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Análise do Terceiro Movimento da Sonatina Nº 8 de Camargo

Guarnieri
Maria Amélia Benincá de Farias

Resumo: O presente trabalho foi realizado com o apoio da Pró-Reitoria de Pesquisa – UFRGS –
Brasil. Neste texto, levantarei características do idiomático de Camargo Guarnieri presentes no
terceiro movimento da Sonatina nº 8, última obra deste gênero composta pelo compositor. Para
realizar esta análise, cinco categorias de elementos foram elencadas: forma, polifonia, processos
harmônicos, aspecto nacional e caráter expressivo. Em cada categoria, encontraram-se
características adquiridas e desenvolvidas pelo compositor no decorrer da sua vida, além de
outras presentes desde suas primeiras obras. Após a análise do terceiro movimento da Sonatina
nº 8 e reflexões acerca desta, constatou-se que esta obra traduz o idiomático de Camargo
Guarnieri, constituindo-se numa boa fonte de estudo para compreender o estilo desenvolvido
pelo compositor. A produção de Guarnieri traz características do neoclassicismo e nacionalismo
e mescla elementos da música popular e processos da música erudita. Compreender como esta
junção de universos distintos se dá no terceiro movimento da Sonatina nº 8 é crucial para o
intérprete alcançar o caráter dengoso, indicado por Guarnieri para este movimento.

Palavras Chaves: Camargo Guarnieri, análise musical.

Apresentação

Tradicionalmente, intérpretes seguem sua intuição para alicerçar suas decisões


interpretativas. Buscando fundamentos mais sólidos para construção de minha
performance, chamou-me a atenção a escassez de trabalhos na língua portuguesa sobre
as últimas sonatinas do compositor paulista M. Camargo Guarnieri (1907,Tietê – 1993,
São Paulo). Sobre a Sonata e as sonatinas, Osvaldo Lacerda (1927, São Paulo – 2011,
São Paulo) ponderou que “Sonatina” refere-se apena ao tamanho das obras, “uma vez
que a força expressiva, a originalidade e a técnica da composição das sonatinas são as
mesmas da Sonata.” (LACERDA, 1985). Guarnieri acreditava que este grupo de peças
(Sonatinas e Sonata) demonstrava sua evolução musical (VERHAALEN, 2001, p. 149).
Neste quadro, a Sonatina nº 8, composta em 1982, assume especial importância, uma
vez que é a última obra de um gênero iniciado em 1928, ano da primeira Sonatina que

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tanto encantou Mário de Andrade (VERHAALEN, 2001). A Sonatina nº 8 sintetiza 54
anos de amadurecimento e as suas características são resultado das transformações de
uma vida dedicada à música brasileira.
Após o estudo e performance da obra e do levantamento prévio do material
teórico sobre o compositor, a categorização de estudo propostas por Grossi (2004)
pareceu- me a mais adequada para a realização desta análise. Cinco categorias de
elementos recorrentes e gerais foram levadas em conta na obra do compositor: forma,
polifonia, processos harmônicos, aspecto nacional e caráter expressivo.

Análise

Composta em 1982 e dedicada para a pianista Cynthia Priolli, que também


realizou a estréia em 1983 no Anfiteatro da USP, a Sonatina nº 8 organiza-se em três
movimentos: Repinicado, Profundamente Íntimo e Dengoso. Cabe sublinhar o hábito de
Guarnieri de indicar o caráter de suas obras em português ao invés de italiano, pois esta
característica, que se faz presente desde sua 1ª Sonatina, causou grande impressão em
Mário de Andrade (VERHAALEN, 2001, p. 23).
Verhaalen (2001) ressalta como as linhas melódicas “levam a um ponto
culminante e retrocedem através de tratamento sequencial” (p. 178) e aponta para o
campo harmônico apoiado em estruturas quartais e atonais. Elejo o terceiro movimento
para uma discussão mais aprofundada.
Escrito em compasso binário (2/2) e totalizando 58 compassos 1 , o terceiro
movimento da Sonatina nº 8 estrutura-se num esquema ABA (A: c. 1-16, B: c. 17-34,
A: c. 34-50, coda: c. 51-58) no qual B representa um desenvolvimento dos materiais
expostos nas seções A. Verhaalen (2001) descreve a regularidade com que Guarnieri
usou esta estrutura musical, num processo que confere unidade e naturalidade às peças.
Este tratamento formal resulta em um número elevado de composições monotemáticas.
No terceiro movimento da Sonatina nº 8, um motivo germinal, apresentado no primeiro
compasso da obra é desenvolvido e transformado até o final da primeira exposição da
seção A, quando será transfigurado em um novo motivo que germinará a seção B
(figura 1).

Figura 1: Motivo germinal apresentado no compasso 1. * Motivo germinal


transformado no compasso 3. * Motivo germinal transfigurado em um novo
motivo na seção B, nos compassos 18 e 19.

Os processos empregados por Guarnieri demonstram a maestria e economia de


materiais. A criatividade surge das limitações auto-impostas, uma prática comum entre

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Na partitura editada (1988), o 55º compasso apresenta quatro tempos de mínima, ao invés de dois tempos, referente
ao compasso binário, apontando para a ausência de uma barra de compasso. Assim, o 55º compasso deve ser
entendido como dois compassos (55º e 56º compasso), totalizando a obra 58 compassos.

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os compositores neoclássicos 2 no século XX. Guarnieri consegue assim, ser consistente
na sua economia de materiais, sem deixar de construir seções contrastantes (Holanda e
Gerling, 2003) 3 .
Outro elemento característico da obra de Guarnieri presente no terceiro
movimento da Sonatina nº 8 é o tratamento contrapontístico, de múltiplas vozes.
Verhaalen (2001) destaca como as linhas melódicas do movimento deslocam-se
“constantemente, brincalhonas, com seu próprio senso de direção” (p. 178), além de
ressaltar o alto nível técnico exigido para esta obra, uma vez que o pianista deve
“internalizar as figurações rítmicas e entender a complexa trama contrapontística, tão
diferente nas duas mãos” (idem). O tratamento contrapontístico diversifica-se em cada
uma das seções do movimento. Na seção que inicia e finaliza a obra, duas linhas
melódicas independentes desenham contornos distintos e igualmente atraentes.
Organizar os planos sonoros num contraponto em que duas linhas melódicas elaboradas
desenvolvem-se simultaneamente é um trabalho desafiador para o intérprete. Porém, o
pianista conta com a ajuda do compositor, pois a recapitulação idêntica permite que o
intérprete ressalte planos e contornos diferentes na repetição e promova uma apreciação
plena do contraponto. Já na seção intermed iária, ainda que a melodia seja claramente
destacada, a textura polifônica é mantida, conferindo unidade à obra (figura 2).

Figura 2: Contraponto da seção A, compassos 1-4. * Contraponto da seção B,


compassos 18-21.

Nesta obra, assim como em um grande número de obras de Guarnieri, o campo


harmônico resulta da coincidência de linhas melódicas. Ainda que para Verhaalen, a
“escrita contrapontística não insinua qualquer tonalidade definida” (2001, p. 181), a
peça transmite uma “certa sensação de tonalidade” (BENCKE, 2010, pg. 176). O campo
harmônico formado por linhas horizontais aproxima-se de sonoridades centradas em

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Stravinsky representa outro exemplo de auto-limitação, quando descreve na sua “Poética musical em 6 lições” que
“...a música ganha força na medida que não sucumbe às tentações da variedade”, impondo a si mesmo a produção de
uma música que prime pela unidade antes da variedade. (1996, pg. 38).
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A Fuga (terceiro movimento) da Sonatina nº 3 de Camargo Guarnieri também é uma demonstração da sua
consistente e criativa economia de materiais. O gesto que inicia o tema e abre o movimento é desenvolvido desde o
primeiro movimento da Sonatina, iniciando como elemento integrante do trabalho motívico, até tornar-se o elemento
mais marcante da coda, para, no terceiro movimento, tornar-se o gesto inicial do tema da fuga (GERLING, 2004, p.
106).

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Mib. No início da seção B, o intervalo de Réb com Mib remete ao acorde de Mib com
sétima e soa como uma sonoridade centralizadora (c. 17), assim como na coda (c. 51-
58), o movimento Sib – Mib soa análogo ao movimento de dominante e tônica
(BENCKE, 2010). O cromatismo, que sempre esteve presente na obra do compositor
(WOLF, p. 487), é a base da condução melódica, um fenômeno que se manifesta desde
os primeiros compassos.

Figura 3: Diversos gestos cromáticos, compassos 1-3. No pentagrama superior, um


movimento cromático partido em duas vozes: mib, mi, fá, solb nas notas agudas e
dó, dób, sib e lá nas notas graves.

O aspecto nacional do movimento, na minha escuta, se traduz na sonoridade do


chorinho, isto é, nos contornos rítmico- melódicos típicos deste gênero. Osvaldo Lacerda
corrobora esta característica: “O 3º [movimento], Dengoso, lembra novamente alguns
processos de choro” (1985). Bencke (2010) elenca outras semelhanças com este gênero,
tais como a condução dos baixos em graus conjuntos, acordes arpejados e motivos
cromáticos (p. 178). Os processos melódicos também se aproximam da descrição de
Mário de Andrade para quem a melodia da música brasileira tende a ser descendente
(1972, p. 47). Esta constância encontra-se bem enraizada no terceiro movimento da
Sonatina. Embora as linhas melódicas mantenham um movimento constante de subida e
descida, em especial na seção A, o motivo germinal consta de um salto ascendente
compensando por um movimento melódico descendente. O salto em movimento
contrário à melodia descendente ressalta ainda mais este direcionamento para os
registros médio e grave do instrumento. Ao desenvolver o motivo germinal ampliando
gradualmente o salto que precede o movimento descendente para intervalos de sétima,
Guarnieri também está em consonância com a afirmação de Mário de Andrade de que as
melodias brasileiras também são “torturadíssimas”, isto é, são afeitas de “saltos
melódicos audaciosos” (1972, p. 45) (figura 4).

Figura 4: Motivo germinal com salto de trítono (sib-fáb) no compasso 1. * Salto do


motivo germinal expandido para sétima diminuta (lá-solb) no compasso 6 e sétima
maior (solb-fá) no compasso 7.

Mantendo a consistência formal e motívica que lhe era tão cara, Guarnieri faz
das subidas e descidas tão características do chorinho a razão de ser da seção

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intermediária. A extensa linha melódica descendente percorre seu curso at ravés de
gestos menores e pontilhados de segundas melódicas descendentes. Este movimento
contínuo parece formar os degraus de uma escada (figura 5). A melodia ascende no
gesto final (c. 23).

Figura 5: Segundas descendentes (réb-dób. sib-lá, láb-sol, solb-fáb) construindo a


ampla melodia da seção B, compassos 18-21.

Uma figura sincopada assume especial importância na seção intermediária.


Aparecendo apenas nesta seção, a figura caracteriza-a e delimita-a, inicia e pontua cada
frase. A síncope é um ritmo presente na música popular brasileira e seu uso é um dos
reflexos da inclinação de Guarnieri pelos pressupostos nacionalistas. (Holanda e
Gerling, 2003, p. 531), Andrade (1972) ressalta que o uso da síncope não deve ser
exagerado pelos compositores, pois “se banalizam com facilidade pela própria
circunstância de serem características por demais” (1972, p. 38, grifado no original).
Guarnieri segue bem esta orientação ao utilizar-se da síncope de forma sucinta e
funcional (figura 6).

Figura 6: Motivo síncopado (semínima pontuada, semínima, semínima), iniciando


a seção B, compasso 17. O ponto ao lado da segunda semínima é um erro de edição,
como pode ser constado pela distribuição das colcheias.

Para construir o caráter expressivo do movimento, o timbre do piano agrega-se


aos elementos anteriormente descritos. A capacidade do compositor de improvisar com
habilidade ao piano acrescida da sua desenvoltura técnica permitiram que ele explorasse
amplamente os recursos timbrísticos do instrumento. No terceiro movimento da
Sonatina, a sonoridade mais leve da seção A é obtida através da forma orgânica com
que as linhas melódicas se direcionam para os registros médio e agudo do instrumento.
Na seção intermediária, a melodia principal, exposta no registro agudo (c. 17-25),
assume ares escuros e galanteadores ao ser ouvida num registro mais grave (c. 26-33).
No gesto final (c. 58), o compositor também realiza a manutenção do timbre para
encerrar a obra de forma enfática, quase que violenta, com uma décima e uma oitava em
fortíssimo na região mais grave do piano. Nada mais pode ser dito depois deste gesto

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final (figura7).

Figura 7: Melodia da seção B cantada e m uma região mais grave, compassos 26-27.
* Gesto final da peça (dó-mib-mib), com fortíssimo súbito na região grave do
piano, compassos 57-58.

Conclusão

A Sonatina n°8 constitui-se numa boa fonte para a compreensão do idiomático


de Camargo Guarnieri. O terceiro movimento representa as características assumidas e
desenvolvidas pelo compositor no decorrer da sua vida dedicada à música brasileira, ao
nacionalismo e ao neoclassicismo. A peça demonstra o alto grau de assimilação de
elementos da música popular e folclórica mescladas com processos estritos e formais da
música erudita. Para alcançar a expressão do caráter dengoso, cabe ao intérprete
absorver e compreender esta transposição de universos e interpretar esta obra erudita
com todo o gingado de malandro e toda a melancolia do chorinho.

Referências

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