez um
ano que estava fora, e pensei que poderia fazer meu servi-
Por que você decidiu entrar no universo de realização ço militar. Então pensei: que ideia brilhante! Dessa forma
cinematográfica? eu retorno, mas não tenho que decidir; posso postergar mi-
Porque não consegui encontrar nada mais que quisesse fa- nha decisão. Mas o serviço militar me entusiasmou um pou-
zer. Estudei engenharia elétrica, mas depois da Universi- co. Acho que o homem necessita autoridade — liberdade
dade não quis trabalhar como engenheiro. Era fotógrafo é algo muito difícil — então ter uma obrigação era a me-
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lhor coisa para mim naquele momento. E quando estava na to de mim, mas cerca de quatro anos depois que comecei
escola tinha ficado muito separado da sociedade (era uma fotografia, minha irmã também teve interesse. Depois ela
educação muito ocidentalizada), no serviço militar encon- passou a escrever histórias. Eu tinha dificuldade em iniciar
trei pessoas de toda a Turquia, muitos tipos diferentes de meus filmes e pensei que uma de suas histórias autobio-
pessoas. E isso criou em mim um tipo de amor pelo meu gráficas daria um bom ponto de partida para mim: em A
povo novamente. De qualquer forma, eu ainda lia muitos Pequena Cidade, a parte do campo, especialmente, é de
livros, e tive contato com uma autobiografia de Polanski, sua história. E acrescentei algumas outras cenas.
Roman. E aquilo me incendiou, esta vida que começou no
gueto, mas mudou significativamente, e comecei a pensar: É um filme muito confiante. Adoro a cena do menino
talvez eu possa ser um diretor de cinema. Então comecei a brincando com a tartaruga.
ler livros técnicos de fotografia para cinema. E dessa forma Sim, nós não fomos muito gentis com ela, já que são fáceis
decidi me tornar realizador. E (risos) retornei para Londres, de capturar. Uma mulher ficou revoltada comigo por cau-
desta vez para estudar na escola de cinema. Mas era mui- sa daquela cena! É engraçado; depois eu vi O Vento nos
to cara, então voltei para Turquia e estudei lá por dois anos. Levará, de Kiarostami, e um rapaz chuta as costas de uma
Mas depois disso levou dez anos para eu começar a filmar tartaruga. Este é um dos meus favoritos dele.
— porque começar é a coisa mais difícil de todas. Tudo pa-
rece bem complicado — relações humanas, organizações.... E existe semelhança entre Nuvens de Maio e Através das
Oliveiras — ambos têm sequências em que a rodagem de
E você é de uma família de artistas? Já que tantos estão uma cena de um filme anterior é recriada?
envolvidos em seus filmes. E existe uma semelhança na paisagem, também, penso eu.
Na verdade, até certa idade não existia nenhuma arte per- Sim, com os filmes de Kiarostami realmente senti como se
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estivesse vendo o meu país. Irã e Turquia são um pouco si-


milares em aparência, ao menos em termos de pessoas
do campo. Mas Kiarostami é um dos meus cineastas fa-
voritos. Ele me deu muitas coisas novas para o cinema.
E ele tem grande compaixão com seus personagens. Ele
não faz filmes sobre intelectuais ou pessoas sofisticadas,
mas sobre pessoas comuns, modestas — ele as ama. Ele
é muito especial...

Geoff Andrew é escritor, programador e professor de cinema. Ex-editor da revista Time Out London, antes de se transformar em chefe de programação do National Film

Theatre, em Londres, agora chamado de BFI Southbank. Ele também é autor de diversos livros sobre cinema.
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ensaios
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Um Pequeno Olhar
sobre os Primeiros Filmes

Aslı Daldal
Tradução por Leonardo Luiz Ferreira
Um dos mais proeminentes cineastas do novo cinema tur-
co, que recebeu aclamação internacional através de Can-
nes, como Yilmaz Güney, é Nuri Bilge Ceylan, nascido em
1959. Ao contrário de Güney, Ceylan tem escolhas pesso-
ais e relutou em se tornar popular nos estágios iniciais de
sua carreira como realizador. Em sua Trilogia da Província,
composta de A Pequena Cidade, Nuvens de Maio e Distan-
te, ele preferiu um cinema “minimalista” reminiscente do
diretor iraniano Abbas Kiarostami e o humanismo exis-
tencialista do mestre japonês Yasujiro Ozu. Ele também
foi influenciado pela estética do neorrealismo. Mas con-
trário ao tom político de Yilmaz Güney, Ceylan pegou em-
prestado os princípios fenomenológicos do neorrealismo,
incluindo minimalismo, modéstia e o verismo documental.
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A infância de Ceylan foi passada em Canakkale Ye- Cannes. Assim como ele não queria se torturar com deta-
nice onde seu pai trabalhou como engenheiro agrônomo lhes burocráticos, não solicitava suporte do Ministério da
após se graduar nos Estados Unidos (um ponto muito de- Cultura na Turquia. Então suas obras iniciais foram reali-
batido em A Pequena Cidade é se é racional retornar para zadas com orçamentos inacreditavelmente baixos. Pos-
a província natal após uma graduação nos Estados Uni- suindo um forte antecedente na fotografia, ele abraçou
dos?). A sua infância feliz em Yenice teve um papel im- a noção kracauriana que “filme é a continuação ontoló-
portante para Nuri Bilge Ceylan, e ele se referiu a ela gica do realismo fotográfico”1. Tão intimamente enraiza-
inúmeras vezes em sua Trilogia da Província. As belas pai- do na existência diária, seus filmes iniciais da Trilogia da
sagens e a natureza de Yenice e sua nostalgia pela in- Província não tinham tramas desenvolvidas, mas possu-
fância perdida são temas recorrentes de seus primeiros íam temas básicos enriquecidos com histórias encontra-
trabalhos. De A Pequena Cidade até Distante, todos seus das dentro dos detalhes simples da vida cotidiana. Em A
filmes são quase réplicas autobiográficas de sua agonia Pequena Cidade, nós somos simplesmente convidados a
e dor de abandonar a vida harmoniosa dentro da natu- sentir e compartilhar do tédio de um jovem que deseja
reza. A jornada de Ceylan por sua inocência infantil não sair de sua cidade natal. Nós também temos a chance de
está limitada apenas as tramas de seus filmes. Tendo re- contemplar a bela fotografia que captura os detalhes da
pugnância a todos os tipos de “falsidades”, ele reluta em vida de uma pequena cidade. Em Nuvens de Maio, Ceylan
trabalhar com atores profissionais em suas obras. Em sua conta, num modo quase de cinéma vérité, como ele ro-
primeira trilogia, escalou a sua família de verdade (mãe, dou o seu filme anterior, A Pequena Cidade. As dificulda-
pai, primo, esposa, etc.) como os protagonistas de seus des que teve com sua família enquanto rodava o filme,
filmes. Ele não concedeu quase nenhuma entrevista à im- a impossibilidade de uma comunicação saudável com os
prensa até o sucesso inesperado de Distante no Festival de moradores do local e a paixão profunda de seu pai pela
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sua terra são os principais temas de seu segundo filme. A tami. Como Ceylan também admite, para sua Trilogia da
harmonia entre homem e natureza representa uma gran- Província, a “narrativa sutil” dos cinemas de Yasujiro Ozu
de parte de Nuvens de Maio ao contrário de Distante (o úl- e Kiarostami foram muito importantes. Porém, até a rea-
timo filme da trilogia), que reflete a alienação pessoal de lização de Climas, que sinalizou o fim da “redenção física
Ceylan com a cidade grande e a sua ruptura total de Yeni- da realidade” de Ceylan, o universo cinematográfico do
ce. Em Distante, ambientado no próprio apartamento de diretor incluía:
Ceylan em Istambul, dois primos, separados no desfecho a) Uma paixão profunda pela fotografia clássica
de Nuvens de Maio, se reúnem. Mas esse encontro se trans- como a fonte ontológica do cinema realista. Nós não
forma em um jogo poderoso entre um jovem sem esperan- sabemos se Ceylan estava familiarizado com o traba-
ça e seu bem-sucedido, mas infeliz, primo mais velho. lho de Siegfried Kracauer, mas seus primeiros filmes
Em todos os três filmes que compõem a Trilogia da são bons exemplos da noção kracauriana de cinema
Província, Ceylan usa as mesmas técnicas estilísticas re- como uma “redenção física da realidade”. Kracauer,
miniscentes do neorrealismo. Como Güney e os mes- um prolífico escritor e filósofo alemão, escreveu nos
tres do neorrealismo, ele prefere atores não profissionais anos 1950 que, como exemplificado em muitos filmes
e tenta refletir verdadeiramente a realidade física que o neorrealistas e também exaltados (com uma ênfase
rodeia. Mas ao contrário de Güney que, ainda que, dese- diferente) pelo crítico francês André Bazin, o “verda-
jasse dar certa direção política aos espectadores, Ceylan deiro” filme cinematográfico deve ter uma história
estava obcecado com “minimizar a mentira do cinema”2. simples, não esmagando a visualização de uma rea-
Este desejo de recusa total a manipulação ou enganar os lidade física. Esta história deve ter “permeabilidade”
espectadores levou Ceylan a construir histórias mínimas que abra espaço para espontaneidade e continuidade
comparáveis aos “dramas inocentes” de Abbas Kiaros- (a história não deve “terminar”). Ela deve ser baseada
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na Terra (material existente) e nos detalhes comuns sibilidade de uma verdadeira solidariedade humana.
de pessoas simples3. É também um “cinema contem- Comparado a Kiarostami ou outros mestres do neor-
plativo” usando as palavras de Dabashi, que revela a realismo, seus personagens são geralmente pregui-
“beleza na brutalidade benigna do ser”.4 çosos e mais egoístas. O grau de egoísmo aumenta
b) Um tom político num disfarce apolítico. Ao dramaticamente de A Pequena Cidade para Distante,
contrário de Güney, ou outros realizadores neorrea- e os anteriores defeitos cômicos humanos dão lugar a
listas como Visconti ou De Santis, Ceylan dificilmen- variações de sadismo. E de Climas em diante, Ceylan
te fala sobre algo político. Mas ao rejeitar a presente é levado em novas formas de niilismo que o afastam
cultura de consumo e excesso através da humildade inteiramente de sua inocência infantil, algo que ele
e vagarosamente executando histórias silenciosas, desesperadamente buscava capturar no cinema.
por dolorosamente tentar evitar a mentira do cinema
através de edição mínima, som, trabalhos de câmera
e atuação, por radicalmente desafiar normas estabe-
lecidas do cinema popular por intermédio de traba-
lhos totalmente pessoais, Ceylan é político em seus
primeiros filmes, se não com “o quê” ele diz, mas com
“como” ele diz.
c) Um individualismo e pessimismo que depois
se desenvolve em ruptura total de ação social. Até
quando em seus primeiros filmes exaltam harmonia, Aslı Daldal é professora de meio-período em Estudos de Cinema, na Bogazici Univer-

natureza e modéstia, Ceylan é pessimista sobre a pos- sity, Turquia, no Departamento de Línguas Estrangeiras.
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Notas
1
Siegfried Kracauer (1960) Theory of Film. Oxford Univ Pres.
2
Fatih Özgüven (2003). Nuri Bilge Ceylan ile Kişisel Yolculuk. Yirmibir Mimarlık Der-

gisi, May, p.12.


3
Kracauer (1960).
4
Hamid Dabashi (2001). Close Up Iranian Cinema. London: Verso.

Notas do Tradutor

· Yilmaz Güney foi um ator e diretor turco que venceu a Palma de Ouro de Melhor

Filme no Festival de Cannes pelo longa O Caminho (Yol, 1982).

· Cinéma Vérité é um estilo cinematográfico documental criado pelo realizador

francês Jean Rouch, a partir de observações do cinema de Dziga Vertov e Robert

Flaherty, que propõe através da filmagem e de improviso revelar a verdade por in-

termédio da realidade crua.


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Climas e Sono de Inverno:


autoria e contrastes
narrativos nos roteiros
de Nuri Bilge Ceylan
Sylvio Gonçalves
Por convenção, atribuímos a autoria dos filmes aos seus
diretores. É por isso que nos referimos aos filmes “de Ste-
phen Frears” ou “de Sidney Lumet”, ainda que na maioria
de suas obras esses diretores tenham produtores, rotei-
ristas e montadores entre os seus parceiros criativos. Nos
anos 1950, a revista francesa Cahiers du Cinéma justificou
o culto ao diretor, ao constatar características de estilo
recorrentes em filmes distintos de cineastas como John
Ford e Alfred Hitchcock, ainda que ambos trabalhassem
com colaboradores diferentes a cada projeto.
Diretores, mesmo quando não assinam os roteiros,
costumam conduzi-los desde os primeiros estágios da
redação. E quando entram tardiamente no filme, provi-
denciam adaptações para os seus estilos. Assim, descon-
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siderando os recursos de linguagem que são exclusivos à mulher está entediada e, sorrindo, ela responde que não.
sua atuação no set de filmagem e na ilha de edição (mar- Esse diálogo curtíssimo não nos oferece muitas informa-
cação de cena, fotografia, trilha sonora, etc.), podemos ções sobre a trama, mas frisa a melancolia da mulher.
identificar os elementos de autoria de um diretor e com- Aos oito minutos de projeção, mais um diálogo econômi-
parar seus filmes apenas pelos seus roteiros. Lançaremos co. Num quarto de hotel, o homem pergunta se eles de-
um olhar de roteirista a dois filmes de Nuri Bilge Ceylan vem visitar um amigo. Mas a mulher continua distante e
nos quais as suas marcas de estilo se sobressaem, mas não responde, e é apenas ao insistir na pergunta que o ho-
que adotam estilos narrativos muito diferentes. mem apresenta a primeira informação sólida da trama —
Climas é o quarto longa-metragem de Ceylan, e como a personagem feminina se chama Bahar.
em todos os seus filmes até 2014, ele também assina o ro- A cena seguinte transcorre numa casa de praia, na
teiro. Contudo, Climas destaca-se entre os seus filmes por qual Bahar e o homem conversam à mesa de jantar com
ser o único no qual ele participa também como ator, no um casal de amigos. Essa cena — de aproximadamente 5
caso como o personagem principal masculino. A perso- minutos, que Ceylan filma num único plano geral estático
nagem principal feminina é interpretada pela esposa do — é a tradicional exposição verbal de história pregressa.
cineasta, Ebru Ceylan, que a partir de 3 Macacos será tam- Nesse recurso de roteiro, um personagem verbaliza algo
bém sua corroteirista. que seu interlocutor desconhece ou já sabe, mas sempre
Há pouquíssimas falas nas primeiras cenas de Climas. transmitindo informações que são novas para o especta-
O filme começa num close ensolarado da mulher, e corta dor. Há formas elegantes de esconder esse mecanismo,
para seu ponto de vista: um homem, cerca de vinte anos mas como roteirista, Ceylan não parece interessado nis-
mais velho, batendo fotos das ruínas de um templo. O pri- so. O diálogo inicia com os personagens elogiando o jan-
meiro diálogo entre eles é casual. O homem pergunta se a tar que acabaram de desfrutar, aceitando tomar um café,
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e comentando o clima da região — uma típica situação filme a sua habilidade de “mostrar em vez de contar”.
de séries e novelas de TV, mídia que ironicamente é mui- Depois da longa cena baseada em diálogo expositivo, o
to criticada tanto neste filme quanto em Sono de Inverno. filme volta a optar por uma linguagem visual. Isa admira
Depois dessa introdução naturalista, o diálogo prossegue sua mulher ao sol enquanto ensaia como lhe dizer que de-
com o homem passando uma mensagem que é importan- seja romper o relacionamento, e num corte descontínuo
te para os espectadores: é a primeira vez que o casal viaja vemos que ele já está conversando com Bahar. Ela rea-
em anos, ou seja, apesar da diferença de idade, o relacio- ge calma, garantindo a Isa que não precisa se preocupar
namento é antigo. Bahar está mal-humorada, e o homem com ela, pois ficará bem. Porém, depois de um momen-
pergunta-lhe por que sempre age assim quando saem. O to de silêncio e reflexão na garupa da moto do marido,
clima pesa. Bahar sugere que eles devem ir à praia nadar, Bahar tem uma explosão de fúria que derruba a ambos no
mas o homem acha um absurdo fazer isso à noite; na fren- acostamento. Ela passa a chorar e gritar, e se afasta sozi-
te do amigo dos dois, critica-a duramente, chamando-a nha pela estrada, tomando a atitude de pegar um ônibus
de louca. Bahar retruca dizendo que é melhor mesmo não para longe daquela relação. Alguns críticos interpretaram
nadarem porque o esforço físico “não faria bem ao pesco- a reação da personagem como a de uma pessoa imatura
ço de Isa”. Significativamente, essa fala em que Bahar en- e submissa, mas ao agir fisicamente e se negar a dar ex-
fatiza a idade do marido é também a primeira vez, aos 14 plicações a Isa, Bahar possibilita ao filme narrar-se de for-
minutos de projeção, em que é estabelecido o nome do re- ma visual. Em seguida, é a vez de Isa agir sem justificar
lutante e inseguro personagem principal masculino. verbalmente as suas ações, como na polêmica cena em
Guia para a realização de um filme, roteiro é uma his- que visita sua ex-amante Serap e a violenta. Ao optar por
tória contada por meio de diálogos e imagens. Ceylan, mostrar em vez de contar, Climas confere ao espectador a
como roteirista, demonstra a partir dos 15 minutos de responsabilidade de tirar as suas próprias conclusões so-
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bre as motivações e as atitudes dos personagens. nete. Paralelamente, Aydin tenciona atender a um pedi-
Sono de Inverno é o sétimo longa-metragem de Ceylan, do de doação de uma professora de uma aldeia próxima,
e o terceiro em que sua esposa Ebru colabora como sua patentemente por que ela se identifica como admirado-
corroteirista. O filme começa privilegiando a linguagem ra da coluna que ele publica num jornal local. Aos trinta
visual, mostrando o protagonista Aydin passear por uma minutos de projeção, esse é mais um beat que estabele-
deslumbrante paisagem da Região da Anatólia Central ce o conflito de Aydin com sua esposa, Nihal. Como em
até chegar à sua propriedade, o “Hotel Othello”, refe- Climas, o casal novamente possui uma grande diferen-
rência ao seu passado como ator teatral. Assim como em ça de idade — ela é cerca de trinta anos mais jovem —
Climas, o conflito principal da trama é rapidamente esta- e também está em crise de relacionamento. Nihal, que
belecido, desta vez entre o protagonista e os seus inqui- costuma prestar benfeitorias na vizinhança contra a von-
linos que vivem na propriedade em torno do hotel. Esse tade do marido, indigna-se em ver Aydin disposto a fa-
conflito é marcado de forma explosiva aos dez minutos, zer a doação por pura vaidade, enquanto ele se mantém
quando o vidro de uma janela da caminhonete de Ay- cego para os problemas dos moradores de suas próprias
din é atingido por uma pedra arremessada pelo menino terras. O aquecimento da tensão entre Aydin e o inqui-
Ilyas, filho do inquilino Ismail. Esse momento importante lino Ismail instigará Nihal a terminar o relacionamento
da trama, que alguns teóricos de cinedramaturgia deno- com seu marido. É nessa separação do casal de protago-
minam beat, é o evento catalisador que exporá as idios- nistas, e na subsequente tentativa de reaproximação por
sincrasias de Aydin. O ex-ator é insensível aos problemas parte do personagem masculino, que reside a mais forte
dos inquilinos, exigindo que a família do menino, que já semelhança entre as tramas de Climas e Sono de Inverno.
lhe é devedora e vive em situação análoga à escravidão, Porém, os dois roteiros diferem visceralmente na forma
pague um valor alto pelo conserto do vidro da caminho- como contam suas histórias.
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Climas, à exceção da citada longa cena expositiva, an- esqueceu que tem à sua frente um bêbado sujo incapaz de
cora-se com segurança na linguagem imagética. O rotei- apreciar a sua generosidade”. Em cenas como essa faltou
ro denota as motivações e as emoções dos personagens aos roteiristas confiança na capacidade do espectador em
evocando imagens e atos. Já Sono de Inverno, à exceção deduzir a motivação do personagem. Roteiro é uma histó-
de cenas como o citado incidente da caminhonete, faz uso ria contada por meio de diálogos e imagens, mas nem sem-
intenso de diálogos para aprofundar a trama. Os perso- pre é necessário usar ambos ao mesmo tempo.
nagens transparecem seus sentimentos e intenções atra-
vés de diálogos longos e detalhados. Se em Climas cabia
ao espectador preencher as lacunas da trama, em Sono
de Inverno quase nada é deixado à imaginação. Mesmo
quando os personagens executam uma ação marcante,
ela é sublinhada por uma detalhada justificativa verbal.
Numa das últimas cenas, Nihal presenteia Ismail com
uma vultosa quantia para ajudá-lo, e ele a choca ao quei-
mar todo o dinheiro na lareira. Cena que teria um impac-
to ainda maior se o ato de Ismail não fosse antecedido por Sylvio Gonçalves é roteirista de filmes como Sem Controle (2007), S.O.S. Mulheres

um monólogo que inclui frases como “Esse dinheiro não é Ao Mar (2013), Confissões de Adolescente (2013), S.O.S. Mulheres Ao Mar 2 (2015) e

muito? Em que você pensou ao nos trazer esse dinheiro? Eu Fico Loko (2016), entre outros. Autor de livros, como os romances infanto-juvenis

(...) Esta parte deve ser pelo pequeno Ilyas ter arriscado a Três Vinganças (Ed. Atual, 2011), Saci à Solta (Ed. Saraiva, 2008) e Liberdade Virtual

vida para salvar o orgulho ferido do pai.” E, por fim, ime- (Ed. Saraiva, 1999). Foi crítico de cinema da Revista Cinemin (Editora Ebal) e do pro-

diatamente antes de atirar o dinheiro ao fogo: “A senhora grama Revista (Rádio MEC).
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O Cinema de
Nuri Bilge Ceylan —
Em Busca do Ser
Janaína Marques

A maior das obsessões de Nuri Bilge Ceylan é o detalhe.


Ali, na tela, está tudo, de forma precisa e delicada, no lu-
gar que necessita estar: a direção da câmera, a abordagem
narrativa, os elementos cênicos, os atores, o tom, a luz e o
som. Nada do que se vê no quadro é previsível, o tempo e
as escolhas surpreendem, prendem a atenção. A seleção
dos detalhes feita por Ceylan, um artista de 58 anos, en-
genheiro eletrotécnico de formação e um ex-fotógrafo de
publicidade, nascido em Istambul, na Turquia, faz dele um
dos grandes mestres do cinema contemporâneo.
Admirador de Anton Tchekhov, Andrei Tarkovsky, Ya-
sujiro Ozu, Robert Bresson e Michelangelo Antonioni,
Ceylan somente decidiu ser diretor aos 30 anos de idade.
Antes disso, cursou estudos de Engenharia Eletrônica na
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Universidade de Bósforo, na Turquia. Não satisfeito, deci- te sobre as relações humanas, sejam elas entre casais,
diu ir a Londres, onde morou por alguns meses trabalhan- parentes, amigos, desconhecidos ou entre si mesmo. O
do em um restaurante. Motivado por uma paixão pela próprio diretor declarou que sua vida mudou depois de
fotografia, pensou sobre o sentido que queria dar a sua ter visto O Silêncio (Tystnaden, 1963), de Ingmar Berg-
vida. Foi para Índia, Nepal, e ali, em frente ao Himalaia, man, cuja história narra o difícil relacionamento de duas
meditou. Sua grande pergunta era: o que fazer? Voltou a irmãs, Esther e Anna, que viajam para a Suécia, ao lado de
Turquia, estudou cinema na Universidade de Mima Sinav, uma criança, o filho de Anna. No meio da jornada, obriga-
Istambul, e aprendeu a fazer filmes com orçamento do- dos a parar num país estrangeiro, onde se hospedam num
méstico. Durante quatro meses, chegou a ver três filmes hotel quase deserto, defrontam-se com o vazio existen-
diariamente. Viu toda a obra de Ozu, Bresson, Antonioni cial de suas vidas. Dentro deste mesmo caminho, Ceylan
e Tarkovsky. O futuro diretor compreendia, naquele mo- opta em olhar para a humanidade e (sua) natureza, ex-
mento, que o cinema poderia mostrar tudo, mesmo que pondo as doenças da alma.
escondesse alguns segredos. Em um universo similar ao da obra de Anton Tchekhov,
Atualmente, com oito filmes em sua filmografia, Ceylan entrança seus enredos, optando por um viés pessi-
Ceylan nutre uma busca por querer compreender a alma mista e aproveitando o máximo de todas as experiências
humana. Não julga o que aborda, mas imerge em ques- humanas e sociais que abarcam seu pensamento. Assim
tionamentos existenciais para construir um tempo e uma como Tchekhov, o cineasta abraça o cotidiano, constrói
paisagem a serviço de algo universal: o que nós fazemos personagens comuns, sem sugerir soluções para os pro-
aqui e por que fazemos o que está sendo feito? Culto e blemas difíceis da vida. Na mesma via do escritor russo,
persistente, Ceylan costura atmosferas que falam sobre Ceylan demonstra que a vida continua ao final de seus fil-
o ato humano de saber, ou não, conviver, tece um deba- mes e que a realidade é inesgotável. A Pequena Cidade, o
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primeiro longa-metragem, é dedicado a Tchekhov, assim Como Antonioni, Ceylan fala dos vazios existenciais,
como Era uma Vez na Anatólia e Sono de Inverno surgem da incomunicabilidade. Como Ozu, ele observa as lu-
de adaptações de obras do escritor russo. tas básicas que qualquer pessoa enfrenta na vida. Como
A opção ao pessimismo é compreensível. Para o cine- Tarkovsky, Ceylan entende que fazer cinema é a arte
asta, o sistema ou o esquema de vida — que os próprios ho- de tratar o tempo. Mas longe disso serem reproduções.
mens criaram — parece nocivo, contamina as pessoas que Ceylan reformula e avança com todos os conceitos, fa-
respiram desse ar corrosivo, e daí surgem reflexões sobre zendo surgir um cinema ímpar, íntimo e autoral. Muito do
lutas de classes, das relações de poder, da solidão, do des- que conta na tela é fruto de suas vivências e suas inquieta-
gaste social e existencial. Ceylan compõe para o cinema o ções, que orbitam ao redor de suas lembranças.“Faço fil-
choque natural entre o bem e o mal, entre a vaidade e o or- mes para mostrar a dor das coisas negativas. Não tenho
gulho, a solidão e o isolamento, a intelectualidade e a reli- nenhuma urgência em mostrar a felicidade que sentimos.
gião, a humilhação e a ira. “Há tanta esperança nos meus Uma pessoa filma para liberar a melancolia ou a depres-
personagens como na vida. Alguns diretores gostam de são”, analisa. Para um cinéfilo ou um realizador, essas pa-
dar um tom otimista no final de seus filmes. Isso não ocorre lavras servem como um motor de estímulos.
comigo. Sou bastante realista e, às vezes, temos que saber É isso o que o eu sinto, quando me lembro do primei-
ser pessimista”, pondera. O diretor, que também é fotó- ro encontro com seus filmes. Comecei a estudar cinema
grafo, ou vice-versa, ainda monta, atua e escreve suas his- em 2006, quando fui fazer o curso de direção na Escuela
tórias, é um mestre em olhar para os erros, para a inércia e Internacional de Cine y TV de San Antonio de Los Baños,
para a falta de reação humana. Seus personagens, por ve- em Cuba, de 2006 a 2009. Foi naquele país que pude ver
zes, seguem as mesmas ações sem ter a noção do que fa- Climas, um filme que causa um deslumbramento pela at-
zem. Perdem-se e, provavelmente, nunca se acharão. mosfera criada para expressar a crise e o desabamento de
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uma relação conjugal. Trata-se de uma obra minimalista, de, pois um outro veículo com o farol aceso passa pela es-
carregada de silêncios e sentimento. Seus personagens trada e encontra a vítima caída na estrada. Escutamos a
amparados no desassossego, contemplam passivamen- conversa do motorista que está surpreso e fala para a sua
te as transformações climáticas e emocionais do fim de acompanhante que vai descer, porque o corpo parece que
um sonho construído juntos: o de estar com o outro. Tudo ainda tem vida. É quando uma mulher responde que ele
isso é mostrado em planos fixos e longos, silenciosos, não deve fazer isso e que anote o número da placa do car-
sem interferência musical. O tempo passa entre a realida- ro que está parado. O veículo segue o percurso. É quan-
de e o inconsciente, como na cena da praia, revelando o do Servet entra em seu carro. Está nervoso e chora. Tudo
lado interior e exterior da paisagem geográfica e humana. segue escuro. A pouca luz é suficiente apenas para obser-
Em Climas pude ser tocada por um cinema que pede um varmos Servet, que limpa a direção como se quisesse es-
tempo próprio e que confunde o ritmo da vida. Mal sabia conder suas digitais. Começa a chover. Servet liga o carro
eu que, diante de mim, somente estava um dos filmes de e vai embora. A câmera permanece na escuridão e com
Ceylan. Muito ainda estava por vir. a vítima. Escutamos a chuva. Vemos um corpo deitado
Ainda em Cuba, vi 3 Macacos durante o Festival Inter- na estrada, atropelado. O tempo está presente conosco,
nacional del Nuevo Cine Latinoamericano de La Habana, espectadores. A chuva cai. A tela fica escura. Aparece o
em 2008. A trama começa mostrando um homem, cha- título e os créditos em meio ao som de relâmpagos e o ba-
mado Servet, bastante cansado e sonolento, que dirige rulho da chuva. Junto ao som, nós, espectadores, segui-
um carro tarde da noite por uma estrada deserta, cheia mos com a vítima, com a sensação de estarmos sozinhos,
de curvas e mal iluminada. Ele acaba atropelando uma ali, deitado, molhado, atropelado, na escuridão. Até que
pessoa. Isso é indicado pelo som, mas não pela ação. Há se escuta um telefone. Os créditos acabam. Vemos um
uma pequena elipse. Servet está fora do carro e se escon- homem atender o telefone. E a narrativa prossegue.
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A potência do filme está nesta junção do que é esco- tona dentro da família do motorista particular, que agora
lhido para ser mostrado e do que se ouve. Há muita infor- está preso. Aqui, Ceylan demonstra um aprimoramento
mação fora de quadro ou em elipses. Eis um talento de máximo na sua capacidade de construir uma dramaturgia
Ceylan: escolher o que se mostra e o que se oculta. E nisso, bem amarrada, sabendo mostrar e detalhar apenas o es-
a consequência maior é trazer o espectador para dentro da sencial. Utiliza todos os elementos certos e precisos para
história, fazendo com que ele não apenas veja o que está contar algo profundo, mas simples.
ocorrendo, mas participe constantemente da evolução da E, assim, em uma escola de cinema, vendo tantos fil-
trama imaginando e preenchendo as lacunas que não são mes e tendo aulas diárias, eu ia construindo uma linha
evidenciadas. As escolhas do diretor também geram outra de pensamento, optando por um caminho determinado.
proeza: a ampliação de leituras dadas a obra. É possível Dois dos meus curtas-metragens tiveram influência do ci-
identificar uma história, mas sem didatismo ou sem o in- nema realizado por Ceylan. Um deles foi um filme realiza-
teresse de entregar todas as informações. Passam a existir do em Cuba, em 2009, chamado Los Minutos, Las Horas,
pontos de vista similares em relação ao que se vê na tela, que estreou na Cinefondation do Festival de Cannes, em
mas jamais haverá um ponto de vista único. 2010. O filme conta a história de Yoli, uma mulher de qua-
Em 3 Macacos, a trama se desenrola a partir da de- se 30 anos, que sempre morou com sua mãe em um bairro
cisão de Servet — um aspirante a político, candidato às humilde de Havana. Até que um dia, um rapaz lhe convi-
eleições locais na Turquia — que, com receio de arruinar da a sair e Yoli decide esperá-lo, tentando mudar sua roti-
sua carreira política por causa do atropelamento na estra- na, mesmo que seja por um pequeno instante. Mas acaba
da, propõe a seu motorista particular, Eyüp, que assuma o vivendo um sentimento de frustração. Los Minutos, Las
crime em troca de uma boa quantidade de dinheiro. Eyüp Horas é uma história que parte de alguns fragmentos de
aceita. E um emaranhado de mentiras começam a vir à vida vistos ou vividos por mim. Assim como Ceylan, arris-
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quei-me em fazer com que um drama pessoal pudesse ser as e suas diferenças, e sempre introduzir um conflito forte,
convertido em razões para falar sobre as relações huma- pulsante, algo muito presente na dramaturgia clássica,
nas. A solidão, a monotonia da vida cotidiana, é algo que sob a influência de Tchekhov, William Shakespeare ou Fi-
todos nós sentimos. E foi observando a maneira como o ódor Dostoiévski. Ceylan constrói um espaço que aparen-
cineasta trata as crises íntimas e sociais que pude me en- temente enfermiza. Seus personagens estão doentes de
corajar a abordar algo mais pessoal. solidão, melancolia, rancor, tédio e raiva. É algo que cor-
O curta recebeu mais de 30 prêmios internacionais, rompe toda uma sociedade, um país e o próprio mundo.
viajou para mais de 70 países e foi muito bem recebido em Não deseja justificar nada disso, mas, sim, fazer o espec-
todas as cidades por onde foi exibido. Penso que o êxito tador sentir algo e refletir sobre o que vê.
do curta se deve a busca por querer mostrar o essencial e Com o passar dos anos, saí de Cuba e fui morar em Ma-
ocultar o que não deve ser julgado. Planejei muito, junto dri, na Espanha. Lá, eu ia tendo mais acesso a todos os ou-
da minha equipe, antes de filmar. Desenhei, esbocei, bus- tros filmes do diretor: A Pequena Cidade, Nuvens de Maio,
quei referências em pinturas, imaginei o ritmo dos planos, Distante, Era uma Vez na Anatólia e Sono de Inverno. Desde
dos cortes. Tudo foi muito estudado, partindo sempre da A Pequena Cidade, seu primeiro longa, Ceylan já abordava as
ideia do que eu queria contar e qual seria a forma de olhar relações entre os membros de uma família em uma pequena
para o sentimento dado àquela obra. cidade, as dificuldades de adaptação de uma criança ao am-
Não nego que há alguns diretores que me influenciam biente social da escola, o embate do universo infantil com o
tanto ou mais do que Ceylan. Mas sua obra contém mui- adulto e as primeiras impressões da relação humana com a
tos pontos demarcados que me prendem o foco. A vonta- natureza. Em Nuvens de Maio, o protagonista é um cineasta
de de falar do ser humano em meio ao mundo que se vive que rompe a tranquilidade de uma pequena cidade, a fim de
é uma delas. Falar sobre a convivência com outras pesso- fazer um filme no local onde passou a sua infância.
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Em seus dois primeiros filmes, Ceylan parece tatear é um filme realizado em meio a crise espanhola, filmado
e experimentar alguns caminhos para chegar mais lon- em 2012, que aborda o despejo de uma mãe e uma filha,
ge. Filma em primeiríssimos planos, há planos mais cur- pertencente a classe média alta da capital espanhola. É
tos, uma montagem mais ágil, algo que não se repete em um filme bastante silencioso, que não se preocupa em
seus últimos filmes. E parece ensaiar o elo certeiro entre mostrar tudo, nem busca corrigir o foco, quando os per-
a dramaturgia e a linguagem cinematográfica. Em seu sonagens se perdem do ponto focal. Não faz uso do plano
filme Distante, passa a debater sobre a falta de sentido e contraplano, e cede lugar ao “enquadramento vazio”,
da vida, conseguindo com que uma pequena história ga- ou planos de espaços sem nenhum personagem. Todos
nhasse a complexidade radicada na simplicidade, assim os objetos inseridos neste plano “vazio”, como uma ca-
como acontece com os filmes de Abbas Kiarostami, que deira ou uma cortina, são imagens puras do tempo, dirá
também chegou a ser meu professor na Espanha. Pen- o teórico Gilles Deleuze, “cada uma é o tempo, cada vez,
so que, a partir de Distante, Ceylan consegue mostrar um sob estas ou aquelas condições do que muda no tempo. O
amadurecimento pontual. Sua mise en scène é carregada tempo é pleno, quer dizer, a forma inalterável preenchida
de austeridade. Há uma escassez de diálogos em meio a pela mudança”. Já para Antonioni, mostrar um lugar va-
junção de imagens e sons capazes de expressar o que não zio pode referir-se a um “horizonte dos acontecimentos”.
pode ser dito, entre a convivência de dois primos. É com “Um mesmo horizonte que liga o cósmico e o cotidiano, o
Distante que o diretor se consolida como um artesão da durável e o mutante, um só e ao mesmo tempo como for-
linguagem cinematográfica. ma imutável daquilo que muda”, afirma o italiano.
Foi em meio a absorção da filmografia de Yasujiro Ozu, Portanto, ver a obra completa de Ozu, Antonioni e che-
cuja obra é um exponente referencial nas obras de Ceylan, gar até Ceylan representa para mim não somente compre-
que também realizei outro curta-metragem. Madrid (2014) ender a evolução da linguagem do cinema, mas analisar
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novas formas possíveis de experimentar emoções, iden-


tificando uma (re)construção da forma como se esculpe
o tempo da vida, as sensações cotidianas, pelas mãos e
olhos de um diretor que valoriza a importância da dura-
ção do plano, dos tempos mortos, da composição de um
enquadramento, do desenho da luz, da decisão da textu-
ra, além da definição de rostos e expressões humanas. Os
filmes de Ceylan surpreendem pela riqueza e complexida-
de dos temas, da forma como se conta e da técnica, so-
bretudo, porque seus relatos carregam a verdade daquilo
que é íntimo e pessoal em um autor, que cada vez mais
ganha o status de um grande mestre.

Janaína Marques é diretora, roteirista e professora de cinema. Trabalhou na realização de cerca de 25 filmes durante sua estadia em Espanha, Cuba e Brasil. Como dire-

tora e roteirista, realizou onze curtas-metragens, entre eles Los Minutos, Las Horas (2009, Cuba), que estreou na Cinefondation no Festival de Cannes, e Madrid (2014), exi-

bido em festivais internacionais e em mais de 60 cidades do mundo, através do Instituto Cervantes.


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Agradecimentos

Agradecimento especial
Nuri Bilge Ceylan

Agradecimentos
Aaron Cutler
Asli Daldal
Breno Lira Gomes
Cecilia Fernandes Ferreira
Claudia Lima Fernandes
Claudio A. Silva
Cuneyt Cebenoyan
Família Costantini
Fernando José Cruz
Filipe Furtado
Gabriela Lomba
Geoff Andrew
Gislene Moura
Lucia Teixeira
Mariana Shellard
Sina Saral
Thaisa Zanardi Canova
Vinicius Brum
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Créditos

Curadoria Julio Costantini


Produção Executiva Fernanda Teixeira & Yves Moura
Coordenação Geral Fernanda Teixeira
Coordenação Editorial Leonardo Luiz Ferreira
Design Gráfico Guilherme Lopes Moura
Assessoria de Imprensa Waleria de Carvalho
Comunicação e Marketing Seven Star
Vinheta Fernanda Teixeira
Site e Mídias Sociais Mia Estúdio Criativo
Produção Buendía Filmes

CAIXA Cultural RJ
Cinema 2 | 7 a 12 de março de 2017
Av. Almirante Barroso, 25, Centro | Tel.: (21) 3980.3815 www.caixacultural.gov.br
Alvará de Funcionamento da CAIXA Cultural RJ: nº 041667, Baixe o aplicativo CAIXA Cultural
de 31/03/2009, sem vencimento. facebook.com/CaixaCulturalRioDeJaneiro
O Cinema de Nuri Bilge Ceylan
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Este catálogo foi composto com as famílias tipográficas DINPro e Corbel,


impresso em papel Couché Matte 150g/m2 (miolo) e papel supremo 300g/m2
(capa). Foi impresso na Gráfica Stamppa com tiragem de 400 exemplares.
produção patrocínio

ISBN 978-85-65564-14-4
venda proibida

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