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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA


DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA (PPGHIS)
MESTRADO EM REGIONAL E LOCAL

LUCAS SANTOS AGUIAR

QUANDO AS REGRAS SÃO TRANSGREDIDAS:


TRABALHADORES, OUTROS SUJEITOS E A “LEGALIDADE URBANA” DA CIDADE DE NAZARETH
(1890-1920)

SANTO ANTONIO DE JESUS


2014
1

LUCAS SANTOS AGUIAR

QUANDO AS REGRAS SÃO TRANSGREDIDAS:


TRABALHADORES, OUTROS SUJEITOS E A “LEGALIDADE URBANA” DA CIDADE DE NAZARETH
(1890-1920)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação Strictu Sensu – Mestrado em História
Regional e Local - do Departamento de Ciências
Humanas da Universidade do Estado da Bahia
(UNEB), Campus V, como requisito final para
obtenção do título de Mestre em História.
Área de Concentração: História Regional.
Orientador: Prof. Dr. Wellington Castellucci
Júnior.

SANTO ANTONIO DE JESUS


2014
2

LUCAS SANTOS AGUIAR

QUANDO AS REGRAS SÃO TRANSGREDIDAS:


TRABALHADORES, OUTROS SUJEITOS E A “LEGALIDADE URBANA” DA CIDADE DE NAZARETH
(1890-1920)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação Strictu Sensu – Mestrado em História
Regional e Local - do Departamento de Ciências
Humanas da Universidade do Estado da Bahia
(UNEB), Campus V, como requisito final para
obtenção do título de Mestre em História.
Área de Concentração: História Regional.
Santo Antonio de Jesus, _____/______/_______.

Banca Examinadora:

_________________________________________
Prof. Dr. Wellington Castellucci Júnior (Orientador)
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB

_________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima Novaes Pires (Examinadora)
Universidade Federal da Bahia - UFBA

_________________________________________
Prof.ª Dr.ª Edinélia Maria Oliveira Souza (Examinadora)
Universidade do Estado da Bahia - UNEB

SANTO ANTONIO DE JESUS


2014
3

À minha mãe, Valdelice, que, transgredindo diversas regras,


sobretudo às econômicas, superou-as e se dedicou integralmente
à minha educação e formação humana.
À cidade de Nazareth, seus espaços e inúmeros sujeitos
históricos que protagonizaram as lutas miúdas recuperadas nesse
singelo trabalho.
4

AGRADECIMENTOS

“Enquanto o tempo acelera e pede pressa,


eu me recuso, faço hora, vou na valsa...” ♪♫ ♪

Parece que foi ontem, o tempo se acelerou e os prazos se apertaram. Eis que se
passaram dois anos de intensas atividades. Dias e noites quase sempre sem horas suficientes
para terminar etapas. Um tempo diferente, cheio de tensões e desequilíbrios. Foi
pacientemente fingindo não ter medo, enfrentando, resistente e obstinadamente os desafios
dos últimos sete anos da vida acadêmica, pessoal e profissional que acredito tê-los superado.
Contudo, estamos falando de uma batalha cotidiana que não foi enfrentada sozinho. Afinal,
não conseguiria. Até para eu ingressar no curso de História em 2007, “concluí-lo” em 2011,
pleitear e ingressar no mestrado em 2012 e neste momento finalizar mais uma etapa de
desenvolvimento intelectual, muitas pessoas planejaram junto comigo e são responsáveis pelo
encerramento deste ciclo para abertura outros caminhos. Eu nem tinha tantos planos, mas
passei a construí-los juntos, porque sempre tive pessoas em quem me inspirar, incentivar e
apoiar. Portanto, são a estas pessoas a quem devo agradecer. Sou muito grato a todos e todas!
Primeiramente, agradeço a toda minha família que mesmo com o inesgotável desejo
que eu fosse um “doutor” médico, advogado ou engenheiro, vibra em cada conquista
alcançada. Minha mãe, Valdelice, e minhas tias, Veracy, Valdirene e Vilmária, agradeço por
cada gesto de apoio em minhas decisões.
Agradeço profundamente ao digníssimo orientador Prof.º Dr. Wellington Castellucci
Júnior, a quem tenho sincera admiração, não só pela dedicação no auxílio necessário à
concretização deste trabalho com suas “sugestões, não conclusivas e menos ainda
impositivas”, mas pela relação de confiança e amizade que estabelecemos neste período.
Sou imensamente grato à estimada banca examinadora deste trabalho, composta pelas
Professoras Dr.ª Maria de Fátima Pires e Dr.ª Edinélia Maria Souza. A atenta, criteriosa e
crítica leitura que fizeram, com elogios e sugestões me estimularam a seguir em frente.
Devo agradecer aos professores e professoras do curso de Licenciatura em História do
campus V, especialmente ao Prof. Dr. Edinaldo Oliveira, exímio orientador na graduação, e
ao Prof.º Dr. Francisco Nunes, fiel incentivador da minha pretensa “carreira”, reais e grandes
responsáveis pelo passo que dei em 2012 quando ingressei no mestrado.
As minhas amigas professoras, historiadoras e irmãs acadêmicas de muitas lutas e
sonhos, Aleí Lima, Ynessa do Vale e Daniela Lumi. Aos amigos da turma de 2007 do curso
5

de Licenciatura em História da UNEB, obrigado por ter vibrado comigo em diversos


momentos.
A Vinícius Souza devo agradecer, carinhosa e especialmente, por ter feito de tudo para
facilitar a escrita deste trabalho, harmonizando o ambiente e me motivando confiantemente.
Aos amigos e amigas que nem sempre entendiam quando eu recusava convites ou não
aparecia nos eventos, quando interrompia as conversas no facebook, não atendia ao telefone e
sumia por dias. Mylena Costa, Izabel da Cruz, Verena Vilela, Talita Souza e Rafael Luiz, o
esforço, salvo às transgressões como nas Jornadas de Junho foi por conta disso aqui.
Aos amigos de “longe”, José Pacheco Junior e Saulo Nascimento, agradeço pela
capacidade de suavizar os momentos conflituosos decorrentes da vida acadêmica e cotidiana.
À CAPES pela concessão da bolsa de estudos durante os dois anos de curso.
A UNEB e ao PPGHIS por abrigar meu projeto e aos professores que tive contato por
ter contribuído no desenvolvimento da pesquisa com novas ideias, discussões,
questionamentos e, sobretudo pelo incentivo. Destaco meus agradecimentos ao Prof.º Dr.
Raimundo Nonato Moreira, Prof.º Dr. Raphael Rodrigues, Prof.ª Dr.ª Graça Leal e a Prof.ª
Dr.ª Carmélia Miranda. Agradeço, igualmente, à Prof.ª Dr.ª Cristina Luna, que muito gentil e
prestativamente me acolheu e orientou durante o tirocínio docente.
A todos e todas colegas do PPGHIS que, discutindo ideias e sugerindo fontes,
colaboraram para o desenvolvimento e conclusão deste trabalho. Sou grato a Cassiano
Nascimento, Fernanda Lima, Mácio Andrade, Ana Paula Carvalho, Uerisleda Moreira, Yves
Samara, Francemberg Teixeira, Tharles Silva, Dilma Filgueiras, Eva Anjos, Giovanna Nunes
e, especialmente, a Ivanice Ortiz, companheira de diversos momentos “emblemáticos”.
Agradeço a prestatividade do colega Marcelo Silva que, entendendo minha
dificuldade, localizou e digitalizou algumas fontes no APEB quando mais precisei.
Aos funcionários do Arquivo Público Municipal de Nazaré e da Secretaria de Cultura,
Sônia Brito, Sandro e Márcia Dória por terem facilitado meu acesso às fontes, a ponto de me
tornar uma espécie de catálogo extraoficial dos documentos ali existentes.
Aos companheiros e companheiras do PSOL e da Ação Popular Socialista, agradeço
pela compreensão nas minhas ausências, mas, sobretudo por encampar à luta cotidiana de
reparação das mazelas sociais e históricas vivenciadas pelo nosso povo. Essa é nossa luta!
Aos meus alunos do Colégio Estadual Prof.º Rocha Pita por darem significado ao meu
ofício e aos incentivos e prestatividade dos colegas Professores Vilma, Tone e Camile.
Finalmente e imprescindivelmente, agradeço a Deus por ter me feito forte, teimoso e
sonhador. “Muito obrigado, axé!”
6

As relações históricas são construídas por homens e mulheres


num movimento constante, tecidas através de lutas, conflitos e
acomodações, cheias de ambiguidades...
Silvia Hunold Lara (1995, p. 46)

Gostaria de argumentar, em forma de polêmica, que a história


serve, em última instância, para complicar a vida, ou seja, ao
explorar sistematicamente o 'estranhamento' inicial, o
historiador cria condições para a percepção do real como
construção, como 'invenção' de seres humanos concretos em
processo de interação e luta entre si.
Sidney Chalhoub (2001, p. 347)
7

RESUMO E ABSTRACT

RESUMO: Este trabalho faz um aprofundado estudo acerca das transgressões às normas
disciplinares instituídas, especialmente, pelo Código de Posturas de 1893, e medidas análogas
entre 1890 e 1920 na cidade de Nazareth. No contexto em que estavam em voga os ideais de
“civilização”, “modernidade” e “progresso”, propagados pelas autoridades públicas adesistas
aos princípios que regeram a República brasileira, o intuito é o de analisar os motivos e as
formas pelas quais os sujeitos sociais locais, especialmente os trabalhadores que atuavam no
pequeno comércio e nos serviços corriqueiros da urbe, encontraram para, aos seus modos,
resistir, transgredir e contestar à legalidade urbana imposta pela administração municipal.
Trata-se, portanto, de um estudo sobre a histórica cidade de Nazareth em fins do século XIX e
início do XX, quando esta ainda ocupava uma posição de destaque em virtude da sua ativa
economia, servindo de entreposto comercial da rota fluvial-marítima que ligava o Recôncavo
Sul a Salvador. Busca-se problematizar questões para compreender a relação tripartite
envolvendo as autoridades, legislação municipal e sociedade local, num contexto de crescente
intervenção e regulamentação das vivências urbanas, das novas formas de controle social
empreendidas no pós-abolição e de exclusão dos indesejáveis no momento recém-
republicano.

PALAVRAS-CHAVE: TRABALHO URBANO; POSTURAS; TRANSGRESSÕES; PÓS-ABOLIÇÃO.

ABSTRACT: This paper makes a thorough study about the transgressions imposed disciplinary
standards, especially by the 1893 postures code and similar measures between 1890 and 1920
in Nazareth city. In the context that were in vogue the ideals of "civilization", "modernity"
and "progress", propagated by the public authorities who adhered to the principles which
governed the Brazilian Republic, the aim is to analyze the reasons and the ways in which local
social subjects especially workers who acted in small trade and common services of the
metropolis to found, to their ways, resist, transgress and challenge the urban legality imposed
by the municipal administration. So it is, a study of the historic Nazareth city in the late 19th
and early 20th centuries, when it still occupied a prominent position by virtue of its active
economy, serving the commercial hub of river-sea route that connected the South Recôncavo
to Salvador. We seek to discuss issues to understand the triple relationship involving the
authorities, municipal law and local society in a context of increasing intervention and
regulation of urban experiences the new forms of social control undertaken in the post-
abolition and exclusion of undesirable in the newly republican moment.

KEYWODS: URBAN WORK; POSTURES; TRANSGRESSIONS; POST-ABOLITION.


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LISTA DE ILUSTRAÇÕES, FIGURAS E MAPAS

Figura I: Prédio dos Arcos – Praça do Porto ------------------------------------------------------- 28


Figura II: Carregadores de Água (Aguadeiros) ---------------------------------------------------- 67
Figura III: Fonte da Conceição ---------------------------------------------------------------------- 73
Figuras IV, V, VI e VII: Praça da Municipalidade, Edifício da Câmara, Cadeia, Salão do Júri
e Intendência, Estação da Estrada de Ferro de Nazareth e Cais do Porto ----------------------- 97

Mapas I e II: Município de Nazareth (em vermelho) até 1880 (em amarelo) após 1905 ---- 74
9

LISTA DE TABELAS E GRÁFICOS

Tabela I: Distribuição dos impostos de indústrias em 1894 segundo as respectivas classes -33
Tabela II: Territorialidade da cidade de Nazareth (1890 -1920) -------------------------------- 51
Tabela III: Demografia populacional da Cidade de Nazareth por sexo ------------------------ 54
Tabela IV: Demografia populacional de Nazareth por sexo e cor em 1872 e 1890 ----------- 56
Tabela V: Profissões de maior apelo em Nazareth no Censo de 1872 -------------------------- 57
Tabela VI: Distribuição dos sujeitos arrolados por naturalidade, residência e sexo ---------- 59
Tabela VII: Distribuição dos migrantes arrolados segundo sua naturalidade ------------ 60 - 61
Tabela VIII: Profissões de maior apelo entre os sujeitos arrolados nos processos ------ 62 - 63
Tabela IX: Infrações de maior apelo cometidas em Nazareth ---------------------------------- 155
Tabela X: Demonstrativo de bens imóveis (casas) da família Rebello ------------------------ 178

Gráfico I: Receita dos Impostos de Embarque e Desembarque e do Orçamento Geral ------ 94


Gráficos II e III: Infrações de Posturas por Categorias, Profissões e Locais ---------------- 160
Gráfico IV: Casas Comerciais, Industriais e Serviços de Nazareth ---------------------------- 163
Gráfico V: Distribuição por “classes” das Casas Comerciais de Molhados ------------------ 164
10

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

APMN – Arquivo Público Municipal de Nazaré Profº. Ben Wilson Britto


AFEM – Arquivo do Fórum Edgard Matta
ASCMN – Arquivo da Santa Casa de Misericórdia de Nazaré
APEB – Arquivo Público do Estado da Bahia
CEAO – Centro de Estudos Afro-Orientais
FMB – Faculdade de Medicina da Bahia
FBN – Fundação Biblioteca Nacional
IGHB – Instituto Geral de Hygiene da Bahia
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas
11

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ------------------------------------------------------------------------------------ 12

CAPITULO I - Nazareth, de “formosa do Jaguaripe” a “comercial e financeira” cidade do


Recôncavo Baiano: entre transformações e conflitos. --------------------------------------------- 23
I. Discutindo ordens: em busca de alguns trabalhadores ------------------------------------------ 30
II. Entre avenidas, ruas e becos: Nazareth do século XIX --------------------------------------- 46
III. Cores e ofícios em Nazareth: um retrato populacional --------------------------------------- 53
IV. Aparentes conflitos: outros trabalhadores nos usos da cidade ------------------------------- 64

CAPITULO II – Personalidades, ideologias e políticas urbanas: entre projetos, posturas e


costumes. ------------------------------------------------------------------------------------------------- 75
I. A legalidade urbana: pautas e projetos para a “metrópole nazarena” ------------------------ 87
II. Vigilância e poder: O Código de Posturas de 1893 ------------------------------------------- 102
III. Mapeando “imposturas” e ampliando focos: algumas cenas urbanas -------------------- 106
IV. Os ilustrados cidadãos do progresso: Quem eram os Bittencourt? ----------------------- 119

CAPITULO III - Infrações e imposturas na “civilizada” cidade de Nazareth ------------- 127


I. As ações dos fiscais: entre aplicação de multas e cobrança de impostos -------------------- 138
II. As regras e suas transgressões: artigos, sujeitos, espaços e categorias -------------------- 151
III. Quando “a astúcia enfrentava à força”: contestações e negociações -------------------- 167
IV. Fragmentos de vidas: a trajetória da família Rebello ---------------------------------------- 173

CONSIDERAÇÕES FINAIS ---------------------------------------------------------------------- 180

FONTES ----------------------------------------------------------------------------------------------- 183

REFERÊNCIAS ------------------------------------------------------------------------------------- 186

ANEXOS ---------------------------------------------------------------------------------------------- 193


12

APRESENTAÇÃO

Em Nazareth, nesse tempo, entravam, nas suas feiras, quatro, cinco e


mil animaes carregados, e como notificou Domingos Rabelo na sua
corographia datada de 1823, os portos eram tão fartos que esse mesmo
historiador chamou a nossa povoação de Egypto da Bahia.1 (Anísio
Melhor)

Há cerca de um século atrás, o poeta, cronista e grande historiador por ofício, Anísio
Melhor, com base na documentação que conhecia ou de que ouvira falar, fazia tal descrição
de uma Nazareth que não é a mesma em que circulamos hoje. Uma Nazareth de importância
social, econômica e política no cenário baiano desde os fins do século XVIII, cujos registros e
memórias , impressos e materializados em contos, crônicas e notícias como a acima referida,
ou mesmo em memoriais, documentos oficiais, bem como em livros que os selecionam e
transformam em histórias, nos permitem, na condição de curiosos, remontar a possível
atuação de sujeitos históricos nos mesmos espaços que circulamos atualmente.
A arquitetura barroca, neoclássica, neogótica e de estilo art-nouveau de igrejas e
diversos imóveis públicos e particulares, alguns azulejados e muitos com grandes portas,
janelas e grades, de ruas e becos calçados por paralelepípedos cortados semelhantemente, com
resquícios materiais de um passado característico, onde canhões, trilhos, locomotivas e
estátuas de personalidades marcam um cenário que sempre apreciei com muita curiosidade e
olhos abertos. Sim, sou nazareno! Desde a minha infância, nem sempre no mesmo bairro,
moro em Nazaré, nome que uso nesta dissertação com a grafia Nazareth, por ter sido essa a
escrita que prevaleceu durante o período do recorte dessa pesquisa. Da Rua Dom Pedro
Calmon, na Muritiba, mudamos para a Rua Fernão de Ataíde, no Centro, até quando, por fim,
nos deslocamos para a Rua Manoel Clemente Caldas, no Mulungus. Nestas três ruas e bairros
diferentes estão presentes alguns “monumentos” muito próximos da nossa residência, como a
Fonte do Gamberra, a Feira Livre e o Aprendizado Manoel Clemente Caldas,
respectivamente, que marcaram as experiências de muitos sujeitos identificados na pesquisa e
presentes no decorrer dessa dissertação2.

1
AFEM. Jornal O Conservador. Nazareth, Setembro de 1935.
2
Exceto a Feira Livre, que até o final de 2013 funcionava na Praça Arthur Sampaio, contígua à Rua Fernão de
Ataíde, e foi transferida para novo espaço no bairro de Muritiba, os demais “monumentos” permanecem
erguidos, ainda que em estado precário, no mesmo endereço. A propósito, o Centro de Abastecimento Narciso da
Silva Pitanga, inaugurado em 24 de junho de 1990, foi transferido por ordem judicial, em função da precariedade
das estruturas metálicas, por conta do elevado risco de desabamento. Até agora, é o terceiro endereço da Feira de
Nazaré.
13

O grande palco das diversas tramas históricas que protagonizam esse trabalho,
estranhamente e sem resposta denominada “terra morena”, me permitiu, desde criança, ao
estudar em dois colégios que funcionavam em suntuosos prédios, conviver em espaços de
salas, portas e escadas grandes, de piso de assoalho e telhados altíssimos. A primeira delas foi
a Escola Nossa Senhora de Nazaré, no antigo solar dos Sampaio, à Rua do Padre Antunes,
para onde diariamente Seu Nestor (in memoriam) me levava do afastado bairro da Muritiba,
na margem direita do rio, àquela Rua onde fica o Cinema Rio Branco. Esse percurso era o
mesmo feito pelos Sampaio quando iam passar os fins de semana na fazenda Paulo Gomes3.
Quando fui estudar no Colégio Dr. Aurélio Miranda, tradicional instituição de construção
semelhante, já residia no centro da cidade e, além de fazer o percurso só, geralmente quando
estava na ponte da Conceição, atravessando o rio Jaguaripe, já ouvia a sirene anunciando a
aproximação do horário para fechar os portões. Do mesmo modo, ao meio dia, a mesma
sirene se embaralhava com o sino da Matriz, que muito proximamente ecoava anunciando a
hora do almoço e o fim da aula. Foi nesse mesmo Colégio que estudei durante um bom
tempo, tendo saído para o último, de arquitetura e vivências diferentes dos demais, em que
tive bastante aproximação com as incríveis histórias que contavam sobre Nazareth, através do
Professor Lamartine Augusto, grande conhecedor das memórias e detentor de variada
documentação da cidade, que se encontra no livro Porta do Sertão, de grande uso nesse
trabalho.
Iniciamos com essas breves recordações, pois, sem dúvida, enquanto nazareno, essas
experiências cotidianas e a sensação de caminhar em um palco histórico, evidente que cheio
de mudanças e permanências, atuaram como ponto de partida para se pensar o que fazer,
escolher o tema e concretizar essa pesquisa. De um modo ou de outro, este trabalho
historiográfico resulta, além das questões identitárias, de inquietações que venho tendo há
algum tempo sobre as condições de vida de setores da população nazarena, especialmente da
população pobre e trabalhadora enquanto real sustentadora de uma riqueza material ostentada
pelas autoridades nazarenas desde quando a cidade começou a se organizar. Parte desse
discurso, além se fazer presente na produção memorialista, encontra-se difundido no
imaginário social e coletivo da cidade, de modo que tal estranheza nos convidou a pensar
historicamente o porquê das condições de vulnerabilidade de pessoas e do grau de pobreza
que marca a Nazaré do século XXI, quando a mesma não é mais o “Egypto da Bahia”. Feitos

3
Gastão Sampaio recorda na sua infância quando, juntamente com seus primos, Mário e Jaime, compartilhavam
das montarias na região distante e na margem direita do rio Jaguaripe. Ver: SAMPAIO, Gastão. Nazaré das
Farinhas. Ed. Gráfica da Bahia, 1974. p. 158.
14

estes questionamentos, buscamos, a partir da investigação e do rastreio das fontes e


bibliografia, delimitar nosso objeto de estudo a partir da análise dos projetos, discursos e
práticas das autoridades e o comportamento de parte da população nazarena, especialmente de
alguns trabalhadores, no período pós-abolição e recém-republicano em Nazareth, por
considerarmos esse período um dos momentos “áureos” do município pelo grau de
desenvolvimento e crescimento que apresentou4.
São os documentos produzidos pelo poder municipal, executivo e legislativo – Livros
de Atas, Expediente, Impostos, Receitas, Comunicações, Leis e Matrículas –, pelo poder
judiciário – Processos Criminais – e pela imprensa local que constituem a grande maioria das
fontes históricas aqui utilizadas. Foi fundamental também uma esparsa documentação que vai
de fotografias, livros memorialistas e escritos literários5. Assim, através do entrecruzamento
inicial das fontes com uma densa, porém ainda insuficiente, produção historiográfica sobre a
cidade de Nazaré, alusiva quase em sua totalidade às experiências e ações de sujeitos na
escravidão e após ela6, que consideramos necessária construir uma narrativa que desse conta
da relação tripartite envolvendo as autoridades, as legislações municipais e alguns segmentos
4
Neste período, virada dos séculos XIX ao XX, Nazareth experimentou o crescimento populacional, territorial, a
atração de diversas fábricas e expansão das atividades industriais e comerciais existentes. Com isso, os
melhoramentos urbanos foram requeridos.
5
Sobre os livros memorialistas que utilizamos, todos são de escritores da região. Alguns fazem recordações de
vivências no inicio do século durante a infância e outros sobre as histórias que lhes contaram, baseadas em
alguns documentos. O que mais se aproxima da literatura é o livro de Maria Augusta Bittencourt. Estamos nos
referindo aos seguintes livros: ALVES, Isaías. Matas do Sertão de Baixo. Rio de Janeiro: Repper, 1967.
AUGUSTO, Lamartine. Porta do sertão. 2. Ed. Salvador: Edições Kouraça, 1999. BITTENCOURT, Eduardo
Pimentel Maia. Memória genealógica dos Bittencourt. Rio de Janeiro, 1981. BITTENCOURT, Maria
Augusta. Tempo...água do rio..., memórias. Rio de Janeiro: Editora. Minerva, 1971. SAMPAIO, Gastão. Nazaré
das Farinhas. Ed. Gráfica da Bahia, 1974.
6
Ao fazermos um denso mapeamento das produções historiográficas relativas e de algum modo alusivas à
cidade de Nazareth, catalogamos alguns trabalhos direcionados ao tema da escravidão e outros que tratam do
pós-abolição e políticas de moralidade e crescimento citadino até a década de 1950. Sobre a escravidão e
resistências, ver: CASTELLUCCI JUNIOR, Wellington. Entre veredas e arrabaldes: historias de escravos e
forros na comarca de Nazaré. Bahia, 1830-1850. História & Perspectivas, Uberlândia (39): 261-304, jul-dez,
2008. CASTELLUCCI JUNIOR, Wellington. Pescadores e Roceiros: Escravos e Forros na Ilha de Itaparica
entre os anos 1860-1888. São Paulo. 1ª. ed. São Paulo: Annablume Editora/Fapesb, 2008. CASTELLUCCI
JUNIOR, Wellington. A forca e o machado: resistência escrava e quotidiano de libertos na comarca de Nazareth
das Farinhas. Recôncavo Baiano, 1830-1852. Revista de História, São Paulo (156): 157-191, 1º Semestre, 2007.
Sobre escravidão e economia, ver: COSTA, Alex de Andrade. Arranjos de Sobrevivência: autonomia e
mobilidade escrava no Recôncavo Sul da Bahia (1850-1888). Dissertação de Mestrado em História Regional e
Local. Departamento de Ciências Humanas da UNEB. Santo Antonio de Jesus, 2009. Sobre escravidão, pós-
emancipação e mundos do trabalho, ver: SACRAMENTO, Cleidivaldo de Almeida. Mundos de trabalho no
Recôncavo Sul: cotidiano, trabalhadores, costumes, conflitos e solidariedades. 1879-1910. Dissertação de
Mestrado. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2007. Sobre
pós abolição e trajetórias de africanos, ver: SOUZA, Edinélia Maria Oliveira. O Pós-Abolição na Bahia -
Hierarquias, lealdades e tensões sociais em trajetórias de negros e mestiços de Nazaré das Farinhas e Santo
Antônio de Jesus (1888-1930). Tese de Doutorado em História Social. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
da UFRJ. Rio de Janeiro, 2012. Sobre territorialidade e modalidade, ver: LAGO, Jonathan Brito. Uma cidade,
uma “zona” e uma mulher de “vida fácil”: A prostituição feminina em Nazaré (1950-1970). Monografia de
Especialização. Pós-Graduação em História Regional. Universidade do Estado da Bahia. Santo Antonio de Jesus,
2004.
15

da sociedade local, no contexto de crescente intervenção e regulamentação das vivências, qual


seja, as décadas iniciais da República e imediato pós-abolição, quando novos mecanismos de
disciplina social foram tomados em nome da ordem e da legalidade urbana.
Desse modo, procuramos nessa dissertação fazer uma aprofundada análise dos
motivos e formas pelas quais os sujeitos sociais locais, especialmente atuantes no pequeno
comércio e trabalhadores informais de uma cidade majoritariamente formada por pretos e
pardos, encontraram para resistir, transgredir e contestar a legalidade urbana adotada pelo
poder público no período que tomamos para análise. O interesse em propor questões e
possíveis respostas a esse fenômeno social identificado em Nazareth foi especialmente
estimulado quando encontramos menções cada vez mais repetidas sobre as infrações de
posturas e a previsão da arrecadação proveniente destas na receita do orçamento geral anual
do município, sofrendo alterações crescentes a cada ano. Portanto, a narrativa deste trabalho
resulta de um processo de pesquisa iniciado desde o curso de graduação, com a pretensão de
aprofundar alguns aspectos até então parcialmente discutidos, ou mesmo ausentes, seja devido
à dificuldade de acesso às fontes, seja em consequência dos objetivos distintos que tínhamos
naquele momento.
Cenário e objeto da presente pesquisa, a cidade de Nazareth está localizada no
Recôncavo sul da Bahia, sendo muito conhecida, curiosamente, devido a sua designação “das
Farinhas”, que se deve ao intenso trânsito comercial outrora existente, destacado pela
comercialização deste gênero alimentício na sua importante feira, e operado através do seu
porto fluvial e pela estrada de ferro Tram Road Nazareth, nos fins do século XIX e no início
do XX. Nazareth fazia parte da “hinterlândia” chamada de Recôncavo baiano, que além de
exercer o papel de suprir o mercado local, abastecia a capital7.
Durante boa parte do século XIX, as portas da cidade de Nazareth compreendiam as
áreas litorâneas, destacadamente a região do porto. Ali se estabelecia um comércio atacadista
e varejista, onde também desembarcavam os gêneros das roças. Tal logística contribuiu
decisivamente para que Nazareth, no final do século XIX, não figurasse apenas como uma
mera periferia de subsistência, mas como um estratégico centro comercial sustentador e
viabilizador de uma estrutura agrária-exportadora que, mesmo com grandes dificuldades,
caracterizava os portos e, por extensão, a cidade de Salvador, capital do estado. Portanto,
estamos falando de uma estratégica cidade do Recôncavo baiano, moldada por uma economia
de produção agrícola diversificada que, por conta disso, se estruturou urbanística e

7
Sobre o hinterland, ver: BARICKMAN, B. J. Um contraponto baiano. Açúcar, fumo mandioca e escravidão no
Recôncavo, 1780-1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
16

culturalmente, tornando-se polo regional e, ao mesmo tempo, reivindicatória das propostas


modernizantes que previam o acesso ao progresso e à civilização, caracterizadoras das
décadas finais do século XIX e início do XX8.
À luz desses elementos, buscamos entender, nessa dissertação, dentre outras coisas,
como a alteração do processo econômico, administrativo e político do período não previa ou
não operou com o intuito de modificar a desigualdade e a exclusão social dos grupos mais
empobrecidos. Em outras palavras, almejamos descortinar a dinâmica do processo de
transformação urbana envolvendo as condições materiais de vida, sobrevivência e ações de
parte da população pobre, intensificadas a partir da segunda metade do século XIX em
Nazareth, em função das novas condicionantes colocadas àquela cidade de projeção
econômica9. Para entender esse emaranhado e complexo processo, rastreamos o estímulo e a
continuidade das práticas sociais de transgressão aos mecanismos reguladores e
disciplinadores dos modos de vida na cidade, desempenhadas pelos grupos populacionais que
por eles foram duramente atingidos.
Constatamos que a pequena Nazareth era uma cidade na qual muito se transgredia.
Diária e cotidianamente, sujeitos eram obrigados a exercer práticas transgressoras para que
sua sobrevivência se tornasse menos difícil. Altas e diversas taxas, medidas de padronização,
embelezamento, higienização e redesenho da cidade, amparadas na política de controle social
e ordenação de indivíduos, eram determinantes para que estes ressignificassem tais
instrumentos, burlando-os. O regime de condutas, ordem e disciplina, potencializado pelo
Código de Posturas Municipais, por exemplo, adotado desde os tempos imperiais por
Nazareth e aperfeiçoado no alvorecer da República, o qual tomamos como base essencial para
desenvolver esse estudo, inaugurou, desde aquele período, o fenômeno das transgressões que,
enquanto ações reativas aos projetos da administração pública, nos induzem a compreender a
real complexidade, espécie de tenso equilíbrio entre o que se era proibido e o que se permitia
na vida social e, especialmente, o funcionamento da vida cotidiana.

8
LEITE, Rinaldo Cesar Nascimento. E a Bahia civiliza-se... ideais de civilização e cenas de anti-civilidade em
um contexto de modernização urbana. Salvador, 1912-1916. Dissertação de Mestrado em História. Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da UFBA. Salvador, 1996.
9
Sintomática que as áreas portuárias, consideradas de projeção econômica, passariam por processos sociais
semelhantes, o historiador Marcelo Mac Cod observou que para o caso de Recife, as propostas de modernização
que previam a moralização e civilização dos costumes, sob os dogmas europeizantes, já davam sinais desde a
primeira metade do século XIX. Ele observou como tais projetos influenciaram e foram influenciados pelos
modos de vida e experiências de sujeitos que exerciam as atividades corriqueiras na cidade. Ver: CORD,
Marcelo Mac. Francisco José Gomes de Santa Rosa: experiências de um mestre pedreiro pardo e pernambucano
no Oitocentos. Afro-Ásia. 2014. nº. 49. 2014. p. 199-227.
17

Metodológica e conceitualmente falando, por tratar de objetos e períodos semelhantes,


nos amparamos, sobretudo, nos trabalhos historiográficos de Maria Odila Leite da Silva Dias
– Quotidiano e Poder – e de Sidney Chalhoub – Trabalho, Lar e Botequim –, que indicam
possibilidades de entendimento das “fímbrias” do sistema e das lógicas culturais de trabalho e
sobrevivência das camadas populares em períodos de grandes transformações, especialmente
nas estruturas urbanas das cidades10. Deste modo, recortamos esta investigação nos anos de
1890 a 1920 porque, nesse período, desenharam-se diferentes mudanças em Nazareth que
provocaram, por sua vez, além da questão contábil, dos números e das estruturas, um
acirramento nas relações existentes entre os grupos sociais que viviam ou transitavam pela
cidade, notadamente autoridades e sujeitos destituídos de posses.
Nesse período, a influência da abolição oficial do regime escravocrata, ocorrida em
1888, e a instauração da República, em 1889, doutrinaram o Código Penal de 1890 e a
Constituição de 1891, que, por sua vez, foram usadas para respaldar, enquanto instrumento
legal, e configurar elementos estratégicos e norteadores do Código de Posturas Municipais de
1893 da cidade de Nazareth. Todos eles foram apropriados pelas autoridades públicas, grupos
influentes e grandes comerciantes detentores de poder e prestígio, sendo conjugados no
sentido de identificar e reprimir trabalhadores pobres que desrespeitavam regras de condutas
sociais e jurídicas estabelecidas. Tratamos nessa dissertação do seguinte fenômeno
compartilhado pela cidade de Nazareth no alvorecer da República e imediato pós-abolição,
quando:

[...] as câmaras e os governantes passaram a determinar [...] uma nova


atitude em relação às ruas, agora consideradas ‘lugares públicos’ e que
por isso deveria manter-se limpas. Com isso, o lugar público ganha,
então, um significado oposto ao do uso particular. Claro que para a rua
atingir seu novo ‘status’ muitas restrições são impostas à população. O
espaço urbano, antigamente usado por todos em encontros coletivos,
festas, mercados, convívio social etc., começa a ser governado por um
novo interesses, qual seja o ‘interesse publico’, controlado pelas elites
governantes.11

Assim, se higienizar, disciplinar e ordenar eram as palavras de ordem no período, o


“direito de viver na cidade” tornou-se a principal pauta das tensões provocadas entre as
10
Referimo-nos ao processo de urbanização incipiente da cidade de São Paulo a partir da primeira metade do
século XIX e às transformações provocadas pela belle époque no Rio de Janeiro na virada do século XIX para o
XX. Ver: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder na cidade de São Paulo no século XIX. 2ª ed.
São Paulo: Brasiliense, 1995. CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores
no Rio de Janeiro da belle époque. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
11
D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e família burguesa. In: DEL PRIORE, Mary. (org.). História das Mulheres
no Brasil. 7ª ed. São Paulo: Contexto, 2004. p. 224-225.
18

autoridades e parte da população, num contínuo e não menos acirrado enfrentamento, no qual
as burlas e estratégias cotidianas de munícipes revelavam-se como formas de escapar dos
códigos sociais e jurídicos. Veremos neste trabalho que as propostas de remodelamento do
espaço esboçadas através das diversas leis, especialmente o Código de Posturas de 1893, ao
mesmo tempo em que atendiam aos pressupostos de uma legalidade urbana, tinham clareza
em seus objetivos quando buscavam regular os hábitos e formas de trabalho de populares.
Cabe-nos destacar que este contexto encontrava-se inserido no chamado “processo
civilizatório”, que pretendia tornar as cidades brasileiras fisicamente “civilizadas”, inspiradas
no modelo francês. Desse modo, o conceito de civilização que tomamos como referência para
essa dissertação aproxima-se daquele formulado por Nobert Elias, que indica que “refere-se a
uma grande variedade de fatos, ao nível da tecnologia, ao tipo de maneiras, ao
desenvolvimento dos conhecimentos científicos, às ideias religiosas e aos costumes”12. Essa
era a meta idealizada pelo projeto modernizador das autoridades públicas, elites políticas e
intelectuais: atingir um padrão de civilização com base na adaptação do modelo das cidades
francesas, na tentativa de padronizar, para melhor controlar, as ações e comportamentos dos
sujeitos sociais. Contudo, conforme já sinalizamos até aqui – como sendo nosso interesse
principal neste trabalho – as propostas de civilização dos costumes e ordenação do espaço
urbano não foram tacitamente aceitas no seio dos grupos sociais mais pobres, que, para
enfrentar tal processo, tiveram que resistir de múltiplas formas. É por isso que tomamos as
transgressões de sujeitos como objeto desta pesquisa. Nossa problemática recai, nesse sentido,
sobre as razões, formas e contextos pelos quais havia transgressões aos mecanismos
disciplinares, discutindo como este fenômeno nos permite enxergar a cidade como espaço de
lutas, às vezes invisibilizadas, e não como palco estável, mas como a lógica da própria lei,
“uma arena de conflitos entre interesses diversos de classes”13.
Para tanto, por termos tomado as transgressões como objeto de pesquisa com o
objetivo de ampliá-la à conjuntura política e social, e aos projetos de cidadania e sua negação
na virada dos séculos XIX ao XX, compartilhamos do entendimento que as transgressões “se
colocam na historia brasileira como uma estratégia indispensável para a necessária construção
de um difícil, mas efetivo equilíbrio no cotidiano de uma sociedade edificada historicamente

12
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. V. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. p. 23.
13
PENA, Eduardo Spiller. Pajens da casa imperial: jurisconsultos, escravidão e a lei de 1871. Campinas/São
Paulo: Editora da Unicamp/Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2001. p. 25.
19

14
sobre a escravidão e, portanto, visceralmente desigual, violenta e conflituosa” .
Compreendemos ainda que o recrudescimento das investidas policiais e fiscais, sob a égide da
legalidade urbana, acompanhado de uma não tímida campanha na imprensa e no judiciário,
foi decisivo para que, no início da República, a população pobre e de maioria afro-brasileira
fosse “sendo convidada” a esquecer-se de suas memórias, consideradas selvagens, a fim de
não macular a construção de outra comunidade imaginada: o Brasil civilizado, moderado a
partir de padrões europeus” 15 . Veremos que, apesar do silêncio da cor dos sujeitos nos
documentos analisados, as pautas, projetos e medidas foram tomados a partir de uma leitura
estratégica daquela conjuntura: o pós-abolição e os seus impactos em cidades atrativas.
Vamos, portanto, verificar que a real observância dessas regras impostas pelas
autoridades municipais era feita pelos fiscais. Assim, competiam a figuras como Misael
Annanias dos Santos, José Escholástico Ramos e Francisco Pires Valença na inspeção
cotidiana das feiras, ruas e casas comerciais. Para os pequenos comerciantes, ambulantes,
carregadores, trabalhadores pobres e grupos populacionais destituídos de posses, nossos
principais sujeitos, os fiscais eram a expressão mais visível do poder municipal16.
Com efeito, tais propostas de controle dos modos de vida e “civilização dos costumes”
das classes populares, defendidas “segundo os pressupostos idealizados para a sociedade
brasileira pela elite burguesa dominante”17 e influenciadas, do mesmo modo, pelas críticas
médicas higienisticas, entre as quais estava inserido o Código de Posturas Municipal de 1893,
foram formuladas em Nazareth, naquele contexto, pelos republicanos de última hora, oriundos
das classes escravocratas que se metamorfosearam na política local desde a monarquia,
anunciando uma modernidade que não contemplava, por exemplo, a permanência de práticas
sociais, culturais, para o lazer ou trabalho que destoassem à política de embelezamento da
cidade. Estamos falando da tradicional família “Bittencourt”, que agregou um clã político de
igual nome, constituindo uma das mais sólidas oligarquias do Recôncavo sul e dominando a
estrutura pública municipal, através de arranjos eleitorais, da Monarquia à República.
Resta-nos acentuar que ao utilizarmos em alguns momentos o termo “elites”, estamos
designando o conjunto de sujeitos que pertenciam aos altos postos da administração

14
ROSA, Domingos Sávio de Campos. Confrontos e arranjos. Transgressões e vida cotidiana em Taubaté -
1860-1890. Dissertação de Mestrado em História Social. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP. São Paulo, 2011. p. 39.
15
SANTOS, Edmar Ferreira. O poder dos candomblés: perseguição e resistência no Recôncavo da Bahia.
Salvador: EDUFBA, 2009. p. 54.
16
Sobre essa relação, ver: FARIAS, Juliana Barreto. A Câmara e o mercado: os trabalhadores da praça do
mercado do Rio de Janeiro e suas relações com a municipalidade no século XIX. Revista Mundos do
Trabalho/ANPUH. Santa Catarina. v. 5, n. 9. 2013.
17
LEITE, Rinaldo Cesar Nascimento. E a Bahia civiliza-se... p. 12.
20

municipal, os intelectuais, juristas e médicos do período18. Quase sempre, estes, em Nazareth,


pertenciam ao grupo dos Bittencourt ou ecoavam, ainda que na oposição política, as mesmas
propostas de controle social e cultural de sujeitos e dos espaços.
Como indicamos até aqui, esse trabalho, ao tomar as transgressões como objeto de
pesquisa, incorpora e faz uma discussão sobre as regras transgredidas, neste caso o Código de
Posturas, seu caráter e objetivos. Para tanto, nos aproximamos do importante debate sobre o
domínio da lei formulado por Thompson quando nos diz que:

[...] a maior dentre todas as ficções legais é a de que a lei se


desenvolve, de caso em caso, pela sua lógica imparcial, coerente
apenas com sua integridade própria, inabalável frente a considerações
de conveniência [...] a lei é por definição, e talvez de modo mais claro
do que qualquer outro artefato cultural ou institucional, uma parcela
de superestrutura que se adapta por si às necessidades de uma
infraestrutura de força produtiva e relação de produção. Como tal é
nitidamente um instrumento da classe dominante de fato: ela define e
defende as pretensões das classes dominantes aos recursos e a força de
trabalho.19

É extremamente oportuno ressaltar que, à luz do pensamento de Thompson sobre o


conceito de lei como um mecanismo que atende às pretensões de classe, tal ato normativo
representa os interesses de um grupo delimitado, que tem por vontade expressa adaptar as
condições sociais de um determinado espaço com objetivos específicos. Esta análise
possibilita entender o campo social como um espaço de constantes lutas e embates políticos,
sociais e culturais de valores distintos, estabelecidos em um mesmo plano20. Neste sentido, a
lei surge em um campo de intensos conflitos diante das pretensões de classe, cujos embates
não se esgotam na sua elaboração, mas, pelo contrário, ganham maiores significados quando
da sua execução. Trazemos esses conceitos para pensar a “ordem” e a “desordem”, a regra e a
transgressão.
Ao estudar a Inglaterra do século XVIII, Thompson percebeu que o instrumento da lei
servia pra disciplinar uma massa de trabalhadores que estava afastada de um controle social.
Desta forma, semelhantemente ao que o historiador percebeu na Inglaterra, os casos das

18
Analisando o caso de Feira de Santana na virada do século XIX para o XX, a historiadora Karine Teixeira
Damasceno verificou que foram estes membros da denominada “elite” que voltou “atenção para discutir e adotar
medidas para adequar o município a um determinado modelo de civilidade”. DAMASCENO, Karine Teixeira.
Mal ou bem procedidas: cotidiano e transgressão das regras sociais e jurídicas em feira de Santana, 1890-1920.
Dissertação de Mestrado em História Social. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP.
Campinas, 2011. p. 02.
19
THOMPSON, Edward Palmer. Senhores & caçadores: a origem da lei negra. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1997. p. 338 - 349.
20
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em Comum: Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
21

Posturas e das medidas análogas adotadas pelo poder público no Brasil pós-abolicionista e em
Nazareth em nível local foram, de todo modo, instrumentos que visavam adequar a população
aos interesses da expansão urbana. Neste caso, os indivíduos que ocupavam as atividades
informais nas cidades se defrontaram com variadas formas de controle social, pois estavam à
margem da nova ideologia do trabalho capitalista. Não significa afirmar, portanto, a
consequente aplicabilidade da lei e a efetiva dominação, pois pelo próprio caráter ambíguo do
mecanismo, foram impostos variados limites de dominação por aqueles que tiveram seus
modos de vida afetados pelo instrumento normativo.
À luz destes elementos norteadores que pontuamos até aqui, essa dissertação está
estruturada sob a forma de três capítulos articulados entre si, compostos, cada um, de três
subcapítulos, nos quais discutimos de forma dedicada algumas questões que se colocaram
durante o processo de pesquisa. Buscamos, no decorrer dos capítulos, agregar discussões com
a perspectiva de compreender os processos de regulamentação e normatização das vivências
urbanas e as formas pelas quais tais intervenções foram recepcionadas pelos contemporâneos.
No primeiro capítulo, intitulado Nazareth, de “formosa do Jaguaripe” a “comercial e
financeira” cidade do Recôncavo Baiano: entre transformações e conflitos fazemos uma
contextualização e caracterização da economia, do perfil populacional, da geografia, dos
hábitos e costumes nazarenos. Iniciamos ainda, um mapeamento dos trabalhadores, sujeitos
que circulavam na cidade e os conflitos que caracterizavam suas vivências. Apontamos, neste
sentido, no plano material, os indícios das mudanças e permanências compartilhadas por
aqueles contemporâneos. Em Personalidades, ideologias e políticas urbanas: entre projetos,
posturas e costumes, o segundo capítulo, fazemos uma ampla discussão da legalidade urbana
que se impunha à Nazareth, destacando o Código de Posturas de 1893 como instrumento
estratégico para viabilizar os projetos das autoridades públicas. Mapeamos ainda as
denominadas “imposturas” provocadas pelas transgressões às normas e os discursos das
autoridades. Por fim, fazemos uma reconstituição do principal grupo político nazareno, que
articulou ideias, pautou projetos e executou medidas de controle social e de alteração da
paisagem urbana em Nazareth na virada dos séculos XIX para o XX. No capítulo três,
denominado Infrações e imposturas na “civilizada” cidade de Nazareth discutimos, de modo
sistematizado, no plano das experiências, as condições de vida e trabalho dos principais
sujeitos que infringiam as normas. Concluímos o trabalho com a recomposição de indícios das
trajetórias de uma família que, em meio a toda problemática que envolveu a sociedade recém-
republicana e pós-abolicionista, conseguiram sobreviver às contradições e exclusões daquele
período.
22

Esse estudo pretende estar articulado com os debates historiográficos alinhados às


contribuições de Thompson, ao pensar nas tensões e conflitos e também nas assimilações e
negociações provenientes das intensas disputas de valores e poder por elas influenciadas e
influenciadoras, no espaço e vida social. Para tanto, na intenção de ampliar as pesquisas da
histórica cidade de Nazaré, adotamos a perspectiva de abordagem da história regional e local,
que foi oportunizada a partir da expansão dos campos de estudos historiográficos, quando
novos temas, objetos e conceitos de história se reformularam em função das contribuições
teóricas dos annales, da “Nova Esquerda Britânica”, e da micro-história, que incidiram no
fazer historiográfico brasileiro após a década de 1980, pautando tais transformações21. Desde
então, as temáticas nascidas neste seio estão ligadas às áreas da história social, cultural e do
cotidiano, trazendo à tona os chamados “excluídos da história”, tratados como agentes e
sujeitos históricos, e toda a complexidade da vida social que os envolvia. Portanto, estimulado
política e profissionalmente, este trabalho se propõe a dar voz às experiências cotidianas dos
sujeitos sociais, cujos projetos de cidadania e direito à cidade, tentaram os excluir.

******************

A impressionante fotografia que ilustra a capa dessa dissertação, pertencente ao acervo


pessoal do Sr. Jackson Freitas, guardião de muitos registros feitos pelo seu pai, José de
Freitas, ou "Zelito retratista", é da feira livre de Nazareth entre os finais da década de 1930 e
início de 1940. Ela retrata fielmente quando as regras eram transgredidas... Nesse período,
embora à frente do nosso recorte temporal, as feiras ainda eram realizadas na Praça do Porto,
hoje Cel. José Bittencourt, e concentrava uma estimativa de cinco mil pessoas nos dias de
quarta-feira e sábado. Como se observa, muitos vendedores, compradores, barracas, cangalhas
e animais, todos num só espaço protagonizam um belo registro histórico. Para compreender
quais regras aqueles sujeitos estavam transgredindo, faço o convite à leitura a seguir...

21
CASTELLUCCI JUNIOR, Wellington. Entre o local e o regional: trajetórias e tendências da história social
no Brasil. In: OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos; REIS, Izabel Cristina Ferreira dos (Orgs.). Historia
Regional e Local: Discussões e Práticas. Salvador: Quarteto, 2010. p. 82.
23

CAPITULO I

Nazareth, de “formosa do Jaguaripe” a “comercial e financeira” cidade do


Recôncavo Baiano: entre transformações e conflitos

Toda a trama histórica, cotidiana e institucional, bem como as experiências de vida


que marcaram trajetórias de homens e mulheres que vamos explorar adiante, aconteceu no
tempo da administração dos Bittencourt, o clã dos políticos modernizadores e reformadores
de estruturas e costumes, cujas trajetórias emaranharam-se a distintos processos sociais e
políticos ocorridos na sucessão das décadas do século XIX22, de modo que lhes outorgaram
direitos, capacidade de influência e domínio da política local nazarena da Monarquia à
República. Mais precisamente, neste primeiro momento, nos referimos ao ano de 1898, gestão
do Intendente Viriato Freire Maia Bittencourt, sucessor do seu primo, o médico Alexandre
Freire Maia Bittencourt Sobrinho, que esteve à frente do executivo municipal de 1892 a 1896.
Tratava-se, portanto, da primeira década do novo regime político instaurado no Brasil em
1889, cujas bases de sustentação da pequena cidade de Nazareth das Farinhas, Recôncavo sul
baiano, permaneciam sob a administração dos mesmos agentes políticos imperiais, que se
caracterizaram pela continuidade do planejamento e da execução de um conjunto de
mudanças substanciais nos ares e cantos da cidade, material e financeiramente.
Nesta atmosfera, nas avolumadas imediações da Praça do Porto – cujos espaços
centrais passaram a sofrer uma série de interferências da municipalidade nas décadas finais e
iniciais dos séculos XIX e XX, respectivamente – uma grande confusão ocorreu no dia 07 de
setembro de 1898, em uma das casas comerciais que ficavam no Prédio dos Arcos, dando
início a um processo criminal de lesões corporais revelador de diversas questões que
compõem essa narrativa. Naquela tarde de quarta-feira, em plena efervescência da feira livre
que ali se estabelecia também aos sábados, ocasiões em que homens e mulheres saiam às ruas
para compartilhar momentos de sociabilidade entre vendas e compras, o pedreiro José
Antonio da Silva, 29 anos, solteiro, preto, natural e residente em Nazareth, envolveu-se num
conflito sangrento com o magarefe (açougueiro) Manoel Henrique da Silva, 23 anos, natural
de Muritiba, de cor indefinida. José Antonio saiu gravemente ferido.

22
O grupo político dos Bittencourt formado por fazendeiros e proprietários, dos quais médicos e bacharéis em
direito, cujos protagonistas transitaram da Monarquia à República ocupando diversos cargos de destaque no
cenário local e estadual, com honras no meio nacional, foram descendentes dos irmãos Major Antonio de Souza
Bittencourt e do Coronel Manoel Gonçalves Maia Bittencourt, ambos da guarda nacional imperial, bravos
lutadores da Guerra da Independência de 1823 na Bahia, legítimos representantes do Vale do Jaguaripe. Ver:
BITTENCOURT, Eduardo Pimentel Maia. Memória genealógica dos Bittencourt...
24

A contenda, que mobilizou muitas pessoas que ali transitavam para o lazer ou para o
trabalho, ocorreu no açougue do senhor Hylário Bispo Pereira, onde trabalhava Manoel
Henrique, quando José Antônio chegou para tirar satisfações sobre um boato que circulava
entre seus companheiros, segundo o qual o magarefe, recém-chegado na cidade, teria um cipó
para surrá-lo. O bate boca e troca de insultos entre ambos, gerados pela veracidade ou não do
referido boato, provocou “um ajuntamento de pessoas na porta do açougue do Senhor
Hylário”, conforme testemunhou José Alves Sanches, 28 anos, artista, natural de Cachoeira,
residente em Nazareth, que estava na casa de negócios do Senhor Victorino. A confusão
resultou em graves ferimentos desferidos a golpes de faca em José Antônio, e a fuga imediata
de Manoel Henrique pelas ruas e becos da cidade. O magarefe, prontamente perseguido pelo
clamor público, foi preso na Rua do Tanque em baixo de uma cama em um dos cômodos da
casa do africano Pedro23.
Muitos dos transeuntes que presenciaram parcial ou totalmente a ação, ou mesmo
aqueles que ficaram sabendo do ocorrido, por conhecer os sujeitos envolvidos no crime –
ofendido e ofensor – ou por circular naqueles espaços diariamente para compras e vendas,
depuseram na delegacia de polícia e contribuíram para desvendar os reais motivos do crime.
Um dos sujeitos que dispararam do prédio dos arcos, liderando a multidão que corria pelo
meio da feira atrás de Manoel Henrique, foi o negociante estabelecido naquela praça,
Rogaciano da Silva Pinto, 39 anos e casado. Disse ele que “chegando debaixo dos arcos (uma
hora da tarde mais ou menos) ahi encontrou José Antônio ferido e perguntando-lhe quem teria
feito o ferimento, e respondeo que era um desgraçado que estava no açougue de Hylário”24.
Ao encontrar o sargento do regimento policial Honorato de Santana e os soldados Martinho
Leandro e João Sacerdote que estavam nas proximidades da feira livre, mais precisamente em
um armazém, a multidão de pessoas percorreu a Rua Conselheiro Saraiva e conseguiu
capturar o acusado após o mesmo ter invadido sucessivas casas até chegar à Rua do Tanque.
O conflito havia se iniciado na madrugada do sábado anterior a briga, quando ambos
se encontraram na casa da lavadeira Constança Carolina de Jesus, de 28 anos, residente na
Travessa do Francez, centro da cidade, e perceberam que mantinham um caso com a mesma
mulher, a referida lavadeira. A despeito deste fato, que havia se tornado público naquele
entorno comercial onde ambos trabalhavam, a promessa de uma surra de Manoel Henrique
em José Antônio, verdadeira ou não, gerou a disputa diante da qual o ofendido não se
intimidou em garantir a sua honra, autonomia e autoridade. Esse era mais um dos variados

23
APEB. Seção Judiciária. Processo Crime. Classificação: 17/598/05. Ano: 1898.
24
APEB. Seção Judiciária. Processo Crime. Classificação: 17/598/05. Ano: 1898.
25

conflitos que envolviam homens e mulheres no palco citadino, entre os quais inúmeras foram
as ações individuais e coletivas que refletiam a sociedade que se constituía sob valores
marcadamente morais, neste caso onde o masculino e o feminino demarcavam posições
distintas e hierarquizadas.
No processo instaurado para investigar aquela ação violenta, a cozinheira Maria
Leoncia Rodrigues, 30 anos de idade e solteira, contou que naquele dia teria ido procurar
“Barbara que negocia debaixo dos arcos desta cidade para ahi comprar” e presenciou muitas
pessoas em multidão na porta do açougue de Hylário, quando também foi verificar o que se
passava. Por sua vez, a referida negociante estabelecida no prédio dos arcos, Barbara Maria da
Conceição, 24 anos de idade e solteira, revelou que “estando a lavar uns pratos na beira do
rio, que fica em frente a sua casa, ao porto desta cidade, em dia que não se recorda a sua data,
vio muitas pessoas que corriao atrás do acusado”. Da mesma forma, o artista Genesio José
Goiabeira, 23 anos, revelou que estava no açougue de Hylário quando José Antônio chegou
fazendo os ditos questionamentos a Manoel Henrique, e perguntado sobre o que teria feito o
ofendido de tão grave para receber as facadas e se além das queixas o pedreiro portava
alguma arma, o mesmo contou que “vio José Antonio introduzir a mão no bolso do palitol,
porem não vio se ele tivesse arma”25. A suspeita de uma possível arma de José Antonio foi
uma estratégia encontrada por Manoel Henrique para fundamentar sua defesa.
Após o depoimento do grande número de pessoas que se envolveram da prisão do
ofensor de José Antonio naquela tarde de quarta feira, em plena ebulição da feira livre, em
tom uníssono, todas as testemunhas atestaram a boa conduta de José Antonio quando
questionadas sucessivamente se o pedreiro tinha algum atrevimento. Condenado a três meses
de prisão celular em sessão do júri de 12 de abril de 1899, enquadrado no artigo 304 § único
do Código Penal, o réu Manoel Henrique pagava por sentença de reclusão o preço da disputa
de uma amásia, num conflito que deixou outro trabalhador suspenso das suas atividades por
dois meses, em função das lesões que sofrera.
Não é mera coincidência qualquer semelhança com o caso do português Zé Galego,
oficialmente Antonio Domingos Guimarães, estivador atuante no porto do Rio de Janeiro, que
vivia nos botequins, rodas de samba e delegacias da cidade juntamente com seus
companheiros e rivais, tendo se envolvido em uma contenda que gerou o processo criminal
que foi minuciosamente descrito e analisado por Sidney Chalhoub em Trabalho, Lar e
Botequim. Trata-se de uma evidência de que os processos históricos vivenciados por aqueles

25
APEB. Seção Judiciária. Processo Crime. Classificação: 17/598/05. Ano: 1898.
26

contemporâneos, mesmo em espaços diferentes, estavam inseridos em uma conjuntura social


e política compartilhada por cidades portuárias em constituição da lógica burguesa-capitalista,
como Nazareth e o Rio de Janeiro, considerando suas especificidades26.
Contudo, cabe destacar que diferente do personagem central de Chalhoub, Zé Galego
– vitimado pelo colega Antonio Paschoal, também pobre e mestiço, no botequim do Cardoso
com 4 tiros – o pedreiro José Antonio da Silva, filho da terra, conseguiu sair vivo da
contenda. Do mesmo modo, a despeito da briga entre Zé Galego e Antonio Paschoal
aparentemente ter iniciado no pós-trabalho, quando na verdade fora provocado pelo amor em
comum por Júlia, ex-amante de Zé, e naquele momento amante de Paschoal, não sabemos a
respeito da continuidade ou não da relação estabelecida entre a lavadeira Constança Carolina,
José Antonio e Manoel Henrique. De um modo ou de outro, este processo criminal é
revelador de alguns aspectos da atmosfera cotidiana que envolvia os mundos dos trabalhos e a
política do cotidiano daquela praça comercial, bem como do conjunto social que compunha a
cidade de Nazareth nos finais do século XIX. Junto com os documentos atinentes ao poder
municipal, é possível perceber que o cotidiano da cidade naquele período era recheado de
conflitos e agitações como estas. As movimentações de ordem criminal, fiscal e
comportamental envolviam quase sempre trabalhadores empregados nas feiras, nas casas
comerciais varejistas e nos arruamentos da cidade, quase sempre localizados na zona do porto
e espaços centrais de Nazareth.
Muito embora o vasto processo criminal tenha dado pouca importância à condição da
suposta causadora do conflito envolvendo os trabalhadores daquele perímetro comercial,
satisfazendo-se com a declaração de Constança Carolina de que conhecia ambos os sujeitos,
mas não sabia da existência de insinuação entre eles, a justiça parecia estar mais dedicada a
saber dos riscos que os principais personagens ofereciam à cidade, inclusive do rol de
testemunhas que foram intimadas, por terem se envolvido no “clamor público”.
A reprodução da vida material destes indivíduos é aqui feita para demonstrar que foi
sob as práticas e usos da cidade desta gente majoritariamente pobre e “não-branca” que se
voltaram as autoridades municipais e policiais na virada dos séculos XIX para o XX. Esta
gente era tipificada como as “classes perigosas”, sujeitos “viciados, incivilizados e
perturbadores”, e por fim, como questionaram incisivamente as autoridades judiciais sobre a

26
Esta análise é feita contundentemente por Sidney Chalhoub, Ver: CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e
Botequim...
27

conduta de José Antonio, pessoas “atrevidas”27. Tais conceitos foram largamente utilizados no
parlamento a nível nacional para debater o projeto de lei de combate à ociosidade no período
pós-abolição, quando os mundos do trabalho e o perfil populacional das cidades se alteraram
em função da abolição oficial da escravidão. O projeto político neste cenário pós-abolição,
quando da mudança do estatuto jurídico de muitos trabalhadores e da flexibilização dos
antigos meios de controle social, era de repressão aos considerados miseráveis e, portanto
perigosos, tomando como sinônimo a grande maioria das “classes pobres” e não-branca28.
Na ânsia de promover uma política de controle social da população que se avolumava
na cidade, com práticas sociais que se apresentavam como um perigo à sociedade, os espaços
circulados e habitados pela “gente nociva” – Manoel Henrique, seus companheiros e rivais, na
lente das autoridades – passaram a sofrer rígidas tentativas de disciplinarização e
normatização por parte das classes dominantes. Foi dessa forma que muitas práticas e usos
que se faziam da rua, seja para o lazer ou para o trabalho, passaram a sofrer censuras e a
conhecer inúmeras formas de controle e fiscalização.
Alguns dos espaços que sofreram variadas perseguições dos agentes municipais e
policiais foram o Prédio dos Arcos e as imediações da Praça do Porto. Aqueles espaços eram
amplamente frequentados por trabalhadores pobres da população local e flutuante, que se
encontravam para tomar as “bebidas espirituosas”, colocar a conversa em dia, praticar os
jogos proibidos, comer alguma iguaria e comprar alimentos antes de irem e após chegarem
dos seus trabalhos, ou mesmo durante a execução deles, garantindo seus espaços de lazer e
sociabilidade nas frestas do cotidiano, quase sempre recheados de tumultos e conflitos, como
o de Manoel Henrique e José Antônio.
De construção do século XIX, o Sobrado dos Arcos/Prédio dos Arcos estava
localizado estrategicamente no centro comercial da cidade, como se pode observar na figura
abaixo.

27
Sobre a amplitude deste termo Sidney Chalhoub diz que: “Segundo Alberto Passos Guimarães, o termo
‘classes perigosas apareceu originalmente na Inglaterra e se referia às pessoas que já houvessem passado pela
prisão ou às que, mesmo ainda não tendo sido presas haviam optado por obter o seu sustento e o de sua família
por meio da prática de furtos e não de trabalho. Esta utilização do termo, por conseguinte, é bastante restrita,
referindo-se apenas aos indivíduos que já haviam abertamente escolhido uma estratégia de sobrevivência que os
colocava à margem da lei.” Cf.: CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim... p. 76.
28
VASCONCELOS, Marcos Estevam; OLIVEIRA, Mateus Fernandes de. O combate à ociosidade e à
marginalização dos libertos no pós-emancipação. In: Juiz de Fora, CES Revista, v. 25, 2011.
28

Figura I: Prédio dos Arcos – Praça do Porto

Fonte: Litografia de Lygia Sampaio29

Naquele contexto, a Praça do Porto compreendia um amplo campo que era banhado
pelas águas do rio Jaguaripe, limitado pelo seu cais, e que contava no seu entorno com
grandes galpões, armazéns, açougues, botequins, casas de molhados, fazendas, miudezas e
quitandas, além das tendas e barracas que ficavam armadas temporária ou permanentemente
nos limites das feiras sob a ação dos vendedores ambulantes. Naquelas imediações do porto se
desenvolveu entre os séculos XVIII e XIX um importante comércio, cujo palco de transações
atraía para si pessoas das localidades vizinhas, sobretudo nos dias de feiras semanais, às
quartas e sábados, aflorando os ânimos dos empreendedores locais. Por ser uma cidade
produtora e comercial, reconhecida amplamente pelas autoridades que não poupavam esforços
em destacá-la no esteio da economia regional, Nazareth ainda era considerada em finais do
século XIX como o grande empório baiano, rendendo cerca de 24:667$502 anuais à
província 30 . Eram os pescadores, roceiros, negociantes, artistas, oleiros, carregadores e
marítimos que dinamizavam aquela economia e recriavam o território a partir das suas
atividades cotidianas e triviais.
Estrategicamente localizada a partir do navegável rio Jaguaripe, Nazareth cresceu
comercial, social e politicamente, sobretudo no curso do século XIX, superando a Vila de
Jaguaripe, da qual havia se emancipado em 1849, por consequência e reconhecimento da sua

29
SAMPAIO, Gastão. Nazaré das Farinhas...
30
Em estudo especializado, Wellington Castellucci Júnior assinalou: “Assim foi que o porto daquele atual
município havia se transformado, desde o período colonial, num importante empório, responsável pelo
escoamento dos gêneros agrícolas procedentes de regiões longínquas, bem como no principal cais, para quem
desejava se dirigir a Salvador, distritos adjacentes ou mesmo distantes.” CASTELLUCCI JUNIOR, Wellington.
Entre veredas e arrabaldes.... p. 270.
29

atuação nas disputas emancipatórias na Bahia entre 1822 e 1823, quando forneceu provisões
alimentícias aos combatentes que no litoral derrotaram a frota lusitana 31 . Como a mais
poderosa e progressista cidade do Recôncavo sul da Bahia, Nazareth, em fins do século XIX,
por conta da sua função portuária, já exercia efetiva influência na vida política e econômica
da região que se estendida até o Vale do Jequiriçá, estabelecendo ali várias oligarquias32.
Nas décadas finais do século XIX e no alvorecer do século XX, Nazareth, a formosa
do Jaguaripe e uma das portas do sertão baiano, designações empregadas suposta e
curiosamente por Ruy Barbosa 33 , dava sinais que havia experimentado certo grau de
desenvolvimento com a construção dos principais equipamentos estruturantes urbanos, a
exemplo do centro comercial e industrial, onde ocorreu boa parte da trama que envolveu o
magarefe, o pedreiro e a lavadeira, e do amplo cais que se concentrava na margem esquerda
do rio Jaguaripe. Enquanto ponto de chegada e saída de embarcações, e onde se localizava a
estação para acolher as locomotivas, o cais de Nazareth tornara-se um dos mais importantes e
disputados do Recôncavo sul, garantindo o desenvolvimento agrícola e conferindo aos
gêneros produzidos e ali comercializados elementos articuladores e responsáveis por
modificar a paisagem urbana local34.
Em fins do século XIX, o citado transporte fluvial entre Salvador, Nazareth,
Cachoeira, Santo Amaro e Valença, era uma atividade fundamental da vida econômica do
estado. O vai vem de pessoas que chegavam e partiam avolumava aquela praça. O
memorialista Isaías Alves conta que no início do século XX “o trafego do dia-a-dia crescia; os
hotéis de Nazareth enchiam-se, três dias de viajantes que desciam e três dias dos que
aportavam da capital”35. Era nos hotéis e pensões que existiam naquelas imediações que a
população flutuante se hospedava. Na Praça do Porto, o hotel de 1ª classe, de propriedade da
Sra. Julia de Castro, acomodava os capitalistas e empresários, ao mesmo tempo que os menos
afortunados poderiam se instalar na pensão da mesma proprietária que ficava situada no Largo

31
Os irmãos Coronel Manoel Gonçalves Maia Bittencourt e o Major Antonio de Souza Bittencourt destacaram-
se nas guerras emancipatórias entre 1822 e 1823 como legítimos representantes do Recôncavo sul da Bahia,
cujos significados das lutas se reverteram em um prestigio político da região. Sobre as provisões alimentícias e o
apoio político do Recôncavo, ver: GRAHAN, Richard. Alimentar a cidade: das vendedoras de rua à reforma
liberal (Salvador, 1780-1860). 1ª ed.. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 220-221.
32
ALVES, Isaías. Matas do Sertão de Baixo... p. 28.
33
A afirmação de Ruy Barbosa em campanha civilista na cidade de Nazareth no inicio do século XX foi:
“Nazaré a formosa do Jaguaripe, tem o privilégio de ser uma das portas do sertão baiano!”. Ver: AUGUSTO,
Lamartine. Porta do sertão... p. 05.
34
Além da cana de açúcar e mandioca, o município de Nazaré também cultivou café, fumo e outras culturas em
menor escala como: banana, batata doce, aimpim, anhambú, coco, inhame, melancia, cacau, feijão, milho,
abobora, abacaxi, algodão, arroz, cebola e laranja. Ver: AUGUSTO, Lamartine. Porta do Sertão... p. 32.
35
ALVES, Isaías. Matas do Sertão de Baixo... p. 37.
30

do Camamu. Ainda nas ruas Barão Homem de Mello e do Comércio havia opções de hotéis
administrados pelas Sras. Martinha e Josephina Maria da Conceição36.
Somente em 1891 foram transportados nos trilhos das ferrovias nazarenas 18.635
passageiros, 234.681 quilos de bagagens, 329 animais e 11.145,736 quilos de mercadorias,
como o café e o açúcar e o fumo, bem como 1755 telegramas, somando um fluxo de capital
de 102:132$150.37 A Companhia Bahiana de Navegação a Vapor, por sua vez, pesando 90
toneladas, transportou no mesmo ano cerca de 25.776 pessoas para Nazareth38.
Neste sentido, a despeito de alguns aspectos parcialmente ilustrados na história
concernente ao processo criminal entre Manoel Henrique e José Antonio, que indicam
experiências conflituosas de trabalhadores ocupando papeis essenciais no funcionamento da
comercial cidade, num contexto em que as transformações urbanas, políticas e sociais da
virada do século pautaram um processo descontínuo e agitado39, várias ações desse segmento
populacional, no que diz respeito aos usos e ocupações da cidade, demarcaram um olhar de
comportamento desviante por parte das elites locais, constituindo a representação de um
perigo. Dessa forma, é recorrente na documentação produzida pelo poder municipal do
aludido período perceber uma articulação variada por parte das autoridades em garantir a
denominada ordem e o progresso, máximas da nascente República que ecoaram naquela
cidade e nos discursos da “gente de bem”, pautando a necessidade de garantia dos foros de
civilização.

I. Discutindo ordens e traçando o cotidiano: em busca de alguns trabalhadores

Na terça-feira, 07 de fevereiro de 1893, cinco dias após os festejos da padroeira da


cidade, Nossa Senhora da Purificação de Nazareth, na ebulição da armação das barracas e
chegada dos produtores rurais que traziam seus produtos no lombo das mulas para
comercializar no dia seguinte nos locais estipulados pela municipalidade na Praça do Porto,

36
APMN. Livro de Lançamento de Impostos, Indústrias e Profissões de Nazareth, 1894-1921.
37
Mensagem apresentada a Assembleia Geral Legislativa do Estado da Bahia. Oficio do Engenheiro Fiscal
Affonso Glycério Maciel ao Vice-Governador Joaquim Leal Ferreira. 12 de Março de 1892. Ver: VIANNA,
Francisco Vicente. Memória sobre o Estado da Bahia. Bahia: Typographia e Encadernação do Diário da Bahia,
1893.
38
A Companhia Baiana de Navegação a Vapor fazia 3 viagens por semana para Cachoeira, 3 para Nazareth, 3
para Santo Amaro, sempre nas terças, quintas e sábados. Na linha de Nazareth passava por Aratuípe, Jaguaripe e
Itaparica. Ver: VIANNA, Francisco Vicente. Memória sobre o Estado da Bahia... p. 166. O trem partia às 07h
da cidade de Nazareth e retornava às 11h de Santo Antônio de Jesus. Neste trajeto de 32km ele fazia cerca de 50
minutos. Ver: COSTA, Alex. Ordem e desordem no interior baiano: Ideais de um processo civilizador em Santo
Antonio de Jesus (1890 -1920). Monografia. Especialização em História Regional da UNEB. Santo Antonio de
Jesus, 2004.
39
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril... p. 36.
31

iniciava-se mais uma expedição do agente fiscal Misael Annanias dos Santos em
cumprimento do que determinava as posturas em vigor. Iniciando sua ação fiscalizadora na
Praça do Porto e nas Ruas Barão Homem de Melo, Conselheiro Saraiva e Conselheiro Dantas,
o agente se estendeu às Ruas do Batatã e do Monte Belo, numa tentativa incansável de
verificar o cumprimento da lei e corrigir as infrações através das multas. Por fim, o fiscal
conseguiu multar 17 pessoas entre comerciantes de fazendas, molhados, quitandas, açougues
e ambulantes. Dentre os infratores estavam presentes o comerciante de molhados e padaria de
2ª classe estabelecido na Rua do Comércio, Sr. Agostinho José da Silva Pitanga, o
comerciante de molhados de 3ª classe da Rua Barão Homem de Mello, Sr. Calixto Cupertino
dos Santos, o comerciante de molhados de 4ª classe da Rua Conselheiro Saraiva, Sr. José
Sabino de Freitas, a negociante de Quitandas de 5ª classe da região dos Mulungus, Sra.
Alexandrina Maria e Jesus, o negociante de Quitandas de 5ª classe da região do Monte Bello,
Sr. Manoel Henrique da Silva Rebello e a vendedora ambulante em gamela, Sra. Alexandrina
Maria da Conceição40.
Contestando a ausência da licença para abertura das casas comerciais, o pagamento
dos impostos e tributos, a utilização de pesos e medidas corretas, bem como o asseio dos
estabelecimentos e das atividades desempenhadas pelos ambulantes nas ruas, amparado nas
posturas nº. 20, 21 e 43, a ação fiscal daquele dia flagrou as infrações das normas
estabelecidas pelo poder público, cujo regulamento certamente já era de conhecimento
daquelas pessoas. Tendo em vista isso, o fiscal Misael Ananias dos Santos, em nome do poder
municipal, marcou o prazo de oito dias para que os 17 infratores autuados em flagrante
transgressão pagassem à boca do cofre os valores aplicados, sob pena de serem judicialmente
impelidos.
Nestas casas comerciais era possível encontrar quase de tudo, afinal era neste
comercio varejista, espalhados em diversos cantos da cidade, distribuídos entre casas de
Armazéns, Fazendas, Molhados e Quitandas, nesta ordem hierárquica, que estavam os
gêneros de consumo, alimentícios, produtos de vestuário além dos utensílios domésticos. Os
estabelecimentos mais afortunados disputavam espaço nos jornais locais, como a Tavares
Filhos & Comp., denominada “importante casa de molhados”, sendo ainda “a mais antiga da
cidade”, localizada na Rua Conselheiro Dantas, com filial em Santo Antonio de Jesus.
Igualmente, o armazém de molhados de João do Amaral Coelho, estabelecido na Rua do
Comércio, informava que ali se poderia encontrar “louça, ferragens, cereaes, xarque do Rio

40
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 4 verso.
32

Grande e do Rio da Prata”. O “Grande Armazém de Claudemiro de Britto & Filho”, por sua
vez, orgulhava-se de ter “preços sem competidor” e ser “o mais acurado repositório de
generos alimentícios, vinhos, conservas, doces; variados sortimentos de louças, seção de
quinquilharias”41. Tais estabelecimentos intitulavam-se casas de miudezas e novidades. Os
alimentos preparados, gêneros de primeira necessidade presentes na mesa da população pobre,
bem como as chamadas “bebidas espirituosas” ou “espíritos fortes”, eram possíveis de ser
encontrados por sua vez nas quitandas ou casas de molhados menos afortunadas.
Estes estabelecimentos “eram responsáveis pelo abastecimento da população do
Recôncavo Sul, de maneira que os produtos ali vendidos atendiam as necessidades, tanto de
moradores das cidades, quanto dos que habitavam na zona rural”42. Tais casas comerciais,
além dos açougues, estavam organizadas progressivamente em até cinco classes, cujos
tributos eram cobrados diferencialmente, variando pela localização, movimentação financeira
e gêneros comercializados. Quem vendia os tais “espíritos” a retalho, por exemplo, pagava
além dos tributos correspondentes à sua classe, uma espécie de imposto sobre produto.
Conforme indicam os livros de impostos de indústrias e profissões, eram quase sempre as
quitandas e casas de molhados de 3ª, 4ª e 5ª classe que pagavam este tributo, fato que, por sua
vez as tornava semelhantes, embora algumas casas comerciais de fazendas e molhados mais
afortunadas também comercializassem tais bebidas, pagando, por sua vez, valores
proporcionais do imposto.
Ao mesmo tempo em que indica um marcador social do perfil de frequentadores, o tal
imposto por produto comercializado pode ter se configurado como elemento onerador dos
pequenos comerciantes, uma vez que o valor do mesmo sempre superava o tributo fixo.
Talvez por isso, a negociante de Quitandas de 5ª classe dos Mulungus, região ruralizada, Sra.
Alexandrina Maria de Jesus, tivesse deixado de pagar a licença, sendo multada pelo fiscal em
função disso. Identificamos no livro de receitas da intendência que no dia 14 de fevereiro de
1893 a referida comerciante pagou aos cofres municipais o valor de 6$000 apenas a título da
multa aplicada. Soma-se ainda às licenças atrasadas que, segundo o orçamento daquele ano
seria 16$000, sendo 10$000 do lançamento da sua “indústria” e 6$000 do comércio dos
“espíritos fortes”. Portanto, um valor onerador total de 22$000. O levantamento abaixo reflete
a hierarquização das casas comerciais, por indústrias e classes, bem como quanto ao
pagamento do adicional da venda dos “espíritos fortes”.

41
AFEM. Jornal O Regenerador. Nazareth, 26 de Julho de 1911.
42
SACRAMENTO, Cleidivaldo de Almeida. Mundos de trabalho no Recôncavo Sul... p. 182.
33

Tabela I: Distribuição dos impostos de indústrias em 1894 segundo as respectivas classes


CONTRIBUINTE RUA INDÚSTRIA/ LANÇAMENTO
CLASSE IND. ADD. ESP.
FORTES
Alexandrina Mª Jesus Mulungus Quitanda – 5ª 6$000 10$000
Laurindo C. de Mello Homem de Mello Molhados - 4ª 10$000 10$000
Domingos Curcio Cons. Saraiva Molhados – 3ª 15$000 20$000
Militão José do Lago Homem de Mello Açougue – 3ª 15$000 ----------
Manoel G. Melhor Batatã Molhados – 2ª 20$000 30$000
João Dias Tavares Comércio Fazendas – 1ª 25$000 40$000
José B. Silva Pitanga Porto Molhados – 1ª 25$000 40$000
Pinto & Irmãos Comércio Armazém – 1ª 35$000 ----------
Martinho Roberto Porto Fazendas – 2ª 40$000 ----------
Fonte: APMN. Livro de Lançamento de Impostos, Indústrias e Profissões de Nazareth, 1894-
1921.

Comerciantes mais abonados, de 1ª e 2ª classes, estabelecidos em importantes ruas da


cidade, já tinham o hábito de pagar taxas mais elevadas, uma vez que auferiam maiores lucros
com a diversidade de produtos comercializados. Entre estes estava o Tenente Coronel Sr.
Agostinho José da Silva Pitanga que possuía um “grande armazém e padaria”, na Rua do
Comércio, com anúncio no jornal O Regenerador, que indicava: naquele “bem montado
estabelecimento encontra-se um grande sortimento de todas as qualidades” 43 . Ali e no
estabelecimento do seu ente familiar, José Bonifácio da Silva Pitanga, apontado na tabela
acima como proprietário de uma casa de molhados de 1ª classe na Praça do Porto, que por sua
vez deveria pagar o valor de 40$000 pelo comércio dos espíritos fortes, diversas infrações às
posturas e regulamentos também eram cometidas, ainda que por razões distintas dos pequenos
comerciantes. Ou seja, tomando como exemplo a obrigatoriedade do pagamento das licenças
e taxas, apesar dessa enquadrar do mesmo modo os pequenos e os grandes comerciantes,
respeitando a proporcionalidade dos valores, o não pagamento ou infração das posturas e
regulamentos tinham seus motivos específicos. Esse caso foi compartilhado na expedição do
fiscal Misael Ananias dos Santos que, entre os 17 infratores, enquadrou no artigo 21 os
Senhores Manoel Henrique da Silva Rebello, proprietário uma Quitanda de 5ª classe no
Monte Bello, e Tertuliano Coelho Sampaio, proprietário de uma casa de Fazendas de 1ª classe
na Rua do Comércio. Embora ambos fossem comerciantes, a qualidade e expressividade das
“suas indústrias” os distinguiam. Enquanto a primeira estava estabelecida na região ruralizada
do Monte Bello, conhecida por popularmente como Jacaré, por ter sido um antigo engenho
43
FBN. Jornal O Regenerador. Nazareth, 10 de Agosto de 1902.
34

com este nome, cujas atividades ali existentes giravam em torno de muitas olarias e serrarias,
o segundo empreendimento ocupava a maior parte dos anúncios nos periódicos locais. Entre
leques de plumas, bicos de todas as cores, meias e chapéus para homens e cretones – espécie
de tecido encorpado com urdidura de cânhamo utilizado na confecção de colchas e cortinas –,
a casa de fazendas de Tertuliano Sampaio comercializava o que havia de moderno no
período44.
Computando o livro de receitas da intendência municipal, percebi que, enquanto
Tertuliano Coelho Sampaio havia feito o pagamento da multa que incorreu no valor de 6$000
no dia 07 de fevereiro, mesmo dia da autuação, Manoel Henrique da Silva Rebello só o fez no
dia 04 de Abril de 1893 – no terceiro capítulo desta dissertação, veremos a celeuma que
envolveu a família deste último. Dos 17 infratores, consegui identificar que apenas sete deles
cumpriram a ordem de quitar a multa em oito dias, prazo que se encerrou em 15 de fevereiro
de 1893. Neste dia, Tiburcio Dias Honorato, proprietário de uma casa de molhados de 4ª
classe na Rua Conselheiro Saraiva, também dispensou os 6$000 aos cofres municipais. Os 10
comerciantes restantes protelaram o pagamento o quanto puderam, de modo que muitos deles
pagaram a multa apenas no ano seguinte, como foi o caso do Sr. Manoel Gonçalves Melhor,
proprietário da casa de molhados de 2ª classe localizada no bairro do Batatã, que pagou os
6$000 da multa apenas em 23 de janeiro de 1894.
Ao tentar identificar estes infratores, segundo as atividades que exerciam, para
compreender as razões de alguns terem pagado a multa de imediato, outros dentro do prazo
dado e a grande maioria terem, a priori, ignorado o prazo, percebi que alguns daqueles
comerciantes multados pela ação dos agentes fiscais estavam imersos num cotidiano recheado
de conflitos enfrentados com o poder municipal, de modo que alguns não aceitaram
tacitamente as multas. Alguns, como Felisberto do Amaral, Agostinho José da Silva Pitanga e
Manoel Gonçalves Melhor, já eram reincidentes na infração das posturas. Outros que
resistiram ao pagamento da multa recorreram ao intendente solicitando o perdão. Alguns
tiveram seu pleito deferido, como o exemplo da comerciante de molhados da Rua do Batatã,
Sra. Avelina do Lago, que se livrou do pagamento de 30$000; outros, por sua vez, tiveram o
pedido indeferido, como a vendedora ambulante em gamela, Sra. Alexandrina Maria da
Conceição, que mesmo assim deixou de efetuar o pagamento, no valor de 30$00045. Este dado
leva-nos ao questionamento sobre ou quem foi mais convincente ou quem causava menos

44
FBN. Jornal O Regenerador. Nazareth, 17 de Março de 1894.
45
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 4v.
35

temor com a falta de licença para o exercício comercial. Neste caso: a comerciante de
molhados ou a vendedora ambulante? Afinal, a infração cometida e a multa foram a mesma!
O perdão da multa da primeira nos permite pensar sobre a proposta ideológica dessas
posturas municipais e a política de sanções decorrentes da mesma. Enquadrar a vendedora
ambulante e perdoar a comerciante de molhados na mesma infração, ainda que sua casa
comercial fosse de 4ª classe e muito próxima das condições das quitandas que tornaram-se
alvo das posturas, é sintomático das perseguições que sofreram os trabalhadores em trânsito
da cidade. De todo modo, as fontes revelam que aquelas taxas, impostos e tributos oneravam
ainda mais os comerciantes empobrecidos, tendo os mesmos que formular estratégias de
escapar dos pagamentos.
Sem limitar-se a uma medida meramente administrativa, tais protocolos empreendidos
pelo fisco municipal junto ao comércio de uma forma geral, ao mesmo tempo em que
significava o recolhimento de valores, expressavam-se também como medidas de controle das
atividades, espaços e pessoas. Os vendedores ambulantes, por seu trânsito ininterrupto em
quase toda a cidade ou pelos seus tabuleiros armados em locais indevidos, bem como o
pequeno comércio varejista, especialmente quitandas e casas de molhados de ultimas classes,
sofriam as incessantes formas de controle não apenas pela condição dos seus produtos e
estabelecimentos, mas devido aos comportamentos das pessoas que ali se juntavam. Logo,
tanto o imposto sobre produtos como das “bebidas espirituosas”, como as variadas e onerosas
licenças, taxas e tributos, além de um marcador funcionava como um filtro social, uma vez
que além de tentar enquadrar os estabelecimentos às normas, buscava identificar as pessoas
segundo o exercício das suas atividades e os espaços que poderiam concentrar as “classes
perigosas”.
Em quitandas e botequins, estavam pessoas como Geraldo de Souza, que fora
apresentado ao chefe de policia em 26 de março de 1890 em Salvador, pelo delegado da
cidade, por “dar-se ao vicio de embriaguez, aterrando as famílias e aos cidadãos pacíficos
n’aquella localidade”46. Do mesmo modo, em 24 de setembro do mesmo ano, a crioula Maria
Adelaide seguia o mesmo caminho, por conta “da sua má indole, e as publicas offensas á
moral e bons costumes” onde quer que passe47. A prisão destes transgressores da ordem social
e moral, publicada pelo “pequeno jornal”, periódico de circulação na capital do estado,
intitulado “propriedade de uma associação”, cujos redatores eram Eduardo Carigé e Cerqueira

46
FBN. Jornal O Pequeno Jornal. Salvador, 26 de Março de 1890.
47
FBN. Jornal O Pequeno Jornal. Salvador, 24 de Setembro de 1890.
36

Lima, é sintomática da preocupação com os comportamentos e espaços frequentados por


alguns sujeitos.
Em depoimento dado nos autos de abertura do processo criminal aberto em 1909 para
investigar o espancamento sofrido por Maria Eufrosina da Conceição, 25 anos, parda, solteira,
trabalhadora doméstica e natural de Jaguaripe, a agredida relatou que:

Estava ella em casa da sua residência na janella, a rua da Lama,


quando para ali dirigiu-se João conhecido por João de Juliana e
entrando em sua casa no que ela respondente observou-lhe que não
deveria ali ter entrado pois a mesma não tinha lhe dado liberdade e o
mesmo precisava respeitar. [...] Nisto João retirou-se entrou em casa
de Moreira, tomou um pouco de bebida e de novo entrou em sua casa
procurando dirigir-lhe palavras obscenas as quais ela respondente
devolvia irritada, hora em que foi agarrada por João que deu-lhe
diversas pancadas com um cacete.48

Embora os fatos que tenham dado origem à contenda que resultou no espancamento de
Maria Eufrosina tenham girado em torno das propostas amorosas feitas pelo sujeito conhecido
por João de Juliana, as quais não foram bem recebidas, sendo veementemente rejeitadas pela
mesma, a decisão do agressor em espancá-la se deu após tomar algumas bebidas por um bom
tempo na casa de negócios de Moreira. Maria José da Silva, 25 anos, casada, natural de Castro
Alves e empregada no serviço doméstico, ao acompanhar a confusão por residir entre a casa
de Maria Eufrosina e o negocio de Moreira confirmou “que o dennunciado voltou, entrou na
casa de Moreira e de lá proferiu palavras para a offendida prometendo enforcá-la” 49 . O
negociante João Moreira dos Santos, 27 anos, solteiro e natural de Santo Amaro, por sua vez,
não podendo divergir da maioria dos testemunhos que apontaram a presença de João de
Juliana em seu estabelecimento tomando as “bebidas espirituosas” e proferindo as “palavras
obscenas”, revelou que:

[...] vio o indiciado João de pé na porta da mesma, assim como a


offendida proferir para o indiciado palavras um pouco indecentes pelo
fato de ter o indiciado quando chegou a porta feito uma observação a
offendida por ter se retirado da janela; que o indiciado procurou o
amasio da offendida relatando o acontecido, pedio providencias e
disse que se estas não fossem tomadas dava na offendida; que mais
tarde vio elle testemunha uma soada dentro da casa da offendida e
immediatamente sahio o indiciado que recebera pelas costas uma
cadeira de ferro [...] que depois do feito, João o indiciado entrou em

48
AFEM. Processo Crime. Caixa sem classificação. Ano: 1909.
49
AFEM. Processo Crime. Caixa sem classificação. Ano: 1909.
37

sua casa de negocio e proferira palavras da seguinte forma: que ainda


não conheciam elle [...] conhece o indiciado há cinco anos...50

O depoimento de Moreira tenta minimizar a culpa do agressor, dando ênfase atitudes


da agredida, inclusive admitidas pela mesma, mas que para o negociante seriam contrárias a
sua condição feminina, como o ato de proferir palavras indecentes e jogar num homem uma
cadeira de ferro. Ao inserir no depoimento a história da conversa do ofensor com o amásio da
ofendida, inclusive enquanto agente responsável por corrigir tais transgressões morais, o
depoente mostra que tinha amplo conhecimento sobre toda a trama, o que revela dois aspectos
importantes: primeiro, que boa parte da sucessão dos fatos se deu em sua casa de negócios,
onde João de Juliana embriagou-se antes de espancar a vítima; segundo, que há a tentativa de
acobertamento do agressor, seu assíduo cliente e de longa data.
Esse discurso de Moreira ante aos fatos que enquadraram João no artigo 303 do código
51
penal , levando-o a prisão celular por três meses, é revelador das aproximações entre tais
negociantes e sujeitos como o agressor João de Juliana, o viciado Geraldo de Souza e a
ofensiva Maria Adelaide, considerados “incivilizados e perturbadores”. As relações
estabelecidas entre ambos poderiam ser reflexo de laços de parentesco, naturalidade,
vizinhança ou simplesmente de clientela, como parece ser o caso de João Moreira e João de
Juliana.
A deterioração do processo criminal não permitiu visualizar o depoimento do agressor,
para identificar o seu perfil ocupacional e maiores detalhes da sua versão da história; contudo,
as vozes das testemunhas e a sentença da justiça são bastante reveladoras dos meios de vida
empregados por aquele sujeito e dos vínculos estabelecidos nos espaços que ele circulava.
Outrossim, espaços de trabalho para uns e de lazer para outros, mas recheado de
sociabilidades, como o negócio de Moreira, a casa de molhados de Avelina do Lago e a
quitanda de Manoel Henrique Rebello quando sofriam o assédio dos fiscais aplicando multas
e cobrando impostos, estavam também sendo mirados por aquelas “micro” autoridades que
viam cotidianamente novas pessoas chegarem naquela cidade e emaranharem-se no ramo dos
negócios, competindo com os proprietários mais abonados.

50
AFEM. Processo Crime. Caixa sem classificação. Ano: 1909.
51
“Art. 303. Offender physicamente alguem, produzindo-lhe dôr ou alguma lesão no corpo, embora sem
derramamento de sangue.” Cf.: BRASIL. Código Penal da República dos Estados Unidos do Brazil. Decreto n.
847 – de 11 de outubro de 1890.
38

Foi o que aconteceu em 11 de Abril de 1894 quando um grande volume das fazendas 52
do mercador ambulante Ladislau Talmi, italiano recém-chegado e residente em Nazareth,
foram apreendidas pelo fiscal municipal e seus agentes auxiliares nas proximidades do centro
comercial da cidade53. Não sabemos ao certo qual o dispositivo regulamentar que restringia
aquela atuação mercantil, uma vez que não há a menção ao motivo da apreensão no livro de
requerimentos da intendência onde está registrado este expediente. Talvez, considerando
inclusive a ausência da licença para atuar naquela atividade, é possível cogitar que a
apreensão dos produtos comercializados pelo mercador ambulante tenha sido resultado da
ação de negociantes estabelecidos nas suntuosas casas que comercializavam aqueles mesmos
produtos, e viam as atividades do pequeno negócio ambulante empreendidas por Talmi como
uma “concorrência desleal”54.
Embora a opção mais comum dos trabalhadores residentes e dos que aportavam em
Nazareth eram a de atuar no pequeno comércio varejista – viver deste significava estabelecer-
se em pequenas vendolas e da exposição de produtos em tabuleiros55 – e nas atividades dos
serviços urbanos em diferentes arranjos de sobrevivência, transitando pelas periferias e ruas
centrais, muitas pessoas que chegavam a Nazareth aportando algum capital conseguiam abrir
modestas casas comerciais ou industriais, se estabelecendo nas imediações do porto
exportador. Tais casas também não ficaram imunes aos mecanismos do poder municipal, seja
numa ação fiscalizadora mais ampla ou mesmo na cobrança de impostos e taxas56. O caso dos
17 infratores multados numa só “expedição” do agente municipal comprova a existência de
uma variedade de casas e meios de negociar em Nazareth, seja com disciplina ou com burla,
aceitando ou contestando às normas. É revelador ainda do número grandioso e variado de
estabelecimentos comerciais, bem como de trabalhadores autônomos, as diversas requisições
que chegavam ao poder público contestando os valores cobrados pela municipalidade por
diversos tributos, inclusive daqueles negociantes e trabalhadores não satisfeitos com a ação
fiscal. Ainda que não sendo do comércio de alimentos, em 12 de junho de 1893, a secretaria
da intendência municipal recebia uma reclamação que foi registrada da seguinte forma:

52
As “fazendas” eram os tecidos, artigos de vestuário, livros, instrumentos musicais, utensílios domésticos,
peças em metal, louças, especiarias, objetos de armarinho, papelaria, etc .
53
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 29.
54
CASTELLUCCI JUNIOR, Wellington. Pescadores e Roceiros... p. 82.
55
CASTELLUCCI JUNIOR, Wellington. Pescadores e Roceiros... p. 77
56
Em estudo amplo sobre as atividades do pequeno comércio varejista e dos comerciantes estabelecidos em
casas fixas, Wellington Castellucci Júnior destacou a disputa existente entre ambas as categorias e a capacidade
de sobrevivência da população heterogênea e destituída de posses. Ver: CASTELLUCCI JUNIOR (2008).
39

Requerimento de João José da Matta, artista, relojoeiro, em pequena


officina à rua do Barão Homem de Mello reclamando contra o
lançamento de sua casa para o pagamento do imposto de industria e
profissão, visto ser o supplicado um simples concertador de relógios,
sem ajudante.57

O esforço de João José em contestar o valor do imposto por não ter uma empresa
comercial, mas por ser um “simples artesão”, muito menos o fato de registrar não ter ajudante,
não foi o suficiente para convencer imediatamente o Intendente da necessidade do não
pagamento. Reiterando a solicitação em 01 de agosto de 1893, comprovando o alegado com
um “nós abaixo assignado” dos residentes da rua Conselheiro Saraiva da qual havia se
mudado, bem como da rua Barão Homem de Mello, nova residência, o artista conseguiu a
dispensa do pagamento. Do mesmo modo, em agosto de 1893 um requerimento do negociante
Manoel Euraguido de Sant”Anna reclamava que sua loja de fazendas havia sido lançada no
imposto municipal na categoria de 2ª classe, classe da qual deveria pagar o valor de 40$000,
quando era na verdade “uma principiante casa de negócios de pequena escala” 58 . Após a
contestação, o negociante conseguiu enquadramento para 3ª classe, com consequente
diminuição do valor devido ao município. Igualmente, em 1900, o Conselho Municipal, após
profundo debate e o consequente parecer da comissão da fazenda daquela instituição, resolveu
enquadrar – de forma contrária ao despacho emitido pelo intendente municipal em primeira
instância –, a casa comercial do negociante Candido Baptista Leony, situada na Rua do
Comércio, na categoria de 3ª classe, diminuindo o valor do imposto59.
Se essas atitudes dos sujeitos sociais locais se expressavam como estratégias de
escapar dos altos e injustos valores do fisco, tais táticas acomodativas eram possíveis de
serem alcançadas pela resolução da equação entre o peso das atividades que desempenhavam
e o que lhes eram cobrados 60 . Contudo, nem todas discussões pautavam-se a partir de
questões monetárias, tampouco restringiam-se aos trabalhadores autônomos e aos negociantes
empobrecidos ou mais prósperos. Reivindicações de direitos também já estavam sendo
elaboradas por trabalhadores em constituição de classe quando viram seus modos de vida
alterados por medidas que, no fin de siècle, reconfiguravam os mundos do trabalho, diante da

57
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 15 verso.
58
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 20.
59
APMN. Livro de Registro das Decisões, Resoluções e Leis do Conselho M. de Nazareth, 1893-1915, p. 55 v.
60
Sobre as “táticas acomodativas”, levamos em consideração o entendimento de Maria Helena Pereira Toledo
Machado do qual tal mecanismo proporcionava ganhos materiais sem os chamados “confrontos diretos”. Ver:
MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e Escravidão: Trabalho, luta e resistência nas lavouras
paulistas (1830-1888). São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 111.
40

crise do escravismo e constituição do trabalho livre. Essa preocupação manifesta-se no oficio


encaminhado pelos vereadores de Nazareth ao Presidente da Província em de agosto de 1887:

Cumprindo quanto ordena V. Excia. a esta Câmara em officio de 6 de


agosto corrente cabe-lhe informar a V. Excia. que dizendo a
Resolução de 18 de Julho de 1878 – fica prohibido o commercio da
cidade de Nazareth nos domingos e dias santificados, não se limitam a
determinar que se não abram casas commerciais, mas prohibe toda
espécie em gênero de negocio. Desde a promulgação de semelhante
lei, Exmo. Snr. uma constante lucta se estabeleceo entre a Câmara e
negociantes que se tem sempre eximido de cumpril-a, ora alegando
que podem ter as casas abertas contanto que não vendam e não
comprem, pois é o que phohibe a lei em questão, ora que não deve a
Câmara impor multas somente aos que tem casas abertas, quando não
prohibe o grande pequeno commercio, que largamente se faz fora das
casas de retalho. Pelas rasoes expostas foi a citada lei quase letra
morta durante o quatriênio passado. A Câmara actual, solicita no
cumprimento das Posturas que teve por sua vez praticamente o
conhecimento de que é impossível prohibir o commercio nos dias
santificados, e comprehende-se, Exmo. Snr. que nunca poderá um
único agente da policia municipal – o fiscal – intervir efficazmente
para que seja observada a postura de que trata e tem dado sempre
logar a uma infinidade de queixas e reclamações, trazendo ao
commercio atropello, prejuízos e embaraços. Não obstante tem sempre
a Câmara recommendado a seu agente o cumprimento d’essa como
das outras posturas. Mas, considerando nos grandes inconvenientes já
apontados, e mais ainda que a citada lei é contrária a doutrina
consagrada nos art., digo nos pharagrafos 22 e 24 da Constituição do
Império, resolvo solicitar do poder competente a derrogação da dita lei
ou postura, como se vê no Relatório a V. Excia enviado em 14 de
Julho próximo findo para ser apresentado a Assembleia Legislativa
Provincial. Depois dessa justa e criteriosa deliberação, alguns
cidadãos pediram a Câmara que não solicitasse a derrogação em
questão, petição ou representação que a Câmara indeferio
fundamentando-se no que vem de expor a V. Excia.61

Em conflito com os negociantes desde a promulgação da resolução de 18 de Julho de


1878, a qual proibia “o comercio da cidade de Nazareth nos domingos e dias santificados”, o
oficio da Câmara ao Presidente da Província deixava claro que “foi a citada lei quase letra
morta durante o quatriênio passado” por conta das inúmeras reclamações, recusas e estratégias
dos negociantes em cumpri-la. No discurso da Câmara, as tensões em torno do cumprimento
da lei estavam relacionadas, sobretudo, à continuidade das atividades do pequeno comércio
ambulante nos dias em que estavam proibidas a abertura das casas comerciais, e o limitado
número de agentes fiscais e policiais disponíveis para fazer valer a lei e a postura. Neste
ínterim, os proprietários das casas comerciais, ousando mantê-las abertas, para tentar escapar

61
APMN. Livro de Registro de Oficio e Comunicações da Câmara Municipal de Nazareth, 1877–1902. p. 52 e v.
41

das multas, usavam a justificativa de poderem fazê-lo, desde “que não vendam ou comprem,
pois é o que proíbe a lei em questão”.
Ao infringir a norma, os comerciantes pretendiam manter a margem de lucro auferida
com seus negócios, sobretudo porque, à revelia da lei, os vendedores ambulantes
permaneciam atuando, provocando ao mesmo tempo uma concorrência e, na visão dos
comerciantes, um enquadramento desigual para quem trabalhava quase sempre com as
mesmas mercadorias. Deste modo, a transgressão a essa lei parecia ocorrer de forma
escancarada, uma vez que ineficientemente a municipalidade não conseguia controlar as
atividades comerciais, usando como justificativa a insistência e estratégias dos comerciantes e
seu limitado poder de polícia. Interrogar esse discurso da “ineficiência” é perceber, portanto
que ele serviu de subsídio para o pedido da derrogação da postura que, grosso modo,
“penalizava” os comerciantes e causava “grandes inconvenientes”. Empenhados em
normalizar a questão, os nobres vereadores preferiram, não por acaso, enveredar pelo lado
mais prático e rentável: atender aos interesses do grande comércio, tentando revogar a lei cuja
transgressão era prática comum.
Por outro lado, cabe questionar quem são aqueles cidadãos, citados de forma genérica
nas entrelinhas do documento, cujas vozes foram deliberadamente negligenciadas pelas
autoridades por terem feito uma representação contrária à condução das medidas que tocaram
nos interesses dos comerciantes? Mesmo sem a indicação precisa naquele documento se
aqueles “alguns cidadãos” referiam-se a categorias especificas, não é ir muito longe pensar
que os mesmos poderiam ser os vendedores ambulantes, citados e atacados no ofcio, que, por
sua vez, com a execução da lei, lucrariam com o fechamento por um período maior dos
estabelecimentos comerciais; ou mesmo os empregados das casas comerciais, os denominados
caixeiros, promovendo uma outra luta em prol do que viriam a se entender por jornadas de
trabalho.
Um documento encontrado no fundo das correspondências recebidas pela Câmara
Municipal de Nazareth mostra um parecer emitido em 04 de outubro de 1887 pela Comissão
responsável na Assembleia Legislativa Provincial e encaminhado ao Presidente da Província,
chamando a atenção para a legalidade da postura, a competência legislativa daquele órgão e
por fim recomendando a manutenção do ato, que em sua análise não feria algum dispositivo,
até que o poder competente a revogasse62. Contudo, a despeito da indicação da manutenção da
postura que versava sobre a proibição do comércio, com exceção das casas de pasto e boticas,

62
APEB. Série Governo. Seção Colonial e Provincial. Correspondências da Câmara de Nazareth. (1876- 1888)
Doc.nº. 15.
42

que poderiam funcionar até a noite, e as padarias e casas de retalho que funcionariam até meio
dia, contrariamente ao discurso dos comerciantes reproduzidos pelos vereadores de que seria
“toda espécie em gênero de negocio” a fim de justificar suas ações, o parecer trás em primeira
mão dados parcialmente ditos na comunicação dos vereadores ao Presidente da Província:

Os caixeiros empregados nas casas commerciais da Cidade de


Nazareth representam contra a Câmara Municipal por não ter dado
execução á Resolução de 18 de Junho de 1878, que prohibe o
commercio nos domingos e dias santificados. Quer no despacho por
ella proferido em 30 de junho do corr. anno no requerimento de
diversos negociantes d’aquela cidade, quer na informação ministrada a
V. Excia. em cumprimento o officio de 6 de agosto ultimo, diz que a
alludida Resolução é contrária a doutrina [...] da Constituição.63

Portanto, a aparente queda de braço que a Câmara Municipal relatou ter tido com os
comerciantes, fora provocada antes pela representação que os caixeiros fizeram junto aos
vereadores no sentido de executar a Resolução, que pelo incômodo dos vereadores em ver
aquela regra ser transgredida. Neste sentido, com o discurso da ineficiência, da ilegalidade
da Resolução e das estratégias dos comerciantes, apontando os ambulantes como concorrentes
que não sofriam a mesma fiscalização, a câmara municipal, formada tradicionalmente por
grandes proprietários comerciantes, mostrava quem ela estava defendendo 64 . No relatório
encaminhado à Assembleia Provincial em 14 de julho de 1887, os vereadores foram mais
categóricos na advocacia, expondo as necessidades do município nos seguintes termos:

A experiência tem mostrado que é quase impossível a execução das


Resoluções de 18 de Julho de 1878 e 13 de agosto de 1883,
prohibindo comerciar-se nos dias santificados, não só pelos termos
vagos que elas são concebidas, como pelas condições peculiares do
comercio d’este município e dos visinhos, em que o inveterado
costume de feiras nos últimos dias da semana vem crear a necessidade
de largas transações nos domingos e de muitos trabalhos commerciaes
que a ellas se ligam; por isso, e por outras circunstancias que seria
longo enumerar, constituem as ditas leis serio embaraço ao
commercio, dando logar a uma constante lucta entre negociantes
e a municipalidade.65

63
APEB. Série Governo. Seção Colonial e Provincial. Correspondências da Câmara de Nazareth. (1876- 1888)
Doc.nº. 15.
64
Em 1887 a Câmara Municipal de Nazareth era assim composta: Dr. Cândido Figueiredo (proprietário de
Alambiques no Jacaré), Dr. Adriano Francisco dos Santos (proprietário de farmácia na Praça do Porto), Dr.
Alexandre José de Barros Bittencourt (médico e fazendeiro), Antonio da Silva Farias (Comerciante de casas de
molhados de 1ª a 3ª classe na Rua Barão Homem de Melo), José Soares do Amorim (Comerciante de casas de
molhados na Lapinha) e Claudio de Araújo Góes (proprietário de serrarias no Monte Bello). Ver: APMN. Livro
de Lançamento de Impostos, Industrias e Profissões de Nazareth 1894-1921.
65
APMN. Livro de Registro de Oficio e Comunicações da Câmara Municipal de Nazareth, 1877–1902. p. 51.
43

Para justificar o caráter atrasado e limitador das Resoluções, os vereadores se


empenharam em caracterizar aquele território que havia nascido na segunda metade do século
XVI em torno dos engenhos de açúcar, que a seguir transformaria-se em uma das principais
vias de acesso e escoamento de mercadorias procedentes dos sertões e do litoral, moldada a
partir da interação entre a capela, a praça e a suas movimentadas feiras livres, onde se
juntavam os vendedores e compradores dos variados locais que ali chegavam por vias
terrestres ou marítimas66. Para os vereadores, o caráter eminentemente comercial de Nazareth
deveria ser respeitado: primeiro, porque a cidade já era conhecida naquele período pelo
codinome das Farinhas em função do comércio daquele produto, sendo que o cultivo da
mandioca se dera por lei desde o período colonial; segundo, por ser especialista na função
primordial de produzir e garantir o escoamento dos gêneros alimentícios de primeira
necessidade aos principais centros urbanos; além disso, Nazareth fornecia, juntamente com
Jaguaripe, cerca de 43% de toda farinha consumida em Salvador durante boa parte do século
XIX. Nas feiras de Nazareth vendiam-se cerca de 10 a 12 mil alqueires de farinha67.
Retomando as discussões propostas nas trocas de correspondências entre os poderes
constituídos nos finais do oitocentos ante as disputas dos caixeiros, comerciantes e
ambulantes, percebemos que, talvez, em função da continuidade destas tensões, sobretudo na
prática comum do funcionamento do comércio e das atividades correspondentes em todos os
horários e todos os dias e a dificuldade de cessá-la, sacrificando trabalhadores que
“trabalhando sol a sol, entrando pela noite”68, em 26 de Janeiro de 1893, aquela Resolução foi
alterada pela postura instituída pela lei nº4 do ano em curso que estabeleceu o seguinte:

Art.º 1º. Fica prohibida a vedagem nas casas de negocio nos domingos
e dias santificados, das 3h da tarde em diante, sob pena de 10$000 de
multa e o dobro nas reincidências. Art.º 2º. Exceptuam-se as casas de
pasto, hotéis e pharmácias que poderão conservar-se abertas até a
noite. § Único. Os talhos e açougues se regularão pelas posturas em
vigor. 69

Permitindo o funcionamento nos domingos e dias santificados, já existente na prática e


contra a lei, até às 15h da tarde, a postura de 1893 legalizava, portanto a ilicitude. A questão
parecia estar sanada com este novo ordenamento, pois a despeito da permanência dos hábitos

66
SOUZA, Edinélia Maria Oliveira. O Pós-Abolição na Bahia... p. 229.
67
GRAHAM, Richard. Alimentar a cidade... p. 138.
68
ALVES, Isaías. Matas do sertão de baixo... p. 235.
69
APMN. Livro de Registro das Decisões, Resoluções e Leis do Conselho M. de Nazareth, 1893-1915, p. 52.
44

de comercializar livremente, da dificuldade de enquadrar os negociantes na lei e com as


denúncias dos empregados do comércio, a municipalidade finalmente conseguiria mediar a
situação, de modo que atendesse aos diversos interesses. Contudo, como uma questão
relacional que envolvia múltiplas categorias de sujeitos envolvidos, quase sempre em uma
queda de braço que transcendia os limites das casas comerciais e chegava aos espaços solenes
do Paço Municipal, gerando acaloradas discussões, em 16 de novembro de 1894, 22 meses
após a alteração da postura, o intendente Dr. Alexandre Freire Maia Bittencourt, promulgava
o seguinte edital:

O Conselho Municipal, em sessão do dia 14 deste, sobre o


requerimento dos negociantes e empregados no comercio de fazendas
e molhados desta cidade, resolveu alterar a postura de 26 de janeiro de
1893, para que as ditas casas de negocio se fechem ás 12 horas dos
domingos e dias santificados, incluindo-se o dia 15 de novembro,
prevalecendo as mesmas excepções e a multa imposta pela dita
postura aos infractores.70

Ao alterar a postura que limitava o funcionamento das casas comerciais até às 15h da
tarde, reduzindo-o até às 12h a pedido “dos negociantes e empregados no comércio de
fazendas e molhados”, o poder municipal revela como as disputas em torno do horário de
funcionamento do comércio não haviam saído da pauta e que a briga que se estabelecera
desde 1887 era dos comerciantes mais abonados, aqueles que disputavam as páginas dos
jornais para anunciar seus modernos artigos e produtos. Lembremos que em 1887 a
representação dos caixeiros foi imediatamente indeferida pela Câmara, a partir de um teor que
desarticularia a proposta acordada entre comerciantes e vereadores. Isso não se repetiu em
1893, pois o requerimento acatado naquele momento era dos empregados e comerciantes. Se,
no primeiro momento, as tensões aparentemente eram entre a Câmara e os comerciantes,
mesmo envolvendo os ambulantes e os caixeiros, num contexto seguinte, isso resultou na
alteração da lei com proveito para o segundo por força da prática.
O conflito de longa data que reaparece em 1893 envolvia, naquele momento, os
negociantes e empregados do comércio, uma vez que embora a prática fosse outra, a postura
de 1878 proibia o funcionamento do comércio, ao passo que a de 1893 permitia até às 15h. O
fato das duas categorias terem requerido de forma conjunta a reforma dessa postura,
garantindo a nova redação que limitou o funcionamento do comércio até às 12h, não significa
que eles tinham um discurso uníssono de pura e simples concordância. Tendo em vista a luta

70
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 40 verso.
45

dos comerciantes em manter o costume da abertura das suas casas comerciais nos domingos e
dias santificados e a legalidade da prática obtida após as diversas estratégias e contestações às
autoridades constituídas, o requerimento em nome “dos negociantes e empregados no
comércio” pode expressar uma síntese dos conflitos existentes entre ambos que se perdurava
desde as denúncias em 1887. A partir disso, os empregados acabaram ganhando mais 3 horas
de descanso em relação à postura de 1893.
Ao que parece essas reivindicações dos caixeiros, ainda que não articuladas
diretamente, pois não temos material que ateste tal fato, expressavam algumas reivindicações
de classe em processo de formação, surgidas na segunda metade do século XIX no Rio de
Janeiro, maior centro comercial e exportador do país, quando preceitos católicos foram
evocados para respaldar protestos de trabalhadores do comércio, com objetivo de reservar
tempo para o descanso e lazer. Em estudo especializado sobre tais questões, a historiadora
Juliana Teixeira Souza nos leva a pensar que, no momento em que estavam sendo operadas
diversas mudanças na organização do mundo do trabalho, as atitudes empenhadas pelos
empregados do comércio em requerer o fechamento das casas comerciais às 12h em 1893 e o
cumprimento da Resolução de 1878, significava uma luta reivindicatória de longa data em
torno da redução da escala de trabalho, uma vez que as jornadas eram intensas, e folgas e
descansos eram motivos de constantes conflitos com os empregadores, dependendo quase
sempre da capacidade de persuasão dos empregados71.
Em face da luta que se estabelecera entre a câmara e comerciantes e ambulantes a
respeito do horário de funcionamento das casas comerciais, os empregados do comércio
foram, a principio, os mais prejudicados nas primeiras instruções normativas, uma vez que
ainda com lucros inferiores, os ambulantes e trabalhadores do pequeno comércio trabalhavam
para si e facultavam as suas necessidades os horários de trabalho, o que não era permitido aos
empregados, pois tinham que cumprir os exaustivos horários. Eles estavam, deste modo,
sujeitos aos interesses dos comerciantes que pretendiam manter suas casas comerciais abertas
todos os dias, do amanhecer até o toque de recolher após as 22h da noite. Ao mesmo tempo,
as fontes mostram que os trabalhadores se mostraram insatisfeitos, resistindo às
determinações. O fato é que, quando os trabalhadores perceberam que aquelas leis já
existentes e não executadas os beneficiavam e configuravam direitos, eles se apropriaram
dessas para assegurar conquistas.

71
SOUZA, Juliana Teixeira. Dos usos da lei por trabalhadores e pequenos comerciantes na Corte imperial
(1870-1880), In: AZEVEDO, Elciene et alii (Orgs.). Trabalhadores na cidade: cotidiano e cultura no Rio de
Janeiro e em São Paulo, séculos XIX e XX. 1. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2009. p. 204.
46

Ao que tudo indica, a pauta dos empregados do comércio se estendeu ainda mais, pois
em 03 de Junho de 1895 o Conselho Municipal comunicava ao intendente que, em sessão
ordinária ocorrida no dia 01 do mês em curso, havia aprovado algumas medidas, entre as
quais “fazer cumprir energicamente as posturas municipaes que obrigam o fechamento das
cazas de negocio, nos domingos e dias santificados, depois do meio dia, procedendo
judicialmente contra os infractores” 72 . Certamente os caixeiros de casas comerciais, cujos
proprietários não cederam à lei, voltaram a cobrar da instituição camarária o fechamento das
portas. Se em 1887 as autoridades municipais negligenciaram os pedidos desses
trabalhadores, a partir de 1893 talvez o fluxo das cobranças tenha invertido a postura dos
vereadores em encaminhar decisões em sentido aparentemente favorável aos trabalhadores do
comércio, atitudes já tomadas desde 1870 pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro devido à
intensidade das lutas dos caixeiros na capital do país73. Neste caso, diante da resistência dos
negociantes em respeitar a lei, fruto das lutas e direitos adquiridos pelos empregados, foram
necessárias diversas medidas por parte do poder público em cumpri-la, estratégias de ambas
as partes – autoridades e negociantes – que possivelmente escapam às descrições
documentais, tendo em vista ainda as possíveis negociações entre empregados e
empregadores que, a depender da classe da casa comercial, podiam ter condição semelhante.
De todo modo, na luta incessante em busca da garantia momentos de lazer e
sociabilidades, mas antes de tudo movidos na luta por direitos, abusados pelas forças
dominantes, podemos depreender das fontes aqui apresentadas que os empregados do
comércio como os demais trabalhadores buscaram através das suas tímidas reivindicações
assegurarem conquistas. Assim, as contestações aos abusos da lei e dos empregadores, foram,
em muitos casos, negociadas e acordadas nas brechas do poder pelos trabalhadores que não se
deram por vencidos e reelaboraram formas de luta.

II. Entre avenidas, ruas e becos: percorrendo espaços de Nazareth

Quando estiveram em Nazareth, entre as décadas de 80 e 90 do século XIX, o viajante


Durval Vieira de Aguiar, em suas Descrições Práticas sobre a Província da Bahia, e o diretor
do arquivo público Francisco Vicente Viana, em Memória Sobre o Estado da Bahia,
elaboraram uma importante topografia que, mesmo tendo um “olhar oficial” do Estado, revela
aspectos sociais e cartográficos da cidade que compunham o cenário para a vida das pessoas

72
APMN. Livro de Registro de Ofícios e Comunicações da Câmara Municipal de Nazareth, 1877-1902, p. 120
73
SOUZA, Juliana Teixeira. Dos usos da lei por trabalhadores e pequenos comerciante... p. 205-206.
47

sobre as quais escrevo nessa dissertação, com seus usos e costumes, especialmente aquelas
atuantes no comercio regional e local de alimentos e nos pequenos serviços urbanos.

A cidade parece com a de Cachoeira, em ponto menor; e como ela,


comprida e estreita por ficar apertada entre o rio e as montanhas;
entretanto é populosa, tem boa edificação, muitos sobrados, ruas
planas e calçadas, especialmente uma muito extensa, a que chamam
Batatã, nome de um pequeno rio que a atravessa e lança-se no
Jaguaripe. A praça e o cais são pequenos, porém calçados. O palacete
municipal é visto se bem que de poucos cômodos, tendo no pavimento
térreo a cadeia e o quartel para o respectivo destacamento. Adiante,
quase contigua, eleva-se a grande e a velha Matriz, ficando na entrada
da cidade o bairro do Camamu, onde residem os pescadores e a
população pobre.74
Pela estreiteza do valle compõe-se a cidade de uma longa rua principal
e duas lateraes, com caes pequeno sobre o rio Jaguaripe, e um bairro
da Conceição a margem direita. Suas principais praças são a do
Camamu, Porto e Municipalidade. Sua matriz de N. S. de Nazareth
acha-se no alto desta ultima praça com frente sobre a Rua da Quitanda
e completamente separada nos dois outros por pequenas e estreitas
ruas.75

Com processo de expansão da cidade, iniciado na metade do século XIX, quando seu
centro foi transferido definitivamente, em consequência da edificação da Igreja Matriz, e
consolidado com a construção do Paço Municipal, para o local intermediário entre os dois
antigos núcleos de povoamento, a Conceição e o Camamú, margem direita e esquerda do rio
Jaguaripe, respectivamente76, a cidade que se assemelhava à Cachoeira, havia passado por um
pseudo e incipiente processo de urbanização para viabilizar as transações comerciais e
econômicas ali desenvolvidas, o que mudou acentuadamente a sua paisagem urbana. Além do
vasto patrimônio arquitetônico construído no curso do século XIX em Nazareth, entre casas,
sobrados e edifícios, muitos dos quais para abrigar as repartições e os serviços públicos77,
tratamos aqui, especialmente, da instalação da linha fluvial regular através da Cia Bahiana de

74
AGUIAR, Durval Vieira de. Descrições Práticas da Província da Bahia. 4a ed. Rio de Janeiro. INL, Brasília,
Livraria Editora Cátedra, 1979. p. 239.
75
VIANNA, Francisco Vicente. Memória sobre o Estado da Bahia... p.457-459.
76
APMN. Processo de Tombamento da Cidade de Nazaré. IPHAN. Documentos Avulsos.
77
Na primeira metade do século XIX foi inaugurada a agência dos Correios (1836), formada a Irmandade da
Santa Casa de Misericórdia de Nazareth (1830), inaugurado o primeiro hospital (1831), cemitério (1839) e o
Paço Municipal. Em 1849 apareceram os primeiros jornais. Na segunda metade dos oitocentos, instalava-se,
enfim, a iluminação pública a querosene (1850), a fonte da pedreira do império (1853), a ponte da Conceição
ligando as margens do rio (1857), o serviço telegráfico (1875), a edificação do suntuoso prédio da Irmandade da
Santa Casa, denominado Hospital Gonçalves Martins (1888) e o prédio dos arcos. No ramo da comunicação
marítima e terrestre, em 1852 se instalava de forma regular a linha de navegação a vapor para capital e
construção da ferrovia, ligando a Nazareth a Santo Antonio de Jesus (1880) estendida, mais tarde, até Amargosa
(1892). Ver: AUGUSTO, Lamartine. (1999); LEAL, Abinael Morais. Guia histórico e cultural de Nazaré. 2. ed.
Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo /EGBA, 2006.
48

Navegação e da implantação da Estrada de Ferro Tram Road Nazareth, como uma das
principais heranças do Império, uma vez que a fortificação desses meios de comunicação
tinha por objetivo garantir a permanência e a consolidação da cidade nos planos de
desenvolvimento da província da Bahia, na segunda metade do século XIX78.
Foi naquele contexto que o perímetro do Camamu ao Batatã, limitado pelo rio
Jaguaripe à sua direita e montanhas à esquerda, afirmou-se como núcleo urbano, sobretudo
quando a Câmara Nazarena retirou o matadouro público da Rua da Fontinha, transferindo-o
para um sítio no lugar denominado Apaga-Fogo, que mais tarde constituiria mais um bairro
periférico da cidade, de semelhante nome. Foi naquele local do antigo matadouro que em
1878 estabeleceu-se a futura Estação Ferroviária da Companhia Tram Road79.
Apesar de extensas como a Rua da Quitanda, que passou a ser chamada de Rua do
Comércio, dando um forte indicativo do perfil daquele espaço, e a Rua Augusta no Batatã, a
maioria das ruas caracterizava-se por serem estreitas e que por sua vez dispunham de muitos
becos e travessas, muitos dos quais terrenos baldios, que eram utilizados para facilitar a
passagem de uma rua à outra, estando quase sempre cheios de pessoas, em sua maioria
homens, pescadores e carregadores, gerando diversos conflitos em face da permanência de
hábitos e costumes da população em uma cidade que pretendia se modernizar80.
No dia 17 de maio de 1900, na sessão do Conselho Municipal de Nazareth, debatia-se
o requerimento feito pelo comerciante de fazendas Sr. Augusto Rodrigues da Costa, que pedia
concessão de uma licença específica para ampliação de um muro existente no fundo de sua
propriedade até a face lateral do cais, argumentando que a finalidade era “de prohibir a
continuação de despejo de imundice e de imoralidades”81 na sua propriedade, situada à rua
Barão Homem de Mello, popularmente conhecida como Rua da Fontinha. Após a análise do
requerimento, a comissão de obras do município concedeu a licença ao peticionário, desde
que o mesmo e seus sucessores se responsabilizem pela demolição da cerca existente e a
construção do referido muro, sob o compromisso da contribuição anual de três mil reis,
certamente o imposto das propriedades. Igualmente, em 11 de fevereiro de 1901 O

78
Rômulo Almeida diz que a Estrada de Ferro de Nazareth, bem como as Companhias de Navegação para o
Recôncavo foram “as grandes obras ou serviços públicos requeridos para o desenvolvimento da Bahia” Cf.:
ALMEIDA, Rômulo Barreto de. Traços da História Econômica da Bahia no ultimo século e meio. In: RDE –
REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, Ano XI, Nº 19, Salvador, 2009. p. 94.
79
LAGO, Jonathan Brito. Uma cidade, uma “zona” e uma mulher de “vida fácil”... p. 31.
80
Cleidivaldo Sacramento aponta que estes espaços eram genuinamente masculinos e que, por vezes, haviam
certos conflitos com relação aos seus fechamentos, por tratarem-se de locais usados também como sanitários
públicos, onde o mal cheiro exalado era, por vezes amenizado, na medida em que os vendedores de peixe
jogavam água do rio Jaguaripe.Ver: SACRAMENTO, Cleidivaldo de Almeida. Mundos do Trabalho no
Recôncavo Sul..., p.70.
81
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900. p.10.
49

Independente publicava a reclamação do “mau estado em que se acha o beco que demora
entre o sobrado do professor Thiago Manoel Escholastico e o das irmãs do Sr. Julio de Brito,
beco este que de muitos anos é de servidão publica e que agora foi cercado na margem do
rio”82.
Pedidos e denúncias como estes além de apontar para a permanência de hábitos
condenados pela política do período, revelam que os comportamentos dos munícipes ainda
distanciavam-se das estratégias de higienização. Por outro lado, insinua os modos e os hábitos
dos frequentadores que, além de tornarem os espaços sujos e esteticamente feios, se
comportavam de forma “imoral”, quando urinavam e namoravam, constrangendo as famílias
que moravam nas casas contíguas e causando do mesmo modo transtorno para aqueles que
necessitavam dos becos para encurtar os caminhos.
A Rua Barão Homem de Mello, ou Rua da Fontinha de Cima, ou simplesmente Rua da
Fontinha, já havia sido denominada anteriormente como Rua dos Açougues, pela quantidade
de talhos e casas de comércio de carnes que ali existiam. Contemplada com uma variedade de
becos que davam acesso às ruas do Comércio, da Fontinha de Baixo e Beira Rio, naquele
lugar teria existido, supostamente, ainda no século XVIII, uma “fontinha” que deu nome a
esta movimentada e longa rua de “trânsito ininterrupto”, onde existiu o primeiro teatro da
cidade. A Rua Barão Homem de Mello e estendia-se da Praça do Porto ao matadouro
público83, e fora um dos espaços mais importantes da cidade, estratégica para os vendedores,
compradores e carregadores, pois estava situada entre dois espaços de abastecimento e
vendas, além de ser paralela à Rua do Comércio e ao cais do rio Jaguaripe. Logo, ao situar-se
como ponto de acesso entre estes quatro locais, a referida rua contribuía tanto para o seu
desenvolvimento espacial, como para os que ali transitavam, com posses e interesses. Entre
seus becos, destacam-se o da Quitéria e o do Cardoso, que a ligavam até a Fontinha de Baixo.
Diferentemente da Fontinha de Cima, que havia se constituído como um espaço
eminentemente econômico e que mais tarde iria se destacar como espaço de baixo
meretrício84, a Fontinha de Baixo, como espaço residencial, era onde habitavam as famílias da
camada média urbana nazarena (advogados, dentistas, ferroviários, comerciantes), além de
muitos artistas.

82
Jornal “O Independente”, 11 de Fevereiro de 1901, p. 03. apud SACRAMENTO, Cleidivaldo de Almeida.
Mundos do Trabalho no Recôncavo Sul..., p. 70.
83
LAGO, Jonathan Brito. Uma cidade, uma “zona” e uma mulher de “vida fácil”... p. 31.
84
Sobre o desenvolvimento da prostituição neste espaço, ver: LAGO, Jonathan Brito. Uma cidade, uma “zona”
e uma mulher de “vida fácil”...
50

Contudo, naquela localidade se formaram pequenos núcleos de gente empobrecida,


cuja renda diária era resultado da labuta na beira do cais. Trabalhadores que viviam do ofício
da estiva, pescadores e mulheres que vendiam mariscos e quitutes na urbe– que aos poucos
ganhava aspectos de modernidade e se urbanizava, num processo que não previa a
permanência destes segmentos mais empobrecidos. Embora o bairro do Camamu já
congregasse essa população, o aumento populacional exigia novos espaços. Deste modo, o
nascimento de bairros em zonas mais afastadas do centro urbano, como da Muritiba, fora um
dos resultados dessa política de reordenamento da cidade, revelador de que os próprios grupos
desfavorecidos construíram núcleos territoriais para articularem maneiras de viver e de se
defender de possíveis agressões que por ventura viesse da parte das autoridades municipais.
Esse parece ter sido o caso da localidade da Muritiba. Originada em grande parte dos
terrenos da Fazenda Paulo Gomes, a Muritiba congregava uma população eminentemente
pobre e negra, cujos ofícios demarcavam heranças do tempo da escravidão e suas habitações
continham casas cobertas de palha. Ali viviam diversos carregadores e vendedores como
Vicente Ferreira, conhecido por Gamberra, nome sugestivo da origem da Fonte de Gamberra
até hoje ali existente, um sujeito de mau procedimento que vivia em concubinato com
Mathildes Maria da Conceição. No processo instaurado para discutir a guarda de uma das 3
filhas de Mathildes, que vivia da labuta dos serviços domésticos, descobriu-se que uma
destas, Maria Zulmira, de vida livre, frequentadora de um candomblé na Muritiba, havia sido
desvirginada pelo feiticeiro Vavá aos 13 anos 85 . Tais dados, ainda que limitados, são
anunciadores de trajetórias de pessoas que ali viveram em condições de pobreza e formularam
estratégias para se defender de autoridades, como ter vida livre e ser mau procedido.
A despeito dessas questões, os livros de fiscais do poder municipal que tratam da
ocupação territorial da cidade nos finais do século XIX, oferecem importantes pistas acerca
do seu reordenamento. Folheando as suas páginas nos deparamos com uma quantidade
significativa de localidades, sejam elas rurais ou urbanas e percebemos que tais localidades
apresentavam imóveis, cujos pagamentos de impostos eram sintomáticos do perfil
habitacional e ocupacional 86. Essa leitura só foi possível de ser feita após perceber que a
ocupação territorial da cidade foi permitida em função do aumento populacional vivenciado
nos finais do século XIX e inicio do século XX, proporcionada em grande parte pela
engenharia ferroviária e portuária, das quais abordaremos adiante. Vejamos, portanto, abaixo

85
SOUZA, Edinélia Maria Oliveira. O Pós-Abolição na Bahia... p. 108-109.
86
Estamos nos referindo aos seguintes livros localizados no APMN: Registro Comercial; Lançamento da
Décima Urbana; Lançamento do Imposto Predial Urbano, Lançamento de Impostos, Industrias e Profissões de
Nazareth.
51

a sistematização das localidades de Nazareth elaborada segundo critérios de densidades


ocupacional dos imóveis e sujeitos, o que nos permitiu traçar o seguinte perfil territorial.

Tabela II – Territorialidade da cidade de Nazareth (1890 -1920)


Centro Comercial e Histórico Arrabaldes
Ruas: Conselheiro Saraiva, Conselheiro Ruas: Cidade de Palha, Tanque, Calabar,
Dantas, Barão Homem de Mello, Comércio, Areal, Caquende, Ladeira Grande, Monte
Praça do Porto, Batatã. Bello, Muritiba.
Habitação das Camadas Médias Habitação da População Pobre
Ruas: Conselheiro Saraiva, Praça do Porto, Ruas: Camamu, Monte Bello, Tanque,
Barão Homem de Mello, Comércio, Batatã, Ladeira Grande. Bairros: Muritiba,
Pe. Antunes, Fontinha de Baixo, Conceição. Mulungus
Travessas: Matriz, Francêz.
Principais Povoações Ilhas e Demais Localidades
Rio Fundo (atual Muniz Ferreira), Onha, Pastinho, Barrocão, Prategipe, Caboto,
Taytinga. Tijuca, Copioba, Ilhas do Dendê e Araçá.
Fontes: APMN. Livro de Lançamento da Décima Urbana; Livro de Lançamento de Impostos,
Industrias e Profissões de Nazareth 1894-1921.

Interessante notar que as localidades de maior importância da cidade, exceto as ruas do


Comércio, do Batatã e Praça do Porto, levavam o nome de personalidades destacadas no
cenário estadual e nacional. O Conselheiro Saraiva 87 e o Conselheiro Dantas 88 foram
advogados e políticos baianos, sendo o primeiro de Santo Amaro da Purificação e o segundo
de Salvador. Estas ruas eram contíguas, sendo a Conselheiro Dantas na margem do cais e a
Conselheiro Saraiva, conhecida por Rua da Lama, no meio do quarteirão. O Barão Homem de
Mello89 por sua vez, foi um político e erudito da história e geografia, de Pindamonhangaba,

87
José Antônio Saraiva foi deputado provincial, presidente de província, ministro dos Negócios Estrangeiros, da
Guerra, da Marinha, do Império, da Fazenda, senador do Império do Brasil de 1869 a 1889 e da República de
1890 a 1893.
88
Manuel Pinto de Sousa Dantas foi proprietário do Diário da Bahia, órgão do Partido Liberal, do qual era
membro. Governou Alagoas e Bahia, tendo ocupado importantes cargos durante o Império. Elegeu-se deputado
em 1857, exercendo mandatos até 1868. Tornou-se senador dez anos depois. Em 1879 foi nomeado Conselheiro
de Estado, exercendo em seguida as funções de Ministro da Agricultura, da Justiça, da Fazenda e dos Negócios
Estrangeiros. Abolicionista, quando presidiu o Conselho de Ministros em 1884 apresentou projeto redigido por
Rui Barbosa propondo a emancipação dos escravos com mais de 60 anos.
89
Francisco Inácio Marcondes Homem De Mello foi major honorário do Exército Brasileiro e Professor de
Mitologia na Escola Nacional de Belas Artes. Condecorado em 1877 com o título de "Barão do Governo
Imperial", daí "Barão Homem de Mello". Título este concedido pelo Imperador Dom Pedro II, por serviços
prestados ao Império como Ministro da Guerra, Governador das Províncias de São Paulo, Bahia, Ceará, Rio
Grande de Norte e Rio Grande do Sul.
52

interior de São Paulo, que manteve intensa relação com o Dr. Alexandre José de Barros
Bittencourt, o chefe-coronel da oligarquia de igual sobrenome enraizada em Nazareth90.
Pela importante Rua Barão Homem de Mello, passava a Tram Way Urbana, uma linha
de trilhos que foi inaugurada em 1870 e contemplava o perímetro urbano da cidade naquele
período. Era um sistema de trilhos feito através de veículos de madeira, os bondes de tração
animal91, que partiam da Praça do Porto até chegar à Rua Augusta no Batatã, contemplando a
Rua das Pedras e a Rua do Cotovelo. Do Batatã onde findava a Tram Way Urbana, se
estendeu em 1875 os trilhos da estrada de ferro até o Onha, passando pela Ladeira Grande até
chegar naquela localidade, desbravando as matas de baixo. Assim nasceram os primeiros
passos da engenharia nazarena, como uma das primeiras estradas de ferro em curso na Bahia,
seguindo o ritmo nacional que em 1859 surgia como mais novo elemento do progresso
econômico brasileiro92. A Tram Road de Nazareth e o Porto Fluvial como vias de escoamento
da produção e, sobretudo como instrumentos que permitiam o trânsito comercial e de pessoas,
garantiram que a economia da cidade passasse da condição de eminentemente agrícola para
ferroviária e industrial no início do século XX93.
Contudo, a cidade não crescia apenas no sentido dos trilhos do trem. Enquanto a
margem esquerda fervilhava comercialmente e se estruturava urbanisticamente, o lado direito,
que era ligado pela ponte da Conceição94, mesmo sem acompanhar o ritmo da outra margem
do rio Jaguaripe, não deixou de se integrar à cidade, afinal era naquela margem que os
carregadores e vendedores de água, chamados de aguadeiros, abasteciam seus botijões, na
Fonte da Pedreira do Império ou simplesmente Fonte da Conceição. A travessia da ponte e a
circulação por diversas dessas ruas, becos e travessas eram os trajetos que cotidianamente,
Policarpo Cardozo de Souza, Manoel Pedro dos Santos e Escolástica de Almeida e Silva,
aguadeiros conhecidos na cidade faziam para cumprir seus ofícios95.

90
Ao apontar as relações de favores empreendidas pelo seu pai, Maria Augusta Bittencourt, sentencia que: “Em
folha de favores que não lhe foram negados, figuraram os nomes Visconde de São Lourenço, Barão de Lucena,
Barão Homem de Melo.” Cf.: BITTENCOURT, Maria Augusta. Tempo...água do rio.... p. 21.
91
AUGUSTO, Lamartine. Porta do sertão... p. 139.
92
Na rota do desenvolvimento da Bahia, a Tram Road de Nazareth foi à segunda estrada de Ferro a ser
construída na província, após o inicio das atividades da Bahia and S. Francisco Railway Company que ligou
inicialmente a capital da Bahia, da calçada do Bonfim à cidade de Alagoinhas num trecho de 123 kilômetros.
Ver: VIANNA, Francisco Vicente. Memória sobre o Estado da Bahia... p. 161.
93
BARROS, Areza Batista Gomes. Nazaré, da decadência econômica para um processo de desenvolvimento
local. Dissertação de Mestrado em Análise Regional. Universidade Salvador. Salvador, 2007. p. 132.
94
Com 101,20m de comprimento, 6,75m de largura e construída de pedra e cal sob seis arcos em 1857 pelo
Barão de Taytinga, então presidente da Câmara, para substituir a ponte de madeira existente, sua edificação foi
determinada pelo Visconde de São Lourenço, o Francisco Gonçalves Martins, em visita a Nazareth, quando este
ocupava a função de Presidente da Província. AUGUSTO (1999)
95
APMN. Livro de Registro de Licenças e Matrículas da Intendência de Nazareth, 1893-1901.
53

Ainda na região imediata a travessia da ponte estruturaram-se bairros habitados


timidamente pela classe média urbana, a exemplo da extensa Rua dos Coqueiros, mas na
medida em que seguia o curso do rio Jaguaripe, desenvolveram-se os núcleos mais ruralizados
que concentravam a população pobre da cidade, notadamente a região do Monte Bello,
conhecido por Jacaré, e a Muritiba que já foi destacada aqui96. Dessa forma, a fronteira fluída
do rural e o urbano se davam especialmente nos bairros do Camamu e da Muritiba, o que não
quer dizer exclusivamente, uma vez que os outros lados da cidade também se expandiram,
originando locais cujos nomes primitivos são sintomáticos do seu perfil, a exemplo do Pasto
da Serra e a Ladeira Grande97.
Era destes bairros mais ruralizados, mas que não estavam distantes das imediações do
centro urbano, que homens e mulheres chegavam a barco ou a cavalo para manter suas
relações sociais quase sempre inclinadas às transações comerciais e ao abastecimento
doméstico. Foi o caso de Maria Luiza de Jesus, de 35 anos, solteira, residente no Largo do
Camamu, bairro habitado pela população pobre, que se ocupava unicamente dos trabalhos
exercidos nas roças, complementados pela venda de algum gênero dali proveniente. Maria
Luzia provia o lar em que vivia juntamente com a irmã, menor e órfã, de 12 anos, Maria
Francisca de Jesus, e usava dos férteis terrenos do município para o cultivo das pequenas
lavouras 98 . Era, portanto, daquelas localidades que chegavam farinha, rapadura, galinhas,
cereais, frutas, verduras e hortaliças que facilmente eram encontradas nas feiras sendo
comercializadas por estes mesmos sujeitos, ou nas gamelas dos vendedores ambulantes.

III. Cores e ofícios em Nazareth: um retrato populacional

Ao mesmo tempo em que as vias de comunicação de Nazareth – notadamente os


trilhos da Estrada de Ferro Tram Road e a via fluvial marítima operada pela Cia Bahiana de
Navegação – permitiram o desenvolvimento de suas vilas e freguesias, resultando no
desmembramento das mesmas nas décadas finais do século XIX e início do XX, tais
instrumentos acabaram agenciando o aumento da sua população, uma vez que atraiu pessoas

96
Sobre o aspecto rural de algumas localidades de Nazareth, cumpre observar que ao analisar a questão da
ocupação territorial para o mesmo período na Ilha de Itaparica, pertencente a comarca de Nazareth, Wellington
Castellucci Júnior percebeu que as cercanias dos povoados “eram fazendas e roças bem próximas do perímetro
de suas ruas e becos”. Ver: CASTELLUCCI JUNIOR, Wellington. Pescadores e Roceiros... p. 31.
Acrescentando, segundo Edinélia Souza, Nazareth caracterizava-se por ser “um ponto de contiguidade entre o
campo e a cidade” Ver: SOUZA, Edinélia Maria Oliveira. O Pós-Abolição na Bahia... p. 49.
97
Estamos aqui nos referindo ao Calabar, Caquende, Mulungus, Caminho dos Remédios e entre outros.
98
APEB. Seção Judiciária. Processo Crime. Classificação: 24/838/06. Ano: 1891.
54

dos mais variados locais em busca de condições de trabalho, alterando sua territorialidade99.
Isso se deveu em grande parte ao incipiente processo de industrialização experimentado por
Nazareth no início do século XX, com a instalação de diversas fábricas, a exemplo de óleos
vegetais, calçados, tecelagem, curtumes e olarias mecanizadas, entre outras, além da posição
estratégica que a cidade já tinha nas atividades do comércio e escoamento da produção
agrícola. Veremos abaixo os dados populacionais aos quais nos referimos.

Tabela III: Demografia populacional da Cidade de Nazareth por sexo


ANOS HOMENS MULHERES TOTAL
1872 6.355 (47%) 6.979 (53%) 13.334
1890 8.643 (48%) 9.491 (52%) 18.134
1900 9.817 (48%) 10.781 (52%) 20.598
1920 11.737 (49%) 12.422 (51%) 24.159
Fonte: IBGE. Relatórios dos Censos 1872, 1890, 1900 e 1920.

A demografia histórica atesta o aumento do conjunto populacional em meio às


transformações ocorridas na cidade de Nazareth entre o fim do século XIX e início do século
XX. Especialmente entre 1872 e 1920, houve crescimento populacional numa taxa de
aproximadamente 12% por década. A despeito deste intervalo de quase 50 anos, quando a
população quase dobrou, passando de 13.334 para 24.159 habitantes, estudos da região tem
mostrado que crescimento populacional neste período foi “provocado por inúmeras famílias
que saiam da roça e se instalavam na cidade, e também da chegada daqueles que fogem da
seca, da fome e da falta de trabalho em outras terras”100. Isso permite afirmar que, ainda no
período em destaque, as pessoas continuavam atraídas pelas diversificadas oportunidades de
trabalho proporcionadas pela cidade, mesmo com a ascensão de outros territórios como a
próspera Vila de Santo Antonio de Jesus, onde muitos comerciantes de Nazareth montaram
filiais de suas casas de negócios, desejando auferir maiores lucros, a ponto de surgir ali a
denominada “Rua dos Nazarenos”, no centro comercial101.
O significado do comércio de Nazareth ser nos finais do século XIX o mais
desenvolvido do Recôncavo provocou de certo modo uma movimentação populacional
agenciando novas frentes de trabalho, o que implicou no redimensionamento das ações
99
Dentre as localidades que usufruíram da linha de comunicação proporcionada pela Tram Road Nazareth foi os
territórios que compreendem os municípios de Santo Antonio de Jesus e São Miguel das Matas que foram
desanexados da divisão administrativa e territorial do município de Nazareth a partir de 1880. Emanciparam-se
ainda da cidade de Nazareth em 1905, Sant’Anna da Aldeia (Aratuípe) e Nova Laje. Ver: AUGUSTO (1999).
100
COSTA, Alex de Andrade. Ordem e Desordem no Interior baiano... p. 20.
101
COSTA, Alex de Andrade. Ordem e Desordem no Interior baiano... p. 29.
55

públicas, “exigindo-se das autoridades um ‘forte’ controle social e uma maior vigilância nos
espaços de grande circulação” 102 . Em 1894, por exemplo, no Livro de Lançamento dos
Impostos de Indústrias e Profissões, entre marceneiros, ferreiros, armadores, saboeiros,
alfaiates, sapateiros, cabeleireiro, ourives e funileiros estavam registrados 53 profissionais
atuantes naquela Praça, Bairros e Povoações103. O Livro de Registro de Licenças e Matrículas,
por sua vez, registrava 82 profissionais distribuídos nas atividades do ganho e vendas
ambulantes de água104.
Como uma sociedade marcada pelo escravismo que vigorou juridicamente até 1888,
onde os escravos eram empregados nos trabalhos domésticos, na plantação, no transporte da
produção e nas atividades urbanas de ganho, esta que lhes garantiam certa autonomia, com a
emancipação muitos destes ex-cativos quando não permaneceram nas fazendas sob outras
formas de trabalho, passaram a disputar o mercado com os trabalhadores livres e assalariados
somando-se à população urbana já existente e ocupando as atividades informais da cidade
caracterizadas por serem “sazonais e instáveis” 105 . Tratou-se do momento em que o
adensamento populacional se inseriu na expansão do capitalismo, evidenciando os limites
entre o rural e o urbano, num contexto, contraditoriamente, de proximidades, modificando ao
mesmo tempo os mundos do trabalho. Portanto, nas vésperas e após a abolição, com a
expansão deste contingente de trabalhadores dedicados aos negócios, pequenos serviços,
pesca e pequena lavoura, todos no desempenho dos seus ofícios acabavam auferindo uma
relativa lucratividade, contribuindo para a economia da cidade e o sustento próprio 106 .
Presumimos que o exercício de tais profissões no período pós-abolição foi, em grande parte,
decorrente da continuidade dos serviços especializados oriundos dos tempos da escravidão,
reinventados e aperfeiçoados por trabalhadores livres e libertos de acordo com as novas
formas de trabalho107. O fato é que, como já tinha sido observado por diversos estudiosos108, e

102
SACRAMENTO, Cleidivaldo de Almeida. Mundos de trabalho no Recôncavo Sul... p. 90.
103
APMN. Livro de Lançamento de Impostos, Industrias e Profissões de Nazareth, 1894-1921.
104
APMN. Livro de Registro de Licenças e Matriculas da Intendência de Nazareth, 1893-1901.
105
Termo empregado para designar os trabalhadores pobres das ruas. Ver: CASTELLUCCI, Aldrin A. S..
Industriais e Operários Baianos numa conjuntura de crise (1914-1921). III Prêmio FIEB de economia industrial.
Salvador, 2004. p. 47.
106
Sobre o número crescente da população, Cleidivaldo Sacramento diz que o cenário em questão “pode ser
descrito pela intensa movimentação de homens e mulheres que chegavam de todas as partes, vendendo,
transportando, carregando, limpando, consertando.” Cf.: SACRAMENTO, Cleidivaldo de Almeida. Mundos de
trabalho no Recôncavo Sul... p 90.
107
Edinélia Souza ao estudar o Pós-Abolição evidenciou a presença significativa de “ex-escravos, africanos e de
seus descendentes livres e libertos na composição da sociedade pós-escravista do Recôncavo sul da Bahia
ocupando os serviços urbanos e rurais Cf.: ”SOUZA, Edinélia Maria Oliveira. O Pós-Abolição na Bahia... p. 78.
108
Além de Cleidivaldo Sacramento (2007) e Edinélia Souza (2012), Wellington Castellucci Junior (2008)
também observou que esta região era composta por uma população majoritariamente de pardos, pretos e
mestiços que se envolviam nas diversas atividades laborais urbanas desde o mundo escravista.
56

como atestam as variáveis da tabela abaixo, “boa parte da população local era composta de
uma maioria de cor, formada por indivíduos negros e mestiços”109.

Tabela IV: Demografia populacional de Nazareth por sexo e cor em 1872 e 1890
ANOS BRANCO PRETO PARDO/ CABOCLO TOTAL
MESTIÇO
M F M F M F M F
1872 1929 1977 1823 1913 2561 3045 42 44
3906 (29,3) 3736 (28%) 5606 (42%) 86 (0,7%) 13.334
1890 2766 2909 2008 2381 3531 3751 338 450
5675 (31%) 4389 (24%) 7282 (40%) 788 (5%) 18.134
Fonte: IBGE. Relatórios dos Censos 1872 e 1890.

A partir da mensuração e análise dessas categorias, vê-se, portanto, que nos períodos
de 1872 e 1890 a população não branca era predominante em Nazareth, correspondendo a
70,7% e 69% respectivamente. O aumento populacional verificado no período acompanhou a
proporção entre brancos e não brancos. Em 1872, Nazareth contava com 29,3% de população
branca e um número próximo a 70,7% entre pretos, pardos e caboclos, enquanto que em 1890
estes dados apresentam-se da seguinte forma: 31% brancos e 69% entre pretos, mestiços e
caboclos. O incipiente aumento da população branca em torno de 1,7%, a queda da população
preta em 4% e dos pardos/mestiços em 2%, talvez devam-se à mudança metodológica das
categorias raciais que pretendiam “homogeneizar etnicamente” a população, mecanismo
reverberado durante toda primeira República, quando a referência explícita à eugenia visou
“promover uma ideia de Brasil num caminho progressivo ao branqueamento de sua
população”110. De qualquer modo, apesar da tentativa de esconder o passado escravista por
parte das instituições e atos republicanos, o fato é que o quadro populacional/racial pouco se
alterou e a cidade permaneceu constituindo-se por uma população negra e mestiça, de
egressos da escravidão. Afinal, ainda em 1872, 16 anos antes da abolição final, Nazareth
ainda detinha 17% da população na condição cativa.
Ante a fragilidade metodológica apresentada pelos censos, reflexo da debilidade da
burocracia brasileira, os dados quase que amostrais, são importantes, pois permitem definir
um quadro estimado da população residente quando confrontamos e estabelecemos diálogos

109
SACRAMENTO, Cleidivaldo de Almeida. Mundos de trabalho no Recôncavo Sul... p. 89.
110
BEJARANO, Juan Pablo Estupiñán. Qual é sua raça ou grupo étnico? Censos, classificações raciais e
multiculturalismo na Colômbia e no Brasil. Dissertação de Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos. Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA. Salvador. 2010. p. 35.
57

com outras fontes. Embora os censos nacionais de 1890, 1900 e 1920 não contemplem nas
suas variáveis os aspectos das profissões daqueles períodos, o censo de 1872, primeiro do
Brasil, atesta onde estavam envolvidos os trabalhadores, sejam escravos, livres e libertos.
Vejamos, portanto o perfil de profissões desenhado pelo censo de 1872.

Tabela V: Profissões de maior apelo em Nazareth no Censo de 1872


Ordem Profissões Quantidade Percentual
1 Sem Profissão 3.567 27%
2 Lavradores 3.077 23%
3 Profissionais Manuais e Mecanizados 2.578 19%
4 Serviço Doméstico 2.211 17%
5 Profissionais Industriais e Comerciais 940 7%
6 Criados e Jornaleiros 621 5%
Fonte: IBGE. Relatórios do Censo de 1872.

Na tabela acima, relativa ao censo de 1872, apesar da ausência de profissão congregar


um maior quantitativo de pessoas, em números de 3.567, portanto 27% da população, este
dado pode ser suavizado na medida em que notamos que o número de crianças entre 0 e 15
anos naquele período girava em torno de 2.894 pessoas, portanto 22% da população111. Além
deste dado e, sobretudo pela diferença dos números (3.567 enquadrados como “Sem
profissão” e 2.894 como “Crianças”), também há de se levar em consideração que outros
fatores podem explicar esse fenômeno, como, por exemplo, a própria ideologia do capitalismo
de rotular os ditos “desocupados” como vagabundos e ociosos para, dentre outras coisas,
enquadra-los em vários processos disciplinares, como ocorreu durante o século XIX com os
processos de recrutamentos para as forças de primeira linha112. Portanto, a categoria “Sem
profissão” torna-se bastante ampla, uma vez que poderia congregar aquelas profissões
“invisíveis” aos olhos do Estado, e os papeis informais que não eram socialmente valorizados,
mas que, segundo a historiadora Maria Odila Leite, eram indispensáveis ao funcionamento da
vida cotidiana, mesmo sofrendo o boicote da oficialidade113.

111
Tomamos por base a idade ativa da população para a questão da mão-de-obra apta ao exercício efetivo do
trabalho os sujeitos com idade entre 15 e 60 anos. Neste caso, apesar do número de crianças entre 0 e 14 anos já
exercerem alguma atividade, desconsideramos o fato dela estar presente nos censos. Isso não implica formas
rígidas de distribuição do trabalho pela faixa etária, mas orienta quanto ao exercício das profissões apresentadas
pelos relatórios e documentos oficiais.
112
Sobre essa questão, ver: FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São
Paulo: Brasiliense, 1984; BRETAS, Marcos Luiz. A Polícia carioca no Império. Estudos Históricos, v. 12, n.º
22, p. 219-234, 1998.
113
Maria Odila Dias diz que cabia “as pessoas que desempenhavam as atividades o rotulo de “sem profissão.”
Cf.: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder... p. 52.
58

Nesta linha, percebe-se ainda que entre as profissões de maior apelo entre a população,
encontram-se a categoria dos lavradores, com 23%; seguida dos profissionais manuais e
mecanizados (costureiras, profissionais de chapéus, vestuário, couro e peles, edificações,
tecidos, madeiras, metais e calçados), com 19%; dos trabalhadores dos serviços domésticos,
com 17%; dos profissionais industriais e comerciais (manufatureiros e fabricantes,
comerciantes, guarda-livros e caixeiros), com 7%; e dos criados e jornaleiros com 5%.
Naquela população de 1872, marcada pela crise do escravismo, pode-se perceber, na
relativa aproximação dos números entre as profissões, que os mundos do trabalho dos livres,
libertos e cativos estavam relativamente imbricados, apesar das diferentes formas de controle
da mão de obra exercidas a cada condição jurídica. Ou seja, apesar das atividades
relacionadas ao mundo eminentemente rural (categoria dos lavradores) terem maior
representatividade (23%) e as profissões do mundo urbano (profissionais manuais e
mecanizados) figurarem em seguida (19%), não muito próxima do percentual dos dois
primeiros estava uma atividade que oscilava entre os mundos rural e urbano, qual seja a ampla
categoria dos serviços domésticos114 (17%).
Deste modo, como já apontamos anteriormente, parecia haver um equilíbrio, devido à
aproximação/dependência, entre o rural e o urbano, de modo que costumes e hábitos dos
respectivos mundos influenciavam-se. Presumimos ser esta fluidez dos limites entre rural e
urbano, sobretudo o trânsito ininterrupto de trabalhadores, um dos “problemas” identificados
pelo aparelho municipal, que determinou a adoção de propostas que visaram extirpar praticas
rurais na urbe, civilizando-a, discussão que faremos nos capítulos seguintes.
Para compor de modo mais amplo e abrangendo, sobretudo, o período da ultima
década do século XIX e das primeiras décadas do século XX, uma vez que nos censos de
1890 a 1920 são ausentes as variáveis de dados sobre a profissão da população, cruzamos os
dados com os sujeitos arrolados nos processos crimes do período. Através destes, além de se
evidenciar as questões do cotidiano da cidade, através dos conflitos, disputas e posturas da
população, é possível visualizar também um retrato social daquele ambiente. Com este retrato,
conseguimos compor ainda um quadro de questões com relação à mobilidade dos sujeitos, a
naturalidade e os usos e práticas que se faziam espaço urbano a partir das suas profissões,
destacando as mudanças e permanências na composição da classe trabalhadora. Nestes,

114
Historicamente o denominado “serviço doméstico” foi uma categoria complexa e plural. Karine Teixeira
Damasceno ao fazer um recorte de gênero para o mesmo período em Feira de Santana identificou que tratava-se
“de uma categoria que abrange desde mucamas, amas de leite, cozinheiras e copeiras até aquelas que
trabalhavam nas ruas, como carregadoras de água ocasionais, as lavadeiras e as costureiras”. Portanto, não
limitavam-se às atividades apenas do lar. Cf.: DAMASCENO, Karine Teixeira. Mal ou bem procedidas.... p. 09.
59

podemos perceber que os trabalhadores que executavam os serviços naquela cidade compunha
uma população de maioria migrante, seja da própria região ou estados e países diferentes115.
Eis os dados das origens da população nazarena abaixo.

Tabela VI: Distribuição dos sujeitos arrolados por naturalidade, residência e sexo
Vilas e Povoações Outras Cid/Est/Paises Total
Homens Mulheres Homens Mulheres
Nativos 20 2 -- -- 22 (31%)
Migrantes 2 1 22 5 30 (43%)
Não Identificados 17 1 -- -- 18 (26%)
Total 39 4 22 5 70 (100%)
Fonte: APB. Processos Crimes 1890-1920. AFEM. Processos Crimes 1900-1910.

A amostragem de sujeitos com naturalidade diversa, mas que residiam em Nazareth


(43%), simboliza que aquela região ainda era um polo de atração de sujeitos ansiosos por
melhores condições de vida, sendo que por muitas vezes o emprego da mão-de-obra
necessitava de uma rede de relações de solidariedades, laços afetivos, amizades e
vizinhança116. Este foi o caso de diversos sujeitos já mencionados anteriormente, envolvidos
nas tramas cotidianas, entre os quais se destacam o magarefe Manoel Henrique da Silva,
solteiro, 23 anos, residente no ruralizado bairro da Muritiba em Nazareth, natural da cidade de
Muritiba, no Recôncavo Baiano, que trabalhava no açougue do seu conterrâneo Hylário Bispo
Pereira, casado, 33 anos, residente em Nazareth, cujo açougue de 2ª classe era estabelecido no
Sobrado dos Arcos na Praça do Porto. Ao que parece, a rede de relações estabelecida entre
ambos foi pautada antecipadamente na condição de naturalidade, expressa através de um
negociante regularmente estabelecido no respeitado comércio nazareno, advindo de outra
cidade, que ofertou emprego ao seu conterrâneo. Ao que indica, a relação não se limitou à
solidariedade na oferta de emprego, mas de possíveis laços afetivos que, mesmo com as
evidências do crime cometido pelo seu funcionário contra o pedreiro José Antonio da Silva
em 07 de setembro de 1898 no açougue de sua propriedade, fizeram com que Hylário Bispo

115
Em 1890 o censo já mostrava que dos 18.134 habitantes de Nazareth, 95% era de brasileiros e 5% de
estrangeiros. Fonte: Relatórios dos Censos. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br
116
Sobre esta atração de trabalhadores, à luz da analise feita por Wellington Castellucci Júnior para a cidade de
Itaparica no período escravocrata, o mesmo destacou que os libertos procuravam regiões onde pudessem
conseguir trabalhos menos penosos e exaustivos. Neste caso, por serem regiões portuárias, com o fato de não
terem desenvolvido grandes lavouras, é possível que as possibilidades de trabalho e as condições de trabalho
possibilitassem a migração. Ver: CASTELLUCCI JUNIOR, Wellington. Pescadores e Roceiros... p. 62.
60

Pereira tergiversasse sobre o crime, buscando atestar o ótimo comportamento de Manoel, na


intenção de livrar-lhe da pena117.
Tais relações, entretanto, não se limitavam aos ambientes comerciais, seja nos
estabelecimentos e feiras, muito menos nas ruas e becos da cidade. Os espaços de reclusão,
como da cadeia, também promoviam encontro entre pessoas de diversas localidades, cores e
ofícios que mesmo cumprindo pena prisional, acabavam redefinindo relações intra e extra
categoria. Foi isso que revelou os discursos do processo criminal instaurado em 1890 para
investigar a responsabilidade do carcereiro da cadeia pública Sr. Luiz Rodrigues Prates diante
do arrombamento daquele espaço cometido pelos presos sentenciados e a consequente fuga
dos mesmos. Os companheiros de cela que permaneceram presos, Francisco José Viana, 40
anos, solteiro, lavrador, natural da Freguesia da Aldeia, Antonio Luciano Serra, 24 anos,
solteiro, empregado no comércio, natural do Reino da Itália, Antonio Cardoso das Neves, 20
anos, solteiro, lavrador, natural da Vila de Santo Amaro e Manoel Amâncio de Jesus, 55 anos,
viúvo, lavrador, natural do Mocambo, quando prestaram depoimento, foram categóricos em
isentar o carcereiro de qualquer responsabilidade com o fato. Ao produzir o discurso de que
“não atribui aucthoria de tal arrombamento senao aos três mencionados presos (João da Cruz,
João Sobrinho e José Lopes) só e unicamente”, e de que “o carcereiro era vigilante e
frequentemente examinava as portas e paredes do interior da cadeia” os encarcerados
demonstravam solidariedade com o carcereiro, o qual certamente seria injustiçado com a
penalidade de um ato que fora alheio ao seu controle, uma vez que as condições da cadeia
eram de péssimo estado. Isso por si só não explica o comprometimento dos presos em
defender o carcereiro, mas o tom uníssono dos depoentes talvez tenha ocorrido em função do
reconhecimento dos serviços prestados por aquele agente, incansável em buscar resolver os
problemas estruturais da repartição junto ao governo, que refletiriam nas condições de
acomodação dos presos. Para os presos “aquele empregado era cuidadoso e não abandonava a
cadeia”118.
Dentre aqueles indivíduos migrantes, residentes temporária ou permanentemente em
Nazareth identificados nos processos crimes, temos a seguinte distribuição.

Tabela VII: Distribuição dos migrantes arrolados segundo sua naturalidade


Naturalidade por Região Quantidade Percentual
Recôncavo Baiano 21 70%

117
APB. Seção Judiciária. Processo Crime. Classificação: 17/598/05. Ano: 1898.
118
APEB. Seção Judiciária. Processo Crime. Classificação: 03/121/23. Ano: 1890.
61

Outras Cidades 5 16,6%


Outros Estados 3 10%
Outros Países 1 3,33%
Total 30 (100%)
Fonte: APB. Processos Crimes 1890-1920. AFEM. Processos Crimes 1900-1910.

Percebe-se que a grande maioria dos migrantes era procedente da própria região do
Recôncavo baiano (70%). Isso está associado ao momento do pós-abolição, quando muitos
trabalhadores optaram em não permanecer no meio rural e migraram para cidades, cujos
principais destinos eram a Capital e o Recôncavo 119 . Entre tais cidades, destacam-se
Cachoeira, Muritiba, Santo Amaro e Maragogipe com o maior número naturalidade dos
sujeitos. Estas cidades que desenvolveram sua economia pautada em uma agricultura
diversificada dedicada à produção dos gêneros de primeira necessidade, relativamente
integrada à capital, detinha um número suficiente de trabalhadores especializados em variados
ofícios120. Além das cidades do Recôncavo, entre as demais localidades do estado verificam-
se as freguesias de Mata de São João, Monte Santo, Entre Rios, Santo Antonio Além do
Carmo e Vila de Saubara121, com 16.6% do número. Ainda que em número reduzido, sujeitos
provenientes de outros estados como o Ceará, no nordeste brasileiro, simbolizaram 10% e de
outros países a exemplo da Itália estimou 3,3%.
A despeito destes dados, estudos apontam que, em função da “grande seca” de 1877,
houve uma relativa migração de sujeitos para as regiões litorâneas em busca de trabalho, que
se estenderia pelas décadas à frente 122 . Como mostram os atos do poder municipal, entre
junho e dezembro de 1899, o Intendente municipal Viriato Freire Maia Bittencourt, atendendo
aos pedidos dos enfermos “vindos das regiões flagelladas pela secca” 123 para Nazareth,
encaminhara diversos ofícios ao Provedor da Santa Casa de Misericórdia para que admitisse
nas enfermarias do seu Hospital os referidos enfermos, estando aquela Intendência disposta a
se responsabilizar pelas respectivas diárias. Conseguimos identificar naquele período o
quantitativo de 12 pessoas, todas brasileiras, procedentes da mesma região, sendo 03 mulheres
e 09 homens.

119
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: história e trajetória de escravos e libertos na Bahia.
Campinas-SP: editora Unicamp, 2006.
120
Sobre a agricultura diversificada, ver: COSTA, Alex de Andrade. Arranjos de Sobrevivência....
121
A Vila de Saubara era um “Local próximo a Vila de Santo Amaro e Cachoeira, onde homens e mulheres
viviam do corte de lenha, da pesca, da criação de gado e do fabrico de cal.” Cf.: CASTELLUCCI JUNIOR,
Wellington. Pescadores e Roceiros.., p. 40.
122
CASTELLUCCI JUNIOR, Wellington. Pescadores e Roceiros... p. 55.
123
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 166 verso.
62

Os processos criminais nos mostram alguns sujeitos com perfis apontados até aqui,
como o de Francisco Bento do Nascimento, 43 anos, casado, artista, natural da Província do
Ceará, residente no beco da cadeia, que vivia de pequenas e fortuitas atividades na cidade,
como a de armar palanque, serviço que estava executando ao lado da igreja na noite do
arrombamento da cadeia124; o do marceneiro Elpidio Alves Leite, 36 anos de idade, solteiro,
natural de Cachoeira, que morava na Travessa da Cidade de Palha e tinha pequena oficina de
trabalho na Rua Barão Homem de Mello125; o de Maria Leoncia Rodrigues, 30 anos, solteira,
também natural de Cachoeira, que era cozinheira e costumava comprar os mantimentos
necessários para o preparo dos seus alimentos nos armazéns e quitandas do sobrado dos Arcos
e nas feiras livre a nos dias de quarta e sábado 126. Estes três personagens tinham em comum,
além da condição de terem sido partícipes de micro conflitos cotidianos, o fato de serem
trabalhadores autônomos, migrantes que encontraram em Nazareth o espaço para desenvolver
suas atividades ganhando a vida.
Podemos inferir destes dados e perfis que a frequente migração de pessoas entre uma
freguesia e outra vinculava-se à busca de melhores condições de sobrevivência, sobretudo
quando a continuidade do exercício dos seus ofícios sofria ameaças, sendo cidades de porte
regional e de posições estratégicas como Nazareth atrativas a estes trabalhadores, cujas
atividades desempenhadas acabavam dinamizando e modelando a sua estrutura, seja territorial
ou ocupacional. Nesse fluxo, ao contrário do rol das profissões apresentadas pelo censo de
1872, o quadro de ofícios dos sujeitos presentes nos processos crimes, no período em que os
censos não trataram da profissão da população, entre 1890 e 1920, já revelam algumas
mudanças, conforme fica evidente na tabulação de dados abaixo.

Tabela VIII: Profissões de maior apelo entre os sujeitos arrolados nos processos
Ordem Categorias Quantidade Percentual
1 Profissionais Manuais e Mecanizados 15 21%
2 Profissionais Industriais e Comerciais 13 19%
3 Não identificados/Sem Profissão 9 13%
4 Funcionários Municipais 9 13%
5 Autoridades Judiciais e Policiais 7 10%
6 Serviços Domésticos 6 8%
7 Profissionais Liberais 5 7%
8 Lavradores 4 6%

124
APB. Seção Judiciária. Processo Crime. Classificação: 03/121/23. Ano: 1890.
125
APB. Seção Judiciária. Processo Crime. Classificação: 24/838/06. Ano: 1891.
126
APB. Seção Judiciária. Processo Crime. Classificação: 17/598/05. Ano: 1898.
63

9 Criados e Jornaleiros 2 3%
Total 70 100%
Fonte: APB. Processos Crimes 1890-1920. AFEM. Processos Crimes 1900-1910.

Embora o número total dos sujeitos arrolados nos processos criminais seja moderado e
talvez incipiente, a importância representativa do conjunto populacional não deve ser
subestimada, uma vez que os dados apresentados pelo Censo Eleitoral de 1893 acabam o
respaldando127. Mesmo o Censo Eleitoral sendo masculino e letrado, num contexto em que
estas variáveis no Censo Populacional de 1890 expressavam 6,83% ou 1.240 pessoas, e os
aptos a votarem representavam apenas 1,5% da população, tais dados apresentam uma
proporção dos trabalhadores, cujas informações se aproximam do real na medida em que as
entrecruzamos tais fontes.
A presença de profissões notadamente urbanas como dos Profissionais Manuais e
Mecanizados e Profissionais Industriais e Comerciais figurando maior representatividade
expressam as relativas mudanças anunciadas na transição do século XIX para o XX. O Censo
Eleitoral de 1893 indicava que 34% (109 eleitores) da população alistada exerciam a profissão
de artista, e 17% (54 eleitores) estavam envolvidos no comércio e no negócio. Segundo
nossos critérios de mensuração de categorias para classificação dos sujeitos presentes nos
processos criminais, os denominados artistas faziam parte da categoria dos “Profissionais
Manuais e Mecanizados” e representaram 60% destes. Por sua vez, os negociantes estão
inclusos nos “Profissionais Industriais e Comerciais” representando 61,5%. Apesar de estes
dados apresentarem maior significância das atividades notadamente urbanas em função das
mudanças ocorridas no processo histórico de período entre 1890 e 1920, o mundo rural ainda
mantinha-se altamente representativo, sobretudo porque, além dos trabalhadores que
continuavam a exercer explicitamente estas atividades (lavradores, criados e jornaleiros),
muitos dos trabalhadores denominados artistas, mesmo exercendo atividades variadas,
buscavam uma representação de classe, o que lhes conferia certo nível de organização,
diferentemente das demais profissões128.
De algum modo, queremos dizer que algumas mudanças ocorridas durante boa parte
da Primeira República, especialmente entre 1890 e 1920, pautaram o rural e o urbano, uma

127
O registro eleitoral de Nazareth para as eleições de 1894 apresentou 320 eleitores, dos quais só foi possível
identificar 265 indivíduos, sendo que entre estes apenas 237 tinham profissão expressamente definida. Ver:
Censo Eleitoral de 1893 apud SACRAMENTO, Cleidivaldo de Almeida. Mundos de trabalho no Recôncavo
Sul... p. 91-93.
128
Sobre a representação classista dos artistas nazarenos, ver: SACRAMENTO, Cleidivaldo de Almeida.
Mundos de trabalho no Recôncavo Sul... p. 94.
64

vez que as categorias de trabalhadores deste último apresentaram um incontestável


crescimento. Sendo assim, como uma cidade comercial e financeira moldada por este perfil
populacional, nos finais do século XIX e início do XX, o setor comercial, dos negócios e dos
serviços urbanos, continuava a exercer um forte peso na economia local. Isso era
proporcionado, sobretudo, pela força da agricultura, que antes de representar um declínio,
sustentou a constituição de uma urbe por ela influenciada e não distante do rural. Conforme já
discutimos, no início do século XX, Nazareth havia superado sua condição de eminentemente
agrícola para uma sociedade ferroviária e industrial.

IV. Aparentes conflitos: outros trabalhadores nos usos da cidade

No início do século XX a cidade de Nazareth já apresentava diferenças quanto a 1872,


não podendo ser vista apenas como região produtora e exportadora, mas como centro urbano
comercial que empregava uma significativa mão-de-obra especializada, seja nas fábricas que
ali se instalaram, no comércio que se expandia e serviços urbanos que se ampliavam.
Neste universo de chegada e permanência de trabalhadores, muitos dos quais haviam
saído do cativeiro recentemente, a busca por expedientes laborais a fim de garantir o seu
sustento esteve condicionada à atuação predominantemente no ramo dos negócios, comércio e
serviços. Entre estas atividades, encontravam-se os ofícios especializados e manuais como os
de ferreiros, funileiros, ourives, pedreiros, além dos carregadores, caixeiros, estivadores,
aguadeiros e o pequeno comércio varejista. Estas ocupações urbanas, portanto, foram as
opções ainda que limitadas, que empregavam à mão de obra pobre e destituídas de terras e
posses naquele período, sobretudo por ser um dos setores mais dinâmicos129.
Facilmente, era possível perceber as quitandeiras com suas gamelas e tabuleiros
vendendo as deliciosas iguarias, em pontos fixos ou em trânsito, preparadas de forma
individual ou coletiva nos limites das cozinhas e quintais das suas modestas habitações nas
zonas periféricas e centrais da cidade. Entre tais figuras, nas memórias de sua infância em
Nazareth do início do século XX, Gastão Sampaio destaca a quitandeira Catita, moradora de
uma modesta, caiada e colonial casa na Rua do Padre Antunes. Uma “preta que fazia
guloseimas e vendia uma amoda de sabor inesquecível” além dos espetinhos, “peixe espetado
em talinhas de folhas de coqueiro, que servia de alimento preferido dos pobres” 130 .
Igualmente, os carregadores vestidos ou sem camisa aguardavam e se movimentavam com a

129
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim... p. 81.
130
SAMPAIO, Gastão. Nazaré das Farinhas... p. 177-178.
65

chegada das locomotivas e pequenas embarcações no cais da cidade conduzindo os sacos de


farinha, café, fumo e cereais que cotidianamente chegavam ao porto, já consignados aos
depósitos dos negociantes da cidade, situados à Rua Conselheiro Dantas, contígua ao cais, e
da capital do estado131. Nas margens do rio Jaguaripe também podiam ser vistas, ao lado das
crianças que tomavam banho em momentos de lazer, lavadeiras como Constança Carolina,
amásia de Manoel Henrique e José Antônio, mulheres que, com suas trouxas de roupas ou
bacias de louças, exerciam as atividades que lhes garantiam o sustento. Neste mesmo local,
ainda possível encontrar pessoas de outros ofícios, como a negociante estabelecida no Prédio
dos Arcos, testemunha da querela do trio acima, a Sra. Barbara Maria da Conceição, que
aproveitou a proximidade da casa comercial com o rio para lavar lá os seus utensílios
comerciais e domésticos132.
Um destes personagens que transitavam naquele centro comercial, exercendo suas
atividades, foi o carregador Martinho Ferreira dos Santos, que, em 14 de março de 1895,
requeria da Intendência Municipal o pagamento por ter carregado às ordens do Conselho
Municipal cento e trinta e cinco sacas de farinha133. Estes profissionais estavam por toda a
parte, desenvolvendo múltiplas funções, marcadamente manuais e braçais, sobretudo após a
determinação do Conselho Municipal em dar exclusividade dessas atividades aos
profissionais que estivessem regularmente matriculados, como se vê na comunicação abaixo
encaminhada ao delegado de policia:

Intendencia Mªl de Nazareth, 4 de dezembro de 1890. Tendo o Cons.


Mªl dessa cidade em sessão de hoje, resolvido que a descarga e
baldeação até o caes dos gêneros trazidos pelo vapor e barcos de fretes
seja feita exclusivamente pelos ganhadores que forem matriculados,
assim vos communico afim de que auxilies ao Conselho na execução
desta medida.134

No ano de 1893, por exemplo, segundo o Livro de Registro de Licenças e Matriculas,


estavam registrados e com pagamentos em dia do imposto de profissão 82 trabalhadores
autônomos, como os ganhadores e ganhadeiras, aguadeiros e aguadeiras e os vendedores
ambulantes, portanto aptos ao trabalho, segundo a decisão do Conselho Municipal. Tal
medida teve como objetivo o fortalecimento da obrigatoriedade das taxas de licença e
matricula dos trabalhadores que, por terem atividades desempenhadas essencialmente nas

131
SACRAMENTO, Cleidivaldo. Mundos de trabalho no Recôncavo Sul... p. 171.
132
APB. Seção Judiciária. Processo Crime. Classificação: 17/598/05. Ano: 1898.
133
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 51.
134
APMN. Livro de Registro de Ofícios e Comunicações da Câmara Municipal de Nazareth, 1877-1902, p. 97.
66

ruas, podiam mais facilmente burlar o fisco e continuar exercendo-as. Neste caso, a
obrigatoriedade da licença como requisito para o desempenho das atividades e a fiscalização
policial, no mínimo, inibia suas ações.
Aquela vida de trabalhadoras autônomas, geralmente mulheres de cor, que exerciam as
atividades corriqueiras, essenciais e de forma manual era o caso compartilhado pelas colegas
ganhadeiras, as senhoras Delfina, Esperança e Antonia Maria da Conceição, que geralmente
estavam ligadas por laços de solidariedade, parentesco e lealdade135. Todas, no exercício do
pequeno comércio “fortuito”, no ganho das ruas, comercializando produtos como hortaliças,
verduras, mariscos e frutas para uma população flutuante, ocuparam lugar destacado no
mercado de trabalho urbano da cidade de Nazareth desde longa data. Já trabalhadores como
Amélia Cardoso e Joaquim José Pereira que atuavam como aguadeiros, faziam o
abastecimento e venda de água nas ruas da cidade, onde homens em cima de animais com
cangalhas e mulheres com rodilhas e botijões na cabeça com vasilhames de águas, se
abasteciam nas fontes da cidade136. Além da principal, a Fonte da Conceição, as cacimbas,
espécie de poços cavados no solo para extração de água do lençol subterrâneo, estavam
espalhadas na cidade, mas em número reduzido.
Este vaivém destes trabalhadores era sempre recheado de inúmeros conflitos,
conforme apontou o processo criminal instaurado em 1908, para investigar as agressões
sofridas pelo menor Manoel dos Anjos Pinheiro de 08 anos, negro denominado “crioulo”,
cometidas pelo aguadeiro Faustino de Tal. As agressões haviam ocorrido no dia 07 de julho
daquele ano, na cacimba da Rua da Lama (Conselheiro Saraiva), quando, supostamente
insultado pela criança, o vendedor de água feriu-lhe com o “cabo da taca que tangia o
animal”. Segundo algumas testemunhas, que moravam naquela rua ou estavam em trânsito,
enquanto o menino chorava ensanguentado, o aguadeiro, cuja identidade foi ignorada pelos
mesmos, corria no lombo do animal.
Tudo indica que aquela tensão havia sido iniciada depois de o menor Manoel
perguntar a Faustino para quem era aquela carga d’agua, momento em que o aguadeiro
respondeu não ser da conta do menino, chamando-lhe de corno. A criança, por sua vez, disse
“que corno era elle”, razão pela qual foi ferido pelo vendedor de água. Em depoimento,
Antonio Gomes de Barros, 24 anos, solteiro, empregado no serviço doméstico e residente
naquela rua, informou que ouviu Faustino gritar as seguintes palavras: “menino eu não estou

135
APMN. Livro de Registro de Licenças e Matriculas da Intendência de Nazareth, 1893-1901.
136
APMN. Livro de Registro de Licenças e Matriculas da Intendência de Nazareth, 1893-1901.
67

bolindo com você” e então presenciou as tacadas nas pernas de Manoel, que o derrubaram no
chão137.

Figura II: Carregadores de Água (Aguadeiros)

Fonte: Litografia de Lygia Sampaio138

Como não foi possível acompanhar o desfecho do processo, em função do grau de


deterioração em que o mesmo se encontra, não temos conhecimento da penalidade atribuída
ao vendedor de água, ou sequer se o mesmo foi encontrado, uma vez que durante a
investigação o aguadeiro “de tal” não teve a identidade revelada, por não ter sido reconhecido
por populares nem pelas autoridades. Tal situação nos leva a indagar se seriam estes “de Tal”,
pessoas que escapavam ao controle das autoridades? De todo modo, podemos inferir desta
micro história que os modos de viver e os comportamentos de segmentos daquela população
acabavam causando incômodo a muitos moradores, que desde os meados do século XIX já
orgulhavam-se de residir e um dos mais prósperos centros econômicos da Bahia 139. Assim, foi
diante deste quadro social, composto por distintas pessoas e diversos modos de atuação nos
espaços da cidade, seja no cais, na Praça do Porto, nos becos e estreitas ruas, que ao mesmo
tempo em que buscavam garantir o seu sustento, modificando aquela paisagem urbana
movimentada por quem entrava e saia com seus interesses financeiros e políticos, os
trabalhadores da cidade passaram a encontrar diversas formas de controle, nos locais públicos
ou privados.

137
AFEM. Processo Crime. Caixa sem classificação. Ano: 1908.
138
SAMPAIO, Gastão. Nazaré das Farinhas...
139
SACRAMENTO, Cleidivaldo. Mundos de trabalho no Recôncavo Sul..., p. 86.
68

Com a ampliação das ocupações já assinaladas até aqui, mas, sobretudo pelo fato de os
trabalhadores livres que estavam ocupados nestes serviços estarem relativamente à margem da
ideologia capitalista do trabalho, ou mesmo pela ausência dessas ocupações, os setores
dominantes passaram a se preocupar ainda mais em encontrar novas formas de controle
social, pois, assim como na Inglaterra do século XVIII, o trabalho livre no Brasil implicou no
enfraquecimento dos antigos meios de disciplina social 140. Deste modo, diversas foram as
medidas disciplinares implementadas, que conferiram à municipalidade o direito de intervir
das mais diversas formas no espaço urbano e nas práticas sociais da população, com o
objetivo de regulamentar e controlar as vivências urbanas. O exemplo maior destas medidas
foram as chamadas Posturas Municipais, que nos anos iniciais da República foram
sistematizadas num novo e reelaborado código, nos moldes do Código Penal promulgado em
1890, cujos “precedentes” gerariam alguns debates, a exemplo da Postura que estabelecia
regras para o mercado ambulante em 1893, instituindo o seguinte:

Art. 114. Os negociantes de pequeno comercio de verduras, fructas,


peixes poderão vendel-los pelas ruas da cidade, não estacionando nos
passeios das ruas, neste caso multa de 3$000. §Único. Esta prohibição
não se estende as Praças do Porto e arcados, do giro municipal, onde,
nos dias de feira poderão estacionar accumuladamente e nos outros
dias somente aquelles que estiverem licenceados, sob pena da multa
do art. anterior.141

A propósito, desde 1876, quando o Código de Posturas anterior foi encaminhado à


Assembleia Legislativa Provincial, a postura semelhante a esta que limitava os locais de
comercialização dos pequenos negociantes já causava fortes e acalorados debates entre os
deputados na comissão designada a examinar a legalidade das mesmas, chamando atenção
para a “liberdade de comércio”. A proposta inicial da postura de 1876 tentava estabelecer que
a vendagem do pequeno comércio “só se fará nos logares designados pela camara, ou nas
casas particulares, onde podem ser levados os gêneros de semelhante espécie”142. Contestando
esta medida, o Deputado Correia Garcia destacava o seguinte:

Ora, prohibir que as ganhadeiras exponham os objectos de seu


commercio em suas portas, ou que façam o seu mercado pelas ruas, o
que é aceito em toda parte onde há liberdade de commercio, é uma
iniquidade. [...] Como é, pois, que a camara municipal de Nazareth

140
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim5... p. 46.
141
APMN. Código de Posturas Municipal de 1893, artigo 114. Livro de Registro das Decisões, Resoluções e
Leis do Conselho Municipal de Nazareth, 1893-1915, p. 39v – 52v.
142
FBN. Annaes da Assembleia Legislativa Provincial da Bahia. Sessões do ano de 1876. Vol. 1. p. 35.
69

quer designar pontos, onde as ganhadeiras se colloquem? [...] Parece


que a camara de Nazareth não tem razão nenhuma.143

Percebe-se na contestação uma preocupação com a continuidade de um serviço


corriqueiro feito por pequenos comerciantes que de alguma forma facilitavam a vida de muita
gente, talvez, inclusive a dos empregados e/ou família do deputado, uma vez que os gêneros
comercializados por aqueles trabalhadores nas ruas diminuía o caminho entre a casa e o
armazém para quem precisavam se deslocar, ao mesmo tempo em que alimentavam uma
população flutuante em trânsito. De todo modo, as alegações em 1876 daquele sujeito não
foram suficientes para derrubar a postura, uma vez que ela foi aprovada com algumas
alterações, permitindo o estacionamento apenas nos locais designados e sem exceções. A
presença da mesma postura em 1893, embora com algumas alterações, aparentemente
divergente da redação de 1876, mas semelhante quanto à proposta, é sintomática do
aperfeiçoamento de tais medidas, sobretudo naquele momento de reorganização política e
administrativa, da qual a prerrogativa de legislar levou em conta as práticas de populares. A
nova versão que permitia a circulação pelas ruas também proibia o estacionamento nos
passeios das ruas, excetuando-se aos locais centrais apenas em dias de feiras, limitando nos
demais dias apenas as ambulantes licenciadas.
Conforme já dito até aqui, a Câmara era um órgão controlado tradicionalmente por
grandes comerciantes, fazendeiros e proprietários, portanto, não é ir muito longe se pensarmos
que essa instituição vivia às voltas com o comércio ambulante por este se constituir, no
mínimo, como um concorrente poderoso do comércio estabelecido144. Afinal, os comerciantes
tinham de pagar “altos” impostos por serem donos de casas comerciais, enquanto os
ambulantes, apesar das incisivas determinações e fiscalizações, tinham a prática de circular
pela cidade, com a possibilidade de burlar o fisco nesse ínterim. A postura de 1876 propunha
designar locais ou forçar as ganhadeiras a estabelecerem-se em casas particulares; contudo,
uma vez que o trânsito destas mostrou-se indispensável, foram estabelecidas sérias regras na
postura de 1893, entre as quais limitar sua presença nos arruamentos centrais onde estavam as
suntuosas casas comerciais. Neste caso, podemos depreender que as medidas da Câmara, de
1876 e 1893, revelam-se como estratégia de controle de uma parcela de trabalhadores, para as
autoridades municipais potenciais transgressores das leis e normas, que deveriam submeter-
se a regras, especialmente fiscais, que os tornariam em iguais condições de negócio que os
143
FBN. Annaes da Assembleia Legislativa Provincial da Bahia. Sessões do ano de 1876. Vol. 1. p. 35.
144
Richard Graham chama atenção para o fato de, historicamente os trabalhadores não terem voz direta nas
Câmaras Municipais, justamente pelo fato delas terem ligações estreitas com comerciantes e proprietários
industriais. Ver: GRAHAM, Richard. Alimentar a cidade... p. 57.
70

demais. De todo modo, como assevera Richard Graham, “a repetição frequente desses
regulamentos indica que tinham pouco ou nenhum efeito”145.
Destaca-se que, no contexto da modernidade que se acentuava nos limites do século
XIX, era preciso normatizar e regular os agentes perigosos e que colocassem em risco o rumo
à civilização, afinal, a gente “refinada” da cidade de Nazareth – sobretudo os proprietários de
estabelecimentos comerciais mais bem sucedidos, que passaram a exercer fortes influências
junto às autoridades governamentais – imprimia “honras e sentimentos” por aquele espaço, ao
qual era preciso modernizar e higienizar146.
Neste sentido, diversas foram as experiências incitadas pelas ações normatizadoras
compartilhadas por pessoas como a ganhadeira Antonia Maria da Conceição, a aguadeira
Amélia Cardoso e do ganhador Manoel Anastácio dos Santos no ano de 1893. Todos esses
trabalhadores autônomos, que viviam de largos expedientes diários foram taxados pelo fiscal
municipal Misael Ananias dos Santos a recolherem aos cofres do município o valor das
multas por infração às legislações em vigor, das quais os mesmos haviam transgredido.
Naquele ano a ganhadeira Antonia Maria da Conceição, incursa no artigo 41 das posturas em
vigor, por transgressão, foi obrigada a pagar o montante de 4$000 à municipalidade.
Igualmente, em fevereiro de 1893, a aguadeira Amélia Cardoso, reincidente na infração do
artigo 08 das posturas, pagou por duas vezes a mesma quantia de 4$000 ao fisco municipal.
Essas infrações estavam relacionadas as suas atuações laborais no cotidiano da cidade. Como
as colegas de profissão, Manoel Anastácio dos Santos, ganhador, foi intimado pelo fiscal
municipal a pagar a multa de 8$000, em outubro de 1893, por estar supostamente vendendo
nas ruas “substâncias nocivas”, que só poderiam ser comercializadas nas farmácias e
147
drogarias da cidade . Pelo exercício da profissão e caracterização do produto
comercializado, presumimos que aquele gênero proibido era uma espécie de xarope, chá ou
medicamento medicinal feito à base de ervas que poderiam ser encontradas nos quintais das
suas casas, onde eram preparados para o “comércio clandestino”, cada vez mais escancarado
aos olhos dos fiscais. Essa era uma atividade comum, sobretudo entre aqueles que detinham
saberes medicinais e contato com folhas e ervas, mas que passou a ser regulamentada,
sobretudo após o Código Penal de 1890, quando este objetivou oficializar a medicina

145
GRAHAM, Richard. Alimentar a cidade... p. 104.
146
Cleidivaldo Sacramento chama atenção para os discursos veiculados em Nazareth pela elite econômica e
política, Ver: SACRAMENTO (2007). Aldrin Castellucci atenta para o papel desempenhado pelos prósperos
negociantes da cidade de Salvador no sentido de reivindicar e planejar mudanças na estética da cidade na política
local, da qual estavam em muitos casos inseridos, ver: CASTELLUCCI (2004).
147
APMN. Livro de Receita da Intendência Municipal de Nazareth (1893-1902).
71

cientifica no país, passando a coagir as demais práticas curativas que não fosse a do saber
científico.
Igualmente, multado em 5$000 e preso por dois dias em Abril de 1904, por
transgressão à postura que proibia o emprego “em negocio de venda de substancias
comestiveis” por aqueles “que sofreram de moléstias repulsivas”148, o ganhador Miguel de Tal
era um dos múltiplos sujeitos que se empregavam das vendas de alimentos pelas ruas e praças
da cidade, e que segundo o poder municipal representavam perigo à sociedade149. No caso em
questão, na infração à determinação, o ganhador colocava em risco à saúde pública, pois
continuava exercendo sua atividade de ganhar a vida através do comércio de gêneros
comestíveis. Em função, sobretudo, de um surto de cólera que tomara a cidade de Nazareth
em 1985, estimando a morte de 3.215 moradores150, temor do contágio de epidemias fez a
municipalidade se preocupar efetivamente com a possibilidade de surtos epidêmicos
alastrados através dos trabalhadores que faziam os serviços urbanos. Esse medo causou
histeria principalmente nas elites locais, pois elas estariam reféns da proliferação de moléstias
e epidemias, cuja transmissão poderia não distinguir classe social.
Para além destas questões, é importante observar que a medida adotada visava, antes
de tudo, promover o isolamento de sujeitos considerados “agentes transmissores” e precaver o
contágio aos segmentos sociais mais abastados, uma vez que doenças como a tuberculose
matou mais que qualquer doença epidêmica no país não causava tanta preocupação 151. Neste
caso, a inobservância da lei que regia a atividade do negócio de substâncias comestíveis por
parte do ganhador revela o grau de necessidade que o referido trabalhador urbano tinha de
continuar exercendo o seu oficio. Certamente tivesse até sido curado da moléstia que contraiu,
e por isso deu prosseguimento a atividade por necessidade; porém, sua autuação foi permitida
em função de conhecimento por parte do fiscal do acometimento por que passara, ou mesmo
por denúncia de colegas, corroborado com o dispositivo da lei. A situação revela ainda que o
dispositivo da lei não foi acatado tacitamente pelos munícipes, uma vez que antes de várias
práticas serem proibidas pela lei, elas eram cotidianamente vivenciadas e necessárias para
muitos, por isso a infração de variados instrumentos se deram reincidente e corriqueiramente,
configurando as transgressões.

148
APMN. Código de Posturas Municipal de 1893, artigo 48. Livro de Registro das Decisões, Resoluções e Leis
do Conselho Municipal de Nazareth, 1893-1915, p. 39v – 52v.
149
APMN. Livro da Receita da Intendência de Nazareth nº 2, 1903-1912, p. 20.
150
OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos. Recôncavo Sul: Terra, Homens, Economia e Poder no Século
XIX. Dissertação de Mestrado em História. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal
da Bahia. Salvador, 2000. p. 12.
151
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril... p. 32.
72

Assim como as quitandas, feiras e arruamentos centrais, um dos locais que cotidiana e
obrigatoriamente eram frequentados pela aguadeira Amélia Cardoso e aguadeiro Joaquim
José Pereira passou a ser alvo das fiscalizações do poder municipal de múltiplas formas, como
atesta o comunicado feito em 13 de Julho de 1898 pelo Intendente Viriato Bittencourt:

O Intendente Municipal recomenda ao zelador da Fonte da Conceição


que quando tenha de ausentar-se de seu posto deixe pessoa que o
substitua, para que não se reproduza o facto de estar a fonte aberta á
disposição dos carregadores como observei hontem as duas horas da
tarde. O Intendente.152

O ato normativo em questão, além de permitir uma reflexão sobre a ação do intendente
em ir fiscalizar os espaços e as funções dos empregados públicos, indica compreender o
universo das práticas cotidianas que eram executadas pelos carregadores de água, vistas quase
sempre como um “quadro pitoresco” de pessoas e animais, de modo que, para manter a ordem
e evitar brigas, muitas vezes era necessária a interferência da polícia. A preocupação das elites
dirigentes em fiscalizar espaços como estes constituía uma necessidade de manter um efetivo
controle contra as práticas indesejáveis da população que, em muitos casos, eram possíveis de
se realizar por conta da negligência ou ausência de funcionários municipais.
Em 16 de Março de 1900 em oficio aos Conselheiros Municipais, o Intendente Dr.
Eurico Joaquim da Matta, em resposta ao pedido feito pelo Conselheiro Dr. Alfredo de
Almeida Sampaio “sobre o abuso posto em pratica pelo zelador da referida Fonte da
Conceição que está prohibindo atiragem d’agua a particulares depois das 6 horas da tarde”153
transmitia a seguinte mensagem:

[...] ordenei se baixasse portaria ao zelador da fonte da Conceição,


junto por copia ao vosso officio, para que aqquele funcionário com
urgência d’esse informações e se justificasse. Mas Ilustres
Conselheiros, vereis pelos documentos juntos pelo referido zelador,
que, ao contrario, o turbulento e mal procedido que existe n’aquelle
lugar é um Tertuliano de Tal, que longe de arrepender-se do seu
péssimo procedimento, usando até de palavras obscenas e ameaçando,
a vezes, ao zelador, procura torná-lo mal visto para os que ignorão o
que se passa constantemente n’aquella fonte e não conhecem bem a
sua índole de perverso. Declara mais o zelador, juntando para prova
attestado do fiscal e do administrador das obras d’esta municipalidade,
únicos em que esta intendência pode confiar para fiscalização dos atos
daquele zelador.154

152
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 138 verso.
153
APMN. Livro de Registro de Ofícios e Comunicações da Câmara Municipal de Nazareth, 1877-1902, p. 127.
154
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 198.
73

Percebe-se, portanto, que diversas eram as queixas que chegavam aos conselheiros
municipais sobre alguns serviços públicos mal prestados, as quais serviam de justificativas
para tentar enquadrar funcionários com a perspectiva de manter a ordem no referido espaço.
Constata-se, porém, que dentre aos variados problemas que ocorriam na Fonte da Conceição,
alguns estavam relacionados a presença de perturbadores que acabavam colocando em risco a
vida de pessoas que tinha aquele espaço como meio de sobrevivência. O Tertuliano de Tal,
denunciado pelo zelador como sujeito de “péssimo procedimento” era um dos múltiplos
sujeitos que a municipalidade queria abolir daquele espaço, pois se o mesmo já constituía um
“quadro pitoresco” pela caracterização das atividades que ali eram desempenhadas, elementos
como estes contribuíam para tornar o local imoral e periculoso.
A propósito da comentada e tumultuada fonte, localizada nos limites entre o rural e o
urbano, é possível observá-la na imagem abaixo. Num clima ordeiro, certamente para captura
da fotografia, é possível verificar as grades que impediam a entrada de animais, a guarita ao
lado, além da presença de duas pessoas uniformemente trajadas, que provavelmente são
algumas autoridades municipais, ou mesmo pessoas de influência na cidade tentando validar a
autoridade sobre o local. Interessante que a imagem em questão não apresenta nenhum
carregador de água fazendo aquele serviço cotidiano que se avolumava nos dias de quarta e
sábado, quando se processavam as feiras. Esta era a imagem desejada pelas autoridades, mas
que nem sempre era o que acontecia. Com certeza, estes dois bem trajados não eram
Tertuliano de Tal, o perturbador da fonte, nem Faustino de Tal, o aguadeiro agressor.

Figura III: Fonte da Conceição

Fonte: Acervo Particular155


155
Foto “Fonte da Conceição”. Inicio do Século XX. Sem Catalogação. Acervo Particular Sr. Joseney Barreto.
74

De todo modo, ações como estas, que se repetiam cotidianamente, revelavam cada vez
mais que mecanismos reguladores do espaço social estavam sendo expandidos pelo poder
municipal. Tais mecanismos estavam sob a égide da famosa modernidade, reivindicada por
setores da cidade, e reafirmavam-se através de uma política de controle social e dos espaços
ocupados pela população. É o que veremos no capitulo seguinte.

Mapas I e II: Município de Nazareth (em vermelho) até 1880 (em amarelo) após 1905.

Fonte: BARICKMAN (2003)156

156
BARICKMAN, B. J. Um contraponto baiano... p. 40.
75

CAPITULO II

Personalidades, ideologias e políticas urbanas: entre projetos, posturas e


costumes

Tornando-se notavel nesta laboriosa e ordeira cidade as frequentes


infrações das leis já pelo ataque a propriedade alheia, já pelo
desrespeito a autoridade constituida, já pelas offensas phisicas aos
poucos mantenedores da ordem que entre nós existem e sendo um dos
maiores deveres dos representantes do municipio a defesa do bem e da
pessoa dos municipes, cuja guarda não offerece actualmente as
necessarias garantias em consequencia da falta de força phisica que se
observa para o regular policiamento da cidade. Urge que sejam
tomadas energicas providencias em bem da sociedade nazarena. E não
sendo possível ao Governo do Estado vir em nosso auxilio, estando
suas forças concentradas nos arraiaes do fanatismo, lembro-vos da
conveniência de ser creada uma pequena força municipal, embora de
caráter provisório, á vista dos exímios recursos pecuniários da
municipalidade, ou auxiliada a existente, bastante diminuta.157

Encaminhado pelo Intendente Municipal, Coronel Viriato Freire Maia Bittencourt, aos
membros do Conselho Municipal em 10 de setembro de 1897, o ofício acima transcrito nos
chamou bastante atenção não apenas pelo empenho da autoridade em buscar soluções ante as
dificuldades do município, mas, sobretudo pelo levantamento dos problemas identificados na
cidade e elaboração de um discurso defensivo e criminalizante, do qual o Intendente se
tornaria porta voz junto às demais autoridades. A tônica da legalidade urbana expressa no
documento revela, por sua vez, a preocupação em promover uma ampla ação nos termos de
vigiar e punir dos sujeitos que incitavam desordem na cidade. Seria esse um processo que se
prolongaria por todo período imediato ao pós-abolição e recém-republicano, marcado pela
“intenção de transformar os pobres urbanos em trabalhadores assalariados, disciplinados e
higienizados”158.
As “infrações das leis”, “ataque a propriedade alheia”, “desrespeito a autoridade
constituída” e as “offensas phisicas”, designações encontradas pelo Intendente para assinalar as
ações de sujeitos que descaracterizavam a “laboriosa e ordeira cidade” e colocavam em prejuízo
a municipalidade nos leva a pensar que o movimento das ruas e o modo de vida urbano,
tecido por uma população considerada arredia e que já havia sacudido aquele território

157
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 116.
158
CHALHOUB, Sidney. Medo Branco de Almas Negras: Escravos, Libertos e Republicanos na Cidade do Rio.
In.: LARA, Silvia Hunold (Org.). “Escravidão”. Revista Brasileira de História – São Paulo, ANPUH/Marco
Zero, vol. 8, nº 16, março de 1988 / agosto de 1988. p. 86.
76

através de revoltas e insubordinações de escravos e libertos contestando disciplinas 159 ,


tornara-se alvo das preocupações, pauta dos projetos e produto das medidas administrativas
republicanas. Para tanto, se fazia necessária, portanto, a constituição de um corpo policial
efetivo que desse conta das insubordinações.
A riqueza deste documento permite perceber, por exemplo, que a ação policial
reivindicada tinha como objetivo submeter um conjunto social infrator a um intensivo
policiamento, e que o resultado desta, extensivo à sociedade, regularia a desordem provocada
por alguns, ordenando a cidade disciplinando pessoas em nome dos disciplinadores, leia-se
grupos dominantes, que estavam em choque com as cenas de indisciplina e impostura urbana.
Portanto, flagra-se a preocupação com a infração, a autoridade, a legalidade da norma, a
estética e a segurança da cidade. Essa era a pauta e a tônica de autoridades, muitas dos quais
foram políticos monarquistas, ex-proprietários de escravos, fazendeiros e herdeiros do
usufruto do sistema escravocrata, figuras que, como assevera Chalhoub “oportunamente
viraram republicanos” – a exemplo do Intendente, do Coronel Viriato Freire Maia Bittencourt,
e de alguns membros do Conselho Municipal cujos perfis políticos veremos adiante. Neste
novo cenário, apesar das mudanças no campo político, tais figuras permaneceram com medo
das “almas negras” que compunha a maior parte da população da cidade, conforme vimos no
capítulo anterior, justificando suas ações em nome “da higiene, da moral e dos bons costumes,
do progresso e da civilização”160. Assim, tudo indica que os novos tempos não significaram
tempos melhores, mas tempos de repressão que necessitariam, como diz a comunicação do
Intendente, de “energicas providencias” para criação de uma força policial que auxiliasse à
existente, até então sem condições de atuação satisfatória. Eram tempos do início do
“progresso ordeiro”, de uma República avessa a sublevação popular, nascida sob o signo
evolucionista que naturalizava a questão social, de base liberal, predatória e especulativa161.
A evocação da ordem e da legalidade expressas pelo ideal republicano e presentes nas
ações das autoridades municipais revela que o empenho em validar as novas formas de

159
Alguns estudos especializados dão conta das diversas revoltas e insubordinações escravas que sacudiram o
Recôncavo Baiano e a Comarca de Nazareth, ver: CASTELLUCCI JUNIOR (2007) e REIS, João José.
Recôncavo rebelde: revoltas escravas nos engenhos baianos. Afro-Ásia, Salvador, n. 15, 1992.
160
CHALHOUB, Sidney. Medo Branco de Almas Negras... p. 103-104.
161
“A República, ou os vitoriosos da República, fizeram muito pouco em termos de expansão dos direitos civis e
políticos. O que foi feito já era demanda do liberalismo imperial. Pode-se dizer que até houve retrocesso no que
se refere a direitos sociais.” Cf.: CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República
que não foi. São Paulo, Companhia das Letras, 2005. p.45; “Ora, além de ter surgido em uma sociedade
profundamente desigual e hierarquizada, a República brasileira foi proclamada em um momento de intensa
especulação financeira, causada pelas grandes emissões de dinheiro feitas pelo governo para atender às
necessidades geradas pela abolição da escravidão.” Cf.: CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas -
o imaginário da República no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1990. p. 29-30.
77

regulação e controle social agenciou na população variados mecanismos táticos de atuação


conjuntural. Neste caso, a infração de leis e atos contínuos se apresentou como elemento de
maior destaque. Em 1897, ano de tramitação do referido oficio junto aos espaços de poder, as
autoridades nazarenas já lidavam cotidianamente com as embaraçosas situações provocadas
por um dos instrumentos normatizadores mais sintomáticos de transgressões sociais, qual seja
o Código de Posturas, que havia sido reformulado e ampliado no ano de 1893, embora sua
existência remonte períodos anteriores162. Se parte da população nazarena dos finais do século
XIX tinha um costume de constante infração de leis municipais, pode-se afirmar que estas
infrações diziam respeito ao Código de Posturas, uma vez que este pretenso mecanismo
regulador das práticas cotidianas, espaços sociais e elementos culturais já acumulava de
fevereiro de 1893 a julho de 1897 o número aproximado de 118 infrações, tendo em conta
apenas os pagamentos espontâneos e contestados, com e sem êxito no que diz respeito às
multas aplicadas163. A sua recorrência é ilustrativa de para onde e para quem se voltaram as
autoridades, e quais foram as medidas de controle tomadas diante da impostura da cidade164.
Sobre tal mecanismo, e sobre a falta de efetividade dessas tentativas disciplinadoras, veremos
mais adiante – ainda neste capítulo, de modo mais generalizado, e no seguinte, mais
especificamente.
A construção do discurso do Intendente Coronel Viriato Freire Maia Bittencourt
criminalizando práticas urbanas para reivindicar a ampliação do aparato policial
contextualiza-se na reorganização da máquina repressiva estatal que foi tonificada com a
instauração de um federalismo descentralizado, do crescimento urbano das cidades brasileiras
e da própria abolição da escravidão que no aspecto social modificou o trabalho policial. Desse
modo, ao ampliar a atenção para as práticas comuns das ditas “classes perigosas”, a vadiagem
e embriaguez, por exemplo, consideradas pequenos delitos criminais, a instituição policial
integraria braço direito e essencial para política de melhor controle dos grupos perigosos que

162
Em estudo específico sobre o Código de Posturas de 1893, chegamos a seguinte conclusão: “não entendemos
o Código de Posturas como uma legislação isolada, que apenas fez parte de uma entre as tantas leis do
município, mas como uma espécie de documento secular, haja vista a sua existência desde as primeiras décadas
do século XIX” Cf.: AGUIAR, Lucas Santos. O código de posturas de 1893 da cidade de Nazareth e a
impostura da “civilidade urbana”: contestações, negociações e acomodações. Artigo de Conclusão de Curso.
Departamento de Ciências Humanas. UNEB, Campus V. Santo Antonio de Jesus, 2011. p. 29.
163
AMPN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900/ Livro de Receita da
Intendência Municipal de Nazareth (1893-1902)
164
PIRES, Maria de Fátima Novaes. Fios da vida: tráfico interprovincial e alforrias nos Sertoins de Sima – BA
(1860-1920). São Paulo: Annablume, 2009. p. 273.
78

se somavam165. Isso nos permite ratificar o entendimento já consensuado de que “foi a polícia
a principal responsável pela manutenção da ordem de dominação das elites”166.
A despeito de todo significado do aparato policial para o período, o articulado
documento reivindicatório da ampliação da instituição em Nazareth em 1897, sinaliza que as
forças do governo estadual estavam naquele momento concentradas nos “arraiaes do
fanatismo”, e por isso solicitava as “energicas providencias” junto ao Conselho Municipal, a
fim de aprovar a ação “á vista exímios recursos pecuniários da municipalidade”. A citação dos
“arraiaes do fanatismo”, que presumimos ser a quarta e última expedição militar contra as
tendências monarquistas do povo de Canudos naquele ano, ecoa um tom provocador acerca
das necessidades de se ter efetivamente uma força policial, ao mesmo tempo em que
intimidador, na medida em que aponta o nível a que se pode chegar o grau de organização de
um povo desobediente às leis. Certamente pairava na mente daquelas autoridades, ou se
queria incutir que, se o governo estadual não tinha condições de auxiliar o município naquele
momento, mesmo com a existência de forças policiais, era porque a atuação nos “arraiaes do
fanatismo” se tratava de grande batalha, portanto, indicador e ato justificador da necessidade.
Percebe-se aí o valor da ação policial e como ela foi importante para construir os valores
fundamentados pela recém-surgida República, seja na “laboriosa e ordeira” cidade de
Nazareth ou nos “arraiaes do fanatismo” do sertão baiano de Canudos167. Não estamos aqui
querendo associar as ações “perigosas” dos sujeitos nazarenos a um anti-republicanismo como
se atribuiu aos canudenses afinando-os aos ideais monarquistas, mas pretendemos caracterizar
que os valores republicanos em pauta necessitaram intimamente da força e ação policial para
legitimá-los.
No que tange “a existente, bastante diminuta” força policial nazarena, assim registrada
na comunicação do intendente aos conselheiros, tal dado nos permite questionar o porquê da
inexistência de um policiamento efetivo na cidade de Nazareth, que era uma espécie de polo
regional, que havia passado por um pseudo e incipiente processo de urbanização nas décadas
finais da segunda metade do século XIX, contando com diversas estruturas urbanas
necessárias ao convívio social – como as grandes lojas, hotéis, sociedades instrutivas como o

165
Sobre o poder e significado do aparato policial no século XIX e início da República, ver: HOLLOWAY,
Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Tradução de
Francisco de Castro Azevedo. Rio de Janeiro: FGV, 1997; BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na cidade. O
exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro. 1907-1930. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
166
MATTOS, Wilson Roberto de. Negros contra a ordem: astúcias, resistências e liberdades possíveis
(Salvador-Ba 1850-1888). Salvador: EDUNEB, EDUFBA, 2008. p. 131.
167
Sobre o massacre de Canudos e o imaginário republicano, ver: HERMANN, Jacqueline. Canudos destruído
em nome da República – Uma reflexão sobre as causas políticas do massacre de 1897. Tempo, Rio de Janeiro,
vol. 2, nº 3, 1996, p. 81-105.
79

Club Literário Nazareno, além das recreativas e associativas, como a Sociedade Recreio
Musical e Beneficio Mutuo da Tram Road168. Ainda que não tenhamos respostas precisas
para tal questão, esse fato era uma das pautas que preocupavam as autoridades, chegando a
figurar nos jornais de circulação a nível estadual, conforme noticiou O Pequeno Jornal em 20
de março de 1890:

Conferenciou ante-ontem com o Governador deste Estado o Capitão


Manoel Rodrigues Ferreira, commandante da força destacada no 2º
districto policial, que tem por sede a cidade de Nazareth, no sentido de
serem dadas as providencias necessárias a respeito da tranquilidade e
segurança publicas nas cidades e villas correspondente ao mesmo
districto.169

A notícia do jornal sobre o encontro da autoridade policial local com o governador do


estado e a pauta discutida traz à baila reflexões quanto à representação que a cidade de
Nazareth, enquanto sede do distrito policial, deveria ter junto às localidades vizinhas a ela
subordinada. Exatamente sobre essa representatividade e da situação que passava as cidades
ao redor, vejamos o que noticiou O Pequeno Jornal em 27 de agosto de 1890:

Sabe-se, por telegrama, que no ditricto de S. Miguel, termo de Santo


Antonio de Jesus, os garimpeiros, armados, sublevaram-se a
promoverem grandes conflictos, de que resultaram muitos ferimentos;
pretendem atacar á cadeia. Não há na localidade subdelegado, nem
supplentes; pelo que o sr. dr. chefe de policia telegraphou ao tenente
Cardoso, que se acha em Nazareth, recommendando-lhe que seguisse
incontinenti para aquelle districto, afim de tomar conhecimento das
ocurrencias e aguardar sua nomeação de subdelegado.170

Nazareth, a duras penas, era a responsável por dirimir os conflitos regionais como a
sublevação de São Miguel garantindo a tranquilidade e a ordem pública das vilas e freguesias.
Ora, ante a posição que ocupava o mínimo que se esperaria da cidade seria a constituição de
um corpo policial com efetiva atuação, não apenas na sede do distrito, mas em todo seu
entorno. Contudo, os dados já trazidos até aqui apontam para o fato de que a realidade não era
bem essa e que a condição, não apenas da instituição naquela localidade, mas das suas cadeias
e aquartelamento eram de péssimo estado, como atesta a fala de Francisco José Viana, 40
168
Segundo Lamartine Augusto, “Em 1883, o Dr. Salvador Pires de Carvalho e Albuquerque, Juiz de Direito da
Comarca, fundou o Club Literário Nazareno, para reunir os elementos das letras nazarenas.” Cf.: AUGUSTO,
Lamartine. Porta do Sertão. p. 129. A Sociedade Recreio Musical e Beneficio Mutuo foi fundada em 21 de
agosto de 1877 pelos ferroviários da Tram Road. Outras associações são mapeadas por: SACRAMENTO,
Cleidivaldo de Almeida. Mundos do Trabalho no Recôncavo Sul.... p. 54-55.
169
FBN. Jornal O Pequeno Jornal. Salvador, 20 de Março de 1890. Ano: I, Nº 41.
170
FBN. Jornal O Pequeno Jornal. Salvador, 27 de Agosto de 1890.
80

anos, solteiro, natural da Freguesia da Aldeia, lavrador, preso na cadeia de Nazareth junto às
autoridades judiciais em 1890:

Disse que na madrugada do dia três de fevereiro do corrente anno,


achandos-e elle testemunha dormindo na cadeia foi despertado pelo
Juiz da cadeia e outros companheiros de prisão que assustados davao o
signal de de alarme aos soldados. Disse mais que não precentio ruído
algum antes ou durante a evazão dos presos. Disse mais que não
notara coloio entre os prezos evadidos e mesmo qualquer facto que
dennunciasse interesse da parte do carcereiro na fuga dos mesmos.
Disse finalmente que o carcereiro era vigilante e frequentemente
examinava a porta e paredes do interior da cadeia.171

O depoimento do preso, Francisco José Viana, fez parte do Recurso de


Responsabilidade aberto pela promotoria pública da Comarca de Nazareth para apurar o dolo
criminal do carcereiro da cadeia pública de Nazareth, Sr. Luiz Rodrigues Prates, em função do
arrombamento que aconteceu na madrugada do dia dois para o dia três de fevereiro de 1890,
provocando a fuga de três presos sentenciados, sob o argumento que “sabendo o dennunciado
que o espaço que actualmente serve de cadeia nao offrece a segurança necessária e
indispensavel a casa desta natureza, deveria ter procurado evitar toda a possibilidade de fuga
por parte dos presos”. Em defesa do réu, o advogado Bel. Felisberto Maria Gomes da Cunha
chamava atenção ao juízo da comarca que era público e notoriamente debatido na cidade, e
mesmo na capital do estado, que o espaço da cadeia não oferecia segurança alguma para um
ou dois presos, quanto menos para 18 ou 20, e “que o dennunciado continuadamente
reclamava e pedia que as authoridades, desta localidade, dessem alguma providencia”. O
carcereiro, em defesa, declarou sua inconstante preocupação de que “a cada momento o
grande número de presos forçarião a prisão e por-se-hião em fuga”, pois, além do problema
das condições da cadeia, aquela cidade contava com um número limitado de soldados que não
excediam a cinco. Destacava ainda em defesa que “o quartel era tão pequeno que não
offerecia cômodo para os soldados fazerem leitos a descansarem”172.
O referido caso que tenta criminalizar o carcereiro pela fuga dos presos sentenciados
revelam algumas questões sobre o estado das cadeias públicas do interior da Bahia, além de
atestar o problema do policiamento em Nazareth naquele período. De outro lado, a autuação e
tramitação processual nos leva a questionar qual o efetivo grau de preocupação das
autoridades: se a condição da cadeia pública da cidade era péssima, contando com um

171
APEB. Seção Judiciária. Processo Crime. Classificação: 03/121/23. Ano: 1890.
172
APEB. Seção Judiciária. Processo Crime. Classificação: 03/121/23. Ano: 1890.
81

pequeno efetivo, de modo que a situação já era conhecida das autoridades municipais e
estaduais por iniciativa do “pobre carcereiro”, em quais modos os “esforços” de garantir a
tranquilidade e a segurança pública se dariam de fato? Ainda que a resposta para
questionamentos deste porte não esteja dada e nos interrogue ainda mais sobre o hiato
existente entre o discurso propalado pelas autoridades e a prática cotidiana dos agentes, a
evidente contradição do aparelho estatal vai deixando claro o discurso ideológico que os
sustenta: a necessidade de “limpar” o espaço público, de evitar o seu uso por populações
marginalizadas, oferecendo uma solução pré-definida e incerta de abrigo a tais sujeitos.
Afinal, entre os presos que permaneceram na cadeia, mesmo desconhecendo os crimes que os
levaram para ali, suas profissões, quando não eram ausentes, restringiam-se aos ofícios de
lavradores e pequenos comerciantes. Por fim, o carcereiro foi inocentado da acusação, com
uma sentença que assinalou que “não se podendo attribuir a descuido de sua parte, porque as
testemunhas affirmarão que elle dennunciado tinha o precioso cuidado”173.
Destarte essas questões, o fato é que desde a primeira metade do século XIX, a
condição das cadeias públicas daquela região do Recôncavo sul já era uma preocupação das
autoridades policiais e judiciárias. Em 1833, por exemplo, o Juiz de Paz da Villa de Jaguaripe
enviou comunicação ao Presidente da Província a fim de demonstrar “o estado de
precariedade em que se encontrava a maior parte das cadeias públicas existentes nos distritos,
onde réus condenados à morte e a outras penalidades fugiam com grande facilidade” 174. A
despeito do teor dessa comunicação e das medidas tomadas, presumimos que apenas a cadeia
da vizinha Jaguaripe havia se adequado ao perfil daquela população arredia, uma vez que os
significados da justiça daquela localidade eram compartilhados pelos contemporâneos como
“severa e eficaz”, com símbolos que quase sempre se remetiam a “prisão de sal”, cadeia que
se tornara pesadelo de qualquer criminoso175.
No que pese a criação da força municipal em Nazareth naquele período, até onde
pudemos acompanhar a documentação, não verificamos a sua concretização, mas a respeito
da condição da cadeia verificamos que a mesma passou, anos mais tarde, a funcionar em um
dos pavimentos do Paço Municipal que havia passado por uma reedificação para atender à
estética e legalidade urbana também em pauta nos discursos das autoridades. Veremos estes

173
APEB. Seção Judiciária. Processo Crime. Classificação: 03/121/23. Ano: 1890.
174
Segundo Wellington Castellucci Júnior, tal comunicação foi fruto de uma série de medidas tomadas pelas
autoridades da futura Comarca de Nazareth no inicio do século XIX com o objetivo de conter a movimentação
de pessoas daquela região que já era conhecida em Portugal por ser uma área de “covil de ladrões e fascínoros”.
Ver: CASTELLUCCI JUNIOR, Wellington. Entre veredas e arrabaldes... p. 266.
175
Sobre a cadeia e justiça de Jaguaripe, ver: ALVES, Isaías. (1967); AUGUSTO, Lamartine. (1999) e
SAMPAIO, Gastão. (1974).
82

últimos pontos em maior profundidade logo à frente. Ademais, todas as questões evocadas
pelas autoridades municipais e até aqui discutidas, além de partirem de uma leitura da
conjuntura que se processava naquele período – pós-abolição e advento da República –, se
materializaram, sobretudo, a partir do compartilhamento de experiências de sujeitos sociais,
cujas práticas e usos da cidade informaram moldes diversos de civilidade. Entre tantos
conflitos intimidados à duras penas pelo tímido policiamento e corriqueiramente
encaminhados à precária delegacia e cadeia da cidade, traz-nos diversos detalhes a resposta do
Comandante do destacamento policial ao Subdelegado de Nazareth, referente a uma série de
comunicações entre ambos:

Ilmº. Snr. Em resposta ao offº. de V.Sª. de hoje datada em o qual


pede-me informação a cerca da prisão do individuo Severiano
Tabireçá cumpre-me declarar, que, na noite do dia dois de julho do
corrente, foi detido no corpo da guarda do quartel d’esta cidade
Severiano Tabireçá, com parte de embriagado, e que alli ficou a
manhã do dia seguinte (3 do corrente) quando foi recolhido a prisão
da cadeia, por ordem de V. Sª. Declaro mais que o mesmo Severiano,
já era apontado a policia como barulhento quando embriagado, e que
duas noites antes, n’esse estado, quebrara vidraças de muitas casas, e
proferira palavras obscenas, no silencio da noite, despertando em
algasarras as famílias que já se acharão recolhidas, pelo que a sua
prisão, em tal estado, foi uma prevenção policial.176

Parte integrante dos autos criminais, aberto invertidamente por Severiano Primo
Tabireçá, natural de Nazareth, solteiro, 20 anos, sem profissão nem residência declarada em
face do Subdelegado em exercício, Reynaldo Ribeiro Sampaio, natural e residente em
Nazareth, casado, 31 anos e comerciante, o teor documental acima caracteriza um dos perfis
de “possíveis” infratores e contraventores que estavam na mira da polícia. Todavia, longe de
querer desqualificar o discurso deste registro, mas em cumprimento ao ofício do historiador
de questionar e desconfiar das fontes, faz-se necessário observar que, por terem sido
produzidos pelas camadas dominantes, o grau de institucionalidade dos documentos judiciais
e seu compromisso teórico com a “verdade” podem camuflar disputas e conflitos, ante a
prerrogativa de redigir caracterizações comportamentais como a de Severiano. Ainda assim,
mesmo assumindo uma posição ideológica dentro daquela realidade política e social,
compartilhamos do entendimento de que, ao reconstituir o evento criminoso penetrando no
dia-a-dia dos implicados e registrando o corriqueiro de suas existências, tais documentos
contribuem para revelar os aspectos da vida cotidiana e constituem, com a devida crítica, um

176
APEB. Seção Judiciária. Processo Crime. Classificação: 40/1411/9. Ano: 1890.
83

verdadeiro manancial de dados preciosos para o entendimento de determinados processos


daquela sociedade177.
Adentrando aos acontecimentos descritos no processo, alegando estar “pacificamente
prestando atenção” de forma ordeira, “nem tão pouco incomodando o público” que
festivamente celebrava o 2 de julho no ano de 1888 na Praça da Municipalidade, “mto menos
comettendo algum crime”, Severiano relatou que fora surpreendido com a voz de prisão por
três policiais, sob as ordens do Subdelegado Reynaldo, segundo ele, devido “á paixões e
mesquinhas vinganças dessa authoridade arbitraria policial”. Revelador de que poderia haver
de fato ressentimentos pessoais entre ambos, ou mesmo daquele ser o momento oportuno ante
a uma suposta incapacidade das forças policiais capturarem Severiano em outras ocasiões de
perturbação do sossego público, o auto criminal traz evidências de que as políticas urbanas
daquele período buscavam intervir, sobretudo nas práticas individuais privadas da população.
Ao apresentar em peça inicial um “nós abaixo assignado” por 11 pessoas, cuja maioria das
identidades é desconhecida por nossa pesquisa, as quais atestaram e se colocaram para jurar se
necessário fosse que Severiano havia sido preso no dia 2 de julho em frente ao palanque, o
queixoso foi também alvo de documento semelhante assinado por 18 negociantes da cidade,
entre os quais estavam João Dias Tavares, Antonio da Silva Farias, Militão José do Lago,
Antonio José de Carvalho e João da Silva Taperoaense178, atestando que Severiano “não tem
meio de vida conhecido e vive constantemente embriagado pelas ruas”179.
Portanto, alvo da proposta ideológica daquele período, presente nos discursos de
autoridades e das pessoas mais abastadas, a falta de profissão e o estado de embriaguez de
Severiano tornara-se fator condicionante na tramitação processual, acentuado na defesa do
Subdelegado Reynaldo, juntada aos autos em 23 de Julho de 1888 nos seguintes termos:

Vê, portanto V.Sª. como nesse próprio documento, em que o queixoso,


não por acto da sua espontaneidade, mas impulsionado, qual dócil e
inconsciente instrumento [...] firmado de modo implícito, porem
cathegorico, a confissão plena de que o mesmo queixoso é um
individuo sem profissão. Este facto meretissimo snr. Juiz de Direito,

177
Essa discussão sobre o uso de documentos judiciais como fontes históricas é feita minuciosamente por:
MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e Escravidão... p. 23; DIAS, Maria Odila Leite da Silva.
Quotidiano e Poder... p. 40.
178
Esses negociantes faziam parte do comércio mais abonado de Nazareth, proprietários de casas de fazendas,
calçados, açougues e molhados de primeira a terceira classe nas principais ruas da cidade, tendo alguns
acumulado cargos públicos eletivos junto ao Conselho Municipal (João Dias Tavares, Antonio da Silva Farias e
Militão José do Lago) e de Juiz de Paz (Militão José do Lago). Dados do Livro de Lançamento de Impostos,
Indústrias e Profissões de Nazareth, 1894-1921 e Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal,
1893-1900 (APMN).
179
APEB. Seção Judiciária. Processo Crime. Classificação: 40/1411/9. Ano: 1890.
84

irrevogavelmente confessado pelo queixoso [...] demonstra a


sociedade que o queixoso é um contraventor, perpetuo e habitual do
art. 295 do Cód. Crim., agravando frequentemente sua criminosa
situação com o vicio da embriaguez, a que é dado, e com as desordens
que n’este estado commete. Ora, com quanto por via de regra, os
indivíduos presos em flagrantes d’esses crimes se leirem soltos, faz
todavia a lei uma excepção a respeito dos reos, que forem vagabundos,
ou em domicilio certo, os quais podem ser conservados preso. Lei 20
de Setembro de 1871 art. 12 § 3º de referência ao art. 37 da Lei de 3
de Setembro de 1841 e art. 300 do Reg. de 31 de Janeiro de 1842.
Segundo esta deffinição do cit. Reg. “são considerados vagabundos os
indivíduos, que não tem habitualmente profissão, ou officio nem
renda, nem meio conhecido de subsistência”. Ora o queixoso acha-se
neste caso, visto que não tem morada própria, nem está assalariado ou
aggregado a pessoa alguma, ou família. [...] Com effeito, meretissimo
snr. Dr. Juiz de Direito, se alguma falta commeteu o respondente não
foi certamente essa, de que se queixa o queixoso, mas sim a de não
prosseguir contra elle no processo a que estava sujeito por infração do
art. 295 do Cod. Crim., e a de não conserval-o preso durante o
processo e cumprimento na respectiva pena. Se assim não o fez foi por
consideração ao queixoso. Entendeu que era de grande proveito para
sociedade em que vive o queixoso aliviando-a assim das desordens e
incommodos com que elle a perturba; e de máxima utilidade para o
mesmo queixoso dar-lhe uma occupação honesta, por meio de vida
decente; e então lembrou-se de promover os meios de fasel-o tornar
praça no exercito. [...] Consequentemente é improcedente, e até inapta
a queixa a que responde.180

Procedentes ou não, as informações levantadas e apresentadas por Reynaldo causou-


nos ao mesmo tempo relativa desconfiança, sobretudo pela procuração passada ao advogado
Bel. Felisberto Maria Gomes da Cunha por Severiano após a abertura do processo, para que
aquele o representasse em todos os atos e termos durante a viagem que faria por
recomendação médica em busca do restabelecimento do seu estado de saúde. A propósito, o
atestado emitido pelo médico Dr. Feliciano Faria da Silva, também assinante daquele abaixo
assinado juntado pelo queixoso na peça inicial, que presumimos serem estes seus conhecidos
e companheiros, indicava que Severiano estava “soffrendo de ulcerações syphiliticas”,
devendo passar por tratamentos bastante rigorosos. Tal dado nos leva a pensar que tais lesões,
uma vez presente em várias partes do corpo, inclusive no estômago de Severiano, poderiam
decorrer do seu vício de embriaguez. Do outro lado, nos intriga que, diante da condição de
Severiano não ter “morada própria, nem está assalariado ou aggregado a pessoa alguma, ou
família”, como pôde ele constituir um procurador para atuar no processo? E o tal tratamento
rigoroso que requeria uma viagem? Quais suas condições financeiras para arcar tais custos? A
consulta com o Dr. Feliciano Faria da Silva pode não ter custado nada, uma vez que nos

180
APEB. Seção Judiciária. Processo Crime. Classificação: 40/1411/9. Ano: 1890.
85

anúncios dos jornais locais, aquele médico, residente à rua das Pedras, indicava que atendia
gratuitamente “aos pobres das 7 às 8 horas da manhã”181. Entretanto, perscrutando os autos
em busca de aproximações explicativas a este caso, nos deparamos com o dado de que o
queixoso era filho do Alferes Julio Primo Tabireçá182, um comerciante bem estabelecido na
cidade, mas que aparentemente não tinha contato com a família como indicou o Subdelegado.
De qualquer forma, mesmo sem conseguir responder rigorosamente a tais questões, tudo
indica que ele não era um desordeiro pobre, como pretendiam enquadrá-lo.
Atiçando ainda mais a situação de Severiano, o depoimento de João Francisco de
Souza, natural e residente em Nazareth, 22 anos, solteiro e alfaiate indicou que “o queixoso
fora uma occasião prezo e recrutado para Bahia pelo próprio pai Julio Primo Tabireçá”. Com
mais detalhes, Esperidião Pio Santiago, natural de Cachoeira e residente em Nazareth, 48
anos, solteiro, alfaiate e jornaleiro, ao ser inquirido sobre o suposto recrutamento em pauta e o
fato de ter uma filha para casar-se com o queixoso, disse:

[...] que achando-se elle testemunha na Bahia, Severiano Tabireçá


levara uma carta para o Alferes Telles, carta de Julio Tabireçá, pai do
queixoso, e que em virtude da mesma carta fora ele preso para recruta,
pelo que prezume elle testemunha que a carta reccomendava a prizão,
mas que não pode affirmar que fosse esse o fim. [...] A testemunha
sustenta o seu depoimento e declara que não é verdadeiro o boato de
ter elle uma filha para cazar com Severiano Tabireçá, porquanto não
conhece contracto escrito a esse respeito.183

Os depoimentos das testemunhas, categóricos em afirmar o mau procedimento de


Severiano quando embriagado, especialmente as declarações de João Francisco e Esperidião
Pio, nos trazem possibilidades de pensar que a própria família sanguínea de Severiano
também poderia estar por trás da tarefa de livrar a sociedade das “desordens e incommodos
com que elle a perturba”. Seria essa uma estratégia de captura de Severiano? A suposta
atitude do pai e a declaração do Subdelegado de “dar-lhe uma occupação honesta” é
indicativa de que o recrutamento era uma forma de se livrar daquela gente incorrigível184.
Embora sejam presunções, no depoimento de Silvestre Antonio de Carvalho, natural e

181
FBN. Jornal O Independente. Nazareth, 17 de Julho de 1891. Ano VIII, nº 504.
182
As informações a respeito de Julio Tabireçá indicam que além de ser dono de uma casa de fazendas de 2ª
classe na rua do Comércio, o mesmo havia sido eleito suplente de vereador em 1876. Informações obtidas do
Livro de Lançamento de Impostos, Indústrias e Profissões de Nazareth, 1894-1921 (APMN) e do Jornal O
Monitor, Salvador, 17 de Outubro de 1876 (FBN).
183
APEB. Seção Judiciária. Processo Crime. Classificação: 40/1411/9. Ano: 1890.
184
Wellington Castellucci Junior aponta que “os recrutamentos fora uma arma poderosa para manter disciplina
das classes ‘perigosas’ em formação no curso do século XIX”. Cf.: CASTELLUCCI JUNIOR, Wellington. A
forca e o machado... p. 174.
86

residente em Nazareth, 38 anos, solteiro e empregado do comércio, constou que Severiano


“vivia de entregar gazetas e contas de algumas cazas commerciais”, sendo prontamente
rebatido pela promotoria pública que ele não ocupava mais esse ofício. De um modo ou de
outro, apesar daquele ofício ser um dos tantos omitidos pela oficialidade, pode-se perceber
que de fato havia um distanciamento entre Severiano e sua família, uma vez que, tendo seu
pai certa influência econômica e política na cidade, a suposta e transitória ocupação de
Severiano não era desempenhada junto às posses da família. Destaca-se que, naquele
contexto, o fator ter família, constituída ou em processo, poderia minimizar sua condição de
vagabundo. Logo, ao desmentir o boato de que Severiano teria a oportunidade de casar-se
com sua filha, Esperidião Pio contribuiu decisivamente para a sentença do Juiz, que julgou
improcedente a ação, condenando o queixoso nas custas processuais. Para o Juiz, o
Subdelegado agiu legalmente, conforme o Código do Processo Criminal de 1841 ao “por em
custódia o bebado durante a bebedice, pois evitou riscos e empregou meios para manter a
ordem e tranquilidade publicas”.
Ainda que não tenha sido julgado pelo Código Penal Republicano, instituído em 1890
e baseado no direito positivo, uma vez que nem processo criminal fora aberto contra as ditas
desordens de Severiano Tabireçá, aquela sequência de fatos deu-se em Julho de 1888, ano da
abolição da escravidão e marcado pela insustentabilidade da monarquia que cairia no ano
seguinte, em cujo período o debate parlamentar na Câmara dos Deputados pautava a
necessidade de uma lei de repressão à ociosidade185. Mais elementar ainda é perceber que as
leis fundamentadoras do crime de Severiano e da legalidade da ação de Reynaldo – Código
Criminal de 1830, Código do Processo Criminal de 1841 e os Regulamentos de 1842 e 1871 –
datam dos diversos momentos que foram marcados pelo temor das classes subalternas,
quando diversas revoltas escravas e, mais tarde, as leis emancipacionistas, colocaram em risco
a doutrina do controle social através da coerção individual186. Tais leis, inscritas no ápice
dessas movimentações, refletiam mecanismos de enquadramento de libertos, cujos
instrumentos tomados para vigiá-los não deixaram de serem evocados ainda em 1888, após a

185
VASCONCELOS, Marcos Estevam; OLIVEIRA, Mateus Fernandes de. O combate à ociosidade e à
marginalização dos libertos... p. 147-156.
186
Refiro-me aqui a grandes revoltas como a dos Malês na Bahia (1835), marcada pelo temor Haitiano e as leis
do Ventre Livre (1871) e dos Sexagenários (1886). Sobre essas questões, especialmente ver: REIS, João José.
Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo, Companhia das Letras, 2003;
EISENBERG, Peter. Homens esquecidos: os trabalhadores livres no Brasil, Séculos XVIII e XIX, Campinas:
Editora da UNICAMP, 1989; MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a mão e os anéis. A lei dos sexagenários
e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas, Ed. da Unicamp, 1999. CONRAD, Robert. Os últimos anos da
escravatura no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975.
87

abolição, a exemplo da disciplina pelo trabalho, sendo ajustada “à edificação de uma nova
concepção de urbanidade”187.
Desse modo, o pressuposto da suspeição generalizada em voga naquele período, ao
tempo em que recrudesceram as legislações que seriam reelaboradas a partir da instauração da
República – Código Penal de 1890 e Constituição de 1891 –, pautou mudanças e
continuidades na vida material das pessoas e da cidade, quase sempre conflituosas. As ruas,
enquanto grande “teatro dos vícios”, onde os desordeiros, vadios, vagabundos e ladrões
perambulavam, representavam, na visão das elites locais, o atraso da sociedade que lutava
para se civilizar. Pobres em geral, mesmo com ofícios, como o pedreiro José Antonio da
Silva, o magarefe Manoel Henrique da Silva, o carregador Vicente Ferreira “Gamberra”, o
aguadeiro Faustino de Tal e outros que, não possuindo oficio ou sem o devido
reconhecimento, carregavam o peso da sua possível conduta, como o embriagado Geraldo de
Souza, a crioula Maria Adelaide, o agressor João de Juliana e o perturbador Tertuliano de Tal,
apresentados no capítulo anterior, eram vistos pelas autoridades e legislações como
predispostos aos vícios e aos crimes.
Contudo, casos como o de Severiano Tabireçá, filho de uma família de posses, mas
viciado na embriaguez e na perturbação ao sossego público, são importantes para quebrar e
deslegitimar a falsa e excludente regra que colocava os trabalhadores urbanos pobres como
perigosos e ameaçadores à legalidade urbana. Deste modo, consideramos que é mais
apropriado pensar como diz a historiadora Rachel Sohiet:

Na verdade, o que fica claro é o empenho das autoridades em impedir


a presença dos populares em certos locais, no esforço de “afrancesar”
a cidade, não só para o desfrute das camadas mais elevadas da
população, como para dar mostras de “civilização” aos capitais e
homens estrangeiros que pretendiam atrair.188

I. A legalidade urbana: pautas e projetos para a “metrópole nazarena”

Os calçamentos, cais, iluminação e repartições públicas estruturadas, serviço de


telégrafo e vias de comunicação marítima e terrestres em Nazareth foram alguns elementos de
uma modernidade e “mostras de civilização” que se processavam no país no final do
Oitocentos. Inseridas no contexto das reformulações sociais que se aprimoraram no Brasil na

187
MATTOS, Wilson Roberto de. Negros contra a ordem... p. 98.
188
SOIHET, Rachel. Condição Feminina e Formas de Violência. Mulheres Pobres e Ordem Urbana (1890-
1920). Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1989. p. 165.
88

segunda metade do século XIX, especialmente nas suas ultimas décadas, alastrando-se no
princípio do século XX, pautando a política de modernização urbana, cidades portuárias como
Nazareth, espécie de polo regional do Recôncavo, de importância econômica na
província/estado, integraram-se ainda que timidamente a esse processo que incidiu
inicialmente nas capitais estaduais.
Garantidas e reivindicadas pelo próprio conjunto social junto às autoridades locais,
que, por sua vez, recorriam as estaduais e nacionais usando o prestigio político e econômico
da região como trunfo 189 , foi desse modo que a cidade de Nazareth não ficou imune às
principais intervenções das autoridades republicanas na vida urbana que buscavam o caminho
ao progresso e à civilização190. Se em 1º de março de 1853, o presidente da província relatava
com orgulho na abertura das atividades da Assembleia da Bahia que Nazareth foi “a primeira,
para não dizer a única que pôs em execução a lei e regulamento sobre o calçamento das ruas,
estando por isso, já muito melhoradas”191, em 18 de Junho de 1895 os projetos de lei do
Deputado Sr. Esmeraldo de Andrade – entre os quais um requeria o valor de 100 contos de
reis “para auxiliar a grande obra da canalisação do rio Jaguaripe e continuação de obra do
caes” de Nazareth – causavam aflorados debates e alguns insultos entre seus pares da Câmara
dos Deputados da Bahia:

O Sr. Francisco Bulcão – Então o município de Nazareth está muito


quebrado.
O Sr. Esmeraldo de Andrade – O município de Nazareth não está
quebrado, mas está a braços com muitas obras como a de canalisação
do rio e o caes da cidade, melhoramentos que muito o elevam no
conceito público, provando assim muito lisongeiramente o digno
procedimento do honrado conselho municipal daquela cidade. [...]
O Sr. José Justino – V. ex. que é de um município muito rico,
entende que os outros não devem pedir.
O Sr. Esmeraldo de Andrade – Eu não venho pedir para municípios
ricos, venho pedir para aquelles cuja esphera orçamentária não pode
abranger essas necessidades.
O Sr. José Justino – Nazareth é um município rico!
O Sr. Esmeraldo de Andrade – Para esse eu venho pedir para
auxiliarmos as grandes obras que está empenhando.
O Sr. José Justino – Todos pedem como auxilio.

189
Segundo Cleidivaldo Sacramento, “A influencia dos grupos políticos oriundos do Recôncavo, e que ali se
formaram nas décadas anteriores à República, era tão forte que esses grupos tinham poder de veto e de
aprovação na indicação de candidatos, assim como, durante as prévias do partido, e também na escolha dos
candidatos à sucessão de cargos eletivos ou nomeados, na administração publica do estado da Bahia.” Cf.
SACRAMENTO, Cleidivaldo de Almeida. Mundos do Trabalho no Recôncavo sul... p. 108.
190
Sobre os ideais de progresso e civilização propalados pelas autoridades baianas no contexto do advento da
República, ver: LEITE, Rinaldo Cesar Nascimento. E a Bahia civiliza-se...
191
APEB. Fala do Presidente da Província, Francisco Gonçalves Martins (1853) apud SACRAMENTO, (2007),
p. 86.
89

O Sr. Esmeraldo de Andrade – Eu creio que se deve auxiliar o


município quando a obra de reconhecida utilidade está iniciada, mas,
quando a obra não existe, o poder legislativo não pode conceder a
verba para sua realisação, porque então deixa de ser auxilio, para ser
feita á custa do Estado. Sr. presidente, ditas essas palavras eu
submetto á consideração da casa esses dois projectos e appello para a
equidade dos illustres deputados, que tão sympathicamente se
manifestaram em relação aos projectos similares que foram aqui
submetidos á sua deliberação, discutidos e approvados.192

Verifica-se que as reivindicações do Deputado Esmeraldo de Andrade, foram


imediatamente contestadas pelos colegas Francisco Bulcão e José Justino com variadas
justificativas, entre as quais a de que sendo aquele filho do rico município de Amargosa,
colocava-se “no papel de ridículo” de pedir quantias para obras de outros municípios. Para os
demais Deputados, inclusive Laurindo Regis, o requerimento das quantias para as obras em
Nazareth era “uma maneira indirecta de combater a obra do caes de Cachoeira”, querendo
aquele município passar a impressão de estar “muito quebrado” quando na verdade era “rico”.
Tal jogo de insultos e debates, ao que tudo indica, foi provocado por dois aspectos: 1º)
competitividade entre os municípios e os deputados que os representavam em garantir uma
infraestrutura necessária às transações comerciais e acolhimento de uma elite urbana; 2º) o
fato de o deputado requerente contemplar em seus projetos as necessidades de diversos
municípios, entre os quais, Itaparica, Jaguaripe, Nazareth, Jequiriçá e São Miguel, colocava-o
na condição de destinador de verbas e consequentemente “representante” destes, sobretudo na
cidade. De um modo ou de outro, presumimos que, por conta do apelo e das negociações
parlamentares na espécie de “partilha de bens” das verbas públicas, o projeto foi aprovado. A
destinação dos 100 contos de reis às obras de Nazareth significaria a continuidade de uma das
principais obras, qual seja o prolongamento do cais e canalização do rio, que alguns estudos já
apontam que, na virada dos séculos, juntamente com os trilhos da estrada de ferro,
representaram uma mudança sócio-cultural e uma integração da vida daquela urbe na rota do
desenvolvimento regional, provocando os chamados “surtos de modernização”193.
As principais áreas atingidas com os projetos de reformas circunscreveram ao antigo
centro histórico-comercial e bairros imediatos. Entre 1890 e 1920, as manifestações mais
192
FBN. Annaes da Camara dos Senhores Deputados do Estado Federado da Bahia - 1894 a 1896. Localização:
PR_SOR_05164_236586. p.135
193
Segundo Jonathan Lago, pode-se afirmar que a cidade se modernizou naquela época graças quase que
exclusivamente ao advento da via férrea, que trouxe consigo a chegada de empresários de outras localidades, no
afã de investirem em Nazaré no ramo da indústria, do comércio e da prestação de serviços, despertando com
isso, nos empresários locais, o desejo de modernizarem a produtividade de suas fábricas, no sentido de
concorrerem em igualdade ou próximo disso, com aqueles que para aqui se deslocavam. Ver: LAGO, Jonathan
Brito. Uma cidade, uma “zona” e uma mulher de “vida fácil”... p. 92; BARROS, Areza Batista Gomes. Nazaré,
da decadência econômica... p. 137.
90

evidentes deste processo histórico, além das mencionadas anteriormente, foram as obras de
aberturas, alargamentos, pavimentação e nomeação de ruas e avenidas, com numeração de
imóveis, reforma dos prédios públicos, incentivo ao ordenamento e desapropriação de casas
velhas e em ruínas; elaboração da planta cartográfica da cidade (1904); a dragagem e
canalização do rio Jaguaripe; instalação de energia elétrica através da Cia. Hidro Elétrica
Fabril de Nazareth (1917) importante empreendimento de Eudoro Tude de Sousa, com
destaque por ser a primeira cidade do Recôncavo a representar o moderno através da
eletricidade; atração de diversas fábricas e indústrias, a exemplo da fábrica de calçados Stella,
de propriedade dos Sampaio194, cuja instalação das oficinas foi feita por H. Grinnewind, vindo
dos Estados Unidos em 1907, e a fábrica de tecidos Nazareth S/A (Sarapuí) em 1917;
canalização de água potável (1919) e criação de diversas escolas públicas195. Tais obras, ainda
que se assemelhem a um tímido e contínuo processo de mudanças ante ao que se
convencionou chamar de projeto modernizador e de sinais da “civilização” no interior, revela
o grau de percepção e apropriação que o conjunto social – autoridades e população – de não
se furtar a reivindicar e constituir na cidade os indícios do mundo moderno. Esse sentimento é
o que parece ficar claro nas palavras de Gastão Sampaio, memorialista que, ao contar sua
infância em meio às mudanças sociais, políticas e econômicas do início do século XX, revela
de algum modo os significados da instalação da fábrica de calçados como inovação do
período:

Todo aquele conjunto fabuloso proveio da coragem, do


empreendimento de se instalar uma fábrica em uma cidade do interior,
onde os recursos eram escassos, ambiente industrial praticamente
nulo, quando não negativo, de difícil acesso, emanado de um arrojo
invejável de um grupo de idealistas196.

Não obstante o filho e sobrinho dos donos da fábrica quererem aplaudir as ações da
sua família, saudando com muitas pompas tais atores e, contraditoriamente ao que a cidade
representava, rebaixando-a à condição de atrasada, inclusive negando a justificativa da
viabilidade de implantação da fábrica, ainda assim seu relato é importante para se pensar o
imaginário da população, especialmente dos grupos abastados, ante o processo de urbanização
194
A Fábrica de Calçados Stella, implantada no largo do Camamu, pertencia a Arthur Sampaio e seu irmão. Ver:
SAMPAIO, Gastão. Nazaré das Farinhas... p. 158.
195
A identificação destes empreendimentos foi feita através da leitura dos estudos históricos e memorialistas da
cidade, bem como das fontes disponíveis no AMPN, entre as quais destacam-se: Livro de Lançamento de
Impostos, Industrias e Profissões de Nazareth 1894-1921; Livro de Registro das Decisões, Resoluções e Leis do
Conselho M. de Nazareth, 1893-1915; Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-
1900; AUGUSTO (1999); LEAL (2006); SACRAMENTO (2007).
196
SAMPAIO, Gastão. Nazaré das Farinhas... p. 160.
91

e industrialização que conjugadamente denominou-se modernização. Ainda que de maneira


retrospectiva, produzido e reproduzido pelo Jornal O Regenerador em 1934, como uma
espécie de memória dos feitos políticos do ex-Intendente e ex-Presidente do Conselho
Municipal Cel. José Pimentel de Barros Bittencourt, a breve descrição das obras executadas
nas suas gestões é reveladora de que tais ações se apresentavam à cidade como os novos
elementos de cunho moderno197.

Está na lembrança de todos, que Nazareth deve a José Bittencourt


innumeras benemerências, consubstanciadas em obras de vulto, de vez
que á vanguarda dos seus destinos, ficou em nossa história conhecido
como o maior prefeito do município. Assignou o contrato da luz
electrica. Mandou proceder aos estudos do rio Caraípe para o
abastecimento d’agua á cidade. Construio toda extensão do caes
existente á margem esquerda do rio Jaguaripe. Demolio muitos
prédios aleijões, da actual praça Dr. Alexandre Bittencourt,
aformoseando-a. Mandou executar calçamentos em várias ruas da
metrópole nazarena. Durante a sua administração fizeram-se reforma
nas estradas. Preparo de pontes e pontilhões. Levantamento da planta
da cidade. Augmento de escolas e melhorias nos seus prédios.
Reconstrução e pintura a óleo no magnífico edificio da prefeitura.198

Conforme já apontamos anteriormente, sobretudo nas discussões provocadas na


Câmara dos Deputados, cujos questionamentos se deram em torno da riqueza ou pobreza de
Nazareth, é importante reafirmar que tais iniciativas só foram possíveis de serem executadas
por conta do empenho das autoridades locais em estabelecerem vínculos políticos e
institucionais junto às autoridades estaduais. Podemos perceber de quais formas os pedidos
eram feitos observando, por exemplo, o extrato da correspondência encaminhada ao
Governador Manoel Victorino Pereira em 05 de Abril de 1890, na qual o Conselho da
Intendência remetia o orçamento municipal do ano em curso para apreciação. Após solicitar a
imediata aprovação da nova versão do orçamento, as autoridades passaram a expor o seguinte:

[...] dos gastos orçados da reedificação do Paço Municipal, não


contamos, todavia com a affeição das novas medidas taxativas, visto
como a crise prolongada da lavoura e a estagnação do commercio são
fatores receiaveis para o desenvolvimento dellas, além das medidas
que representam. Levados por estas ponderações, formulamos aqui um
pedido que ficará ao vosso juízo illustrado e bem intencionado
aprecial-o devidamente. Pedimos que como auxilio nos conceda o

197
Rinaldo Leite assinala as primeiras evidencias de cunho modernizador do país através dos “investimentos na
construção de ferrovias, no aparelhamento portuário, em rede telegráfica, com o aparecimento incipiente de
indústrias e com a lenta urbanização de algumas cidades, que receberam melhorias em termos de transporte,
iluminação, abastecimento de água, etc”. Cf.: LEITE, Rinaldo Cesar Nascimento. E a Bahia civiliza-se... p. 8.
198
AFEM. Jornal O Regenerador. 09 de Março de 1934.
92

gozo da renda sobre o gado que o estado percebe pela respectiva


coletoria. Ele vos trará alentos para a momentosa tarefa de
transformação natural dos velhos moldes do municipio, adaptando-o
assim, a progredir mais rapidamente ao influxo civilisador que o novo
regime communicou as suas franquias. Renovamos nossas expressões
de considerações e respeito a vossa pessoa.199

Ainda que esse documento pareça soar mais como uma retórica apologética ao novo
regime, é importante observar que foi usando exatamente tais artifícios de adesão,
comprometimento, afinamento e conformidade aos valores propugnados pelo regime
republicano e apontando, contudo, as limitações que a organização administrativa e jurídica
impunha à materialização dos seus ideais, que os discursos das autoridades locais, moderados
quase sempre pelo discurso civilizador reivindicavam seus interesses.
Embora em efervescentes transações comerciais estabelecidas naquela praça ainda nas
ultimas décadas do século XIX, os cofres municipais já sofriam o reflexo da estagnada
conjuntura econômica do Estado, que por sua vez não limitaram a concretização de frequentes
iniciativas. Ou seja, mesmo com a crise financeira do final do século XIX, que não retirou de
Nazareth o status de pólo de comercialização dos seus tradicionais produtos – farinha, café e
milho –, a preocupação com a suficiência financeira e estrutural foi o fator principal que
influenciou a efetivação de políticas que garantissem a continuidade do desenvolvimento da
cidade e consequentemente da região 200 . Ao analisar a história econômica da Bahia, o
economista Rômulo Almeida destacou que a execução de tais empreendimentos no estado
desde as ultimas décadas do século XIX foram sempre “arrojados e temerários face ao vulto
dos capitais locais”, ou seja, requeria coragem e ousadia de quem se dispusesse a executá-los.
Entretanto, tais medidas atenderiam a diversas necessidades, entre as quais a constituição de
um “regime de folhas de pagamento” que requeria a maior circulação de dinheiro e abertura
de novos meios de vida para enfrentar a crise201. Portanto, a “crise prolongada da lavoura e a
estagnação do commercio” considerados preocupantes para as autoridades locais, deveriam
ser atenuadas com a criação de estratégias que não impedissem a “transformação natural dos
velhos moldes do município”. Em outros termos, o progresso do município girava,
essencialmente, na formulação de um discurso em que a constituição da infra-estrutura urbana

199
APMN. Livro de Registro de Ofícios e Comunicações da Câmara Municipal de Nazareth, 1877-1902, p. 85.
200
Conforme informa Edinélia Souza, “A Bahia no final do século XIX e inicio do século XX sofreu retraimento
econômico na produção e comercialização do açúcar e do café: o fumo também perdera mercado, sobretudo
devido a proibição do trafico de africanos; houve também vários períodos de estiagem que assolavam o Sertão e
o Recôncavo baianos, comprometendo a criação de gado e tornando escassa a produção da farinha de
mandioca”Cf. SOUZA, Edinélia Maria Oliveira. O Pós-Abolição na Bahia... p. 119.
201
ALMEIDA, Rômulo Barreto de. Traços da História Econômica da Bahia... p. 94/95.
93

estimularia de algum modo a superação da estagnação enfrentada, vide o exemplo da


canalização do rio Jaguaripe e extensão do cais do porto. Seriam estes os elementos
anunciadores dos tempos burgueses que se efetivariam anos mais tarde com algumas
dificuldades.
Entre tantas iniciativas comerciais, o livro de registro de expediente da intendência
municipal aponta que em 17 de maio de 1893, em ofício ao Conselho Municipal, a sociedade
Pinto e Irmãos requeria licença para abertura de uma fábrica de sabão, velas e licores na Rua
Barão Homem de Mello. Tratando-se de uma licença que envolvia questões sanitárias, que as
autoridades municipais estavam empenhadas em validar, sobretudo porque o delegado de
higiene pública do município era o médico intendente Alexandre Bittencourt Sobrinho, que
acumulava os cargos. Assim, o Conselho Municipal solicitou daquele o parecer especifico
quanto à solicitação202. Após as diversas cobranças dos sócios, ao que tudo indica, o parecer
sanitário foi favorável, pois em 12 de junho de 1893, o Conselho Municipal orientava o setor
competente a expedir a licença, após o pagamento dos direitos municipais. Outras diversas
empresas foram autorizadas por lei especial, inclusive com uma série de regalias para instalar-
se em Nazareth. Em 1905, a lei nº 49 de 04 de dezembro instituía o seguinte:

Art.1- Ficam concedidas a todas as empresas que, sob firma individual


ou collectiva, venham, nesta data em diante, explorar, neste
município, qualquer industria fabril ou agrícola, fornecendo trabalho
assíduo a numero de operários, nunca inferior a cincoenta, os
seguintes favores: a) isenção de impostos de industrias e profissões
por espaço de quinze anos; b) relevação, por igual período de tempo
do imposto de exportação.203

Gozando desta prerrogativa, entre março e maio de 1913, o município concedia tais
isenções ao Sr. Salvador Lopes Ribeiro pela organização de uma empresa de automóveis na
cidade, garantindo ainda adaptar a estrada entre Nazareth e Arathuype para o tráfego de
automóveis. Igualmente, o cidadão Militão Lino dos Santos, sua sociedade o qualquer um que
atendesse ao chamado da Intendência e do Conselho Municipal para instalação de uma fábrica
de gelo dentro do prazo de um ano a partir de 1913 receberiam as mesmas regalias204. Além
de tais isenções, o empenho das autoridades em promover a industrialização da cidade se
estendeu a premiação de fábricas que ali se instalassem, mas tratando especificamente da
fábrica de gelo, mesmo sem termos notícia da sua real instalação em Nazareth, aquele

202
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 13.
203
APMN. Livro de Registro das Decisões, Resoluções e Leis do Conselho M. de Nazareth, 1893-1915, p. 94.
204
APMN. Livro de Registro das Decisões, Resoluções e Leis do Conselho M. de Nazareth, 1893-1915, p. 186.
94

chamado dá indícios de uma disputa em torno da atração dos símbolos do moderno 205. Entre
outros casos, podemos enquadrar também a lei aprovada em 04 de outubro de 1915 que fixava
“o premio de 3:000$000 para a primeira fábrica de fiação e tecelagem” que se fundasse
naquela cidade. Para tanto, a efetividade do prêmio se daria após o funcionamento da citada
fábrica206.
Apesar de toda simbologia, a despeito de iniciativas provenientes da expansão do
capitalismo industrial e financeiro, que chegavam timidamente à cidade explorando as
atividades primárias e secundárias, como parte integrante do processo de modernização, era
efetivamente a intensa movimentação do porto de Nazareth que garantia boa parte da receita
orçamentária anual, com embarcações que ali chegavam para vender, comprar e investir num
trânsito intenso de pessoas. Isso fica bastante claro nos dados abaixo.

Gráfico I: Receita dos Impostos de Embarque e Desembarque e do Orçamento Geral.


120
Receita dos
100 Impostos de
80 Embarque e
Desembarque
60
40 Receita do
20 Orçamento Geral
0
1893 1903 1905
Fonte: APMN. Livro de Registro das Decisões, Resoluções e Leis do Conselho Municipal de
Nazareth, 1893-1915.

Importante observar que das previsões orçamentárias dos anos de 1893 (54:566$000),
1903 (99:996$000) e 1905 (110:00$000), cerca de 40% da primeira, 60% da segunda e 64%
da terceira, ou seja, 22:000$000, 60:000$000 e 70:000$000, respectivamente, adivinham dos
impostos provenientes das atividades do cais, notadamente dos serviços de embarque e
desembarque. Certamente, estes dados, quando presentes nos discursos das autoridades locais
e estaduais, foram influenciadores e decisivos na reivindicação da expansão do cais do porto,
205
Como representação do moderno, o estudioso Marc Herold asseverou que “Na virada do século XX, fábricas
de gelo tinham sido estabelecidas em meia dúzia de cidades portuárias brasileiras.” Segundo ele, as primeiras
fábricas no Brasil aparecerem no Rio de Janeiro e eram usados, quase que exclusivamente nos hotéis de luxo,
pensões de estrangeiros clubes e lojas de bebidas. Para o autor, “O uso do gelo poderia ser tomado como um
índice parcial do grau de civilização”. Uma pequena fábrica de gelo chegou em Salvador antes de 1892. Ver:
HEROLD, Marc W.. Gelo nos Trópicos: a exportação de “Blocos de cristais da frieza ianque” para Índia e
Brasil. Revista Espaço Acadêmico da UEM, Maringá. Novembro de 2011. Nº 126. Ano XI. págs. 145-161.
206
APMN. Livro de Registro das Decisões, Resoluções e Leis do Conselho M. de Nazareth, 1915-1928, p. 12v.
95

bem como a constituição de uma estrutura urbana equivalente. Talvez, também estes dados
tenham motivado o discurso dos deputados que se opunham à destinação de 100 contos de
reis às obras do município, sob a justificativa que Nazareth era um município rico. Ora, apesar
das receitas elevadas e em crescimento, parece ficar claro que a municipalidade encontrava
dificuldades em empreender as obras. Deste modo, conseguimos depreender que os fins do
século XIX e início do XX marcariam diversas mudanças naquele contexto social e
econômico nazareno, sobretudo porque as pretensões dos ideais evocados nos finais do
Oitocentos consolidaram-se nos primeiros momentos do novo século com um incipiente
processo de industrialização que, como requisito do projeto modernizador, acabou
modificando aquela paisagem urbana e causando um adensamento populacional.
Em 14 de Abril de 1904, por exemplo, por meio da Lei nº 34, o Conselho Municipal
de Nazareth disciplinava o seguinte:

Art.1- Fica o Intendente auctorizado a construir o mercado e ponte


sobre o rio Jaguaripe, de conformidade com a planta e orçamento
apresentados pelo Engenheiro Arthur Hermenegildo. Art.2- Fica
também o mesmo Intendente auctorizado a levantar um empréstimo
nos limites da lei, para construir essas obras, com o juro nunca
excedente a 8% annuaes e amortisação de 5%.207

Atendendo aos projetos em continuidade traçados para a cidade, foi aprovada em


sessão ordinária do Conselho Municipal de Nazareth, em 16 de novembro de 1904, a planta
da cidade, elaborada pelo Engenheiro e Conselheiro Municipal Dr. Arthur Hermenegildo da
Silva, que orientou outros atos do poder municipal, como fica evidente com a aprovação da
Lei nº 46 em 30 de Março de 1905 que autorizou o Intendente “a fazer as desapropriações
necessárias para a construção das ruas, avenidas e praças constantes na planta da cidade”208.
Foi neste contexto que, entre tantas, teria sido aberta uma praça entre a Rua do Comércio e a
Rua Barão Homem de Melo, em frente à estação central da companhia Tram Road, que seria
denominada Praça J.J. Seabra, em alusão ao reformador soteropolitano que governou
a Bahia em duas ocasiões, de 1912 a 1916 e de 1920 a 1924, mandatos que foram marcados
pela ampla obra de reurbanização empreendida na capital baiana.
Assim, ao mesmo tempo em que o poder municipal envidava esforços em empreender
obras que mudassem visualmente a paisagem urbana, executadas por meio de empréstimos
junto aos bancos, havia também uma política de compensação para os proprietários que

207
APMN. Livro de Registro das Decisões, Resoluções e Leis do Conselho M. de Nazareth, 1893-1915, p. 78v.
208
APMN. Livro de Registro das Decisões, Resoluções e Leis do Conselho M. de Nazareth, 1893-1915, p. 90v.
96

contribuíssem com aquele projeto, como se vê na Lei nº 35 aprovada em 30 de junho de 1904,


que instituiu que:

Art.1- Ficam isentos do imposto da décima, por dez anos, as


propriedades que se edificarem nas novas ruas e praças, e naquellas
que soffrerem modificações no projeto apresentado com a planta da
cidade. §1º- Ficam comprehendidas para o goso deste favor, porem
limitado, por cinco anos, os prédios que se concertarem para
obedecerem aos novos alinhamentos.209

É importante destacar que aquela estética urbana reivindicada, que atendia aos anseios
de uma urbe moderna e ordenada, pautava um sincronismo entre as reformas realizadas pela
administração pública e empenhadas também pela iniciativa particular. Evidente que tais
concessões eram empreendidas a partir da leitura que as principais autoridades faziam não
apenas do aspecto físico da cidade, mas também do seu estado sanitário e higiênico que não
era dos melhores, conforme apontou o relatório da Inspetoria de Higiene Pública da Bahia de
1894, anunciado na abertura dos trabalhos da Assembleia Legislativa em 1895 pelo
Governador do Estado. Mesmo observando “o procedimento correto e digno que alli tem o
Dr. Candido de Figueiredo no que diz respeito a saúde pública”, o ajudante do inspetor, Dr.
Virgilio de Araujo Cunha, sentenciou, por fim, que aquelas condições “não são
satisfatórias” 210 . À luz desse dado, encontramos no livro de expediente da Intendência
Municipal em 7 de Junho de 1917, 23 anos depois, o pedido da Irmandade do Santíssimo
Sacramento ao Intendente “por ter o cidadão Gonçalo Pessoa feito nos fundos do seu sobrado
nº 33 a Rua Barão Homem de Mello, uma latrina com o madeiramento encravado nas paredes
do fundo das casas nº 4 e 6 a Travessa da Matriz”, transgredindo as prescrições higiênicas
determinadas na lei de 26 de Junho de 1908. Fatos daquela ordem atentavam contra a higiene
não só publica como também particular de acordo com a visão de muitos munícipes, que
recorrentemente encaminhavam seus pedidos e denúncias às instituições municipais, bem
como às autoridades que, no caso em questão, mandaram intimar o proprietário211.
Acreditamos que tudo isso provocava sentimentos como do conselheiro Dr. Alfredo de
Almeida Sampaio que em sessão extraordinária do Conselho Municipal do dia 08 de março de
1900, por exemplo, já requeria a implementação de medidas que “mantenha de pé os foros de

209
APMN. Livro de Registro das Decisões, Resoluções e Leis do Conselho M. de Nazareth, 1893-1915,p. 79v.
210
FBN. Relatorios dos Presidentes dos Estados Brasileiros - 1892 a 1930. Localização:
PR_SPR_00417_720887.
211
APMN. Livro de Lançamento de Expediente, 1916-1917. p. 178 e verso.
97

cidade civilizada, de que goza esta, sede do município” 212 . Portanto, da construção do
discurso à prática política, as imagens de uma cidade moderna, civilizada, ordeira, higiênica e
progressista caracterizou o processo histórico da virada do século em Nazareth. Como
expressão destes elementos, o conjunto das imagens abaixo feitas pelo fotógrafo Farias
Junior, um dos responsáveis pela consolidação da prática fotográfica no interior baiano, que
em sua passagem pelo Recôncavo, incluindo Nazareth, registrou os principais cartões-postais
da cidade traduzindo os símbolos que se queriam representar213.

Figuras IV, V, VI e VII: Praça da Municipalidade, Edifício da Câmara, Cadeia, Salão


do Juri e Intendência, Estação da Estrada de Ferro de Nazareth e Cais do Porto

Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional - Brasil 214

212
APMN. Livro de Atas do Conselho Municipal de Nazareth, 1900 – 1903. p. 138 e verso.
213
A única e breve descrição biográfica do fotógrafo conhecido por Farias Júnior encontra-se em:
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&cd_verbet
e=1722&lst_palavras=&cd_idioma=28555&cd_item=1(Acesso em 13 de Fevereiro de 2014).
214
FBN. Coleção D. Thereza Christina Maria. Fotografias de Farias Júnior. Ano: 1889-1903. Localização:
FOTOS-ARM.1.7.5(15-19). Trata-se de 5 fotos em papel albuminado, p&b; 16 x 23 cm a 17 x 23 cm.
98

A presença da prática fotográfica, que começou a ser difundida no Brasil no final do


século XIX, ao passo em que registrava espaços estratégicos da cidade de Nazareth neste
mesmo período, já anuncia que alguns elementos do mundo moderno se faziam presentes
naquela cidade. De todo modo, é oportuno observar que os espaços escolhidos para o
respectivo registro, do qual devemos analisar o texto e o contexto, são exatamente os
monumentos e locais que passaram por sérias intervenções, quais sejam a Praça e Paço
Municipal, a Estação Central da Estrada de Ferro e o Cais do porto. Além disso, o grande
discurso das imagens parece residir na tentativa de representar uma cidade ordeira,
monumental e estruturada, com espaços delimitados para o lazer – como a Praça Municipal –,
e para o trabalho – como a Estação e o Cais –, de modo que, quando sequer nota-se a presença
de pessoas, essas simbolizam de algum modo tais experiências. Deste modo, depreendemos
que a fotografia enquanto fonte histórica é a representação da interação de objetos sociais e
culturais nas dimensões tempo e espaço 215 . Notamos ainda que diversos foram os modos
empregados pelo poder público para garantir as imagens produzidas por Farias Junior entre
1889 e 1903. Uma das estratégias foi a higienização de espaços, como mostra o ofício
enviado ao Comissário de Policia pela Intendência Municipal em 16 de Julho de 1898, cujo
teor era o seguinte:

Estando em via de acabamento as obras de reconstrução do Paço


Municipal e não convindo que sejam mantidas nas suas dependencias
nenhuma causa de afeiamento ou deterioração, como por exemplo, a
permanência ou moradias, nos pavimentos térreos do referido edifício,
das familias das praças que fazem o serviço do policiamento da cidade
e guardas dos prezos da cadeia, peço-vos que tomeis as necessárias
providencias para que cesse semelhante abuso, não sendo também
permitido ter-se casinha ou fazer-se lavagem de roupas no quartel
desta cidade. Saude e Fraterinidade.216

Do mesmo modo, em setembro de 1916, o Intendente Municipal Dr. Eurico Joaquim


da Matta, pautado nos mesmos ideais, em ofício ao Diretor do Horto Florestal de Juazeiro, Dr.
Ervido de Souza Filho, fez o seguinte pedido:

Precisando fazer o plantio, nas principaes ruas d’esta cidade, de


arvores appropriadas a esse fim para embelezamento da mesma,
tomo a liberdade de pedirvos o valioso serviço de me remetter

215
KOSSOY, Boris. Fotografia & História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
216
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 139v.
99

no mais breve possível, algumas sementes da arvore “Magubá”


de cujo obsequio muito agradecerei.217

Conforme os registros de comunicação dos intendentes com os setores da sociedade


ficam evidentes os esforços da municipalidade em mudar a fisionomia da cidade. Para eles, o
costume que prevaleceu até então se configurava como um abuso que deveria ser extirpado,
pois feria as imagens que se pretendia construir da cidade. O afeiamento era então elemento
de um passado não muito longínquo, mas que poderia ser resolvido com a adoção de medidas
enérgicas como a de expulsar famílias do corpo policial do Paço Municipal, bem como proibir
práticas comuns nas repartições públicas. O embelezamento da cidade era, enfim, o principal
lema, de modo que as intervenções com este fim não respeitariam laços e costumes. Espaços
de sociabilidade como das grandes feiras, de alimentos ou de animais, se tornariam mais tarde
praças e jardins amplamente arborizados, como a Praça do Porto e o largo do Camamu, que se
tornaram as Praças Cel. José Pimentel de Barros Bittencourt e Almirante Muniz,
respectivamente. Locais de trabalho centrais como estes deveriam se tornar espaços de lazer e
servir como cartões postais. Exemplo maior disso foi o planejamento da construção de um
prédio exclusivo para o mercado público, bem como a construção de uma ponte sobre o rio
Jaguaripe a partir daquele centro, transferindo as feiras para a outra margem do rio. As
realizações da ponte só se dariam no início da segunda metade do século XX218.
Essas evidentes medidas adotadas pela administração pública resultaram nas
constantes intervenções urbanísticas e culturais no centro da cidade, que tem sido descritas até
aqui. Tais interferências implicaram na exclusão dos “indesejáveis”, no mundo do trabalho e
fora dele 219 , configurando-se como um fio condutor para várias outras questões, que nos
levam a questionar: para onde foram as pessoas supostamente expropriadas das áreas
"estratégicas", assim pensadas pelas autoridades proponentes desse projeto de modernização?
Ainda que não tenhamos encontrado documentos afirmando explicitamente a intenção de
afastar determinados sujeitos das áreas centrais da cidade, muito menos a sua execução,
existem alguns indícios que, na prática, nos dão suporte para afirmar que a adoção de muitas
217
APMN. Livro de Lançamento de Expediente, 1916-1917, p. 82.
218
A ponte Eunápio de Queiroz foi construída em 1955, transferindo definitivamente as “tumultuadas” e
avolumadas feiras que se concentravam no centro urbano para o outro lado do rio Jaguaripe.
219
Analisando esse processo de “exclusão dos indesejáveis” nos anos que ameaçaram o fim da escravidão,
Wilson Roberto de Mattos sentencia que esse processo se constituía “como formas de controle que se mostravam
mais eficazes para a manutenção de uma ordem”. Pensando de tal forma, esse projeto de ordem social
empreendido no pós-abolição sugere que tais tentativas decorriam em grande parte da disciplinarização de
hábitos e condutas tecidas por grupos sociais específicos, sobretudo aqueles cujas experiências foram forjadas no
seio popular, marcadas de alguma forma pelas exigências e moldes que o sistema da escravidão impunha ao
mercado de trabalho e às condições de vida de sujeitos. Cf.: MATTOS, Wilson Roberto de. Negros contra a
ordem... p. 124.
100

medidas tomadas previam tal finalidade, apesar de tais estratégias não terem sido bem
sucedidas no sentido de suprimir mais amplamente os costumes e práticas dos segmentos
populacionais empobrecidos e pertencentes às “classes perigosas”, como eram vistos.
Estamos nos referindo, enfim, a uma contínua e sucessiva onda de reclamações nos
jornais locais e nas repartições municipais, tanto de autoridades como de parte da população
que, incomodados, se posicionavam sobre bebedeiras, higiene, sossego público e crimes
provocados na cidade por sujeitos “sem decência”, conforme já vimos até aqui e veremos
mais adiante. De todo modo, apesar do adensamento populacional, influenciado em alguma
medida pelo fluxo migratório para o polo regional do Recôncavo, o coincidente nascimento e
crescimento de bairros periféricos, muitos dos quais habitados por uma população negra e de
ofícios invisibilizados – Muritiba, Ladeira Grande, Apaga-Fogo – é bastante sugestivo de
possíveis novas moradias, uma vez que diversos prédios “aleijões”, casas deterioradas e focos
de insalubridade do centro e imediações foram destruídos para dar lugar a novas e modernas
construções.
Analisando a documentação produzida pelo poder municipal do período em que
pesquisamos – 1890 a 1920 –, podemos perceber quais foram as principais iniciativas de
remodelação urbana, alteração da paisagem e modernização da cidade. Cabe destacar que,
como alguns estudiosos já observaram para o análogo processo histórico ocorrido na cidade
de Salvador, os projetos de modernização urbana não lograram mais que a construção de
avenidas, prédios públicos, demolição de velhos casarões e a implantação de serviços de
iluminação pública e saneamento básico220. Deste modo, é possível afirmar, de antemão, que
tais intervenções, como as operadas em Salvador, limitadas pela estagnação econômica,
remeteram, sobretudo, a uma política de embelezamento da cidade.
Portanto, o frequente uso dos termos modernização e civilização busca expressar os
possíveis significados atribuídos naquele contexto de transição do século, qual seja, a adoção
de um conjunto de reformas materiais garantidoras de mudanças na paisagem e nos
costumes221. Assim sendo, compartilhamos da tese defendida por historiadores, de que, “o
ideal civilizador, modernizador, progressista tinha na cidade, relativamente aos

220
JESUS, Gilson S. de. Ao Som dos Atabaques: costumes negros e as leis republicanas em Salvador (1890-
1939). Dissertação de Mestrado em História Regional e Local. Departamento de Ciências Humanas da UNEB.
Santo Antonio de Jesus, 2011. p. 31.
221
O ideal de modernização, associado a urbanização, higienização e civilização, como diz Rinaldo Leite
“aspirava-se, precisamente, o modelo urbano das cidades europeias - especialmente Paris, que, após as reformas
empreendidas pelo Barão de Haussmann quando prefeito da cidade, na segunda metade do século XIX, tornara-
se o paradigma em se tratando de exemplo de urbanização bem sucedida.” Cf.: LEITE, Rinaldo Cesar
Nascimento. E a Bahia civiliza-se... p. 13.
101

melhoramentos físicos, um dos principais objetivos para a sua concretização e efetivação”222.


Desse modo, podemos entender que este processo, iniciado por uma incipiente urbanização e
integração comercial nas décadas finais da monarquia, foi pautado de forma objetiva e
contínua durante as três primeiras décadas da primeira República, não tendo um Pereira
Passos do Rio de Janeiro ou J.J. Seabra de Salvador liderando exclusivamente tais ações, mas
grupos políticos de destacados médicos e bacharéis em direito operando as transformações.
Não podemos afirmar, portanto, que Nazareth experimentou explicitamente a denominada
Belle Époque; entretanto, tacitamente, a cidade acabou sendo influenciada pela conjuntura de
consolidação de uma nova ordem burguesa, na qual o meio urbano tornava-se o local
privilegiado da construção de uma modernidade que reivindicava uma imagem higiênica, bela
e ordenada223.
Estamos trazendo estes indícios da política de embelezamento à baila para discutir
como a exclusão dos “indesejáveis” do espaço urbano e o controle da sua circulação estavam
articulados mais amplamente com a proposta de modernização e inseridas no projeto
civilizatório, de tal modo que buscavam transformar social e culturalmente aquela população.
Deste modo, a legalidade urbana reivindicada pelas autoridades, além de definir formas de
apropriação do espaço permitidas ou proibidas, atuava no sentido de delimitar e classificar
territórios segundo os modos de vida dos grupos sociais que integravam a cidade. Em outros
termos, a legalidade urbana cumpria o papel estratégico de construir a cidade ideal ou
desejável a partir do funcionamento concreto da cidade real224. Para tanto, sancionar pela lei
padrões sociais e espaciais, empreender iniciativas materiais de ordenamento urbano e evocar
ao mesmo tempo instrumentos normativos, foi o conjunto de estratégias tomadas para garantir
a legalidade urbana. Destarte, o Código de Posturas, que já mencionamos diversas vezes em
situações de enquadramento disciplinar, e que será discutido com mais precisão a partir daqui,
parece ter sido o mecanismo que conjugou todos esses elementos, embora, como qualquer
outro ato tão pretensioso, tenha enfrentado dificuldades de implementação.

222
LEITE, Rinaldo Cesar Nascimento. E a Bahia civiliza-se... p. 15.
223
MALLMANN, Marcela Cockell. Pelos becos e pela avenida da bélle époque carioca. Revista SOLETRAS,
Ano X, Nº 20, jul./dez.2010. São Gonçalo: UERJ, 2010.
224
ROLNIK, Raquel. Para além da lei: legislação urbanística e cidadania (São Paulo, 1886-1936). In: SOUZA,
Maria Adélia A.; et ali. (Org.). Metrópole e Globalização - Conhecendo a cidade de São Paulo. São Paulo:
Editora CEDESP, 1999.
102

II. Vigilância e poder: O Código de Posturas de 1893

Enquanto instrumento elementar da legalidade urbana que pretendia fazer da cidade


real a cidade ideal, os Códigos de Posturas inscrevem-se como mais um dos variados
mecanismos de vigilância e poder adotados pela sociedade que se dizia ou queria ser
moderna, não obstante fossem cópias de um município para o outro, apenas respeitando as
particularidades de cada um.
Foi na sessão do Conselho Municipal de Nazareth do dia 24 de agosto de 1893, que a
administração publica aprovou o novo Código de Posturas do município, que embora não
tivesse sido o primeiro, foi o pioneiro na sistematização de um referencial cultural, social e
espacial presente nas diversas leis, resoluções e atos anteriores que normatizavam e
estabeleciam padrões de convívio urbano. Tratou-se, talvez, do primeiro Código de Posturas
do Recôncavo Republicano que legislava e complementava disposições ausentes no Código
Penal de 1890 e Constituição Federativa de 1891, ou mesmo os reforçando. Organizado em
nove capítulos e 165 artigos, o Código de Posturas de Nazareth se apropriou de elementos
estratégicos na tentativa de transformar a cidade, civilizando-a. São eles: os hábitos e
costumes urbanos, a higiene da cidade, a urbanização, manutenção da ordem e controle das
práticas comerciais.
A política de organização legal das práticas cotidianas da cidade parece que havia
ganhado impulso em 1893 no Recôncavo baiano. Foi exatamente neste ano que três dos
principais centros urbanos do interior da Bahia – Nazareth, Cachoeira e São Felix –
reformularam seus Códigos de Posturas, dando continuidade a uma política que se processava
desde os tempos coloniais, atravessando a Monarquia e no alvorecer da República, sob
influência das doutrinações advindas da coroa portuguesa. Em 1894, Maragogipe e Feira de
Santana também editaram aquele instrumento225.
Com o objetivo de regulamentar e normatizar práticas, valores e comportamentos da
rotina cotidiana da cidade, ordenando-a, as posturas municipais podem ser inscritas como
subproduto dos ideais de progresso e civilização em pauta nos fins do século XIX, cujas
pretensões eram tornar o espaço objeto e objetivo de uma “legalidade”226.

225
SANTOS, Edmar Ferreira. O poder dos candomblés... p. 197.
226
Sobre as pretensões das Posturas Municipais, ver: MATTOSO, Káthia M. de Queiroz. Bahia, século XIX:
uma província do Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. JESUS, Zeneide Rios de. As reformas urbanas
em Salvador: Uma tentativa de impor novos padrões de comportamento social e higiênico. Revista
Interdisciplinar do Campus IV. UNEB. V. 3, Junho, 2000.
103

Entendida como um dos elementos definidores do grau de civilização de uma


sociedade, a questão da salubridade pública, pautada nas críticas médicas higienistas do
período, foi tomada como ponto fundamental para o empreendimento interventor das
estruturas e espaços urbanos, bem como para o desenvolvimento dos ideais de progresso e
civilidade defendidos pelas elites republicanas227. Propostas de controle dos modos de vida e
“civilização dos costumes” das classes populares foram defendidas assim “segundo os
pressupostos idealizados para a sociedade brasileira pela elite burguesa dominante” 228 .
Destacamos assim, alguns dos diversos artigos do Código de Posturas, mais sintomáticos de
serem reflexo de tais doutrinações:

Art.16. As penas impostas neste código de posturas não se isemptam


os infractores da obrigação de satisfazerem os dannos causados ou da
responsabilidade criminal imposta pelas leis federais ou estaduaes.
Art.18. Ninguem poderá exercer neste município a profissão de
medico pharmaceutico ou dentista sem apresentar ao conselho
municipal, titulo conferido pelas escolas medicas da união ou do
estado ou estrangeiros sob as penas do art. 126 do código penal.
§ Único. Nesta prohibição inclue-se em absoluto o oficio de
curandeiro ou a pratica de meios curativos por pessoas não habilitadas
legalmente, sob as mesmas penas.
Art.34. Em tempo de epidemias os moradores são obrigados a terem
limpas e aceiadas as suas moradas, quintaes, latrinas e outras
dependências, e observarem as indicações dadas pelo intendente
municipal ou commissão sanitária, sob a pena de multa que lhe for
imposta pela autoridade competente.
Art.40. É prohibido empregar lixo ou immundice em aterros dentro do
perímetro da cidade ou das povoações, sob pena de 30$000.
Art.42. Ficam prohibidos os canos que despejem immundices ou
águas servidas sobre as ruas, sob pena de 10$000 de multa além da
obrigação de fazer a obra.
Art.48. Fica prohibido sob pena de 5$000 de multa e 2 dias de cadeia:
§ 2º. Consentir que filhos fâmulos, creados ou empregados que
sofreram de moléstia repulsivas andem pelas ruas sem as necessárias
cautelas no vestuário ou que o empreguem em negocio de venda de
substancias comestíveis.
§ 7º. Proferir em publico palavras obscenas; fazer gestos ou tomar
attitudes indecorosas ou fazer exibição de quadros ou figuras
offensivas a moral alem das penas criminais em que incorrer o
infractor.
§ 8º. Trazer vozerias, alaridos, trilhar apitos a não ser para socorro.
§ 9º. Dar batuque ou qualquer dança com algazarra que pertube o
socego publico e incommode a vizinhança.

227
Os grandes problemas de surtos epidêmicos, proliferação das residências coletivas e a dificuldade de atrair
investidores internacionais em face dos problemas da higiene pública foram fatores determinantes para a
intensiva preocupação do poder público e das elites com esta questão no país. Ver: (LEITE, 1996);
(CHALHOUB, 1996).
228
LEITE, Rinaldo Cesar Nascimento. E a Bahia civiliza-se... p. 12.
104

§ 12º. Conservarem-se abertas alem do toque de recolher casas de


negocio em que se vendam bebidas espirituozas.
§ 17º. Praticar o jogo do entrudo ou vender objetos a elle destinado,
sendo o responsavel pela multa o dono da casa.
§ 22º. Lavar ou estender roupas nas praças e ruas da cidade ou
estendel-as nas janellas ou sacadas das frentes das casas.
Art.51. Fica prohibido ter-se solto pelas ruas e praças da cidade e
povoações animaes sejam vaccum, cavallares, muares, suínos,
lamigeros ou caprino bem como aves gallinaceas.
Art. 62. Os que estragarem, destruírem, danificarem ou mutilarem
monumentos, edifícios e bens públicos ou qualquer objectos
destinados a utilidade decorada ou recreio publico, alem das penas do
Código Penal serão punidas em 30$000 de multas.
Art.72. Ninguem poderá perturbar o fornecimento de água a
população, quer nas fontes publicas, quer nos chafarizes que venha a
se estabelecer, pena de 10$000 ou 5 dias de prizão.
Art.82. É prohibido nesta cidade e nas povoações correr-se em
animaes desenfreados ou a galopes quer em viagens, quer para
amansal-os, sob pena de 10$000 ou 2 dias de prizão.
Art.90. O Conselho Municipal fará levantar uma planta geral da
[ilegível] indicando a orientação das ruas e praças da cidade existentes
e bem assim das estradas e caminhos e daquelas que de futuro hajam
de ser abertas.
§1º. As ruas centraes terão 15m, as estradas 5m, medidas mínimas. As
praças terão as dimensões segundo a topographia de [ilegível].
Art.92. Ninguem poderá edificar ou reedificar, construir muros,
terraços, jardins ou cercas nas ruas e praças desta cidade, povoações
do município, incluindo as estradas publicas e mesmo consertar as
existentes ou fazer-lhes alterações sem previa licença da
municipalidade que marcará o alinhamento, multa de 10$000.
Art.99. Nenhum prédio dentro da décima urbana ou mesmo das
povoações será coberto de palha ou qualquer de fácil combustão, sob
pena de ser demolido pela municipalidade.
Art.107. As cazas de negocio que tiverem artigos á venda por peso ou
medidas deverão ter os instrumentos massarios do systema métrico
decimal e aferidos, sob pena de 10$.
Art. 114. Os negociantes de pequeno comercio de verduras, fructas,
peixes poderão vendel-los pelas ruas da cidade, não estacionando nos
passeios das ruas, neste caso multa de 3$000.
§Único. Esta prohibição não se estende as Praças do Porto e arcados,
do giro municipal, onde, nos dias de feira poderão estacionar
accumuladamente e nos outros dias somente aquelles que estiverem
licenceados, sob pena da multa do art. anterior.
Art.126. Serão aprehendidas as carnes com cheiro de ranço de banha,
bem como as que pela cor e cheiro manifestarem principio de
deterioração, multa de 30$000.
Art.151. Nenhum enterramento se fará sem certidão de óbito passada
pelo escrivão de paz, excepto os cazos em que elle não for encontrado
a tempo, sendo então feito por ordem da autoridade policial a vista de
attestado médico.
105

Art.156. Ficam prohibidos os enterramentos depois das 6 horas da


tarde, ficando os corpos entrados depois dessa hora no cemitério para
serem enterrados nas 1ªs horas do dia seguinte.229

Compreendendo que muitos dos temas regulamentados acima – permitidos ou


proibidos – decorriam de práticas que já vinham sendo executadas pelos munícipes de forma
aleatória, implicando em desordem, o Código de Posturas ilustra não apenas a tentativa de
regulação da cidade e seus sujeitos, mas a necessidade de reformatá-los, na medida em que
legisla sobre questões imprescindivelmente comportamentais – seja no trabalho ou lazer, das
práticas domésticas às funerárias – e urbanísticas – desde a espacialização e territorialidade
até a atenção as regras sanitárias. Ao pautar, em todos os artigos, medidas punitivas aos
transgressores, inclusive em maior grau aos reincidentes, o Código dá indícios que muitas
daquelas práticas não eram só recorrentes, como já haviam se integrado à cultura da
população, cujas necessidades de proibir ou modelar encontraria algum nível de
“resistência”230.
Como podemos notar nos artigos que trouxemos à discussão, havia um elemento
articulador que pautava o código: a pretensão de adequar a população aos interesses do poder
público. Esse caráter político-cultural da lei é interessante e ao mesmo tempo oportuno para
identificarmos tensões existentes entre ela, os indivíduos que a elabora e os que não a
cumprem – ou seja, entre a lei, os legisladores e os fora da lei. Este conflito, por sua vez,
revela o modo excludente, padronizador e homogeneizador das ideias de urbanização que
foram defendidas pelas autoridades públicas, bem como o modo como tais valores,
fundamentados numa nova e contínua ordem de organização social da cidade, infamariam
hábitos e costumes. Sua função era, portanto, a de intervir em práticas sociais e culturais de
sujeitos, de estabelecer os usos da cidade e garantir a essa o status de ordeira, disciplinada,
progressista e civilizada231.
O discurso que precede a confecção da lei, e que resulta num mecanismo disciplinador
de vigilância e poder junto à população, suas práticas e espaço de circulação, é o da tentativa

229
APMN. Livro de Registro das Decisões, Resoluções e Leis do Conselho M. de Nazareth, 1893-1915, p. 39v –
52v.
230
Georges Duby sugere que toda regra é precedida de sua transgressão. Ver: DUBY, Georges. Idade Média,
Idade dos Homens: do amor e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
231
Philippe Murillo Carvalho ao analisar delicadamente a construção material da modernidade em Itabuna por
meio de mecanismos jurídico-normatizadores como o código de posturas asseverou que a cidade com aquele
instrumento “passava a ser palco de uma tensão que envolvia as diferentes culturas existentes no espaço citadino
e que se refletiu nas contradições dos modos de vida dos grupos populares e do setor político que administrava o
município.” Cf.: CARVALHO, Philipe Murillo Santana de. Uma cidade em disputa: conflitos e tensões urbanas
em Itabuna (1930-1948). Dissertação de Mestrado. Departamento de Ciências Humanas, Campus V da
Universidade do Estado da Bahia. Santo Antonio de Jesus, 2009. p. 141.
106

de instaurar um padrão estrutural urbano, sob a égide de um projeto disciplinar burguês que
não pautava a superação das desigualdades, mas a exclusão dos desiguais. O Código de
Posturas de 1893 insere-se, portanto, num amplo processo de construção e manutenção da
moral e da ordem pública, afinadas com as ideias de higienização dos costumes e dos espaços
que foram ampliados com o advento da República. Fruto de uma política que se processava
desde as décadas de 70 e 80 do século XIX, as posturas enquanto leis se forjaram como os
principais instrumentos de regulação, controle e organização da cidade, sobretudo quando o
fim da escravidão já se anunciava e junto com ela o medo da invasão dos “desocupados” e
“viciados” na cidade para compartilhar os espaços públicos e ocupar os postos de trabalhos
informais – o que era preocupação na mente das elites políticas e intelectuais. Observaremos
adiante que tais mecanismos “resultaram, em algumas ocasiões, em embates com a população
local, principalmente, porque muitos deles insistiam em intervir em modos de vida
constituídos de longa data”232.
Dito isso, queremos doravante, à luz dos casos já aventados até aqui, por parecer mais
relevante para a proposta dessa dissertação, discutir como algumas dessas práticas anunciadas
nos artigos da lei estavam incorporadas as vivências urbanas. Para além disso, queremos
levantar também quais os tons dos discursos influenciadores daquelas legislações locais,
quem as pensaram e como tais mecanismos se desdobraram na vida material das pessoas às
quais eles foram destinados.

III. Mapeando “imposturas” e ampliando focos: algumas cenas urbanas

Era para ser a comemoração natalina de 1903, mas acabou resultando num crime após
“o grande samba” ocorrido em uma residência coletiva, situada na Ladeira Grande, periferia
nazarena, onde morava a lavadeira de 22 anos Damiana Aniceta de Jesus, solteira e natural de
Cachoeira. Aquele evento festivo regado a “base de muita cachaça dos sambistas” e que tudo
indica ter “ajuntado” muita gente, ganhou o dia seguinte quando novas pessoas ainda
continuavam a chegar. Bastante embriagados, certamente vindo de outros momentos de lazer,
entre onze e doze horas do dia 25 de dezembro, Manoel Bispo, “de cor escura” e João Pedro,
trabalhador da estrada de ferro, integraram-se àquele divertimento em “arrelia”, estando
ambos armados. Aqueles dois eram “compadres e companheiros de samba”, conforme
destacaram as testemunhas do episódio que constituíram vozes no processo criminal. Após

232
PIRES, Maria de Fátima Novaes. Fios da vida... p. 271.
107

sérias discussões e diversos pedidos dos presentes para que se acalmassem, “João Pedro
pegou uma faca que trazia e deu na barriga de Manoel fazendo um ferimento que causou a sua
morte”233.
Pequeno, mas revelador de diversos elementos, entre os quais a presença de apenas
quatro testemunhas e ausência de mulheres entre estas, embora a referência da casa seja dada
à lavadeira Damiana Aniceta, amásia de “Cândido Archanjo da Rocha, 46 anos, casado,
lavrador e natural e Feira de Santana”, o fato criminoso aparentemente sobrepõe-se ao evento
comemorativo, mas certamente a conjugação do samba com a tragédia reforçou o discurso
proibitivo de que os hábitos, divertimentos e até mesmo os momentos de lazer da população,
sobretudo a negra, eram viciosos e perigosos. A rigor, conforme o artigo 48 das posturas, “dar
batuque ou qualquer dança com algazarra que pertube o socego publico”234 já era proibido na
cidade e aquele samba natalino ao que parece poderia se enquadrar muito bem neste
dispositivo, sobretudo pelo desfecho trágico. Portanto, para não recair sobre nossa análise a
responsabilidade de apontar mais culpas aos homens e mulheres que compunham aquele
momento de interação, queremos a partir desta curta história vivida por populares, pensar
algumas questões que certamente passavam na cabeça das autoridades daquela época,
justificando as ações de remodelação do espaço social e dos elementos culturais desafinados
com o ideal de civilização pensado pelas elites dominantes para a sociedade brasileira.
Apesar de não possuirmos dados que atestem o enquadramento do “grande samba
natalino” nas posturas em vigor, inicialmente é difícil de pensar que aquele divertimento que
durou de um dia pro outro não tivesse chamado atenção. Se assim não o fez, existem três
pontos que merecem ser destacados; 1º) o fato daquela vizinhança possivelmente estar
integrada à comemoração e não se sentir perturbada; 2º) a existência de uma possível
liberalidade e recorrência de sambas em locais periféricos da cidade, permitida de algum
modo pela insuficiência de guardas fiscais; 3º) a apropriação do momento natalino, período
em que certamente as autoridades e uma parte da população estavam ocupadas nas
tradicionais e convencionais cerimônias.
Convencido que comportamentos cotidianos como aqueles eram uma espécie de
afronta ao padrão hegemônico, sobretudo pela proibição, o não enquadramento do “grande
samba” nas posturas em vigor, é revelador de dois elementos importantes que, por sua vez se
associam as questões destacadas anteriormente, quais sejam: a) a continuidade de

233
AFEM. Poder Judiciário. Processo Crime. Caixa sem identificação. Ano: 1903. Este processo criminal pode
ser encontrado com mais detalhes na tese de doutoramento de: SOUZA, Edinélia Maria Oliveira. O Pós-
Abolição na Bahia... p. 182-183.
234
APMN. Livro de Registro das Decisões, Resoluções e Leis do Conselho M. de Nazareth, 1893-1915, p. 42v.
108

comemorações festivas à revelia das medidas proibitivas que parece ter se aplicado
especialmente no centro urbano; b) e a existência de uma lógica cultural própria das classes
populares na medida em que estes tenham escolhido como comemoração natalina um samba.
De qualquer modo, a ausência da evocação das posturas, por outro lado, não impediu a
abertura do inquérito policial que, ao associar o samba, as bebidas e o crime ocorrido, foi mais
longe e tentou reverberar o discurso respaldatório das medidas proibitivas que frequentemente
as associavam à desordem235.
Portanto, compreender esse discurso que prolongou durante o século XIX que foi de
desqualificação das expressões culturais da população negra, cujos estudos já indicaram que
estas foram as mais duramente perseguidas236, é ter dimensão que a adoção de medidas de
controle como as posturas municipais, significava uma estratégia de impedir o ajuntamento de
pessoas. Foi neste sentido que elementos de ordem religiosa como o candomblé, dos hábitos
de lazer, divertimento e até exercícios profissionais foram duramente controlados. Tal como
ocorria em outras cidades brasileiras, na cidade de Nazareth encontravam-se hábitos e
tradições do passado Colonial e Imperial que foram reconstruídos e ressignificados pela
população negra no pós-abolição. Conforme apontamos, presumimos que as práticas de
batuques, danças e algazarras237, eram um elemento integrado ao lazer e às festividades da
população.
Além dos sambas de roda, outras festividades de “algazarras” a exemplo da marujada,
da festa dos caboclos, dos jogos de entrudo e mesmo do dois de julho, embora a sua
oficialidade, eram vistas por aqueles ansiosos pela civilização como sinônimos de
degeneração social e que colocavam em perigo a ordem pública por conta de quem as
praticavam e dos modos como elas eram realizadas. Vejamos o discurso do jornal O
Independente, imprensa local, publicado em 11 de fevereiro de 1901, certamente período de
carnaval:

[...] Tão longe não está Nazareth da capital, nem tão afastada é das
outras cidades circunvizinhas, para não lhes seguir o exemplo de
educação e moralidade, relativamente ao estúpido entrudo. As

235
SANTANA, Ligia Conceição. Itinerários Negros, Negros Itinerantes: trabalho, lazer e sociabilidade em
Salvador, 1870 – 1887. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal da Bahia. Salvador, 2008.
236
Sobre essa repressão se efetiva no século XIX e adentra o século XX e a preocupação das autoridades em
combater a cultura negra, Ver: BACELAR, Jeferson. Hierarquia das Raças: Negros e Brancos em Salvador. Rio
de Janeiro: Pallas, 2001; FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Desafricanizar as ruas: Elite letrada, mulheres
pobres e cultura popular em Salvador (1890-1937). Revista Afro-Ásia. 1998-1999.
237
Para maior aprofundamento deste conceito, ver: ALBUQUERQUE, Wlamyra. Algazarra nas ruas.
Comemorações da Independência na Bahia (1889-1923). Campinas: Editora da Unicamp, 1999.
109

autoridades, o comércio, a municipalidade, as artes, a imprensa


auxiliem o povo, e de uma vez se extinguirá o entrudo, para levantar-
se o carnaval. Tomemos o exemplo das outras cidades e dos aplausos
da posteridade nos caberá certamente uma parcela.238

A prática do entrudo e a comercialização dos materiais a ele destinado, proibida pelo §


17º do artigo 48 das posturas municipais de 1893, era mais uma das festividades consideradas
como degeneração dos costumes, da moralidade e ordem pública nazarena. O memorialista
Gastão Sampaio lembra que ainda no início do século XX, na sua infância, dada a inexistência
de carnaval no interior da Bahia incluindo Nazareth, especialmente no domingo de páscoa,
mas também nas comemorações do 2 de julho, “a título de descontrair a vida,” o jogo do
entrudo era praticado, inclusive “de maneira violenta, provocando reações também
exageradas”, nas quais “os populares se vestiam de ‘uniforme branco’ bem engomado e
lustroso”239. As palavras de Gastão Sampaio, que conta ter sido criado com as orientações de
não apreciar nem participar daquele divertimento pelo grau da sua incivilidade, ressoa no
modo como O Independente o anunciava como o “estúpido entrudo”. O tom depreciativo da
atividade e a evocação do espírito de civilidade para que se combatesse aquela brincadeira
festiva e carnavalesca do entrudo, inclusive a sua caracterização como eminentemente
violenta, ainda que o fosse em algum grau, nos remete a uma estratégia discursiva produzida
pelos defensores da ordem pública, com um forte tom racial, a fim de conter manifestações
populares nas ruas. A reprodução desse discurso parece estar evidente nas seguintes
lembranças de Gastão Sampaio quando o “jogo do entrudo”, oficialmente, era proibido:

[...] quando estávamos, certa feita nas sacadas do “Sobrado da Padre


Antunes”, entre outros transeuntes destacava-se um popular bem
preto, reluzindo no brilho do “uniforme branco”, embora o dia
invernado. Já naquela época, Daglória, a melhor engomadeira da terra,
preparava uma roupa por um cruzado. O preço era elevado. Do lado
oposto vinha um rapazola, conhecido do primeiro, que ameaçou jogar
uma laranjinha, que consistia em uma bolinha de cera do tamanho de
uma lima cheia de Água Flórida, perfume utilizado pelos barbeiros. O
preto portava um guarda-chuva de armadura metálica que vinha bem
enroladinho e suspenso de um dos braços. Mas o seu opositor, além de
jogar a laranjinha, molhando-lhe a roupa, atiçou um punhado de
“farinha do Reino”, aniquilando o janota. Inopinada reação partiu por
parte do desacatado que, com o guarda-chuva, feriu o outro com uma
estocada pouco abaixo de um dos olhos, fazendo seu rosto ficar
banhado de sangue. Criado um caso irrecuperável, a punição para um

238
O Independente. Nazareth, 11 de fevereiro de 1901. apud SACRAMENTO, 2007, p. 50.
239
SAMPAIO, Gastão. Nazaré das Farinhas. p. 181.
110

pela Policia e a condução do outro ao Hospital encerraram a grosseria


do acontecimento.240

O caso de saúde pública e de polícia com marcadores de ordem racial acima descrito
parece conjugar, junto à tônica da ordem pública, as palavras chave explicitamente usadas no
período pós-abolição e recém-republicano. Estudos já indicaram que, a partir das três últimas
décadas do século XIX, o entrudo passou sofrer diversas críticas da imprensa, políticos e
intelectuais, adjetivando-os como “primitivo, inconveniente e pernicioso” 241 . O incômodo,
tudo indica, devia-se ao fato de aquelas manifestações limitarem setores das elites locais de
participarem das festividades, que as colocariam em pé de igualdade com os populares, uma
vez que eram espontâneas, improvisadas e sem organização, praticadas historicamente nas
ruas por escravos e libertos, portanto negros, como destaca Gastão Sampaio, “reluzindo no
brilho do uniforme branco” 242 . Assim, a emergência em extinguir o entrudo e levantar o
carnaval enquanto reivindicação de setores da sociedade parece figurar como a tentativa de
inaugurar um novo tempo civilizado nos moldes europeus, cujo formato festivo “seguro” com
fantasias, alegorias e batalhas de confetes já era consumido pelo Rio de Janeiro no início do
século XX por setores mais abastados da sociedade. Portanto, o movimento de rígida
disciplina do espaço, do tempo de trabalho e do lazer da população como marca do processo
histórico, civilizatório e modernizador da transição do século XIX para o XX, envolveu além
das ineficientes leis proibitivas, uma campanha negativa junto à imprensa e elites, sobretudo
de difusão no imaginário destas, a exemplo da recordação viva e depreciativa de Gastão
Sampaio – símbolo das abastadas famílias escravocratas daquele período -, visando criar lugar
de desfrute dos dominantes a partir da exclusão dos indesejáveis e suas práticas.
Embora a reprodução desse discurso por O Independente e a experiência do
memorialista tenha se dado no início do século XX, o olhar oficial ao formato de festividade
carnavalesca aceita já no final do século XIX nos chamou atenção, mas não estranheza,
inclusive porque referenda as colocações já feitas aqui. Em 23 de fevereiro de 1895,
intendente municipal emitiu uma portaria aos fiscais municipais ordenando “que as barracas
erigidas na Praça Municipal sejão collocadas de modo a não prejudicarem a evolução dos

240
SAMPAIO, Gastão. Nazaré das Farinhas... p. 182
241
Estamos nos referindo aos seguintes estudos sobre as festividades carnavalescas e do entrudo: CUNHA,
Maria Clementina Pereira da. Ecos da folia: uma história social do Carnaval carioca entre 1880 e 1920. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001; SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca
da Belle Époque ao tempo de Vargas. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getulio Vargas, 1998.
242
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de; FRAGA FILHO, Walter da Silva. Uma história do negro no Brasil.
Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006. p. 266.
111

carros dos clubes carnavalescos”243. A preocupação do poder público em garantir a execução


harmoniosa e sem empecilho dos carros que eram supostamente requintados e simbolizavam
o moderno, revela que tal prática, ainda que incipiente, fazia parte daquele contexto urbano, e
diferentemente dos divertimentos populares do mesmo período, especialmente o entrudo, o
desfile dos clubes não era tratado como uma questão policial. Muito pelo contrário, a fonte
indica que as autoridades municipais envidavam esforços para vê-la em execução.
Tudo isso nos leva a constatar que o estatuto da lei ao se enfrentar cotidianamente com
certos valores e práticas culturais, do mesmo modo em que revelava as diferentes culturas
existentes no espaço citadino, ampliava as contradições inerentes aos modos de vida dos
grupos populares, que disputavam os usos e ocupação da cidade, das autoridades políticas e
da imprensa, que pretendiam executar seus projetos à luz de suas experiências e visão de
mundo244. Ato contínuo dessa política, em 25 de Julho de 1896 o Intendente de Nazareth,
Viriato Freire Maia Bittencourt, pertencente ao clã e grupo familiar-político que em 1893
contribuiu para a nova edição do Código de Posturas, encaminhava o seguinte ofício ao
Conselho Municipal.

Dando nesta cidade o facto deprimente para os vossos foros de


civilisados, de indivíduos sem a preciza descencia, tomando banho nas
fontes públicas, levadas 245 e margens dos rios, lembro-vos a
convenniencia de serem tomadas medidas por este illustre conselho,
formulando uma postura que faça absoluptamente cessar esse
reprovado costume.246

Apesar de desconhecer a condição especifica que caracterizavam os “indivíduos sem a


preciza descencia”, se os mesmos tomavam banhos despidos, em grande número ou à luz do
dia, presumimos que tais fatos se davam no centro urbano ou nas fontes que se tornaram alvo
de monitoramento policial e dos administradores públicos. Conforme já vimos, o rio
Jaguaripe, que tudo indica ter sido um dos palcos do “reprovado costume”, dividia a cidade
em dois núcleos, sendo que era comum encontrar naquelas proximidades pessoas como a
lavadeira Constança Carolina de Jesus ou a negociante Barbara Maria da Conceição, que
viviam a lavar louças e roupas naquele rio, devido à proximidade das suas casas, seja

243
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 50 verso.
244
CARVALHO, Philipe Murillo Santana de. Uma cidade em disputa... p.141.
245
Chamam de levadas, os canais construídos normalmente de menores dimensões, que levam a água dos rios e
encostas para os terrenos agrícolas. Originária e encontrada em grande número na Ilha da Madeira, em Portugal.
Ver: FERNANDES, Felipa. A cultura da água: da patrimonialização das levadas da Madeira à oferta turística.
Revista PASOS de Turismo e Patrimônio Cultural, Santa Cruz de Tenerife. Vol. 8, Nº4. págs. 529-538.
246
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 79/80.
112

residencial ou comercial247. Mesmo as posturas de 1893, em seu § 22º e artigo 48, já tendo
proibido lavar e estender roupas nas praças e ruas da cidade, ainda que fosse nas janelas ou
sacadas das casas, e sua regulamentação não incidir legalmente naquele hábito sedimentado
na cultura de parte da população, tais cenas certamente encontraram alguma reprovação junto
ao imaginário elitista e disciplinador que pretendia civilizar a cidade. Ainda que não tenhamos
encontrado documentos sobre experiências conflituosas de populares ou discursos das
autoridades e imprensa condenando explicitamente cenas materiais de lavadeiras em exercício
no rio, acreditamos que a proibição de lavar e estender roupas nos principais espaços da
cidade incluía o trecho do rio pertencente ao centro urbano, uma vez que ali estavam os
pontos estratégicos para tal atividade, por possuir pedras que tinham diversas funcionalidades,
servindo como coradouros e estendedores de roupas. Tudo isso nos leva a entender que a
concentração de pessoas no leito e margem do rio, trabalhando ou se divertindo, com
comportamentos tipicamente populares, causava estranheza aos projetos de urbanização que
pretendia privatizar a higiene 248 e na linguagem das autoridades constituía um “facto
deprimente para os vossos foros de civilisados”, sendo assim condutas desviantes que só
seriam extirpadas com a criminalização dos transgressores.
Aquele apelo do intendente em 25 de julho, empenhado em civilizar os costumes dos
munícipes, junto ao Conselho Municipal, parece ter sido uma das estratégias encontradas pelo
seu grupo político para fortalecer a aprovação da postura reivindicada que já estava em
trâmite na instituição camarária, uma vez que o decreto da lei em 30 de Junho, cinco dias
depois, sustentava em seu cabeçalho como “lei de 18 de Julho de 1896”, supostamente a data
que foi protocolada e debatida em sessão. Segundo aquela postura, estariam incorridos “na
multa de 20$000 (vinte mil reis) ou oito dias de prizão”249 os transgressores que continuassem
com o questionável hábito. Outrossim, a lei pretendia disciplinar o corriqueiro, o costumeiro e
a prática comum inofensiva para alguns, mas ofensiva para outros. Uma lei e uma proibição
que iam de encontro às necessidades de uma população que não contava com serviço de
abastecimento domiciliar de água por encanação em 1896, sendo essa atividade feita por
aguadeiros. Os banhos públicos nos rios, fontes e similares, enquanto usos não autorizados,
nos parece ser mais uma evidência do contraste das condições de vida de populares e os
planos de modernização, que não pretendiam eliminar as desigualdades, mas expulsar os

247
APEB. Seção Judiciária. Processo Crime. Classificação: 17/598/05. Ano: 1898.
248
Para Margareth Rago, um dos dados de privatização da higiene consistia na exclusividade das práticas
higiênicas serem executadas dentro dos domicílios, como a lavagem de louças, roupas e banhos, e não nos
espaços públicos como ruas e rios. Ver: RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinada.
Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
249
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 81.
113

sujeitos cujas práticas eram consideradas agressivas à paisagem urbana, sendo, por tabela
desviantes da ordem.
Munidos de estratégias e planos que previam a alteração da paisagem urbana,
mediante a civilização dos costumes, os grupos dirigentes de Nazareth conjugavam o verbo de
correção dos erros identificáveis na cidade, usando para tanto os discursos da ciência que
essencialmente não entendiam e não conseguiram condicionar as práticas culturais e
populares sedimentadas histórica e socialmente no tecido urbano. Assim, reproduziam um
modelo de urbanização que previa, entre outras coisas, os melhoramentos urbanos e o
estabelecimento de padrões comportamentais e higiênicos 250 . Foi assim que, em 20 de
Novembro de 1894, por exemplo, o médico Dr. Alexandre Freire Maia Bittencourt Sobrinho,
Intendente de Nazareth, oficiou o provedor da Santa Casa de Misericórdia de Nazareth
também médico Dr. Alexandre José de Barros Bittencourt e o Vigário da Comarca,
Reverendíssimo João Gualberto de Magalhães para tratar de uma regra sanitária que se
confundia com um costume imemorial, cuja transgressão da primeira em função do segundo,
causava “prejuízos” ao município. Reproduzimos o ofício na íntegra:

Officio - Estando em vigor o codigo de posturas d’este município, que


entre outras disposições prohibe no artº. 156 os enterramentos depois
das 6 horas da tarde, como viseis do exemplar que vos remetto, vou
solicitar que vos digneis auxiliar essa Intendencia, quanto for cabível
nas suas attribuições, para q. cesse de uma vez o uso antiquado dos
enterramentos a noite notando mais que, só por uma excepção
estranhável é esta cidade a única que ainda o conserva. Esta
Intendencia espera do vosso zelo pelo adiantamento deste município e
dedicação á causa publica, efficaz coadjuvação para que se realise a
letra da referida postura. Apresento-vos as expressões cordiais de
consideração e reconhecimento. Saúde e Fraternidade.”251

A convocação dos representantes das estratégicas instituições pelo chefe do executivo


para acabar com aquele “antiquado” costume, além de indicar que o médico intendente estava
empenhado em validar as doutrinações do Código de Posturas, revela como aquelas práticas,
objetos do instrumento normativo, eram avaliadas pela cidade que almejava o status de
“civilizada”. De modo mais claro, discursos e estratégias como estas colocam em debate os
projetos e ideias que as autoridades políticas, especialmente o grupo dos Bittencourt e seus

250
Philipe Murillo chama atenção que “A racionalidade urbana se tornava a expressão da necessidade de criar
um território de poder, onde os poderes instituídos pudessem efetuar seu controle com mais organização,
isolando toda prática que se ‘desviasse’ dos interesses hegemônicos. A organização racional procura recalcar os
defeitos que ameaçam o alcance destes objetivos.” Cf.: CARVALHO, Philipe Murillo Santana de. Uma cidade
em disputa... p.117.
251
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 42.
114

correligionários, pensaram para Nazareth ou mesmo como esta cidade deveria se comportar
diante das outras. O documento deixa claro que Nazareth era por “uma excepção estranhável”
a única cidade que fazia enterramentos à noite. Retórica à parte, as considerações feitas pelo
médico intendente inscreve-se junto às ideias de higienização e de medicalização da
sociedade numa concepção mais ampla, que, sob a égide do liberalismo instituído após a
“independência” do Brasil, em 1825 propunha a extinção dos enterramentos nas igrejas sob a
justificativa que tal prática representava perigo aos vivos, estimulando a construção de
cemitérios252.
Em 1897, portanto, o hábito “estranhável e incivilizado” era o de executar ritos
fúnebres no horário noturno. Naquela época era comum que os sepultamentos fossem feitos à
noite, quando os acompanhantes levavam tochas de cera acesas para velar o corpo253. Para
além da questão da saúde pública como elemento precedente, a solicitação do intendente aos
responsáveis pelo cemitério e pela igreja buscava, para todos os efeitos, tentar garantir o
cumprimento da lei, pois se as cerimônias fúnebres praticadas pela população tinham uma
motivação religiosa, cabia àquelas instituições contribuírem com a execução deste
regulamento.
Se a própria comunicação do intendente que já indica transgressão, verificamos que
essas, embora praticadas pela população, foi permitida e de algum modo estimulada por
algumas instituições e autoridades locais. Em 20 de julho de 1897, por exemplo, a junta
administrativa da Santa Casa de Misericórdia, sob o controle do provedor Viriato Araújo
Bittencourt, monarquista declarado e membro do Partido Conservador, havia deliberado sobre
alguns procedimentos relativos aos sepultamentos. Segundo a instrução normativa aprovada
pela junta, tornava-se imprescindível a apresentação de uma “guia eclesiástica” como critério
para os enterramentos feitos no seu cemitério, o único da cidade. A ordem era que nenhum
enterramento fosse feito sem a autorização do pároco municipal 254 . Para aquela junta, a
certidão de óbito, que era obrigatória, inclusive pelo artigo 151 das posturas municipais, a
qual deveria ser emitida pelo escrivão de paz ou pela autoridade policial, era um documento
desnecessário, segundo as normas institucionais da Santa Casa. Ao aceitarem essa norma de
ordem católica, os cidadãos estariam infringindo às leis republicanas e especialmente quanto
ao Código de Posturas seriam punidos em 10$000 de multa. Para tanto, o provedor e a junta

252
Esse fenômeno constituiu a “Cemiterada”, revolta popular ocorrida em 25 de outubro de 1836 em Salvador
resistente a intervenção nos costumes do povo. Ver: REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e
revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
253
AUGUSTO, Lamartine. Porta do Sertão... p. 30.
254
SACRAMENTO, Cleidivaldo. Mundos de trabalho no Recôncavo Sul... p.105.
115

daquela instituição caracterizaram e resumiram a fundamentação do ato no seguinte trecho


que foi extraído da ata de sessão:

[...] Assim como o governo civil, tendo em muita conta os registros


para os efeitos materiais, a igreja quer que os católicos observem as
suas doutrinas e respeitem os seus sacramentos. [...] E nem se pode
admitir que a lei que separou a Igreja do Estado, que concedeu-lhe a
liberdade dos cultos, possa ter a veleidade de querer impor às
associações religiosas a prática de atos inteiramente contrários aos
princípios de sua religião e muito menos a ir de encontro aos direitos
de propriedade.255

Os aparentes conflitos expressos naqueles dois momentos, 1894 e 1897, entre a


tradição católica e os ideais sanitários, civilizatórios e ordenadores, reafirmados com o
advento da República, levantam outras questões que merecem ser analisadas para além da
proibição e regulamentação dos sepultamentos e enterramentos. No primeiro caso, tratava-se
de uma intervenção num costume imemorial que se tinha na cidade, e no segundo baseava-se
na tentativa de reafirmar a autoridade da igreja no fato de que a propriedade do cemitério
estava cargo de uma instituição católica, tudo isso num contexto de preocupação com a saúde
pública e afirmação de valores morais, éticos e políticos, mas, sobretudo de separação dos
corpos da igreja com o estado.
Outrossim, a relação entre a igreja, doutrina cristã e o poder público municipal parecia
não se limitar às questões de morte, ritos fúnebres, regras sanitárias e cartoriais, cuja
laicização do estado, consagrada com a Constituição Federal de 1891, não foi capaz de
romper com uma tradição de controle católico da vida civil. Em outros termos, apesar da
relativa perda de poder da igreja católica com o advento da República, enquanto instância
integradora da vida social, tal mudança não foi linear e unívoca, devido ao lugar social que tal
religião ocupou no Brasil desde o século XVI, sobretudo no imaginário das pessoas e
especialmente das autoridades que legislavam e governavam sob tais princípios256.
Fazemos essa observação analítica para entender, por exemplo, o tom, a
fundamentação e como se processavam os discursos das autoridades nazarenas que
obstinadamente evocavam valores e princípios profissionais ou pessoais para criar regras e
padrões na cidade, e para isso mais uma vez voltamos a nos referir aos Bittencourt.
Reproduzimos abaixo o requerimento feito na sessão ordinária do Conselho Municipal de

255
ASCMN. Registro de Sessão da Junta Administrativa, 1897, p. 75. apud SACRAMENTO, 2007, p. 105.
256
MONTERO, Paula. & ALMEIDA, Ronaldo R. M. de. O campo religioso brasileiro no limiar do século:
problemas e perspectivas. In: RATTNER, H. (org.). Brasil no limiar do século XXI. Alternativas para a
construção de uma sociedade sustentável. São Paulo: EDUSP & FAPESP, 2000. p. 326.
116

março de 1911 pelo seu então presidente, Cel. José Pimentel de Barros Bittencourt, egresso de
dois mandatos da Intendência Municipal, sendo um destes “tampão”257.

O Coronel Presidente faz vê ao Concelho que aproximando-se a


epocha em que a igreja catholica celebra os últimos actos da semana
santa e havendo o tradicional costume de na sexta-feira santa,
exporem na praça do porto desta cidade, e a norte, louça de barro a
venda com o titulo de feira de louça ou das panellinhas, mas o abuso
ultimamente notado de desrespeito a esse grande dia, respeitado em
todo orbe catholico, dar lugar a ser a referida feira um motivo para os
inconscientes exibirem-se na pratica criminosa de immoralidade,
roubos, prejudicando muitas vezes os actos religiosos, achava-se de
alto alcance moral que, o concelho tomasse uma medida por meio de
uma resolução, não de acabar com as referidas feiras, porque seria
prejudicar interesses particulares, mas, transferil-as para o sábado
immediatamente.258

Não obstante aquele político parecer ser um dos porta-vozes da tradição católica junto
às esferas de poder, e aquele pedido ter sido unanimemente aprovado na mesma sessão,
criando uma nova regra, tal ato indica que as intervenções na cidade refletiam além da
questão da ordem urbana, tendo também uma intensa preocupação com a moralidade e os
bons costumes. A propósito, aquela feira que tanto ofendia, desrespeitava e prejudicava a
execução dos atos religiosos, especialmente os da Sexta-Feira da Paixão, fazia parte de uma
tradição e prática costumeira e secular da cidade de Nazareth que consistia na venda de
artesanatos e utensílios de barro fabricados pelos ceramistas da população ribeirinha de
Maragogipinho, do vizinho município de Aratuípe259. Pelo rio Jaguaripe de canoas e saveiros
ou pelas precárias estradas no lombo dos animais, chegavam homens e mulheres que se
estabeleciam na praça do porto e nas margens do cais, próximo aos “Arcos”, formando a dita
“feira de louça ou das panellinhas” a fim de estabelecer, além de relações comerciais entre a
cidade e o campo, uma verdadeira interação social entre ambas 260 . Afinal, qual seria o
verdadeiro incômodo provocado por essa feira que acontecia anualmente, se naquele mesmo
espaço formavam-se semanalmente as grandiosas feiras de alimentos e de animais com
maiores dimensões que a de cerâmica? De qual forma e até que ponto aconteciam
efetivamente os roubos e a “prática criminosa” de imoralidade, como vociferou o presidente
257
O Cel. José Pimentel de Barros Bittencourt exerceu mandato de 1904 a 1908, tenso sido reconduzido ao cargo
por decisão do Senado Estadual em 1910 após a renuncia de Aurélio Pereira Miranda e declarada a vacância do
cargo. Ver: AUGUSTO, Lamartine. Porta do Sertão... p. 222-223.
258
AFEM. Jornal O Regenerador. Nazareth, Ata da Sessão do Conselho Municipal de 06/03/1911.
259
Sobre a produção e comercialização de cerâmicas em Maragogipinho, ver: BARRETO, Virgínia Queiroz.
Trilhando caminhos de barro: trabalho e cotidiano de oleiros – Maragogipinho, Ba, 1960-1999. Dissertação de
Mestrado em História. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2001.
260
LAGO, Jonathan Brito. Uma cidade, uma “zona” e uma mulher de “vida fácil”... p. 16.
117

do Conselho Municipal? Curiosamente, na investigação histórica que fizemos para compor


essa narrativa, em meio à pesquisa em variados arquivos e fontes documentais – processos
criminais, ofícios, entre outros -, a única evidência de atos dessa natureza que encontramos foi
considerada como uma diversão261. Ironicamente o “furto dos caxixis” foi executado, ano a
ano pelos “sobrinhos e amiguinhos” de Maria Augusta Pimentel de Barros Bittencourt, irmã
do conselheiro, de modo que, certamente, o veemente discurso desse não foi pautado nas
experiências criminosas do berço familiar 262 . Ademais, existem algumas questões que
precisam ser analisadas para se entender as possíveis justificativas daquele requerimento.
O que se sabe acerca da origem da cerâmica de Maragojipinho, ou mesmo sobre a
Feira de Caxixis, como é atualmente conhecida, ainda é muito incerta. A tradição oral e
popular aponta sempre a cidade de Jaguaripe como sendo o local de onde havia sido
transferida a atividade ceramista. A mesma se encarrega de oferecer a versão do início da
feira em Nazareth quase sempre ao oleiro Patrício como sendo o pioneiro, relato segundo o
qual teria este tido sucesso na primeira vez que subiu o rio Jaguaripe em uma canoa cheia de
objetos de barro feitos a mão, com a intenção de vendê-los na Sexta-Feira da Paixão.
Embora os estudos sobre a atividade ceramista do local tenham dedicado preocupação
maior com as peças produzidas, ou mesmo com o aspecto das olarias, os relatos apresentados
pelos oleiros mais antigos da localidade, alguns dos quais teriam nascido nas décadas de 1920
e 1930, indicam que negros e mestiços eram os que predominavam entre os principais
trabalhadores da cerâmica. Eles quase sempre faziam referências aos problemas enfrentados
na lida diária com o barro, dificuldade de subsistência, precariedade das condições de trabalho
e de moradia e que os momentos da feira não se limitavam apenas a oportunidade de ganhar
dinheiro. Em muitos relatos, os oleiros sinalizavam que o intenso movimento da feira,
incluíam momentos das bebedeiras na “zona de baixo meretrício”, a jogatina, além de outras
formas de diversão263.

261
Declarou Maria Augusta no seu livro de memórias, seção “Caxixis”: “Levaríamos cestos e sacolas à feira dos
‘caxixis’, trabalho em cerâmica, miniaturas cuidadosamente confeccionadas por oleiros de Maragogipinho. [...]
Era o furto dos caxixis a nossa distração. Maior prova de sagacidade. Sobrinhos e amiguinhos discutíamos
depois qual havia roubado mais. Não éramos, em verdade, grandes aves de rapina. A pilhagem não ia além de
três pratinhos... quatro moringuinhas.” Cf.: BITTENCOURT, Maria Augusta. Tempo... água do rio.... p. 79.
262
Maria Augusta Bittencourt, nasceu em 23 de janeiro de 1890 em Nazareth. Exerceu a profissão de professora,
foi poetisa e escreveu com o pseudônimo de Ana Luiza. Ver: BRANDÃO, Izabel & ALVES, Lívia
(orgs). Retratos à Margem: antologia de escritoras das Alagoas e Bahia (1900- 1950). Maceió: Edufal, 2002, p.
379.
263
Se valendo, sobretudo dos depoimentos orais de oleiros de Maragogipinho foi possível se aproximar das
experiências de vida compartilhadas pelos artesãos ceramistas nas olarias e na Feira dos Caxixis. Ver: SOUZA,
Antonio Marcos A. de. Maragojipinho: seus oleiros e a arte transformada. 1980 - 2000. Monografia.
Especialização em História Regional da UNEB. Santo Antonio de Jesus, 2004.
118

Considerando as palavras de ordem em voga naquele período já debatidas no decorrer


dos dois capítulos dessa dissertação, acreditamos que não é ir longe pensar na condição social
e racial daqueles ceramistas feirantes como condicionantes dos discursos das autoridades.
Talvez seja esse o elemento articulador da trama. Logo, o uso da pressão religiosa para coibir
os excessos da "parte profana" das atividades da semana santa parece enquadrar-se antes
como uma estratégia facilmente aceita que tinha o propósito de fazer uma limpeza étnica,
social e moral da cidade naquele período, que efetivamente a prevenção de um perigo.
Pensamos, portanto, que mais uma vez o conceito de classes perigosas foi tomado como
referência para enquadrar hábitos e relações sociais populares. Parece ficar claro então, que o
regulamento aprovado, ao determinar a transferência das feiras para o sábado, sem acabar
com as mesmas em respeito aos “interesses particulares”, atendia a uma necessidade de
ordenar e minimizar o incômodo que os oleiros participantes da feira e sua condição social, as
peças que eram dispostas no meio da rua, bem como o trânsito dessas pessoas em “casas
noturnas”, causavam à Igreja, sempre muito próxima da feira, e, consequentemente, às demais
autoridades.
Não é intenção deste trabalho (nem temos fontes para tanto) caracterizar as ações
empreendidas pelas autoridades públicas como resultado do discurso religioso, como em
dados momentos verificamos aqui, mas compreendemos que igualmente ao preceito da ordem
pública, seu conteúdo algumas vezes contribuiu para que o grupo dirigente da cidade pensasse
a questão da legalidade urbana. Dessa forma, nos valemos desses indícios presentes nos
discursos, bastante denunciativos da mentalidade daquelas figuras, para flagrar as tensões
sociais que constituíam a trama cotidiana da vida material de pessoas, especialmente às
excluídas, em Nazareth de 1890 a 1920. É nesse contexto que corroboramos, na acepção mais
ampla do processo histórico pós-abolicionista e recém-republicano e o modo como esse foi
operado, dada as especificidades em Nazareth, com a seguinte assertiva:

Fica evidente, no jogo das disputas políticas locais, que estamos diante
das estratégias de controle de expressões culturais e religiosas afro-
brasileiras que acompanhavam fórmulas anteriores à República, ou
seja, ainda podíamos constatar a alternância de momentos de
moderação com outros de maior coação e, até mesmo, tirania.
Todavia, sobejamente no período republicano, o interesse político se
constituiu na mola mestra das práticas de controle de tais
expressões.264

264
SANTOS, Edmar Ferreira. O poder dos candomblés... p. 137.
119

IV. Os “ilustrados cidadãos do progresso”: Quem eram os Bittencourt?

A proclamação da República agitou a nossa metrópole. Daqui partiu o


primeiro brado de apoio ao novo regime. E no delírio da alegria,
consequente à vitória do seu ideal, um pugilo de republicanos ajustou
invadir a ‘Casa dos Arcos’ para retirar da sala nobre da ‘Banda’, o
quadro de D. Pedro II, no propósito de incendiá-lo, sob as vistas do
povo.265

Esse foi, possivelmente, o discurso de Alexandre José de Barros Bittencourt em 16 de


novembro de 1889 quando a notícia da mudança do regime chegou a Nazareth. Reproduzido
em parte pela imprensa, como um dos principais acontecimentos da cidade, a elite política
nazarena, na qual Alexandre Bittencourt e seu grupo estavam inseridos, orgulhava-se daquela
Câmara Municipal ter sido, após a capital do estado, a primeira a aderir e adotar a nova forma
de governo, de modo que entre discursos e passeatas, diversas foram as comemorações
266
festivas naquele dia . Apenas não foi concretizada imediatamente a intenção dos
republicanos, muitos de última hora, de destruir um dos símbolos da Monarquia: segundo
aquele político, a resistência de alguns impediu o incêndio do quadro de D. Pedro II. Não
seria admirador se um dos resistentes fosse o próprio Alexandre Bittencourt, afinal, além de
ter gozado dos jogos de poder na Monarquia e a figura do próprio D. Pedro II ter significado
no imaginário social e institucional da cidade 267 , em 1876, sua honra permitiu que fosse
recebido pelo Imperador no Rio de Janeiro com o propósito de garantir investimentos em seus
negócios, sinalizando que entre as “barbas provincianas e imperiais” houve sempre muita
cumplicidade268.
Médico, Dr. Alexandre, denominado de “Mauá da Bahia” por ter planejado e
executado a estrada de ferro que ligou inicialmente Nazareth ao Onha, posterior Tram Road
Nazareth que desbravou o sudoeste baiano, já havia ocupado diversos cargos nos tempos
imperiais quando chefiou o Partido Conservador269. Na República, quando seu prestígio teria
se alargado, tornou-se Senador constituinte em 1891 e membro de honra do Conselho
Municipal. Natural de Nazareth, da Fazenda do Araçá, divisa com Arathuype, filho do Major
Antonio de Souza Bittencourt segundo estudiosos “o seu prestigio partidário era verdadeira

265
AUGUSTO, Lamartine. Porta do sertão... p. 173.
266
FBN. O Almanak do Estado da Bahia. Salvador, 1898. p. 527
267
A propósito, Nazareth havia sido a primeira cidade do interior da Bahia a receber a visita do Imperador D.
Pedro II e da Imperatriz Tereza Cristina em 1859 quando autorizou e incentivou diversas obras municipais.
268
AUGUSTO, Lamartine. Porta do sertão. p. 26, 142 – 143.
269
“Êle foi o Mauá da Bahia.”. Frase curiosa e supostamente dita pelo Governador Landulfo Alves. Cf.:
BITTENCOURT, Maria Augusta. Tempo...água do rio... p. 21.
120

potencia eleitoral em toda zona por onde corriam os trilhos da estrada de ferro de
Nazareth” 270 . O famoso memorialista do Recôncavo, Isaías Alves, via o Dr. Alexandre
Bittencourt como um “velho médico e armador de engenheiro” 271 . Em tom apologético,
sentimental e entusiasta, Maria Augusta Bittencourt, defendia que seu pai tinha um
comportamento político isento de mediocridade. Dizia mais...

Meu Pai veio do tempo das atas falsas, instrumentos políticos pelos
quais os mortos votavam. Ele, porém, desse sistema não se utilizou.
Tinha o eleitorado às mãos. Por isso mesmo procuravam-no os
candidatos a tudo.272

Foi então desse peculiar conceito de idoneidade, de ter a seu favor, por alguns
motivos, a consideração, o apreço, a admiração e a confiança das pessoas, que este “ilustre
cidadão” tornou-se o responsável pela consolidação de um clã político que se perpetuaria no
poder local, com amplitude regional e estadual, cujas sementes do trabalho haviam se
solidificado em 1855. Neste ano, juntamente com seu primo mais novo Nuno Freire Maia
Bittencourt 273 , Alexandre Bittencourt iniciou a atuação médica no município, dando
continuidade ao carreirismo político da família.
Segundo os jornais locais, o Dr. Alexandre, antes mesmo da sua formatura, abandou a
faculdade na “capital para correr até a sua terra, invadida pela coléra morbus, onde com
perigo de vida, penetrou todos os lares, levando os recursos da sciencia, gratuitamente”.274
Evidente que tais ações se revelariam como estratégias de inserção no corpo social e político
de Nazareth, uma vez que neste tempo os Bittencourt já acumulavam o reconhecimento local
dos serviços prestados à pátria em função da atuação dos seus ascendentes, o Major Antonio
de Souza Bittencourt e o Coronel da Guarda Nacional Imperial Manoel Gonçalves Maia
Bittencourt, na Guerra da Independência de 1823 275 . Assim, acumular tal prestígio com
intervenções profissionais em uma cidade que sempre havia sido apegada ao interesse da
saúde do povo. Como escreveu Anísio Melhor, quando da realização do 1º Congresso Médico

270
BITTENCOURT, Eduardo Pimentel Maia. Memória genealógica dos Bittencourt... p. 88.
271
ALVES, Isaías. Matas do Sertão de Baixo. Rio de Janeiro: Repper, 1967. p. 39.
272
BITTENCOURT, Maria Augusta. Tempo...água do rio.... p. 28.
273
Filho do “inolvidável patriota” Coronel Manoel Gonçalves Maia Bittencourt. Diplomado em 17 de dezembro
de 1853 na Faculdade de Medicina da Bahia com a tese Algumas proposições sobre a hereditariedade das
moléstias.
274
AFEM. Jornal O Conservador. Nazareth, Setembro de 1935. Alexandre J. de B. Bittencourt concluiu a
faculdade em 12 de Junho de 1856 com a tese Do contágio da infecção e sua diferença.
275
Sobre os Bittencourt, ver: BITTENCOURT, Eduardo Pimentel Maia. Memória genealógica dos Bittencourt.
Rio de Janeiro, 1981.
121

do sudoeste baiano em Nazareth, o “espírito” médico foi o pontapé de uma política que
prolongaria por regimes276.
Entre médicos, bacharéis em direito e engenheiros, formados nas limitadas faculdades
existentes no Brasil, também fazendeiros, proprietários de iniciativas particulares e herdeiros
de uma estrutura sustentada por braços escravos, ao ocupar repetidamente os cargos públicos
da cidade, transitando da Monarquia à República, o clã dos Bittencourt destacou-se como
principal grupo político, que tomou para si as responsabilidades de organizar política e
administrativamente os espaços nos quais estavam inseridos, com importância que se
acentuou na segunda metadedo século XIX277.
Diversos estudos mostraram que, no Recôncavo sul, desde a Monarquia, formaram-se
grupos políticos fortes, capazes de influenciar o arranjo político-administrativo da
província 278 . Tais personalidades, devido à importância comercial e econômica que vinha
ganhando o Recôncavo sul, como a região mais dinâmica da província ao longo do século
XIX279, se alicerçaram através de estratégias e arranjos eleitorais, de modo que tornaram-se
uma espécie de elite política dominante no Recôncavo sul, ficando consequentemente
próximos das decisões dos centros de poder. Deste modo, consideramos que a trajetória dos
Bittencourt é um exemplo claro de grupos dominantes que se utilizaram do prestígio político
adquirido de diversas formas no cenário provincial e, sobretudo, da posição econômica do
Recôncavo sul, para se firmar nas estruturas de poder que estava se moldando.
Ao adentrar nestes setores, à medida que a cidade crescia, seja pelo adensamento
populacional ou pelas conjunturas políticas e sociais do fin de siècle, estes homens acabaram
influenciando e reivindicando transformações e melhoramentos urbanos, segundo as doutrinas
que os formaram. Tais intervenções empreendidas em Nazareth, já discutidas anteriormente,
caracterizaram-se como pauta e ao mesmo tempo o trunfo do clã dos Bittencourt e das
personalidades políticas que os sustentavam na resposta às acusações feitas pelo grupo do
médico Eurico Joaquim da Matta, seu rival político, no Jornal O Conservador, antigo

276
AFEM. Jornal O Conservador. Nazareth, Setembro de 1935.
277
Segundo Maria Helena P. T. Machado, os proprietários e fazendeiros nos finais do século XIX penetraram-se
nas atividades capitalistas, notadamente no “setor urbano, comercial e financeiro”. Cf.: MACHADO, Maria
Helena Pereira Toledo. Crime e Escravidão... p. 87.
278
Segundo Cleidivaldo Sacramento, “A influencia dos grupos políticos oriundos do Recôncavo, e que ali se
formaram nas décadas anteriores à República, era tão forte que esses grupos tinham poder de veto e de
aprovação na indicação de candidatos, assim como, durante as prévias do partido, e também na escolha dos
candidatos à sucessão de cargos eletivos ou nomeados, na administração publica do estado da Bahia.”. Cf.
SACRAMENTO, Cleidivaldo de Almeida. Mundos de trabalho no Recôncavo Sul... p. 108.
279
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da Liberdade... p. 34.
122

periódico que circulou de 1911 a 1945, pertencente a esta última família. Sob o título de “O
caes da cidade”, foi a público:

Onde está assignalada com uma cruz, foi o ponto que deixou o
“grupete de vuspirios, canalhas e ladravases, composto dos
Bittencourts, Tavares, Leony e Ferreiras”, expressões do
“Conservador”, orgam da honrada oligarchia Matta, tendo este
grupete, quando a renda era muitíssima menor a actual, feito mais de
um kilometro de caes de pedra e cal em mangue profundo, abertura de
dois extensos canaes, que resultaram o desaparecimento das agudas
sinuosidades da Catiara, a remodelação radical do Predio do Paço
Municipal; duas grandes e sólidas pontes de alvenaria; ruas novas;
profundos aterros em toda extensão do caes; nivelamento e
arborização das praças; dispendiosas desapropriações; conservação de
estradas etc., mantendo o grupete o credito illimitado do município,
todas as suas contas em dia, nada devendo ao commercio, nem ao
professorado. Hoje que a renda do município é muitíssimo maior, não
somente pelo desenvolvimento do comércio, como pelo
prolongamento dos trilhos da estrada de ferro, installações de
armazéns, de escolhas de beneficiamento de café e fumo, augmento da
décima das propriedades, creação de novos impostos de occupação do
solo, cabotagem, matriculas do proletariado e outros, nenhuma pedra
se collocou no caes, aparecendo um gasto nos balancetes publicados
de cerca de 470:000$000, nada se fazendo em oito longos anos,
estando o município endividado, não cumprindo seus compromissos;
está sem crédito, desmoralisado e falido.280

Ainda que a matéria tenha sido veiculada no Jornal O Regenerador, pertencente aos
Bittencourt, a exposição da disputa entre as oligarquias políticas presentes em Nazareth na
primeira República revela uma relação de forças bastante inclinada para este o lado, uma vez
que o clã possuía no seu entorno os influentes “Tavares, Leony e Ferreiras”, além de congregar
um número grande de personalidades que dominaram a política local nos 20 primeiros anos
da República.
Entre diversas lideranças locais, o clã era formado por Alexandre Freire Maia
Bittencourt Sobrinho281, também médico282, chefe do Partido Republicano local e idealizador
ainda na monarquia do Clube Republicano, tendo ocupado, em 1892, a cadeira da Intendência
Municipal na primeira eleição após a constituição de 1891, com um mandato caracterizado
pela continuidade de uma série de medidas que visavam o melhoramento material da cidade
de Nazareth. O cargo ainda foi acumulado com o de Delegado de higiene pública.
280
AFEM. Jornal O Regenerador. Nazareth, 02 de Fevereiro de 1921.
281
Herdou o nome do General Alexandre Freire Maia Bittencourt. Comandante “no posto de general da guarda
imperial, um batalhão de voluntários brancos, mulatos e negros escravos” no Paraguai, durante a guerra naquele
país entre 1864 e 1870. Ver: Annaes do Senado Brasileiro. Vol. 3. P. 47. Sessão em 8 de Jul/1871.
BITTENCOURT, Eduardo Pimentel Maia. Memória genealógica dos Bittencourt... p. 148.
282
Autor da tese Hemorrhagia uterina durante o delivramento e suas indicações defendida em 1874.
123

Da mesma linhagem, Viriato Freire Maia Bittencourt 283 havia sido coletor geral da
cidade na Monarquia, e foi Intendente Municipal por três vezes, além de ter sido nomeado
para o 1º Conselho Municipal no alvorecer da República.
Pertencentes ainda ao clã, José Pimentel de Barros Bittencourt presidiu o Conselho
Municipal e foi Intendente, seguindo às orientações de uma política iniciada há tempos
anteriores, além de João Pimentel de Barros Bittencourt, que foi Deputado Estadual pelo
distrito de Nazareth nos anos iniciais do século XX.
A propósito da inicial declaração do Dr. Alexandre Bittencourt, saudando a República,
e a experiência do seu grupo mostrar que durante a Monarquia gozaram daquela estrutura, a
historiadora Consuelo Sampaio, ao fazer um amplo estudo sobre os partidos políticos da
Bahia na primeira República, e consequentemente uma análise dos seus quadros, observou
que na Bahia, os mais ardorosos defensores da monarquia aderiram ao novo regime, mas
somente quando ele já se manifestava irreversível284. Contudo, assim como os Bittencourt,
outras figuras políticas de porte estadual tiveram trajetórias políticas marcadas por uma
intensa atuação na monarquia e por um trânsito aberto na República. José Marcelino de
Sousa285 e Severino Vieira, por exemplo, que se tornaram governadores do Estado Federado
da Bahia, haviam sido monarquistas ferrenhos e membros do Partido Conservador, tendo se
enfileirado na agremiação Republicana quando da transição para o novo regime286. Curiosa e
estrategicamente, as autoridades nazarenas mantiveram um estreitamento pessoal com aqueles
dois políticos. Em 1891, por exemplo, como Senadores Constituintes, os líderes locais José
Marcelino de Souza e Alexandre José de Barros Bittencourt assinaram o manifesto ao povo,
atestando a sua adesão e comprometimento com o novo regime, insatisfeitos com o
movimento sedicioso que havia deposto o Governador Constitucional, José Gonçalves287.

283
Sobrinho neto do Dr. Alexandre Bittencourt, Viriato Freire Maia Bittencourt,cujo pai tinha o mesmo nome,
foi neto de Manoel Gonçalves Maia Bittencourt, herdeiro do engenho do Batatã. Não assumiu a intendência
municipal pela 4ª vez porque faleceu. Ver: BITTENCOURT, Eduardo Pimentel Maia. Memória genealógica dos
Bittencourt... p. 156.
284
SAMPAIO, Consuelo Novais. Os Partidos Politicos da Bahia na Primeira República. Salvador: UFBA.
1978. p. 22.
285
Segundo Cleidivaldo Sacramento, José Marcelino de Sousa, membro do Partido Conservador na Monarquia,
inclusive resistente a escravidão “havia se firmado nas estruturas políticas do município de Nazareth e de todo o
Recôncavo sul. Em fins de 1870, Marcelino foi promotor naquele município, por bom período, onde ele possuía
uma fazenda, sendo inscrito, também, como eleitor naquela zona eleitoral, embora, encontrasse ali, dura
oposição as suas ideias políticas, mantendo, por certo tempo, o que se pode chamar de um extenso curral
eleitoral”. Cf. SACRAMENTO, Cleidivaldo de Almeida. Mundos do Trabalho..., p.158.
286
SACRAMENTO, Cleidivaldo de Almeida. Mundos de trabalho... p. 139
287
Nos diz Lamartine Augusto que “com estas assinaturas Nazareth reafirmava, destemerosamente, sua posição
ao lado do governador deposto e a vocação nos nazarenos pela ordem e legalidade.” Cf.: AUGUSTO, Lamartine.
Porta do sertão. p. 213.
124

Tal experiência possibilitou, por sua vez, que a política de Nazareth permanecesse sob
os ditames dos fazendeiros, proprietários e empresários da família Bittencourt e das abastadas
personalidades que giravam em torno da sua política. Afinal, naquele contexto recém-
republicano, enquanto a parte clássica do Recôncavo continuava a ser controlada pelas
tradicionais famílias do açúcar288 que estiveram no poder desde a Monarquia, em Nazareth,
cidade cujas atividades produtivas ganharam força e propulsaram ao longo dos séculos em
torno de uma produção heterogênea de economia diversificada, as mesmas forças políticas de
outrora solidificaram seus currais eleitorais, constituindo-se enquanto oligarquias durante as
primeiras décadas da República nascente.
A despeito dessa tentativa de caracterização dos Bittencourt e de figuras políticas que
os cercavam, cujas ações no plano material já foram visualizadas até aqui, queremos mostrar
que tais iniciativas implementadas na estrutura da cidade, além de representarem o contexto
social e político do país e do Estado naquele período, são reflexos das trajetórias individuais e
coletivas dos elementos que formavam aquele grupo. Logo, suas condições financeiras e
profissionais – fazendeiros e médicos – não devem ser descartadas, uma vez que o histórico
operacional dos Bittencourt pautou-se na preocupação de dar à cidade uma configuração
moderna, respondendo aos lemas de ordem e legalidade, ambos reafirmados com a República,
e adequados com princípios estéticos e sanitários, doutrinados ideologicamente. Isso, não os
torna figuras “necessárias” ao desenvolvimento da cidade de Nazareth, mas tal como
observamos, os estudos que fizeram uma análise mais conjuntural desse período notaram que:

A fixação da elite agrária nas cidades, especialmente durante a


segunda metade do século XIX, motivou seu crescimento e formação
de uma estrutura de melhoramentos e serviços urbanos que começou a
atrair cada vez mais mão de obra e investimentos. Essas mudanças
aconteceram associadas a um novo modo de pensar e viver a cidade,
cada vez mais influenciado pelas regras do sanitarismo.289

Neste sentido, acreditamos que não é divagação pensar que houve influência dos
ideais da medicina no caráter reformador dos Bittencourt, do seu grupo e dos demais médicos
intendentes e conselheiros municipais daquele período. Afinal, como membros da
denominada “elite agrária”, que em Nazareth não teve a mesma proporção e riquezas como o
mesmo grupo do sudoeste cafeeiro e escravista, muitos daqueles estavam ligados aos debates
do sanitarismo. Isso, portanto, não fazia deles higienistas nem militantes da medicina social

288
SANTOS, Edmar Ferreira. O poder dos candomblés... p. 112.
289
MARTINS, Valter. Mercados urbanos, transformações na cidade: abastecimento e cotidiano em Campinas,
1859-1908. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010. p. 114.
125

que estava em voga no período, tendo com acirrados debates na sociedade, inclusive na escola
que os formou.290 Isto posto, compartilhamos do entendimento de que, estando em posição e
condição estratégicas, aquelas autoridades municipais reverberaram o dispositivo da higiene,
enquanto ideologia, adotando medidas de salubridade e ordem pública com o objetivo de
“atuar com mais intensidade sobre os grupos populares”291.
Sendo mais incisivo, gostaria de argumentar que foram os membros e herdeiros das
classes escravistas nazarenas, tais como os Bittencourt, que protagonizaram os projetos de
reestruturação urbana de Nazareth, que previa, dentre outras coisas que enchiam os olhos dos
grupos dominantes, o afastamento da gente pobre, que incluía remanescentes do cativeiro, das
principais ruas e do centro da cidade, com suas medidas de profilaxia e desodorização do
espaço urbano.
Para não soar leviandade, muito menos parecer que estamos emitindo juízo de valor
quanto às suas ações, mas por estarmos nos dedicando a uma releitura engajada do processo
histórico vivenciado na mudança dos séculos, especialmente nas implicações às populações
pobres, vejamos o que diz Maria Augusta Bittencourt sobre o Dr. Alexandre José de Barros
Bittencourt, o chefe do clã político dominante durante boa parte da primeira República
nazarena, oriundo dos tempos monárquicos, e que carregava o sobrenome da sua família:

Meu pai firmou-se na ciência como médico. Fez construir uma


estrada que rompeu o sertão baiano. Foi chamado de Mauá da Bahia.
Imperador, Barões, Ministros de Estado não lhe negaram favores.
Ganhou prestígio no Império. Prestígio que na República alargou o
seu conceito. Era um conselheiro. Fez-se um líder. Fundou escolas.
Asilos, Hospitais. Associações beneficentes e culturais... O seu retrato
encima paredes e vai à praça pública levantar-se em busto de bronze
como um Patriarca. Entretanto, nenhum ângulo de sua pujante
carreira, nenhuma face de seus êxitos, aplausos que lhe palmilharam o
caminho, despertam em mim maior admiração, maior orgulho do que
a configuração moral em que o vejo como um Senhor de Escravos.292

Não obstante a “encenação” literária e narrativa protagonizada em tom de devoção da


filha pelo pai, ao criar uma espécie de heroísmo outrora difundido, e que se faz presente na
memória coletiva da cidade, com o propósito único de valorizar seu prestígio, reconhecer seus

290
A FAMEB possuía naquele período a Cadeira de Hygiene, que congregava de todo modo as discussões sobre
o tema da Higiene Social, pautada em uma perspectiva racial, que conferia a medicina o poder de agir com uma
ação transformadora na sociedade, conduzindo-a ao progresso e a civilização. Ver: MACHADO, Roberto;
LOUREIRO, Ângela; LUZ, Rogério; MURICY, Kátia. Danação da norma: a medicina social e constituição da
psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978.
291
CARVALHO, Philipe Murillo Santana de. Uma cidade em disputa... p.61.
292
BITTENCOURT, Maria Augusta. Tempo...água do rio... p. 52.
126

serviços e diferenciá-lo dos demais “senhores de escravos”, Maria Augusta mostra, por conta
da sua admiração e orgulho, a origem de um dos personagens que pensaram e aplicaram leis
aos trabalhadores, sujeitos e espaços nazarenos. Durante suas memórias, Maria Augusta
atribui ao pai o status de ter sido um bom senhor de escravos, de uma amena escravidão nas
terras familiares e do indispensável paternalismo presente nas relações estabelecidas entre o
proprietário e as propriedades. Como já dito até aqui, Alexandre J. B. Bittencourt, enquanto
herdeiro e proprietário de terras, imóveis e pessoas, doutrinou, inspirou e articulou um grupo
político, extensivo das suas relações familiares, responsável pela implantação de um
progresso ordeiro, de caráter excludente e provocador de diversas lutas cotidianas
invisibilizadas pelas lentes da oficialidade. Não nos surpreende que tais ações tenham sido
pensadas a partir da mesma lógica das relações senhoriais: agir com severidade e comportar-
se como benevolente. Portanto, flagrar esses indícios se faz necessário quando temos o
compromisso de ampliar os focos de certas ações para desconstruir supostos heróis que
convenceram a si e a demais sujeitos de serem os “ilustrados cidadãos do progresso”, mesmo
quando negavam a cidadania, ou não faziam questão de amplia-la a uma população
historicamente isenta de direitos e sobrecarregada de deveres.
Deste modo, à luz das caracterizações feitas nestes dois primeiros capítulos acerca do
processo histórico vivenciado por Nazareth nas últimas décadas do século XIX e iniciais do
século XX, épocas marcadas por uma política de modernização pautada na retórica de
controle social de sujeitos e espaços, veremos no próximo capítulo o modo como parte da
população reagiu àqueles projetos, através de abordagem mais apropriada e sistematizada, a
partir da leitura dos dados fornecidos pelas fontes documentais que já foram vistas até aqui.
127

CAPITULO III

Infrações e imposturas na “civilizada” cidade de Nazareth

Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de


talismans e cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor,
inculcar cura de molestias curaveis ou incuraveis, emfim, para fascinar
e subjugar a credulidade publica. Código Penal dos Estados Unidos
do Brazil, 1890. Capitulo III - Dos crimes contra a saúde publica.293

Art.18. Ninguem poderá exercer neste município a profissão de


medico pharmaceutico ou dentista sem apresentar ao conselho
municipal, titulo conferido pelas escolas medicas da união ou do
estado ou estrangeiros sob as penas do art. 126 do código penal.
§ Único. Nesta prohibição inclue-se em absoluto o oficio de
curandeiro ou a pratica de meios curativos por pessoas não habilitadas
legalmente, sob as mesmas penas. Código de Posturas Municipal de
Nazareth, 1893. Capitulo II - Policia sanitária e hygiene da cidade e
povoações. 294

Foi infringindo publica e escandalosamente os supracitados artigos desses dois


códigos de lei que setores da população nazarena, em agosto de 1903, astuciosamente
convidou o famoso curandeiro Professor Faustino Ribeiro Júnior a exercer naquela cidade o
que as autoridades sanitárias, políticas e judiciais daquela época caracterizavam como
“medicina ilegal e criminosa”. Residente temporariamente na capital do estado, em Salvador,
à Rua da Lama 295 , oficial Rua Visconde de Itaparica, onde havia fixado seu milagroso
gabinete, o ousado e famoso curandeiro de naturalidade incógnita, mas popularmente
conhecido por “Dr. Bota-mão”, já havia passado pelos estados de Minas Gerais, Rio de
Janeiro e São Paulo desempenhando o ofício da cura, motivo pelo qual, sob a mira das
referidas autoridades, aportou na Bahia em 7 de Julho de 1903, requerendo desde já, “perante
o tribunal de apelação e revista ordem de habeas-corpus preventivo ao seu favor”, alegando
que estaria sendo ameaçado de constrangimento ilegal pelas autoridades baianas296.
A propósito, os tribunais de São Paulo, último estado por onde passara, e de onde
ingressou pelo porto de Santos no paquete297 alemão Belgrano em direção à Salvador, já havia

293
BRASIL. Código Penal da República dos Estados Unidos do Brazil. Decreto n. 847 - de 11 de Outubro de
1890.
294
APMN. Livro de Registro das Decisões, Resoluções e Leis do Conselho Municipal de Nazareth, 1893-1915,
p. 39v – 52v.
295
A Rua da Lama, em Salvador, era todo aquele espaço que hoje é ocupado pela área da “Barroquinha”.
296
CEAO. Jornal A Baía. Salvador, 14 de agosto de 1903. Ano VIII. Nº 2291. p. 1.
297
Paquete é a denominação dada aos antigos navios de luxo de grande velocidade, geralmente movidos a vapor.
128

decidido pela cassação da “liberdade profissional” pela qual o Professor Faustino sentia-se
amparado para exercer a arte de curar, mesmo não possuindo diploma para tal investidura.
Diplomado pela Escola Normal de São Paulo, onde fora inspetor escolar, o Professor, quando
viu crescer exponencialmente o número de enfermos que lhe procuravam insistentemente a
fim de lhe restabelecer à saúde perdida, e os resultados dessa ação milagrosa, logo deixou o
cargo que ocupava e se empenhou na arte da cura.
Segundo o jornal A Baía, que noticiou boa parte da trama envolvendo Faustino Ribeiro
na Bahia, capital e interior, enviando inclusive seus redatores à casa do curandeiro a fim de
noticiar a partir da observação própria, estes presenciaram “um sem número de pessoas de
todas as qualidades sociais” que diariamente a frequentava, avolumando-se pelos corredores e
salas, aguardando cada um sua vez de conversarem ou aproximarem-se do Professor Faustino
na espera de encontrar a cura para suas enfermidades298. O espetáculo se tornou o caso, sendo
noticiado cotidianamente na imprensa estadual, inclusive no Diário de Noticias, periódico de
maior circulação, sobretudo pelo fato de um dos primeiros clientes do curandeiro ter sido o
Governador do estado, Dr. Severino Vieira299, e, por extensão, sua família. Além disso, seu
trabalho encontrou, de imediato, aceitação popular, e estes certamente foram os fatores que
influenciaram parcela da população de Nazareth, quarenta dias após a sua chegada em
Salvador, em 17 de agosto de 1903, a encaminhar a seguinte petição ao Dr. Bota-mão,
estampando a manchete do jornal A Baía, sob o título de “Professor Faustino em Nazareth”.

Ilmo. Sr.: - A população da cidade de Nazareth, representada pelo


comércio e demais classes sociais que a constituem, dirigem-se a V. S.
pedindo a vossa vinda a esta localidade, onde provisoriamente
permanecendo, fareis a caridade da prestar aos que de vós
necessitarem os auxílios providenciais do vosso meio de curar,
verdadeiramente assombroso e que transpõe os limites do natural.
Estamos em uma época do domínio dos fatos reais, os quais, ainda
mesmo inexplicáveis, atuam diretamente sobre o espírito publico, com
maior força probante do que as mais bem desenvolvidas teorias das
crenças especulativas. Pouco importa que a ação benéfica do vosso
miraculoso poder não obedeça a principio algum da terapêutica; que
ela seja completamente independente das previsões dos diagnósticos,
muitas vezes errôneos, pela semelhança dos sintomas em certos casos

298
CEAO. Jornal A Baía. Salvador, 06 de agosto de 1903. Ano VIII. Nº 2284. p. 1.
299
Severino dos Santos Vieira, (1849 -1917), magistrado, foi promotor da Comarca do Conde, Bahia.
Governador da Bahia no quatriênio 1901/1904, Senador da República e Ministro da Agricultura, Indústria,
Viação e Obras Públicas no governo Campos Sales. Ingressou no Partido Conservador, no Império. Durante seu
governo, o nono da Bahia, deu-se a cisão do Partido Republicano, criando uma nova agremiação política: o
Partido Republicano da Bahia. Rompeu com Luis Vianna entre 1902 e 1903 e com José Marcelino em 1907.
Como proprietário e redator-chefe do Diário da Bahia, foi, na imprensa, o maior opositor de J.J.Seabra. Ver:
CARVALHO JUNIOR, Álvaro Pinto de. O Barão de Jeremoabo e a política de seu tempo. Salvador, SECT,
2006.
129

mórbidos; que para exercer o vosso privilegiado ministério não se


muna de superabundante arsenal de medicamentos, específicos,
apregoados em cartazes e avulsos, em quantitativos e dosagens,
escrupulosamente rigorosos; que não cerquem os vossos créditos
incontestáveis os atestados científicos de notabilidades medicas
pesadas de quantificativos lisonjeiros; nada disto importa, desde que
cabe diretamente sob a ação dos sentidos, a evidência dos resultados
práticos do vosso método misterioso de curar. Para propaganda do
vosso nome e dos prodígios que tendes obrado, basta o que se tem
visto. Ante a lógica dos fatos, que não se [...] o espírito cede convicto,
limitando-se a crer sem indagar a razão de sua crença e os motivos da
credulidade pelos sucessos presenciados. O povo de Nazareth
converge para vós as suas vistas. Um homem excepcional, como V.
S., não se pertence, nem deve localizar os efeitos de sua missão
humanitária a determinados lugares. Como nos centros populosos os
lugares menos importantes são também perseguidos por moléstias e,
com maioria de razão, porque lhe escasseiam todos estes meios,
aconselhados pela ciência, como precaução dos males que têm por
fator principal a falta de higiene. Nesta cidade, se pelas condições
tipográficas e clima benéfico só se dão casos esporádicos de
enfermidades endêmicas, contudo muitos infelizes desiludidos das
aplicações científicas sobre casos difíceis de certas moléstias,
continuam a sofrer, sem esperança de salvação; enfim, a aspiração
geral é ver-vos e participar da influencia positiva do vosso poder, que
não se discute, sobre os organismos doentios. Tais as razões que nos
impulsionam a convidar-vos a vir a esta cidade, onde vos será
garantida a mais franca, completa e cordial hospitalidade e onde a
soma de afeições e desvelos pela sua pessoa será tanta, que se não vos
satisfizer completamente, ao menos não vos fará arrepender-se do
obsequio que nos dispensar. Unidos neste sentido, confiamos que nos
atendereis. Seguem-se cento e sessenta assinaturas.300

Mesmo com habeas-corpus unanimemente negado pelo Tribunal de Apelação em


sessão do dia 21 de agosto de 1903, da qual saíra denunciado pela promotoria pública da 1ª
circunscrição criminal de Salvador por aplicar a “mystica therapeutica”, o Professor Faustino
Ribeiro, ainda assim, prometeu passar alguns dias em Nazareth e outras cidades que o
convidaram através dos jornais e de correspondências pessoais, entre as quais estavam Santo
Amaro, Cachoeira, Feira de Santana, Juazeiro e Caetité.
Àquela altura, a atuação do Dr. Bota-mão já causava diferentes reações de parte da
população soteropolitana, com um marcador eminentemente social e às vezes pessoal, pois
enquanto algumas autoridades o perseguiam, o curandeiro elogiava o bom acolhimento
recebido do povo, indicando com a boa recepção, adesão e simpatia dos populares. Conforme
noticiou a imprensa, a sessão de julgamento do habeas-corpus preventivo fora “repleta de
pessoas de todas as classes sociais: médicos, advogados, professores das faculdades,

300
CEAO. Jornal A Baía. Salvador, 17 de agosto de 1903. Ano VIII. Nº 2292. p. 2.
130

estudantes de direito e de medicina, funcionários públicos, etc. etc.” 301 . A propósito, a


denúncia do Dr. Arthur Mello Mattos, fundamentada pela infração ao artigo 1º da resolução
estadual nº. 112 de 14 de agosto de 1895 302 e ao artigo 157 do Código Penal, fora
encaminhada ao Juiz de direito da referida circunscrição, Dr. Vicente Candido Ferreira
Tourinho, que imediatamente julgou-se impedido de julgar o caso, alegando ser amigo do
Professor Faustino303. Pelo visto, em um curto período de tempo, o Dr. Bota-mão já havia
conseguido tecer uma rede de solidariedade e influência não só com populares, mas também
com distintas autoridades estaduais. O fato é que, publicamente constrangido, sobretudo após
o Conselho Geral Sanitário da Bahia ter aprovado, em 10 de setembro de 1903304, uma moção
de repúdio a Faustino por atentar à saúde e ordem pública, indiciado e agindo na ilegalidade
ou não, o curandeiro não se intimidou em dar continuidade aos métodos e práticas, senão
virtude, que designaram como uma “panacéia universal, a curar todos os males com a simples
imposição de suas mãos”305.
Afrontando a todos e ignorando as multas e intimações que haviam incorrido, em 29
de agosto do mesmo ano, o Jornal de Notícias publicava o artigo “O Professor Faustino e a
Lei” 306 , no qual o curandeiro teria supostamente declarado, “entre irrisorias ivectivas á
conspícua autoridade sanitária do estado, que continuaria na prática dos seus actos lícitos”307.
A manchete, à revelia do controle das autoridades e das leis, provocou um volume cada vez
maior de peregrinos enfermos à sua procura. Essa celeuma resultou no pedido de
interrogatório de Faustino, que, em 02 de setembro daquele mesmo ano, compareceu à
secretaria da policia, a fim de esclarecer entre outras coisas ao delegado, Dr. Casseano Lopes,
como parte integrante do inquérito aberto, de quem era a autoria daquele artigo, bem como a
veracidade das informações nele contido308.

301
CEAO. Jornal A Baía. Salvador, 22 de agosto de 1903. Ano VIII. Nº 2296. p. 1.
302
A lei nº. 112 de 14 de agosto de 1895 discorria o seguinte: “só permitte o exercício da arte de curar em
qualquer de seus ramos e por qualquer de suas formas, as pessoas que se mostrarem habilitadas, por titulo
conferido pelas faculdades de medicina da Republica dos Estados Unidos do Brazil ou as que, sendo graduadas
por escolas ou universidades estrangeiras, officialmente reconhecidas, se habilitarem perante ditas faculdades na
forma dos respectivos estatutos.” FMB. Gazeta Médica da Bahia. Salvador. Vol. XXXV. Número 5. Novembro
de 1903. p. 203.
303
CEAO. Jornal A Baía. Salvador, 24 de setembro de 1903. Ano VIII. Nº 2322. p. 1.
304
Dizia ainda a Moção: “Reconhecendo, em vista do que precede, que o procedimento do dito professor é
summamente nocivo a saúde púbica, podendo ser também prejudicial a tranquilidade pública, parecendo ser o
seu procedimento o de um louco ou de especulador.” FMB. Gazeta Médica da Bahia. Salvador. Vol. XXXV.
Número 5. Novembro de 1903. p. 215-216.
305
CEAO. Jornal Correio do Brasil. Salvador, 14 de outubro de 1903. Nº XX. p. 1.
306
CEAO. Jornal A Baía. Salvador, 03 de setembro de 1903. Ano: VIII. Nº 2306. p. 1.
307
Jornal de Noticias. Salvador, 29 de agosto de 1903. Nº 7066. apud FMB.Gazeta Médica da Bahia. Salvador.
Vol. XXXV. Número 5. Novembro de 1903. p. 214.
308
CEAO. Jornal A Baía. Salvador, 03 de setembro de 1903. Ano: VIII. Nº 2306. p. 1.
131

Não obstante toda trama perseguidora e criminal que envolveu o Professor Faustino
Ribeiro, algumas autoridades e a lei pelo exercício ilegal da medicina, agravado pela sua
tática hipnótica que transitava entre o fetichismo e o ocultismo, vista pelos críticos como
“estranha anomalia”, da qual nem o próprio curandeiro sabia explicar quanto aos meios
empregados para curar os enfermos, requisições como a de Nazareth atordoavam
personalidades públicas, autoridades, funcionários da inspetoria de higiene e médicos, muito
provavelmente doutrinados pela fé cristã, que usavam a imprensa para denunciar as
reincidentes transgressões às leis cometidas pelo Dr. Bota-mão. Em 14 de outubro de 1903, o
jornal Correio do Brasil, com a manchete “Flauteando” criticava o que consideravam como
“escárnio” feito à repartição sanitária, às leis e as autoridades, pelo teimoso e corajoso
curandeiro que havia declarado publicamente sobre o fechamento do seu gabinete até o final
do mês por motivo de descanso, para em seguida ir cumprir agenda no interior do estado nas
cidades que o convidara.

Bem dizer por aí que o Brasil, como a França, é o país dos papelórios;
tudo faz-se no papel, as medidas mais enérgicas e mais extraordinárias
são tomadas no que se escreve...as. Quando é chegada a hora da
execução, quando é ocasião oportuna para fazê-las entrar em vigor,
quem as encontra mais? Ficaram no papel...309

Pelo que se percebe, havia um ressentimento muito grande daqueles críticos tanto
quanto à atuação de Faustino Ribeiro, como das autoridades interessadas no caso. Para
muitos, era graças à indiferença das autoridades higiênicas e policiais que se consentiam as
burlas e infrações às leis e às mais eficazes ordens. Desconhecemos o desenrolar da denúncia
feita pela promotoria pública, inclusive se foi instaurado o processo criminal na justiça.
Contudo, as informações veiculadas na imprensa baiana, às quais tivemos acesso, sinalizam
quanto a um trânsito e um desempenho de ações de modo ininterrupto pelo curandeiro.
Naquele curto interstício de tempo – julho a outubro – o Professor Faustino já teria viajado
“pelo centro do Estado e estabeleceu a sua tenda milagrosa em PeriPeri, em Alagoinhas e
finalmente na vila do Catú”.310 Daqueles locais, publicava-se a relação das curas realizadas,
chamando mais atenção ainda. Assim, conforme noticiou o Correio do Brasil em manchete
crítica e apelativa, intitulada “Perigo” em 16 de outubro de 1903, quando seu milagroso
gabinete estava fechado para descanso, o curandeiro apenas aguardava o momento de
aumentar “o gosto pelo sobrenatural e [...] os instintos supersticiosos das nossas populações

309
CEAO. Jornal Correio do Brasil. Salvador, 14 de outubro de 1903. Nº XX. p. 1.
310
CEAO. Jornal Correio do Brasil. Salvador, 14 de outubro de 1903. Nº XX. p. 1.
132

do interior”. Acrescentava-se ainda que “todas essas criminosas excursões medicas continuam
a ser feitas e com a mais completa publicidade, descrito o itinerário, exposto à leitura em
gazetas os projeto de viagem e os lugares que serão visitados”311.
Não conseguimos, no entanto encontrar vestígios do impacto da chegada de Faustino
Ribeiro em Nazareth. Entretanto, além da certeza da sua convocação em ir aquela cidade
prestar “os auxílios providenciais do vosso meio de curar”, temos evidências de que ele foi à
cidade, assim como realizou uma longa expedição no interior da Bahia, sendo severamente
criticado pelos membros da FAMEB, entre os quais o professor de medicina legal Dr. Nina
Rodrigues, e demais autoridades que não conseguiram detê-lo. De uma forma ou de outra, as
razões pelas quais as cento e sessenta e duas pessoas, entre comerciantes e demais classes
sociais que constituíam a população nazarena, convocaram o Professor Faustino Ribeiro a ir
àquela cidade, eram as mesmas razões que afligiam a população soteropolitana e de todos os
locais onde o curandeiro passava: a cura de uma quantidade significativa de enfermos em sua
maioria das classes populares.
Isso significa pressupor, de imediato, partindo do pressuposto que essas pessoas
tinham ao menos acesso à saúde, um quadro de insuficiência do número de profissionais ou
de ineficiência dos métodos empregados pela medicina oficial que autoritariamente pretendia
submeter a chamada “prática de cura alternativa”312. De todo modo, a fé que se tinha nas
santas mãos faustinianas certamente advinha de uma crença presente também no imaginário
daquela cidade, sustentada ironicamente na imprensa soteropolitana, pela ideia de que “cada
um aceita a medicina a seu talante, e onde falham as drogas, muitas vezes vencem as
ervas”313. A diferença a esse caso era que, conforme já tinha conhecimento muitos nazarenos,
Faustino Ribeiro não obedecia aos princípios da terapêutica, e seu poder transpunha os limites
do natural.
No que tange aos procedimentos empregados pelo curandeiro, segundo o relatório da
Inspetoria Geral de Hygiene, produzido pelo ajudante sanitário, Dr. Candido Elpidio de Souza
Figueiredo, e encaminhado em 08 de agosto de 1903 pelo Dr. Antonio Pacifico Pereira ao
Secretário do Interior e Justiça, quando chamado para apresentar o titulo de habilitação para
exercício da medicina na Bahia, Faustino Ribeiro fez a seguinte declaração:

311
CEAO. Jornal Correio do Brasil. Salvador, 16 de outubro de 1903. Nº XX. p. 2.
312
Refere-se “ao campo geral das diversas práticas curativas que são proibidas e perseguidas tanto pelo olhar
técnico e científico da medicina acadêmica, quanto pelo olhar do aparelho judicial e policial”. Cf.: SANTOS,
Denílson Lessa. Nas encruzilhadas da cura: crenças, saberes e diferentes práticas curativas – Santo Antônio de
Jesus- Recôncavo Sul – Bahia (1940-1980). Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal da Bahia. Salvador. Salvador, 2004.
313
CEAO. Jornal A Baía. Salvador, 19 de outubro de 1903. Ano VIII. Nº 2343. p. 1.
133

Por escrito e depois verbalmente que cura por uma influencia que o
povo experimenta e affirma, e que ele mesmo ignora, suppondo em
sua crença que trata-se de um phenomeno propriamente theosophico,
isto é, de uma manifestação de nosso Supremo Pae de infinito amor e
misericórdia.314

Seus críticos chamavam essa técnica de “charlatanismo terapêutico”, e acrescentando,


segundo o mesmo relatório acima, um método curativo “que nas sociedades semi-barbaras era
o privilegio dos thaumaturgos e feiticeiros”. Para aquelas autoridades médicas que falavam
em nome do estado, os alvos principais dessa mistura de técnica e magia que explorava a
credulidade publica era a “massa ignorante e crédula que constitue a grande maioria da
população, e, especialmente, sobre o espírito dos decadentes ou abatidos pelo sofrimento ou
pela moléstia”315. Eles acreditavam que tais pessoas estavam tão fadadas ao fanatismo e à
ignorância religiosa, ao acreditar no poder da cura pelas imposições das mãos do curandeiro,
que preferiam esse método por, inclusive, não “suportar a picada da agulha para a medicação
hipodérmica, ou o gosto salino e aborrecido dos iodetos” 316 . O discurso das autoridades
médicas, sanitárias, judiciais, policiais e da imprensa era de depreciação dos agentes
terapêuticos empregados por Faustino Ribeiro e, por extensão, seus fieis clientes, com a
perspectiva de validar a medicina oficial no país como instrumento de superar a barbárie e
elevar-se a posição de sociedade moderna e civilizada.317 Para tanto, os documentos falavam
claramente do caráter interventor e estratégico da medicina como campo imprescindível de
atuação da higiene social. O relatório da Inspetoria Geral de Hygiene da Bahia destacou que:

A tolerância deste abuso no estado actual da nossa civilisação seria um


retrocesso ás épocas de magia e feitiçaria do período mystico ou
theologico, em que os phenomenos extraordinários se esplicavam pela
intervenção de personagens sobre naturaes, de essência divina ou
diabólica, e cujos effeitos a historia registra com horror nessas
nevroses epidêmicas que flagellaram os povos da edade media e que
felizmente os progressos da civilisação e da hygiene social varreram

314
Inspetoria Geral de Hygiene da Bahia (IGHB). Relatório “Faustino Ribeiro Junior”. 8 de agosto de 1903.
apud FMB. Gazeta Médica da Bahia. Salvador. Vol. XXXV. Número 5. Novembro de 1903. p. 194.
315
IGHB. Relatório “Faustino Ribeiro Junior”. 8 de agosto de 1903. apud FMB. Gazeta Médica da Bahia.
Salvador. Vol. XXXV. Número 5. Novembro de 1903. p. 195.
316
CEAO. Jornal Correio do Brasil. Salvador, 16 de outubro de 1903. Nº XX. p. 2.
317
Analisando a perseguição das autoridades republicanas no pós-abolição no Recôncavo que se estabeleceu
com a religiosidade afro-brasileira e as diferentes práticas de cura, Edmar Ferreira Santos concluiu que: “No
estágio de civilização em que se presumiam estar, a única medicina admitida era dos doutores. Esta era apoiada
pela lei e por setores da imprensa que a julgava científica e tentavam estabelecê-la como a única possível.” Cf.:
SANTOS, Edmar Ferreira. O poder dos candomblés... p. 84.
134

dos paizes cultos, impedindo que em seu solo revivam e evoluam os


germens da superstição e do fanatismo.318

De uma forma ou de outra, conforme já sugerimos, a continuidade do trabalho do


curandeiro na capital e os sucessivos chamados a visitar diversas cidades no interior da Bahia
indicam que tal pensamento não era homogêneo, muito menos representava o imaginário da
totalidade dos membros dos grupos mais “ilustrados” da sociedade. Foi assim que em tom
desafiador o jornal A Baía lançou a seguinte questão à sociedade: “Por ventura serão
ignorantes e crédulos os médicos, os advogados, os engenheiros, os lentes das faculdades
superiores, as famílias distintas que tem freqüentado o gabinete do professor Faustino?!”319.
Tal questionamento, feito lá em 1903, no seio da relação conflituosa que envolveu a
passagem do Professor Faustino Ribeiro Junior na Bahia, é sintomática da reação controversa
que teve parte da população baiana ante a presença do curandeiro. Como representante
também do direito positivo e da ideia patológica dos fenômenos sociais como inerentes a
determinados grupos, Nina Rodrigues se posicionou no caso de Faustino Ribeiro evocando
uma sentença do Supremo Tribunal Federal como iluminado instrumento jurídico que estava
contribuindo para que os tribunais estaduais agissem de forma rígida com os cidadãos que
tentassem exercer ilegalmente a medicina, se amparando no texto constitucional que
garantiam a “liberdade profissional”320.
Enquanto a imprensa e setores ligados ao discurso científico o atacavam, partindo para
uma visão eugenista, tratando como uma questão biológica e criminal, seu prestigio só
aumentava junto às pessoas que passavam por suas mãos. Logo, o questionamento do jornal
atestaria a inaplicabilidade ou mesmo a exceção à regra do discurso médico-higienista
presente na mente da intelectualidade brasileira dos fins do século XIX, de que a
“degeneração da raça” e os “hábitos fetichistas” eram elementos constitutivos do cotidiano
das ditas classes “inferiores”, “corrompidas” e “perigosas”321. Se assim fosse, aquelas figuras,
inclusive o Governador do Estado, compartilhavam dos mesmos hábitos e manchavam o
“processo civilizatório”.

318
IGHB. Relatório “Faustino Ribeiro Junior”. 8 de agosto de 1903. apud FMB.Gazeta Médica da Bahia.
Salvador. Vol. XXXV. Número 5. Novembro de 1903. p. 196.
319
CEAO. Jornal A Baía. Salvador, 17 de agosto de 1903. Ano VIII. Nº 2292. p. 2.
320
IGHB. Informação sobre a petição de Habeas Corpus do Professor Faustino Ribeiro Junior. 21 de agosto de
1903. apud FMB.Gazeta Médica da Bahia. Salvador. Vol. XXXV. Número 5. Novembro de 1903. p. 209.
321
O médico e professor da cadeira de higiene medicina legal da FAMEB, Dr. Raimundo Nina Rodrigues, foi
um dos intelectuais do período que se dedicaram a estudar etnograficamente a população afro-baiana, chegando
a concluir sobre o seu grau de inferioridade. Influenciado por um positivismo cientificista, insistia na
“persistência do fetichismo” e da degeneração dos negros ou seus mestiços. Ver: RODRIGUES, Raimundo Nina.
O Animismo Fetichista dos Negros Baianos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1935.
135

De qualquer forma, o papel assumido por boa parte da imprensa baiana, de divulgar
documentos, trâmites e movimentações ligadas a ações que colocassem em cheque a
exclusividade da medicina dos doutores, escandalizando as práticas mágico-terapêuticas, tinha
a missão subliminar de afastar o povo e assustar os ditos cidadãos de bem dos fenômenos
322
“vinculados à feitiçaria”, portanto, degeneradora dos costumes . Esse discurso
homogeneizador e desqualificador das diferentes práticas de cura, liderado pela Gazeta
Médica da Bahia, instrumento da Faculdade de Medicina, na sua importante missão
higienista, não foi capaz de deter a transgressora missão e figura do Professor Faustino
Ribeiro Júnior na Bahia, ainda que tenha conseguido influenciar editoriais e pautar a higiene
social como requisito de uma sociedade moderna e civilizada.
À luz destes episódios, consideramos que apesar da presença significativa de médicos
ocupando os cargos políticos da cidade de Nazareth – Intendentes e Conselheiros Municipais -
e a própria proibição do curandeirismo nas Posturas, mesmo afinada ao Código Penal, ser um
resultado também dos ideais propugnados pelas elites republicanas locais, que pretendiam
extinguir os costumes e tradições populares que não estavam em sintonia com o saber
científico, uma parte da população nazarena corajosamente ousou convidar um transgressor a
ferir também às normas locais.
O desconhecimento do papel exercido pelo curandeiro em Nazareth não impede de
caracterizar não só sua ação, mas, sobretudo a iniciativa dos munícipes em convidá-lo e sua
materialização como uma transgressão coletiva aos instrumentos jurídicos que reforçavam a
proibição daquela atividade no território local. Na documentação nazarena, não encontramos,
pois sua autuação de infração às Posturas municipais. Contudo, analisando as fontes relativas
ao poder municipal de Nazareth, da ultima década do século XIX às primeiras do século XX,
nos deparamos com dados significativos no que tange a aplicabilidade das leis, especialmente
ao aludido Código de Posturas, que fora reformulado no ano 1893, três anos após a edição do
Código Penal e dois anos após a promulgação da primeira Constituição Republicana.
Portanto, estamos falando exatamente de um período quando o novo modelo político-
administrativo se organizava. Trata-se, retomando e computando as já mencionadas no
decorrer dos capítulos anteriores, de um conjunto referente a 246 multas de infrações de
posturas, devidamente quitadas, espontânea ou forçadamente, por diversos sujeitos sociais;

322
Essa estratégia foi a mesma usada pelos jornais cachoeiranos no mesmo período pós-abolição para
deslegitimar, hierarquizar e “demonizar” os processos terapêuticos utilizados pelas mães e pais-de-santo.
Imputando criminalidade as ações de cura vinculadas às religiões afro-baianas, como destaca Edmar Ferreira
Santos, aqueles atores, “frequentemente, são apresentados nos jornais como irracionais e sádicos, seguindo os
moldes da retórica do fetiche.” Cf.: SANTOS, Edmar Ferreira. O poder dos candomblés... p. 85.
136

multas estas identificadas nos livros de receita da intendência municipal de 1893 a 1912, além
de 46 extratos de termos de multas deferidas e indeferidas pelo intendente em face de
contestações nos anos de 1893 e 1894, que não figuram no rol dos pagamentos
“espontâneos”323.
Portanto, com o quantitativo total de 290 multas324 de infrações de posturas, é possível
descortinar o que consideramos ser um repúdio de segmentos da população, expresso
principalmente no desrespeito às leis e na manutenção dos costumes que setores dominantes e
elitistas pretendiam expurgar, e que a modernidade que insistia em doutrinar, civilizando.
Diferentemente do caso do curandeiro Professor Faustino Ribeiro Junior ou Dr. Bota-mão,
que enquadramos como uma transgressão coletiva ao Código de Posturas, essas foram
individualizadas e identificadas nos livros de Registro de Requerimentos e de Receitas da
Intendência Municipal de Nazareth.
Evidente que o número tomado para análise não significou necessariamente a
totalidade das infrações cometidas às posturas no período em destaque, uma vez que, assim
como o caso da visita do curandeiro a Nazareth e além do conjunto documental ter se perdido
ao longo do tempo, existia uma falta de controle no gerenciamento das mesmas, como indica
os casos de pedidos de perdão indeferidos pelo intendente e que não constam no rol dos
pagamentos feitos a tesouraria do município, cujos valores já eram estimados no orçamento
do município e tinha local especifico no livro de receita da intendência. De todo modo, por ser
uma cidade pequena, apesar de estar em crescimento no período, a recorrência e reincidência
das infrações de posturas é um dado de que as sanções por descumprimento das normas não
ajudavam e nem conduziam a população a mudar seu comportamento. Pelo contrario, revela a
astúcia do poder público em provocar as contravenções.

323
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900 e Livro de Receita da
Intendência Municipal de Nazareth (1893-1902) (1902-1912).
324
Contabilizamos o número de 290 multas, pois como se trata de dois documentos distintos, quais sejam, o de
“pagamento de infração de posturas” e “requerimentos”, o primeiro é um filtro apenas dos pagamentos feitos
espontaneamente ou decorrente de duras sanções do poder municipal. Logo, os indivíduos que requeriam os
“perdões de multas” ao serem dispensados não pagariam a multa, logo não constaria no livro de “pagamento”.
Isso, entretanto não exclui a existência da sua infração. Esse fato ocorreu com oito casos dos 46 pleiteantes,
foram dispensados. Contudo, nem todos que tinham o pedido indeferido e eram obrigados a pagar Às multas
quitavam o débito, pois apenas dois infratores no universo de 37, efetuaram o pagamento. Se todos 37 tivessem
pago, já estariam contabilizados no documento do “pagamento de infração de posturas”, mas como tratou-se
apenas de 2 casos, fizemos a exclusão destes, pelo fato de já terem sido contemplados no documento distinto.
Entre os 46 pleiteantes, não conseguimos identificar o julgamento do pedido de uma infratora, tampouco
pagamento dela no outro documento. Portanto, os 246 casos de “pagamento de infração de posturas” já
contempla os dois casos dos 45 pleiteantes de “perdão”. Assim chegamos aos 290 casos. APMN. Livro de
Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900 e Livro de Receita da Intendência Municipal
de Nazareth (1893-1902) (1902-1912).
137

Cabe destacar, portanto, conforme já discutimos no capítulo anterior, que o


recrudescimento da legislação, provocado após a promulgação do Código Penal de 1890, no
qual o novo Código de Posturas de 1893 se fundamentou, além de afetar gradativamente a
situação de uma parcela da população, garantiu o que podemos chamar de “aspecto
relacional” entre o Intendente, a Câmara e a população, pois, como a mudança da legislação
orientou-se para a autuação dos infratores e a consequente intimação do pagamento das
multas por descumprimento, muitos destes não se furtaram em recorrer ao intendente e à
câmara para evitar o pagamento de dividas. Como estratégias de negociação, estas variavam
comumente entre queixas e recursos questionando ou pedindo “a graça” de ser dispensados da
multa, imediatamente após a autuação do fiscal ou quando decorria o prazo e os mesmos eram
intimados a quitar as multas. Quando as formas de negociação não tinham sucesso, muitos
infratores também se arvoravam em não pagar as multas, necessitando doravante da
intervenção do Juiz de Paz como veremos adiante.
Contudo, ao observar que aquele Código, especialmente no capitulo 1, observamos
que o fiscal municipal detinha a autonomia e a competência de “lavrar o auto de infracção
devendo ser até assignado pelo fiscal e duas testemunhas dentro da vista e remetido dentro de
24 horas ao intendente municipal”325. Por isso, presumimos que a interferência do intendente
em validar a autoridade do fiscal, em certos casos, só era necessária quando as multas já
chegavam ao Paço Municipal “contestadas”, ou melhor, sob o questionamento ainda que
informal dos infratores, numa espécie de bate-boca entre o fiscal e o suposto infrator.
Acreditamos que isso se deu mais precisamente naqueles 45 casos identificados nos extratos
de decisões de termos de multas, dos quais o intendente julgou.
Muito embora não tenhamos conseguido encontrar os autos de infrações das posturas
municipais, espécie de livro de bordo dos fiscais, e o teor dos tais requerimentos enviados ao
intendente que poderiam revelar ainda mais sobre o cotidiano e os conflitos existentes na
cidade em torno do cumprimento da lei, bem como processos criminais, cíveis e documentos
policiais alusivos às cobranças e enquadramento da população, é através do entrecruzamento
dos variados livros do poder municipal que embasamos as histórias e análises aqui feitas. O
entrecruzamento de dados, nomes e valores presentes nas leis, receitas, extrato de
requerimentos e decisões, comunicações, notificações, editais e ofícios permitiram visualizar
que as transformações ocorridas no final do século XIX e inicio do XX não se resumiram a

325
APMN. Código de Posturas Municipal de 1893, artigo 11. Livro de Registro das Decisões, Resoluções e Leis
do Conselho Municipal de Nazareth, 1893-1915, p. 39v – 52v.
138

uma política de modernização e “operação da renovação urbana”326, sob a égide da ordem e


da legalidade e baseada no velho esquema de “manda quem pode e obedece quem tem juízo”.
Se o esquema válido deveria ser este, podemos afirmar que parte da população nazarena dava
vários indícios de múltiplas formas de resistência às regras, uma vez que um número
significativo de pessoas não se curvaram a tais propostas que recebiam o nome de
“modernização”, à revelia dos planos do poder público e dos grupos dominantes que violavam
muitas das práticas cotidianas e costumes seculares principalmente da gente pobre, a despeito
de trazer os supostos benefícios à população.

I. As ações dos fiscais: entre aplicação de multas e cobrança de impostos

Em 22 de maio de 1893 o intendente, Dr. Alexandre Freire Maia Bittencourt Sobrinho,


publicava o extrato dos indeferimentos das isenções de multas pleiteadas, entre as quais
figuravam os “contraventores” João da Matta Nazareth, Virginia Rosa de Andrade, Julio
Bramont e Rosária da Conceição, por infração do artigo 41 das posturas, cujo teor dizia
respeito às atividades do mercado ambulante de gêneros alimentícios da cidade327. Da mesma
forma, os “contraventores” avessos ao despacho do intendente deixaram de quitar de forma
administrativa os valores devidos ao município, conforme informam as fontes que dispomos –
fontes estas que identificam todos os pagamentos de infração de multas de posturas no
período compreendido entre 1893 a 1912 através dos livros de receitas. Contudo, os esforços
dos fiscais não poderiam ser em vão, por diversos motivos, dentre os quais elencamos dois:
primeiro, por uma função pedagógica e disciplinar; segundo pelo fato de que aqueles valores
acrescentariam de algum modo à receita do município. Por isso, algumas pessoas que
deixaram de pagar as multas foram submetidas a cobranças executivas, conforme indica o
registro documental seguinte expedido pelo Juiz de Paz do município em 17 de abril de 1893:

Diz o Conselho Municipal desta cidade que tendo sido infringido em


reincidência, o artigo 24 das suas posturas por Maria Francisca de S.
Pedro e Sousa, residente á rua da Fontinha desta cidade, como a prova
pelo auto junto, que offerese como parte integrante desta, quer fasela
citar com a copia authentica desta petição pª. satisfaser as multas em
que incorreo na importância de 32$000 por já ter negado a pagar
amigavelmente, para comparecer á 1ª audiência desse juízo, afim de

326
Este termo é empregado por Jaime Benchimol para o processo mais amplo vivenciado pelo Rio de Janeiro,
então capital da República. Ver: BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Haussman tropical. Rio de
Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes/Departamento Geral de Documentação e
Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1992. p. 317.
327
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 13 verso.
139

produzir as suas rasões de defesa, que tiver, sob pena de ser a sua
revelia, condennada em vista d’aquele auto e de acordo com o artº.
147 § 3 da lei nº. 45 de 15 de julho de 1892. Nestes termos pede que
vos digneis mandar intimar o supplicado com aquela comunicação
para a 1ª audiência, citadas também as testemunhas do auto,
ordenando-se as diligencias que forem necessárias para a condennação
da supplicada na pena em que se acha incursa e nas custas. N. B.
Mutatis mutandis contra Theodoro Antonio dos Santos pela infração
do artº. 43 das posturas; Lucio Gomes pelo artº. 46 das mesmas;
Francisco Arenere pela infração do artº. 21 das mesmas.328

A infração cometida, sua reincidência, a recusa de pagamento amigável da multa e a


consequente cobrança executiva através da intervenção do Juiz de Paz são indícios de como
as transgressões eram corriqueiras, bem como da determinação das autoridades para punir os
infratores. Tomando como base as transgressões às disposições estabelecidas no código de
posturas, pode-se perceber a dificuldade de transformar, através de iniciativas de controle
social, os comportamentos e práticas cotidianas dos munícipes que estavam inseridas na
dinâmica sociocultural da cidade.
Maria Francisca havia infringido a proibição de “correr em animaes desenfreados ou a
galope”. O ato transgressor cometido por reincidência talvez representasse uma prática
corriqueira, já incorporada à cultura da cidade e, especialmente, na rotina da infratora. Parece-
nos que esse hábito era bastante comum aos meios amalgamados entre o urbano e o rural,
como é o caso de Nazareth. Além disso, embora fosse proibido pela municipalidade, alvo de
rígidas fiscalizações, o ato da infratora pode ter sido uma iniciativa economicamente
necessária à sua sobrevivência, tendo em vista que no século XIX os cavalos e burros eram
indispensáveis para trabalhar ou para se locomover, no ofício ou no lazer329. A reincidência da
ação e a resistência ao pagamento da multa podem sugerir uma possível dificuldade da
praticante em entender que estava praticando algo considerado ilícito e/ou censurado aos
olhos da municipalidade, questionando assim a sua proibição. Ou ainda é possível que o valor
da penalidade sofrida excedesse os limites da sua condição econômica.
Cabe observar que, além de Maria Francisca, figuram naquela ação executiva
promovida pelo Juiz de Paz do município, os infratores Theodoro Antonio dos Santos que
havia sido autuado pelo agente fiscal naquela expedição do dia 07 de fevereiro que tratamos
no 1º capítulo, além de Lucio Gomes e Francisco Arenere, ambos em outra ocasião, da qual
não cumpriram com a obrigação e foram intimados em juízo a efetuar o pagamento. Como
relatado pelo Juiz de Paz, muitos se negavam a pagar as multas amigavelmente, razão pela

328
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 11 e verso.
329
MATTOSO, Káthia M. de Queiroz. Bahia, século XIX... p. 59.
140

qual a cobrança executiva era feita. Presumimos que, para chegar neste estágio, devem ter
sido tentadas muitas formas de negociação, marcadas por diversos conflitos entre os
devedores e a municipalidade. Ambos estavam baseados em “direitos”, seja no de cobrar
legalmente ou de resistir costumeiramente.
A propósito, daqueles quatro devedores, apenas Theodoro Antonio dos Santos efetuou
o pagamento finalmente, no dia 23 de maio de 1893. Dispensando a quantia de 6$000, ele pôs
fim à querela que se estendia, e que talvez teria ocupado, inclusive, os tímidos canteiros de
jornais destinados à publicização de tais questões. Entretanto, o não pagamento das demais
pessoas ou a ausência de dados que comprovem a quitação do débito levantam alguns
questionamentos como: teriam eles conseguido o perdão da dívida, ou foram presos como
medida alternativa às multas pecuniárias? Apesar de acreditar que a primeira possibilidade
não tenha acontecido, devido ao grau que se tomou o caso, seria complicado também pensar
na segunda possibilidade, pois em 20 de abril de 1900, o tal Francisco Arenere, revelado
como mascate 330 , aparece novamente no rol dos infratores em função da transgressão ao
artigo 107 das posturas, que obrigava o uso das medidas segundo o sistema métrico decimal
nas vendas e compras, lhe custando o valor de 10$000 331 . De qualquer modo, apesar do
desconhecimento do fim do caso e questão, fica flagrante a dificuldade em fazer valer aquela
lei no cotidiano dos munícipes que, de uma forma ou de outra, infringiam as normas,
descumpriam a legislação e resistiam em pagar as multas que eram taxadas. Tendo em vista
essa dificuldade, um dado importante que merece ser debatido e que certamente implicou no
registro das multas e sua execução é referente ao número de fiscais e suas condições de
trabalhos.
Apesar de existir um esforço do poder público nazareno em fixar, especialmente no
cais do porto fluvial daquela cidade, um número suficiente de fiscais que garantissem o
recolhimento dos impostos municipais, principalmente o de embarque e desembarque, cujas
rendas incrementavam os orçamentos anuais, poucos eram os agentes responsáveis pelas
múltiplas tarefas que exigiam o cumprimento das posturas. Notamos que em 1893, por ato do
intendente, foram nomeados os seguintes cidadãos para exercerem os cargos de Fiscais
Municipais e Guardas Fiscais: José Escholástico Ramos, João Damasceno de Almeida, Aleixo
Francisco de Carvalho, Manoel Rodrigues Cardoso, Francisco Pires Valença, Manoel Bento
Fernandes, Alpiniano Paulo Gomes, Cicero Nunes de Araujo Barata e Misael Annanias dos

330
Mascates foi o nome dado no Brasil aos mercadores ambulantes e vendedores de "porta a porta", também
chamados de “turcos da prestação”.
331
APMN. Livro de Receita da Intendência Municipal de Nazareth (1893-1902) p. 218.
141

Santos. Contudo, o que nos chamou bastante atenção foi a distribuição daqueles empregados
municipais diante organização administrativa em forma de distritos. Embora em 1893,
Nazareth já tivesse diminuído sua extensão territorial com a emancipação das Vilas de Santo
Antonio de Jesus e Arathuype, conforme vimos no 1º capítulo, o município ainda possuía sob
o seu controle, sobretudo fiscal, diversas povoações, como as localidades do Pastinho,
Barrocão, Prategipe, Caboto, Tijuca, Copioba, Ilhas do Dendê, Araçá, Rio Fundo, Onha,
Taytinga, além dos bairros suburbanos que cresciam a cidade. Interessou-nos mais ainda a
portaria baixada em 14 de fevereiro de 1893 designando Misael Ananias dos Santos para
responder pela fiscalização e recolhimento dos impostos e tributos do 1º distrito que
compreendia da localidade da Tijuca, área rural, até o Comércio, núcleo urbano, um giro de
aproximadamente 20 km. José Escholástico Ramos, por sua vez, responsável pelo 2º distrito,
estava responsável pela área da Rua das Pedras, até as povoações do Onha, Rio Fundo, Cocão
e Taytinga, extensão ainda maior 332 . Eram, portanto, apenas aqueles nove agentes, os
responsáveis também pela fiscalização do asseio e iluminação da cidade e as tantas outras
questões fiscais e de ordem pública municipal. Acumulando tais atividades, quase sempre
sozinhos, aqueles empregados municipais, ao passo em que se desdobravam no cumprimento
dos seus ofícios, flagravam um dos evidentes problemas: a falta de pessoal para responder
suficientemente as necessidades legais do município. Essa situação, por sua vez, acabava
agenciando alguns conflitos, negociações, vistas grossas e uma relativa desorganização
administrativa.
Não por acaso, ainda em 1893 o intendente municipal, se valendo, talvez daquela
situação problemática, mas, sobretudo pela atribuição do Conselho Municipal em matricular
as embarcações que chegavam no cais, oficiou o capataz do porto nos seguintes termos:

Tendo o Conselho Municipal desta cidade de proceder á matricula dos


barcos, lanchas, saveiros e canoas que fazem o serviço de cabotagem
deste porto, a fim de cobrar o imposto relativo á tonelagem de cada
um delles, vou vos solicitar digneis ministrar a esta Intendencia uma
relação de todos pelo número, toneladas, nomes e proprietários com
que se acham matriculados na capitania dos portos, de acordo com o
modelo junto. Será mais um serviço prestado aos interesses do
município.333

O presente ofício nos leva a perceber uma preocupação em garantir o efetivo controle
da região portuária, especialmente no que diz respeito ao recolhimento de impostos relativos

332
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 5.
333
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 15.
142

ao atracamento de embarcações no cais do município. O pedido do intendente pressupõe


ainda a iniciativa tática da autoridade em facilitar a ação dos fiscais e empregados públicos,
num contexto em que foram empreendidas naquele cais diversas estratégias e modos de
contestação à cobrança dos impostos de embarque e desembarque, que avolumavam as
receitas municipais. A propósito, estamos nos referindo ao cumprimento de mais uma lei,
rechaçada pela população local e circunvizinha, que foi questionada inclusive pelo Senado
Estadual, motivo pelo qual o Conselho Municipal em 27 de Abril de 1896 deliberou o
seguinte.

Tornando-se preciso um protesto solene contra o projeto em discussão


no senado estadual, que veda o imposto de embarque e desembarque,
que este município cobra sobre os gêneros em trânsito imediato, vem
solicitar, na forma da lei orgânica municipal, que convoqueis uma
sessão ordinária do Conselho Municipal para se formular uma
representação à Assembleia Geral.334

Conforme indicamos, muitos protestos, diferentes do “solene” arquitetado pela


articulação dos Conselheiros e Intendente Municipal de Nazareth, já eram feitos. Em 25 de
agosto de 1890, por exemplo, o Pequeno Jornal publicou o apelo de “muitos negociantes” de
Santo Antonio de Jesus, assim subscritos, que pretendiam chamar a atenção do governo
acerca da “alta sabedoria” das autoridades nazarenas insistentes em taxar as mercadorias
provenientes de outras localidades.

[...] A Intendência da cidade de Nazareth em sua alta sabedoria


entendeu que devia crear difficuldades em nosso pequeno commercio,
e creou uma espécie de alfândega sobre o caes de suas águas e lançou
impostos em nossas mercadorias. [...] Se nos rebellamos contra o
imposto, vemo-nos ameaçados de serem presas nossas mercadorias; se
devem continuar a pagar eis a dúvida, segundo vemos na nossa futura
constituição que desobriga as mercadorias do imposto em tranzito –
entre os estados federados, e não sabemos comprehender qual a razão
da intendência da cidade de Nazareth nos querer tanto mal. [...] Nos
tempos que já se foram existia alguma garantia a propriedade
particular, hoje, porém, na epocha das igualdades e integridades é que
335
vemos nossos direitos a mercê de quem de mais força dispõe.

A propósito, segundo o orçamento municipal de 1890, a Intendência de Nazareth


cobrava o valor de 40 reis por volumes de 10 a 75 kg, 100 reis de 76 a 200 kg, 200 reis de 201

334
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 29 verso.
335
FBN. Jornal Pequeno Jornal. Salvador 27 de Agosto de 1890. p. 2.
143

a 350 kg e 500 reis a partir de 351 kg, bem como 500 reis por caixão ou fardo de fazendas,
100 reis por fardo de fumo e 200 reis por rolo de fumo336.
Não obstante a denúncia dos negociantes de Santo Antonio de Jesus, que se estendeu
por um bom período, a convocação da sessão e formulação da representação, solicitada pelo
Intendente, permite afirmar que a Câmara Municipal se empenhou em validar uma decisão
que era sua, da cobrança do imposto. A ação significava, sobretudo, a manutenção da sua
autoridade ante as tentativas de burla e aos diversos questionamentos dos negociantes das
cidades vizinhas que chegaram a ecoar no Senado Estadual. Deste modo, as ações
empreendidas pela Câmara, por sua vez, demarcaram a garantia do exercício do poder no seu
campo tradicional de atuação, qual seja, a regulação das atividades econômicas e cotidianas
locais.337 Assim, da mesma forma em que o Senado Estadual em seus questionamentos estaria
causando intensos debates nos espaços de poder local sobre a legalidade daquele imposto que
era cobrado pelos fiscais, enquanto prepostos do município, recorrentemente chegavam ao
Conselho e à Intendência Municipal diversas reclamações dos donos de embarcações,
proprietários de depósitos, armazéns, quitandas, molhados e negociantes também de Nazareth,
em face da cobrança daqueles mesmos tributos, através dos quais as autoridades buscavam
amenizar as embaraçosas situações. Prova disso foi a portaria baixada ao comissário
municipal em abril de 1893 pelo intendente municipal.

A vista da reclamação que vai inclusa e que devolvereis, chamo a


vossa atenção para a fiel cobrança do imposto de embarque e
desembarque de acordo com a tabela do §1º da lei do orçamento
municipal, devendo serem attendidas as reclamações dos contribuintes
quando forem justas e baseadas na dita lei, a fim de evitar-se, quanto
possível, reclamação contra a regularidade do serviço que estais
encarregado e censuras a administração municipal: o que espero que
cumprireis.338

É possível perceber através da portaria que as reclamações, além de fazerem parte do


cotidiano daqueles que estavam envolvidos nas atividades portuárias, causavam divergências
e complicações entre os agentes e autoridades fiscais, tanto pelo seu recorrente volume como
pelo embasamento legal. Aquela portaria pedia “atenção para a fiel cobrança do imposto”,
evitando a sua interrupção, pois enquanto algumas reclamações poderiam ser justas e
baseadas na lei, outras não tinham fundamento e não poderiam prejudicar a continuidade do

336
FBN. Jornal Pequeno Jornal. Salvador 27 de Agosto de 1890. p. 2.
337
Sobre o campo de disputas e legitimação do poder da Câmara Municipal, ver: SOUZA, Juliana Teixeira. Dos
usos da lei por trabalhadores e pequenos comerciantes...
338
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 11.
144

serviço. Eis mais uma estratégia dos contribuintes: além de denunciar às autoridades estaduais
e às páginas dos jornais, a de protelar o pagamento, aventurando isenções e perdões, mesmo
quando não tinham direito “nenhum” segundo a lei que regulava, inchando a Câmara com um
volume extenso de reclamações. Sem dúvida, táticas como essas revoltavam alguns fiscais e
titulares das agências de arrecadação, posto que esses recebiam uma espécie de comissão de
10% sobre todos os impostos, taxas e tributos recebidos339.
Conforme já sugerimos, os conflitos entre os fiscais, no ofício da fiscalização e
aplicação da lei, e a população não eram poucos, sobretudo quando se tratava das imediações
do porto municipal, naquele centro comercial. Em vista da limitação de pessoal suficiente
para garantir o recolhimento dos impostos, os negociantes mais espertos chegavam até a
desafiar o poder dos empregados públicos no exercício dos seus papeis. Tal situação se
agravou com o conflito envolvendo o negociante e proprietário da casa de molhados de 1ª
classe situada na Praça do Porto, José Bonifácio da Silva Pitanga, que em 20 de junho de
1893 se recusou de pagar ao comissário municipal o imposto devido às mercadorias que havia
embarcado e desembarcado naquele porto 340 . Em vista do conflito inicial e da recusa
incessante do devedor em quitar o débito com a municipalidade, por motivos que por ora
desconhecemos, mas que aparentemente não tinham legitimidade junto às autoridades fiscais,
o intendente municipal expediu um ofício remetido por um empregado designado
exclusivamente com o devido fim de recolher o valor de 20$190 reis e fazer valer a lei dos
impostos de embarque e desembarque341.
De outro lado, havia ainda aqueles negociantes que temendo a ação dos fiscais do
município através da aplicação de multas, buscavam agir na conformidade das leis,
negociando-as ao mesmo tempo. Em 30 de julho de 1894, o negociante, José Nepomoceno de
Miranda, comunicava as autoridades municipais a impossibilidade de embarcar, no prazo que
determinava a lei, as 58 toras de madeira que se encontravam no cais, por conta da
precariedade em que se encontrava a sua embarcação. Com este comunicado, o negociante
estrategicamente requeria a licença por dever, ao passo em que negociava um prazo mais
extenso que o permitido até providenciar um meio de retirar os produtos daquele lugar342.
Concedida a licença por direito, através da negociação, o suplicante não foi incorrido em
multa por estacionar mercadoria em lugar indevido por prazo além do permitido, conforme
estabelecia o artigo 46 das posturas municipais.

339
APMN. Livro de Registro das Decisões, Resoluções e Leis do Conselho Municipal, 1893-1915.p. 12.
340
APMN. Livro de Lançamento de Impostos, Industrias e Profissões de Nazareth, 1894-1921.
341
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 17.
342
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 34.
145

Essas ações permitem perceber que os mesmos espaços em que se processavam


aparentes e extensos conflitos também eram palcos de negociações, onde muitos
trabalhadores conseguiram driblar de alguma forma os mecanismos disciplinares da cidade,
atuando estrategicamente. A iniciativa de negociar a permanência das madeiras no cais do
porto por um período maior que o permitido talvez tenha sido resultado de experiências
conflituosas anteriores, uma vez que, por portaria do intendente municipal em 10 de março de
1893, o fiscal do 1º distrito estava incumbido de notificar todos os donos de madeira, cujos
volumes estavam depositados naquele espaço, causando transtorno ao trânsito publico e a
estética urbana, especialmente para quem transitava e aportava na cidade343.
Enquanto alguns fiscais não eram respeitados no Porto e nas imediações do comércio
formal e ambulante do município, inclusive por conta da ausência de um corpo policial que os
auxiliassem nas extensas e conflituosas jornadas, outros e talvez os mesmos não mediam
esforços em descumprir internamente a autoridade dos colegas e chefes imediatos. Os casos
de descumprimento das atividades designadas ou mesmo de atraso delas por parte dos
empregados municipais surpreendem pela recorrência, mas, sobretudo, pelas punições
sofridas em determinação das autoridades competentes, que, usando seu poder discricionário,
exerciam efetivo controle do gerenciamento da máquina pública, ultrapassando às vezes os
limites da sua competência344.
Nos festejos juninos de 1893, mais precisamente em 21 de junho, dia no qual o
destacamento da polícia foi requisitado a disponibilizar alguns dos seus homens para auxiliar
os fiscais municipais no cumprimento das posturas que proibiam o uso de “fogo solto ou tiros
de roqueira345 nas ruas da cidade”,346 a secretaria da intendência denunciava o fiscal Francisco
Pires Valença, por não estar cumprindo com as ordens recebidas. Às ordens do intendente, o
referido empregado foi multado no valor de 10 mil reis.
Contudo, a documentação mostra que outras pequenas infrações também eram
empreendidas por outros funcionários, que astuciosamente recebiam punições
correspondentes. Em 17 de Junho de 1893, por exemplo, o intendente municipal expediu uma
portaria ao contador municipal comunicando que ficava multado em 5$000 o funcionário que
não fosse encontrado às 1h10min na secretaria para efetivo trabalho 347. Da mesma forma, os

343
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 9.
344
SACRAMENTO, Cleidivaldo de Almeida. Mundos do Trabalho no Recôncavo Sul... p. 111.
345
A Roqueira é uma manifestação cultural e religiosa de influência portuguesa. A roqueira era um tubo de
metal cheio de pólvora, preso em um toco de madeira e quando aceso provocava uma forte explosão e servia
para dar início às festividades, seria um equivalente dos morteiros de papelão usados hoje em dia.
346
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p 17.
347
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 16 verso.
146

agentes fiscais que trabalhavam em trânsito deveriam se apresentar cotidianamente ao posto


de arrecadação do porto municipal, “afim de assignarem ponto e receberem a escala de
serviço”, sendo o titular dessa agência o responsável por enviar no fim de cada mês as faltas
dos empregados a secretaria do Conselho Municipal348. Por negligência, foram enquadrados
nesta portaria os empregados Manoel Bento Fernandes e Aristeu Augusto Pires Valença, que
após suplicar o perdão da multa foram dispensados pelo intendente, sob a condição de ser
punido em dobro em caso de reincidência349.
Assim, é possível perceber que havia efetivos esforços do poder municipal, sobretudo
na figura do intendente, em garantir a observância e cumprimento dos decretos e posturas. A
documentação demonstra também que as tentativas de controle exercidas sobre a população
acabaram recaindo sobre os agentes fiscalizadores, que não estavam alheios às burlas e
infrações corriqueiras. Ou seja, foi através daquelas mesmas políticas de normatização do
conjunto populacional, das quais os empregados municipais atuavam como prepostos no dia-
a-dia da urbe multando e cobrando, que a máquina pública acabou sendo reconfigurada, e os
mesmos passaram a experimentar medidas análogas. Este dado permite, inclusive, pensar em
possíveis “vistas grossas”, negociações e acordos monetários extraoficiais entre alguns
empregados públicos e população infratora.
Destarte, embaraçosa documentação que flagra as infrações de posturas, as quais
veremos adiante a partir do próximo subcapítulo, é um indicativo dos limites colocados pelos
próprios fiscais em cumprir as suas funções. É possível pensar que alguns destes agentes
poderiam manter relações com a gente pobre da qual eles possivelmente também faziam
parte. De todo modo, a aparente impostura de quem deveria ser o exemplo da ordem, é um
comportamento bastante sugestivo que as relações sociais estabelecidas entre os fiscais e
infratores determinavam a aplicação das multas ou não. Portanto, o quantitativo de multas por
infrações de posturas que trazemos para análise nessa dissertação é apenas uma amostragem
face ao real número de ocorrências registradas ou não na cidade naquele período.
Retomando as dificuldades enfrentadas pelos agentes fiscais no dia-a-dia da urbe e as
ações empreendidas pela Câmara em fazê-los fiscalizar e penalizar acerca do cumprimento
das leis, especialmente as que se relacionavam e pautavam a cobrança e pagamento de
impostos, tributos e multas, observamos que a recorrência de tais situações, em dados
momentos, ocorria em função de um imaginário popular particular, cuja difusão entre aqueles
contemporâneos provocava alguns conflitos. Vejamos abaixo, através do extrato do ofício

348
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 10 verso.
349
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 17 verso.
147

resposta encaminhado pela Câmara Municipal da Cidade de Nazareth em 26 de Dezembro de


1889 ao arrematador de impostos municipais Sr. Antonio Pinto da Rocha Carvalho e ao
Intendente Cel. Viriato Freire Maia Bittencourt, uma agravante e peculiar situação.

[...] Em resposta ao vosso Officio relativo a opposição que estás


encontrando da parte dos contribuintes da renda municipal a
satisfazerem os impostos que por lei devem à municipalidade, vos
declaro, para conhecimento dos mesmos que se julgam porventura,
que o novo regime, á semelhança do que está procedendo com as
instituições políticas do governo deposto, traz a abolição das taxas de
impostos decretada no gozo destas instituições é pensar errado, pois
agora é que o fisco tem que ser cobrado legal e equitativamente [...]
Assim, esta Camara que como as demais entrou em um novo período
de autonomia, na gestão dos seus interesses econômicos e
administrativos, livres da pesada tutella das Assembleias, está no
firme propósito de fazer valer a sua acção administrativa,
especialmente no que diz respeito á percepção dos impostos
municipais que continuam e continuarão a valer na Republica. [...] Os
impostos constituem um principio econômico que as sociedades
civilisadas de commum acordo reconhecem como um direito legitimo
de qualquer governo quer geral, quer local, e que não podem
desaparecer da vida financeira de um povo só pelo simples fato de ter
este mudado de forma de governo. [...] para que cesse tão pernicioso
abuso, devendo serem chamados ao juízo competente aqueles que
negarem a cumprir com este dever de cidadão.350

Conforme já vimos no decorrer dos dois capítulos anteriores, os impostos municipais


incidiam sobre todas as atividades laborativas daqueles habitantes da cidade, seja os impostos
de indústrias e profissões ou mesmo as licenças para exercício das artes e ofícios mais
corriqueiros 351 . Estes impostos, além das multas por negligência às leis e infrações de
posturas produziam uma significativa receita no orçamento, os quais eram arrecadados pelos
referidos agentes fiscais de que estamos tratando, sendo depositados na contadoria do
município. Recebendo mensalmente o valor de 500$000 e 1:200$000, respectivamente, os
fiscais e os Guardas Fiscais, acrescendo-se ainda o valor de 2:000$000 referente às ajudas de
custo para a arrecadação dos impostos e tributos, tais funcionários públicos, nomeados a partir
de critérios da confiança do intendente, eram os responsáveis por garantir receitas que se
elevariam de 54:566$314 em 1893 para 99:996$000 em 1903352. Considerando a existência
de três fiscais e seis guardas em 1893, podemos calcular o valor de 10:700$000 e afirmar que

350
APMN. Livro de Registro de Ofícios e Comunicações da Câmara Municipal de Nazareth, 1877-1902, p. 82 e
82v. e Livro de Registro das Decisões, Resoluções e Leis do Conselho Municipal de Nazareth, 1893-1915.
351
Sobre o esquema de recolhimento de impostos neste período, ver: SAMPAIO, Consuelo Novais. Memória da
Fazenda da Bahia (1895-2005). Salvador: Casa Jorge Amado/Fundação Pedro Calmon. 2005. p. 21-22.
352
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 1-4.
148

as atividades imprescindíveis destes profissionais sugavam cerca de 20% do orçamento. Uma


despesa, afinal, necessária!
Herdeira de uma estrutura tributária do Império que foi prolongada até a década de 30
do século seguinte, a política fiscal da República brasileira, ao passo em que buscava
incorporar outras fontes tributáveis para ampliar a receita orçamentária dos municípios,
inclusive por conta da autonomia proposta pelo regime federativo, encontrava algumas
resistências da população em contribuir 353 . Como se observa na comunicação feita pela
Câmara Municipal, cujo precedente foi o pedido de socorro do arrematador de impostos, a
relativa dificuldade em cumprir uma medida já em curso, que era a cobrança de impostos,
denuncia as tensões vividas pelos fiscais municipais no seu exercício cotidiano.
Ainda que não tenhamos identificado tensões acaloradas em forma de motins e
sublevações contra as normas instituídas, a taxação e cobrança de tributos e impostos de
forma desregrada sobre a população já havia desencadeado diversos conflitos entre homens,
mulheres do campo e da cidade, inclusive as circunvizinhas, e o poder público nazareno. No
início de 1888, por exemplo, antes da abolição, a cobrança de um pedágio sobre a circulação
nas pontes do município causou um “grande desassossego entre a população”. O tributo que
não era cobrado de longa data, de modo que a população não estava habituada a pagar, por
conta da condição de pobreza de uma maioria e, sobretudo pela necessidade corriqueira do
trânsito entre as pontes daquela localidade cortada por um extenso rio e inúmeros afluentes.
Tais conflitos provocaram o uso “de meios violentos” contra a medida354. É evidente que
diversos são os fatores explicativos da postura da Câmara em reeditar aquele tributo, entre os
quais julgamos prevalecer a estratégia tributária ante a perda de territórios no fim do século
XIX. Entretanto, o referido conflito é importante de se destacar, pois traz à tona elementos de
como a população reagiu às políticas autoritárias, fiscais ou de conduta, em diferentes
momentos e modos, exatamente num momento em que a cidade passava por transformações.
Mais uma vez observamos como a Câmara Municipal empenhou-se em validar as suas
ações. O pedido de socorro do arrematador de impostos e o comprometimento do intendente

353
Durante o Império a principal fonte de renda publica era o comércio exterior, sobretudo o imposto de
importação. No final da monarquia, este imposto representava cerca de 50% da receita do governo. Com a
República, a situação pouco mudou. “Porem tendo em vista a adoção do regime federativo, era necessário dotar
os estados e municípios de receitas que lhe permitissem autonomia financeira”. Isso posto, foi designado
impostos para cada ente, de modo que os mesmos continuaram referindo-se ao comércio exterior e impostos
sobre propriedades, produção e transações. Na medida em que a maioria dos impostos eram abocanhados pelos
governo federal e estadual (importação, exportação, selos, propriedades e profissões), os municípios mesmo
autônomos, mantinham-se subordinados aos estados, vez que ficaram estes encarregados de fixar os impostos
municipais. Sobre essa questão, ver: VARSANO, Ricardo. A Evolução do Sistema Tributário Brasileiro ao
longo do Século: Anotações e Reflexões para Futuras Reformas. Rio de Janeiro, 1996. p. 2.
354
SOUZA, Edinélia Maria Oliveira. O Pós-Abolição na Bahia... p. 127.
149

em mediar aquela situação que supostamente figurava no imaginário popular – que a mudança
de regime aboliu as taxas e impostos – implicava por sua vez em um elemento que, como
temos visto, era o principal gargalo do município, a receita fiscal. O discurso produzido pelo
documento emite uma nítida caracterização de oposição entre os valores defendidos pela
população e pelo poder público. Tratava-se, na visão das autoridades, de uma briga entre o
atraso e o progresso, ou melhor, entre a barbárie e a civilização. De todo modo, tanto a ação
da população como a reação das autoridades indicam possibilidades de pensar como aquelas
taxas sobrecarregavam de despesas os proprietários e trabalhadores autônomos empobrecidos.
Talvez por isso a resistência em quitá-las, bem como as estratégias do poder instituído em
fazer valer suas determinações355.
Escrutinando o orçamento municipal de 1893, por exemplo, para armar barracas de
vendas de quitandas na Praça do Porto, onde se efetuavam as feiras semanais às quartas e aos
sábados, era necessário pagar uma licença de 10$000. Do mesmo modo a venda ambulante
em gamelas ou tabuleiros estacionados naquela área custava 5$000 a cada negociante,
excetuando-se ainda a licença de exercício “profissional” paga semestralmente. Nesse
aspecto, o livro de registro de matrículas e licenças computa para 1893 o número de 77 destes
trabalhadores “sazonais”, distribuídos entre ganhadores, ganhadeiras e vendedores em
gamela, dos quais 70% eram mulheres e 30% eram homens356. Dados relativamente comuns a
outras cidades da Bahia como Salvador, onde a maioria desses profissionais, diferentemente
dos proprietários do médio comércio estabelecido, eram de mulheres, sobretudo as de cor357.
Daquela maioria de trabalhadoras, nos deparamos com cinco ganhadeiras que compartilhavam
um peculiar nome. São elas: Felicidade Magalhães, Felicidade Nunes, Felicidade Torres,
Felicidade Lopes e Felicidade Rosa. Certamente essas mulheres vendedeiras de quitutes,
verduras e hortaliças eram distinguidas pelos fregueses através dos seus apelidos, ou mesmo
pela associação aos seus locais de morada e parentesco. Contraditoriamente aos seus nomes
oficiais, suas exaustivas atividades eram iniciadas quase sempre muito cedo nos quintais das
suas casas, seja na preparação ou colheita de alimentos, e quando expandidas ao longo do dia
com as relações comerciais, certamente não estampavam a tal felicidade, mesmo com a
habilidade e disposição que tinham em anunciar em tom alto os gêneros que negociavam358.

355
SACRAMENTO, Cleidivaldo de Almeida. Mundos do Trabalho no Recôncavo Sul... p. 188.
356
APMN. Livro de Licenças e Matriculas da Intendência de Nazareth, 1893-1901.
357
GRAHAM, Richard. Alimentar a cidade... p. 65.
358
Sobre o exercício das ganhadeiras, suas funções, hábitos e habilidades, ver: SOARES, Cecília Moreira. As
ganhadeiras: mulher e resistência negra em Salvador no século XIX. Afro-Ásia. 1996; p. 57-71.
150

Em março de 1894, O Regenerador anunciava os preços dos tradicionais gêneros


comercializados nas feiras, quais sejam: farinha, de 140 a 160rs o litro; milho, de 130 a 140rs
o litro; feijão, de 360 a 400rs o litro; carne verde e bacalhau, 800rs o quilo359. Se tomarmos
como base os referidos valores, ainda que os gêneros comercializados por aquelas mulheres e
homens pudessem ser outros, haveremos de concordar que para pagar aquelas tributos,
geralmente muito próximos dos valores afixados para as casas comerciais estabelecidas,
dependendo da classe a qual pertencia, aquela massa de trabalhadores em trânsito tinha que
formular diversas estratégias de sobrevivência. Certamente foi assim com uma daquelas
ganhadeiras. Felicidade Lopes, negra, que, mesmo sendo de idade avançada e mãe solteira,
constituiu família com o africano José Antonio Ovídio, e com aquela ocupação, apesar de
todos os conflitos e dificuldades, inseriu-se na sociedade pós-abolicionista e republicana,
acumulando um tímido patrimônio de “[...] duas moradas de casa tendo negocio em uma
dellas, sendo o mais em móveis”, herdado do marido 360 . Traços de trajetórias disponíveis
como estas, e outras que veremos adiante, especialmente a que reconstituímos na última parte
deste capítulo, longe de revelar indivíduos miseráveis ou afortunados, sugere a existência de
indivíduos que, sobrevivendo às contradições e perseguições, não se acomodaram e
imprimiram experiências individuais e coletivas naquele contexto de arrocho às classes
populares.
Evidente que o fato de pagar impostos não significa dizer que estes sujeitos eram
constrangidos ou excluídos do denominado processo de modernização que permeou o plano
histórico do período que discutimos nessa dissertação, uma vez que o tributo era cobrado para
todos os cidadãos, inclusive os pobres. Entretanto, conforme vimos no capitulo anterior,
enquanto a municipalidade concedia a isenção de todos os impostos para diversas fábricas
que, no contexto da expansão do capitalismo industrial, se organizassem ali como meio de
atração deste elemento modernizador, muitos eram os negociantes varejistas, feirantes,
trabalhadores autônomos do pequeno comércio que, disputando os "usos da cidade",
cotidianamente sofriam as incisivas e absurdas cobranças dos agentes fiscais, aplicando-lhes
multas, cobrando judicialmente tais impostos e revelando a face cruel do estado. Deste modo,
como fonte de renda dos cofres municipais, as cobranças, reduções, aumentos, pagamentos e
isenções de impostos, taxas e multas fizeram parte daquele cotidiano institucional e popular
“redefinindo os espaços de trabalho e tecendo o corpo social que formava as classes
trabalhadoras” de Nazareth, num incessante conflito, fruto de um modelo tributário que não se

359
FBN. Jornal O Regenerador. Nazareth, 17 de março de 1894. Ano XXXIII. Nº 8. p. 2.
360
SOUZA, Edinélia Maria Oliveira. O Pós-Abolição na Bahia... p. 59.
151

furtava em propiciar a concentração de renda e o acirramento das injustiças sociais, onde os


trabalhadores e os mais pobres eram os que mais contribuíam 361 . Portanto, uma injustiça
tributária que historicamente caracterizou o Brasil.
O fato é que entre o disciplinar, pedagógico e o punitivo, as ações dos fiscais, de agir
em nome do poder público das mais diversas formas, ao passo em que cumpriam
minimamente com suas obrigações enfrentando e disciplinando o que as autoridades e suas
leis viam como imposturas e vícios da cidade, se revelariam como essenciais para
compreender estas medidas que tinham antes de tudo um caráter reativo. São os fiscais –
guardas e agentes – que permeiam toda a trama histórica, entre a lei, as autoridades e a
população transgressora. Logo, só podemos saber quando, onde e porquê as regras foram
transgredidas a partir da identificação, seleção e registro que estes sujeitos históricos fizeram
a partir das atitudes consideradas fora da norma, tecidas no cotidiano em que vivenciaram e
com base nas leis que os ordenavam.

II. As regras e suas transgressões: artigos, sujeitos, espaços e categorias

Em 04 de janeiro de 1894, o intendente mandava publicar o seguinte termo: “Foram


approvados os termos de multa impostas a Julia, filha de Quitéria, no artº. 25. Antão Viana,
Manoel de Tal, Raphael de Tal, João Sampaio e Antonio Magalhães pelo artº. 10” 362 .
Conforme apontaremos mais a frente, a quantidade de extratos de decisões relativas a termos
de multas e requerimentos como este acima, apenas para os anos de 1893 e 1894 somaram 46,
das quais apenas oito foram improcedentes, tendo sido 37 aprovadas e um sem conclusão.
Inversamente, a aprovação da multa era o indeferimento do pedido e a reprovação, a
dispensa da multa e deferimento do pedido. Ou seja, a grande maioria que requereu a
dispensa, contestando a multa, teve seu pleito negado. Presumimos que medidas de
interferência do Intendente como estas, julgando a procedência ou improcedência das multas
aplicadas pelos agentes fiscais, só eram tomadas quando os infratores questionavam a
legitimidade da ação, no calor do momento da autuação do flagrante e do encaminhamento da
cobrança. Validar ou não, diante da questão, cabia ao intendente, como no caso acima. Era
dele a última palavra, mas não a última ação, pois daquelas 37 multas aprovadas para

361
Analisando a relação do fisco com as trabalhadoras ambulantes em Salvador entre os séculos XVIII e XIX,
Richard Graham destacou o seguinte: “Multas aplicadas contra vendedoras de rua por não andarem com o alvará,
por venderem acima do preço máximo ou por violarem outros regulamentos representavam de 10% a 15% da
receita municipal. As vendedoras de rua eram boas para as finanças públicas.” Cf.: GRAHAM, Richard.
Alimentar a cidade... p. 271.
362
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 13 verso e 14.
152

execução, de requerimento indeferido, conseguimos identificar o pagamento de apenas duas


pessoas, Sr. Samuel Tintilino dos Santos e o Sr. Manoel Henrique da Silva Rebelo que foi
representado pela sua esposa Sra. Maria Lauriana de Jesus Rebello. Sobre estes personagens,
veremos adiante, mas quanto aos pagamentos, verificamos que reincidentemente, a obrigação
de fazer era descumprida.
Pela forma como os sujeitos que foram autuados são descritos no termo, nomes
incompletos e referência a outras pessoas, de Tal e filha de Fulana, pressupõe-nos que tais
ações poderiam ter sido flagradas no calor do cotidiano daqueles, quase sempre em execução
as atividades laborais ou de lazer. Tais referências apontam também para a possibilidade de
essas pessoas já serem “carimbadas” no cotidiano local, sendo amplamente conhecidas, sendo
que tal qualificação não inviabilizaria a sua localização. Outrossim, permite ainda afirmar que
“gente pobre”, como esta, despossuída inclusive de um sobrenome, tornara-se alvo dos
enquadramentos sociais. Os artigos dos quais foram enquadrados atestam, portanto, que Julia
havia sido multada por estar praticando “a venda de drogas e de substancias nocivas ou
tóxicas em cazas de negocio”363, que só eram permitidas a comercialização em locais que
estivessem de acordo com regulamentos sanitários em vigor. Os demais sujeitos estavam
incursos no artigo que os qualificava como reincidentes de infrações já praticadas, cuja ação
deveria ser penalizada com multas no dobro da inicial. O desconhecimento da infração inicial
que indica ter sido de período anterior a 1893, uma vez que a documentação deste ano, exceto
esta, não os tipifica em enquadramento das posturas, não inviabiliza que a burla também tenha
sido relacionada às atividades ambulantes proibidas na cidade. Ainda assim, apesar da
aprovação da multa tais pessoas também não figuram no rol dos pagadores de infração de
posturas naquele ano. Tudo leva a crer que o desfecho daquela trama também pode ter caído
nas mãos do Juiz de Paz; entretanto, por conta da ausência de um corpus documental alusivo
às atividades deste agente, não conseguimos ao certo desvendar a conclusão deste caso.
De todo modo, analisando as fontes disponíveis, verificamos que da receita estimada
para o orçamento anual de 1894, o montante de 200$00 correspondia às multas por infrações
de posturas. Naquele ano, entretanto, o município só conseguiu arrecadar o valor de 90$000,
deixando de receber mais 158$000 entre os perdões e calotes. Ou seja, em termos brutos,
aquele ano havia registrado o número 248$000 em multas por infrações 364 . Contudo, em
diversos momentos, a arrecadação havia chegado a superar o orçamento previsto. Isso

363
APMN. Código de Posturas de 1893, artigo 25. Livro de Registro das Decisões, Resoluções e Leis do
Conselho Municipal de Nazareth, 1893-1915, p. 39v – 52v.
364
APMN. Livro de Receita da Intendência Municipal de Nazareth (1893-1902) e Livro de Registro de
Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900.
153

aconteceu em 1893 e 1900, por exemplo, quando, respectivamente, os cofres municipais


receberam os valores de 260$000 e 239$000 das multas de infrações. Estes dados conduzem a
alguns questionamentos importantes sobre o significado daqueles valores ao tesouro
municipal. A intenção de validar o Código de Posturas era unicamente financeira com a
perspectiva de ampliar a receita municipal? Era uma questão meramente ideológica? Ou o
conjunto destes fatores?
À luz destas questões e do que informa a leitura sistemática das fontes, é possível
perceber, portanto, que a arrecadação das multas de infrações de posturas, apesar da sua
recorrência, não garantiu a ampliação significativa da receita do orçamento municipal. Mesmo
quando a arrecadação ultrapassava o valor previsto no orçamento anual, a receita proveniente
das infrações de posturas não era suficiente, por exemplo, para cobrir as despesas relativas às
atividades de cobrança e arrecadação dos impostos municipais. Conforme já apontamos
anteriormente, especialmente no que diz respeito ao ano de 1893, ano singular da incidência
das posturas e da arrojada cobrança das multas pecuniárias como penalidade da infração,
somente a despesa do município com a arrecadação dos impostos e tributos estava orçada em
2:000$000. Embora essa quantia correspondesse à despesa total despendida pelo município
para arrecadação de todos os impostos e tributos municipais, decorrente dos deslocamentos
feitos pelos fiscais e guardas aos diversos e distantes locais fora da cidade, as maiores
quantias provenientes das multas de infrações recebidas nos anos de 1893 e 1900, 260$000 e
239$000 respectivamente, não eram suficientes para pagar minimamente o salário de um
fiscal, que em 1893 era de 500$000 mensais365.
Em 4 de Julho de 1893, por exemplo, a secretaria da intendência registrava um
requerimento do agente fiscal Misael Annanias dos Santos solicitando “ajuda de custo pelo
transporte até a Tijuca em companhia dos guardas fiscais Manoel Bento Fernandes e
Francisco Pires Valença, na razão de 4$000 para pagamento da canoa” 366. Igualmente, em 24
de maio do mesmo ano, o agente Eduardo Augusto Braga requeria ajuda de custo para
desempenhar suas atividades “fora do perímetro da cidade”, tendo recebido o valor de
10$000367.
O requerimento do fiscal Manoel Annanias indica que para chegar à localidade da
Tijuca, era necessária a locação de uma embarcação. Pela prática comum e obrigatória, de
constante trânsito pelo rio Jaguaripe a fim de visitar os territórios municipais, minimamente

365
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 1-4
366
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 18.
367
APMN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900, p. 14.
154

uma canoa já deveria constituir patrimônio próprio. Como o número de empregados


designados a estas funções eram limitado, obedecendo em 1893 o número de 3 para os
agentes e 6 para os guardas fiscais, estes tinham que se desdobrar em executar suas funções
no centro urbano, nos bairros da cidade e povoações onde nem sempre era possível chegar
com facilidade. A partir deste ponto de vista é possível afirmar que a validação da lei não
estava condicionada meramente a uma questão financeira, da qual a infração proporcionava
recolhimento de tributos.
Deste modo, é possível afirmar que os fatores explicativos da validação das leis das
posturas, sem relegar nem hierarquizar a questão financeira, sobretudo porque a tônica da
política modernizadora dos dirigentes políticos era não deixar de recolher o que fosse
possível, ainda que fossem parcos os recursos e pequena a receita. As leis, nesse sentido,
fundamentavam-se num conjunto de questões em que a preocupação com a ordem e a
decência da cidade aliava-se com o aspecto pedagógico de legitimar o poder instituído
naquela população que sempre havia dados sinais de ser arredia.
Foi percorrendo das povoações como a Tijuca, Pastinho e o Onha aos bairros
periféricos e centro urbano da cidade que os agentes fiscais quase sempre sozinhos, mas em
alguns momentos auxiliados dos guardas e às duras penas por praças policiais que as multas
por infrações de posturas foram aplicadas no município e diariamente chegavam ao Paço
Municipal para as providencias subsequentes, seja a execução ou o perdão. O conjunto das
infrações identificadas permite afirmar que a ordem e a burla custavam caro, tanto para os
poderes constituídos, que juntamente com uma parte da sociedade almejavam o primeiro
comportamento, quanto para aqueles que eram forçados a cometer a segunda opção. Neste
sentido, no decorrer destas percepções sobre as representações do comportamento socialmente
aceito e a sua transgressão, a análise das fontes nos levou aos seguintes e fundamentais
questionamentos: Quais eram as áreas de maior incidência de infração de posturas? Quais
eram as infrações mais recorrentes? Quais sujeitos as cometiam? Por quais motivos?
Problematizar estas questões é necessário para elucidar os conflitos decorrentes da
relação existente entre a ação do agente fiscal, o cumprimento da legislação e os hábitos,
costumes e práticas da população que sofreu com a intensificação das medidas
normatizadoras na última década do século XIX, sobretudo em decorrência do uso e ocupação
do espaço urbano, especialmente os centrais. Deste modo, vamos verificar, doravante, a partir
da sistematização das 290 multas de infrações de posturas diluídas no corpo dessa dissertação,
como estas se conjugaram no conflituoso cotidiano da cidade de Nazareth na transição dos
referidos séculos. Na tabela abaixo, identificamos o teor e a quantidade dos artigos de maior
155

apelo infringidos durante a virada dos séculos, a partir das multas pagas espontânea e
forçadamente pelos infratores, bem como através dos extratos publicados pela secretaria da
Intendência Municipal.

Tabela IX – Infrações de maior apelo cometidas em Nazareth


ARTIGO QUANTIDADE DESCRIÇÃO
51 86 - (30%) Fica prohibido ter-se solto pelas ruas e praças da cidade e
povoações animaes sejam vaccum, cavallares, muares,
suínos, lanigeros ou caprino bem como aves gallinaceas.
8 25 - (9%) No caso de recusa (de pagamento), ou sendo a pena
simplesmente de prizão, seguir-se-a o processo estabelecido
pelo art. 14 e §§ do titulo XII, caput I, da lei de 15 de julho
de 1892, nº 15.
107 23 - (8%) As cazas de negocio que tiverem artigos á venda por peso ou
medidas deverão ter os instrumentos massarios do systema
métrico decimal e aferidos, sob pena de 10$.
43 13 - (4,5%) É prohibido ter no interior das cazas e quintaes estrumes
verdes, immundices, águas putedras ou deposito de qualquer
substancia que possa prejudicar a saúde, sob pena de 10$000
de multa ou 5 dias de prizão.
41 11 - (4%) As valas e riachos que atravessem terrenos particulares
deverão ser limpos e desentupidos pelos proprietários ou
locatários de taes terrenos, sob pena de 10$000 de multa ou
5 dias de prizão.
10 11 - (4%) Haverá reincidência de infracção sempre que uma pessoa
tiver sido multada neste município por acção de ommissão
da mesma natureza, embora não tenha sido condenado na
forma da lei.
48 10 - (3,5%) Fica prohibido sob pena de 5$000 de multa e 2 dias de
cadeia: § 1º. Lançar nas ruas, caes de embarque e
desembarque, fontes publicas lixo, águas sujas, animaes
mortos ou qualquer immundice. § 2º. Consentir que filhos
fâmulos, creados ou empregados que sofreram de moléstia
repulsivas andem pelas ruas sem as necessárias cautelas no
vestuário ou que o empreguem em negocio de venda de
substancias comestíveis. § 8º. Trazer vozerias, alaridos,
trilhar apitos a não ser para socorro.
Fontes: AMPN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900/
Livro de Registro das Decisões, Resoluções e Leis do Conselho Municipal 1893-1915/ Livro
de Receita da Intendência Municipal de Nazareth (1893-1902) (1902-1912).

Os sete diferentes artigos e as 179 infrações acima mencionadas representam,


conforme já dissemos, parte de um conjunto de ações encontradas nas diferentes fontes
históricas que, entrecruzadas nos permitiu chegar a tais dados. Desta forma, como a
recorrência e reincidência das ações proibidas pelo poder público são os elementos que nos
156

interessam mais, verificamos que os artigos acima contabilizados representaram apenas 26%
do total de 26 artigos infringidos, portanto minoria. Por sua vez, o número de casos acima
distribuídos representam 63% de todas as infrações do período que pesquisamos. Ou seja,
uma maioria de casos, reincidentes ou não, foram enquadrados em uma minoria de artigos.
Isso nos permite afirmar que tal densidade, embora os demais também denunciassem os
projetos do município e os hábitos da população, revela tanto os elementos caracterizadores
do cotidiano e perfil da cidade como, de alguma forma, as ações políticas executadas pelos
mais afetados com a norma e a disciplina. Verificamos, por sua vez, que entre as infrações de
maior apelo cometidas pelos sujeitos sociais em Nazareth, destacaram-se aquelas relacionadas
às atividades comerciais, à higiene e ordem pública e aos hábitos e práticas populares.
Com 30% de todas as infrações cometidas, aquelas contrárias ao artigo que disciplina
sobre o trânsito de animais no perímetro urbano parece indicar que a força da lei não foi capaz
de limitar tal prática, que parecia estar imbricada na cultura local, se observarmos a
recorrência da ação proibida e punida pela municipalidade. Este dado é significativo e
revelador, tanto das regras como da conjuntura espacial daquela cidade, uma vez que o
trânsito e presença de animais no perímetro urbano, representava, sobretudo “a conciliação do
cotidiano dos mundos do trabalho rural com aspectos do cotidiano dos mundos do trabalho
urbano”368, uma vez que os produtos agrícolas que eram transportados para as feiras eram
feitos no lombo dos animais de raças “vaccum” e “cavallar”, que por costume ficavam
também amarrados em frente de casas comerciais, prédios públicos e residências369. Além do
transporte, muitos daqueles animais “suínos, lanigeros ou caprino bem como aves
gallinaceas” eram vendidos nas feiras livres e por conta disso, talvez, também gerassem, na
interpretação dos fiscais, infrações às posturas.
Entre os sujeitos quem cometeram estas infrações, destacam-se os comerciantes de
casas de fazendas, molhados e açougues, mas também aqueles envolvidos no comércio
ambulante. Foi o caso dos ganhadores Lucas Baptista dos Santos e Francisco Soares que,
respectivamente, em março e dezembro de 1904, pagaram 5$000 cada um aos cofres do
município pela infração ao artigo 51370. Igualmente, em dezembro de 1904, o comerciante de
açougue estabelecido no Prédio dos Arcos, na Praça do Porto, Sr. Hylário Bispo, o mesmo da
querela das lesões corporais mencionada no inicio do primeiro capítulo, foi obrigado a pagar a

368
SACRAMENTO, Cleidivaldo de Almeida. Mundos do Trabalho no Recôncavo Sul... p. 79
369
OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos. Recôncavo Sul... p. 58
370
APMN. Livro de Receita da Intendência Municipal de Nazareth (1902-1912), p. 14, 37.
157

multa de 3$000 por não obedecer aquela norma 371 . A partir destes recorrentes casos
provocados pela infração do artigo 51 da lei que trata da circulação dos animais, é possível
perceber, por exemplo, as atividades que cada um daqueles profissionais desempenhava. A
propósito, o §2º do artigo 51 diz que “os infractores incorrerão na multa de 5$000 por cabeça
de gado bovino, cavallar ou muar, de 3$000 por cabeça de gado lanigero ou caprino e de 500
cada gallinaceas”372.
Desse modo, enquanto os ganhadores Lucas Baptista e Francisco Soares haviam
tomado à multa por conta da circulação dos gados “bovino, cavallar ou muar”, cujos animais
apontam para a possibilidade do seu uso não apenas para o transporte, mas também para o seu
comércio, o comerciante Hylário Bispo estaria pagando um valor inferior por conta do
trânsito com os gados “lanígero ou caprino”. Para o transporte ou comércio, estavam aqueles
três sujeitos atuando de forma desregrada segundo o Código de Posturas. Se o trânsito nos
arruamentos centrais era proibido, inclusive onde se concentravam as feiras, a Praça do Porto,
o mercado daqueles animais, exceto as aves, segundo o artigo 118 daquele mesmo código, era
para ser feito, exclusivamente, na Praça do Camamu, local diverso das feiras.
De um modo ou de outro, é patente que aquelas ordenações do uso e ocupação do
espaço urbano não eram seguidas, uma vez que a própria dinâmica e localização das feiras
não permitiam a ausência destes animais que faziam o transporte das mercadorias, assim
como os locais destinados à venda de gados já não fazia parte dos locais onde as pessoas se
avolumavam para comprar e vender. Em outras palavras, se aqueles ganhadores estavam
transportando mercadorias, estacionaram no local errado e foram punidos por isso, mas se
estavam ali para comercializar os animais, certamente estavam fazendo também em espaços
inapropriados naquela cidade que tentava embelezar-se. O mesmo entendimento estende-se
talvez a Hylário Brito, pois sendo ele um dono de açougue estabelecido no centro da cidade, o
que estava fazendo circulando com cabras e ovelhas nos arruamentos urbanos? Acreditamos
que, certamente estava a vender, diferentemente da forma como fazia em seu açougue,
abatido.
Contudo, para além destes animais que tinham espaços apropriados para venda, sejam
vivos ou abatidos, as chamadas “aves gallinaceas”, comumente criadas nos fundos dos
quintais não tinham impedimento de serem comercializadas nas feiras. Porém, como indica o
artigo 51, as mesmas não podiam estar soltas no trânsito urbano. Algo considerado difícil,

371
APMN. Livro de Receita da Intendência Municipal de Nazareth (1902-1912), p. 38.
372
APMN. Código de Posturas de 1893, artigo 51. Livro de Registro das Decisões, Resoluções e Leis do
Conselho Municipal de Nazareth, 1893-1915, p. 39v – 52v.
158

pois se nos bairros do entorno da cidade e povoações a presença de aves nos meios das ruas
era inevitável devido ao seu método de criação e desenvolvimento, quando as mesmas iam pra
comercialização nas feiras causavam sempre algum “tumulto”. Quem viveu estas experiências
foram as vendedoras ambulantes Escholastica de Almeida Silva e Catharina de Tal. A
primeira que acumulava a tarefa com a atividade de aguadeira foi obrigada a pagar o valor de
1$500 ao município, contabilidade de três “aves gallinaceas” em 11 de outubro de 1898, uma
vez que cada uma equivalia a $500 e a segunda, por reincidência, em Julho e Agosto de 1912,
dispensou cada vez o valor de 1$000 pela infração do mesmo artigo 51373.
Em que pesem as questões discutidas acima, presente no rol das infrações de maior
apelo cometidas, e em terceiro lugar com 8% do total das multas, o artigo 107 regulava sobre
os instrumentos de medidas a serem utilizados nas transações comerciais. As posturas
municipais, ao regulamentar e obrigar o uso do sistema métrico decimal com os pesos e
medidas, queriam substituir os “móis e a dúzia” instituídos no cotidiano local pelos quilos e
litros 374 . Tratava-se de mudanças de práticas comerciais, estabelecidas tanto nas casas de
quitandas e molhados como na feira livre, com as quais a população aparentemente não estava
se habituando. Isso nos leva a pensar como as unidades de medidas em vigor até então, quais
sejam os alquieres, arrobas, canadas e quartilhos utilizados nas vendas de cereais, líquidos e
carnes, estavam tão relacionados e afixados na mente dos comerciantes, de tal forma que a
substituição das medidas causaria confusão com o preço da maioria dos produtos vendidos no
varejo, nas compras a retalho.
Já haviam se passado sete anos desde a regulamentação estabelecida pelo Código de
Posturas, embora a obrigatoriedade tenha sido decretada desde os tempos imperiais375. Porém,
somente em 20 de abril de 1900, o total de 11 pessoas foi autuado no artigo 107, que tratava
dos pesos e medidas, entre as quais estava o aguadeiro Antonio Marinho da Costa, que foi
obrigado a pagar o valor de 10$000 pela infração da norma. 376 Cumpre redestacar que os
volumes de água vendidos nas ruas da cidade eram medidos em botijões e galões, e em muitos
casos não respeitavam a exigência de ser medidos através dos litros. Talvez tenha sido o caso
do aguadeiro que nas cangalhas dos animais carregava os volumes d’água percorrendo às
ruas. Incurso no mesmo artigo, o comerciante de molhados de 4ª classe, localizada na

373
APMN. Livro de Receita da Intendência Municipal de Nazareth (1893-1902/1902-1912), p.171, 283-4, 288.
374
PIRES, Maria de Fátima Novaes. Fios da vida... p. 275.
375
A lei que adotou o sistema métrico internacional no Brasil foi de 26 de Junho de 1862, com instruções
estabelecidas pelo decreto nº. 5.089 de 18 de setembro de 1872. Ver: MARTINS, Valter. Mercados urbanos,
transformações na cidade... p. 78-79.
376
APMN. Livro de Receita da Intendência Municipal de Nazareth (1893-1902), p. 218.
159

povoação do Onha, Sr. José Nicolao dos Anjos também foi obrigado a pagar o valor de
10$000 ao município em 7 de Junho de 1904.
Ao que já trouxemos até aqui, a transgressão da lei e a burla configuravam-se como
uma necessidade daqueles profissionais. Acreditamos que, para aqueles trabalhadores que
exerciam as variadas atividades comerciais infringirem as regras, era mais rentável receber a
multa e pagá-la ou não, do que ao interromper suas atividades. Quanto às infrações
decorrentes de outras práticas, preferimos entender que a objeção às regras relacionava-se ao
fato daqueles hábitos estarem arraigados no cotidiano daquela população e/ou que esses até
então não tinham sido alvo de preocupações tão incisivas das autoridades. De um modo ou de
outro, as infrações de ordem comercial ou cultural da população revelam o grau de
perseguição implementado em decorrência do resmungo daquelas autoridades republicanas.
Resta saber, portanto, por já termos visto até aqui de forma esparsa, em dados reais e
sistematizados, os locais e categorias da população que sofreram com a fiscalização da lei.
Uma vez identificados os números e conteúdos das infrações de maior apelo cometidas
pela população nazarena, rastreamos os nomes dos infratores que aparecem no livro de receita
do orçamento municipal e no livro de requerimentos da intendência. Através do
entrecruzamento daqueles com outros documentos fiscais do poder municipal – livro de
pagamento dos impostos e licenças - conseguimos sistematizar o perfil profissional dos
sujeitos e os locais da cidade de Nazareth onde foram cometidas as infrações de posturas. A
partir destes dados, demonstrados nos gráficos abaixo, podemos afirmar que os aspectos
caracterizadores daquelas infrações foram marcadamente urbanos, provocados por uma
população envolvida nas atividades comerciais em suas múltiplas categorias.
160

Gráficos II e III: Infrações de Posturas por Categorias, Profissões e Locais

CATEGORIAS/PROFISSÕES
Molhados
4% 24%
COMERCIANTES 6%
Açougue
12%
AMBULANTES
18%
Fazendas
52% 8%
PROPRIETÁRIOS
Quitandas
TRABALHADORES 7%
URBANOS 20%
Miudezas
PROFISSIONAIS 1%
LIBERAIS

LOCAIS
10%
CENTRO

18%
EM
TRÂNSITO 52%
POVOAÇÕES

20%
BAIRROS

Fontes: AMPN. Livro de Registro de Requerimentos da Intendência Municipal, 1893-1900/


Livro de Receita da Intendência Municipal de Nazareth (1893-1902) (1902-1912) / Livro de
Lançamento de Impostos, Industrias e Profissões de Nazareth, 1894-1921 / Livro de Licenças
e Matriculas da Intendência de Nazareth, 1893-1901.

A leitura dos dados dos gráficos acima, além de nos permitir conhecer os perfis
majoritários referentes ao fenômeno das infrações de posturas, é significativa ao nos revelar
as faces do projeto de normatização que se pretendia com as posturas municipais. Seu êxito
161

ou não, através das mudanças e permanências provocadas são reveladoras das tentativas de
intervenção do poder público. De modo geral, percebemos que as infrações foram cometidas
em 72% por sujeitos ligados ao setor comercial (comerciantes e ambulantes) em um ambiente
urbano, especialmente no centro da cidade, que figura com 52% dos locais identificados,
totalizando com as outras duas categorias (em trânsito e bairros) 82%. Oportuno é ler tais
dados em consonância com as ações políticas, urbanísticas, sanitárias e estruturais operadas
na cidade e conjugadas no processo histórico brasileiro da virada dos séculos XIX para o XX,
que elegeram especialmente alguns grupos populacionais e locais para intervir377. Portanto,
estamos associando tais fatos para dizer que, nas transformações urbanas dos finais do
oitocentos, implementadas sob a égide das doutrinações higienistas e sanitaristas, de cunho
civilizatório e modernizador, muitas das atividades desempenhadas pelos vendedores
ambulantes e casas comerciais menos afortunadas – que exerciam atividades em trânsito e nos
centros da cidade e suas imediações – foram consideradas ameaça à saúde e ordem pública, e
por consequência alvo das investidas378.
É preciso destacar que os “gêneros de quitanda” – de alimentos de primeira
necessidade a artigos e utensílios domésticos – eram a especialidade dos comerciantes
estabelecidos no centro comercial da cidade e dos vendedores que mercadejavam em trânsito,
cujas categorias curiosamente compunham a maioria dos sujeitos infratores 379 . Além de
apontar este perfil eminentemente comercial como majoritário no rol dos desobedientes à lei,
os mesmos dados são bastante reveladores da própria estrutura comercial de Nazareth, na
medida em que indicam uma alta representatividade do pequeno comércio estabelecido no
cotidiano conflituoso da cidade. Ou seja, ainda que existam diversas categorias e grupos
sociais enquadrados nas posturas municipais, percebemos em dados quantitativos, além dos
qualitativos já discorridos nos capítulos anteriores, que a grande maioria dos infratores,
segundo seus ofícios, profissões e como eram taxados pelo fisco municipal, estavam mais
para remediados que afortunados 380 . Afinal, além dos 20% que congregavam apenas os

377
Estamos nos referindo aqui ao denominado processo de modernização que pretendia, nos termos empregados
por Margareth Rago, empreender uma “gestão higiênica e cientifica da miséria” na projeção da “cidade do
futuro”. Ver: RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar... p. 163-203.
378
MARTINS, Valter. Mercados urbanos, transformações na cidade... p. 160.
379
OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos. Recôncavo Sul... p. 51
380
Chegamos a essa conclusão, sobretudo a partir da proposição feita por Richard Graham em seu trabalho sobre
o sistema de abastecimento da cidade do Salvador nos séculos XVIII e XIX quando assevera o seguinte:
“Lojistas e donos de vendas, porem não devem ser confundidos com a elite do comércio. Eles concentravam em
fazer vendas e mantinham estoques limitados. Muitos, provavelmente a maioria, não eram registrados na Junta
Comercial, onde um comerciante precisava dispor de um certo volume de capital para ser avalizado por aqueles
que tinham dinheiro.” Cf.: GRAHAM, Richard. Alimentar a cidade... p. 108-109.
162

vendedores ambulantes, apenas cerca de 1/5 dos 52% dos comerciantes, 9%, referiam-se às
casas comerciais suntuosas (fazendas e miudezas).
Desta forma, longe de querer homogeneizar as categorias em destaque à noção comum
de serem eminentemente pobres apenas pelas funções que ocupavam, as condições materiais
de vida de muitos desses comerciantes e ambulantes já reveladas até aqui nos dão condições
de as agrupar junto às classes mais baixas da sociedade, ainda que parcialmente, em função da
inexistência de testamentos e inventários dessas personagens nos arquivos que
pesquisamos381.
Estamos nos referindo, portanto, aos vendedores ambulantes que, multados, inclusive
em trânsito, faziam parte de um ramo comercial que mal permitia sua sobrevivência e, muito
menos, o ganho de lucros exorbitantes. Concluímos que estes infringiam as leis para continuar
trabalhando, de modo que ao mesmo tempo deviam desembolsar valores suficientes pra quitar
as multas, as quais eram enquadradas 382 . Do mesmo modo, contribuindo com análise da
condição econômica de muitos infratores, daqueles 52% de casas comerciais multadas por
descumprimento das posturas, verificamos, como ilustra o gráfico, que as mesmas
correspondiam às denominadas categorias: casas de molhados (24%), açougues (12%), casas
de fazendas (8%), quitandas (7%) e miudezas (1%). Tais dados, mais uma vez, merecem um
melhor aprofundamento, portanto um olhar diferenciado com uma discussão especifica, de
modo que nos permita identificá-las à luz das suas representações no cotidiano da cidade.
Entre 1894 e 1921, Nazareth possuía uma média de 250 estabelecimentos comerciais,
industriais e de serviços pagadores de impostos, entre os quais estavam, além das categorias já
referidas, os hotéis, tipografias, casas de bilhar e entre outras que, conforme discutimos nos
dois primeiros capítulos dessa dissertação, caracterizavam a “metrópole nazarena” como “a
comercial e financeira cidade do recôncavo”. O número significativo de comerciantes e
ambulantes como infratores de posturas já é sugestivo da expressão que aqueles tinham no
cotidiano da cidade. Por isso que, proporcionalmente falando, tais dados – infrações de
posturas e número de estabelecimentos/profissões – se aproximam: há expressividade das
categorias em ambos os casos. Vejamos a configuração comercial do período, lastreada nos
livros fiscais do poder municipal, expressa o gráfico abaixo:

381
Nas pesquisas efetuadas nos Arquivo Público Municipal de Nazaré (APMN) e Arquivo Público do Estado da
Bahia (APEB), não encontramos tal documentação para o período. Presumimos que estes documentos
encontram-se no Arquivo do Fórum Edgard Matta, em Nazaré, cujo prédio após a privatização dos cartórios
desde 2011 encontra-se fechado, sem atividade e utilidade pública, interditando inclusive o acesso à vasta
documentação do Poder Judiciário referente à Comarca de Nazaré que não foi transferida para o APEB.
382
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder... p. 87
163

Gráfico IV: Casas Comerciais, Industriais e Serviços de Nazareth


120

100

80
1894
60

1900
40

20

0
Armazens Fazendas Molhados Açougues Quitandas Depósitos Olarias Outras*
* Hoteis, Relojoarias, Miudezas, Lojas de Calçados, Farmácias, Alambiques, Fundições, Tipografias e Serrarias.

Fontes: APMN. Livro de Lançamento de Impostos, Indústrias e Profissões de Nazareth, 1894-


1921.

Quando nos debruçamos cada vez mais sobre os dados acima, verificamos que, em
sintonia com a categoria dos vendedores ambulantes, vistas quase sempre de forma
homogênea pelas autoridades púbicas que pretendiam enquadrá-los, as casas comerciais de
maior apelo em Nazareth eram aquelas cuja variação das “classes” poderia pertencer tanto aos
segmentos mais suntuosos quanto aos remediados. Revelando a complexidade que envolvia as
casas de molhados, maior segmento comercial de Nazareth do período, os jornais locais
cotidianamente publicavam repetidos anúncios em suas imensas páginas, como estes abaixo.

Armazem de Molhados de Apulchro Leony da Silva - Complexo


sortimento de louças, ferragens, miudezas, kerosene, xarque, bacalháu,
conservas, doces, vinhos finos, manteigas de diferentes marcas,
materiais para pintor, fogueteiro e marcineiro. Rua do Comércio.
O Barateiro – complexo e novo sortimento de fazendas, miudezas,
obras feitas, etc. etc. Rico sortimento de objectos para presente,
perfumarias, finíssimas dos melhores fabricantes. Sortimento chic de
camisas brancas e de cores. Recebidos ultimamente de Paris, Milão e
Viena. Praça Municipal, nº 14.383

Não é coincidência o fato de que casas de molhados, quitandas e açougues figuravam


simultaneamente no rol dos estabelecimentos mais expressivos e acumulavam os maiores
números de infrações de posturas. Contudo, contrariamente ao modelo de estabelecimento que
é desenhado pelo anúncio do jornal, estamos nos referindo à grande maioria de casas de

383
AFEM. Jornal O Regenerador. Nazareth, 09 de Agosto de 1911. p. 3
164

molhados e açougues que, ao se enquadrarem nas 4ª e 5ª classe, aproximavam-se cada vez


mais das quitandas, que eram alvo recorrente das perseguições de cunho higiênico e
disciplinador das leis, autoridades e fiscais, em função das características inerentes às funções
que desempenhavam, bem como do seu padrão econômico/social. Aí reside a problemática
das casas de molhados que inúmeras vezes nos questionamos, ao ver as notas de jornais: quais
fatores explicam a sua predominância junto às infrações de posturas? Acreditamos, por sua
vez, ser a aproximação, senão o enquadramento no denominado “pequeno comércio”
estabelecido. Isso fez deste segmento desprovido de riquezas, ser os maiores sofredores das
ações previstas como punição às infrações, de modo que se configuraria como “uma
intervenção que inviabilizaria os negócios e a subsistência de muitos moradores”384.
Tais apontamentos respondem, entretanto, apenas alguns pontos de uma questão que
desde já se anuncia: porque mais as casas de molhados? Para tentar elucidar tais
questionamentos, a análise da organização interna das casas de molhados, que aponta para a
majoritariedade das ultimas classes, torna-se necessária à compreensão. Para tanto, vejamos:

Gráfico V: Distribuição por “classes” das Casas Comerciais de Molhados


50

40

30
1894
20 1900

10

0
1ª Classe 2ª Classe 3ª Classe 4ª Classe 5ª Classe
Fontes: APMN. Livro de Lançamento de Impostos, Indústrias e Profissões de Nazareth, 1894-
1921.

Tomando como base os anos de 1894 e 1900, que são bastante significativos a essa
pesquisa, na medida em que expressam fielmente a média do número de estabelecimentos de
Nazareth durante todo o período da transição dos séculos XIX ao XX, e por estarem em
consonância com o que já apresentamos no gráfico anterior, alusivo a todas casas comerciais,
o gráfico acima contribui para explicar outros fatores que davam predominância às casas de

384
PIRES, Maria de Fátima Novaes. Fios da vida... p. 271.
165

molhados, bem como o modo como se organizavam de forma não homogênea em relação às
suas “classes”. Ou seja, além da presença minoritária dos abonados e refinados
estabelecimentos que pertenciam às primeiras classes, as demais e últimas, 4ª e 5ª classes,
prevaleciam de modo estupidamente.
Ao notar essa situação, no caso específico das casas de molhados, que chamamos
atenção aqui por conta da sua ambiguidade em decorrência da variação das classes,
percebemos que a continua variação em elevado crescimento dos estabelecimentos
desprovidos de requintes, casas de molhados de 4ª e 5ª classes, confundem-se com a extinção
das casas de quitandas a partir do ano de 1900, como observamos no gráfico anterior. Ora,
como teriam sido enquadradas pelo poder público municipal as 78 casas de quitandas
existentes em 1894? Teriam sido elas fechadas pela ação dos fiscais ou dos proprietários
empobrecidos? Presumimos então, que o crescimento das casas de molhados, sobretudo as de
ultimas classes, tenha decorrido do fenômeno de “extinção” das quitandas, tendo sido estas
enquadradas em nova nomenclatura.
Trazemos esse fenômeno tanto para mostrar a proximidade que havia entre as ditas
casas comerciais, a depender das classes as quais pertenciam, bem como para explicar o
contínuo crescimento das casas de molhados no comércio estabelecido de Nazareth e sua
prevalência no rol dos infratores de posturas. Mesmo convencidos de que tais pontos são
suficientes para responder às questões que se colocam às condições econômicas e sociais das
atividades e estabelecimentos comerciais que atingiram a maioria das infrações de posturas,
cabe-nos ainda acrescentar que, computando os registros, editais, comunicações, notas e
notícias veiculadas pelos jornais locais do período a que tivemos acesso, especialmente no
que se refere aos anúncios de propriedades comerciais e aos extratos da coletoria estadual que
costumavam publicar os mais notáveis pagadores de avolumados impostos, nota-se que uma
quantidade muito insignificante destes abonados proprietários de comércios, para não
desprezar sua quase inexistência, figuraram no rol dos infratores385. Isso, entretanto, não é
argumento para excluí-los da condição de infratores, até porque temos evidências que alguns
o foram e as condições econômicas destes são bastante sugestivas das possíveis articulações e
jogos feitos por este grupo para não pagarem os impostos e multas. E como nosso corpus
documental dos infratores de posturas refere-se apenas aos pagadores e pleiteantes de
isenções, esse grupo abastado da população não aparece de forma significativa junto aos

385
Estamos nos referindo às publicações feitas nos jornais de circulação em Nazareth em diversos períodos
dentro do nosso recorte temporal, quais sejam: O Regenerador e O Independente. Ambos foram encontrados nos
arquivos da Fundação Biblioteca Nacional (FBN) e do Fórum Edgard Matta (AFEM).
166

infratores por motivos outros que não são a inexistência de ações desviantes. Portanto, o
silêncio documental é também revelador das possíveis artimanhas empreendidas por
determinados grupos sociais que, negligenciando ou não suas ações nos dão indícios de que a
majoritariedade dos segmentos menos afortunados no quantitativo analisado é bastante
sintomática da existência de um filtro provocado pelo poder e prestígio econômico de alguns.
Além dos anúncios já trazidos para discussão, faz-se necessário nominar algumas
personalidades influentes economicamente no cotidiano local que encontramos no rol dos
pagadores de impostos à coletoria estadual. Manoel Gonçalves Melhor, proprietário de uma
casa de molhados de 2ª classe à Rua do Batatã, infrator pelo artigo 43 das posturas
municipais386 em 23 de janeiro de 1894, que dispensou o valor de 6$000 para pagamento da
multa, era figura que declarava um giro comercial de 10:000$000 em 17 de setembro de 1904,
pagando, para tanto, 150$000 ao Estado em impostos. Igualmente, Eduardo Manoel de
Moura, proprietário de um armazém de 2ª classe no povoado do Onha, infrator do artigo 92
das posturas387, que dispensou o valor de 10$000 em 5 de maio de 1897, também possuía um
patrimônio comercial de 10:000$000, de modo que pagou apenas 50$000 à coletoria.
Brasilides Moura, detentor de um patrimônio comercial declarado no valor de 5:000$000,
metade dos dois primeiros, também infrator pelo artigo 144 das posturas388, havia efetuado o
pagamento da multa que incorreu no valor de 5$000, em 13 de março de 1896, de modo que,
em 1904, à coletoria pagaria 5 vezes mais, no total de 25$000.
Estes três são exemplos de comerciantes abonados, uma minoria entre os pagadores de
multas por infrações de posturas que aparecem em nossas fontes. Outros, em similar condição
econômica, aparecem no rol dos infratores que pleitearam formalmente à dispensa da multa.
Foi o caso de Chrisanto Chrispiniano de O. Braga e Domingos Curcio, comerciantes de casas
de molhados de 3ª classe, ambas situadas à Rua Conselheiro Saraiva. Enquanto o primeiro
teve seu pedido de dispensa de pagamento deferido por infração de postura não sinalizada na
documentação, o segundo, infrator do artigo 43, não foi dispensado da multa de 10$000, não

386
Art. 43. É prohibido ter no interior das cazas e quintaes estrumes verdes, immundices, águas putedras ou
deposito de qualquer substancia que possa prejudicar a saúde, sob pena de 10$000 de multa ou 5 dias de prizão.
APMN. Livro de Registro das Decisões, Resoluções e Leis do Conselho Municipal de Nazareth, 1893-1915, p.
39v – 52v.
387
Art.92. Ninguem poderá edificar ou reedificar, construir muros, terraços, jardins ou cercas nas ruas e praças
desta cidade, povoações do município, incluindo as estradas publicas e mesmo consertar as existentes ou fazer-
lhes alterações sem previa licença da municipalidade que marcará o alinhamento, multa de 10$000. a) palavra
reedificação se applica a qualquer conserto na frente do prédio independente de demolição total. APMN. Livro
de Registro das Decisões, Resoluções e Leis do Conselho Municipal de Nazareth, 1893-1915, p. 39v – 52v.
388
Art.144. Quem encontrar animal alheio em seus terrenos deverá apprehendel-os e remetel-o com declaração
de duas testemunhas ao curral do conselho, dando aviso immediatamente ao fiscal. APMN. Livro de Registro
das Decisões, Resoluções e Leis do Conselho Municipal de Nazareth, 1893-1915, p. 39v – 52v.
167

tendo, inclusive, efetuado o pagamento. Ambos possuíam um giro comercial declarado no


montante de 10:000$000 em 1904389. Esse padrão econômico mediano de 15:000$000 era o
perfil de apenas 15% das casas comerciais de Nazareth na virada dos séculos.
A dificuldade de encontrar o capital comercial dos outros estabelecimentos,
especialmente das casas de molhados e açougues de ultimas classes, bem como as quitandas
que juntas figuravam como a maioria dos infratores, deve-se em parte a embaraçada
documentação que ao fazer determinados registros negligenciava alguns dados em detrimento
de outros. Ou seja, tal segmento comercial, apesar de ser bastante representativo nos registros
de pagamentos de multas por infrações, não merecia o destaque da burocracia municipal,
estadual e os jornais locais, exceto quando se tratava de discipliná-los, fiscal ou moralmente.
Isso, por sua vez, possibilita sugerir algumas questões: 1) a recorrência e reincidência das
infrações das casas comerciais menos abonadas davam-se por conta da necessidade da
continuidade das suas atividades; 2) o pagamento das multas, majoritariamente por um
público especifico, revela para quem voltaram-se as posturas; 3) o pagamento das multas
estava condicionado ao empenho das autoridades públicas em imprimir seu poder.
Tais pontos nos permitem afirmar, portanto, que apesar das regras do Código de
Posturas serem transgredidas corriqueiramente, a aplicação e execução das multas
pecuniárias eram delimitadas pela função/ocupação/peso econômico e social que os
transgressores possuíam no cotidiano local, influenciados, em grande parte, por onde se
davam tais transgressões. Afinal, a desodorização do espaço e a civilização dos costumes
eram partes integrantes do processo de renovação e embelezamento urbano que previam, entre
outras coisas, criar e garantir locais para o desfrute dos grupos mais abastados da sociedade,
extinguindo tudo que remetesse as noções de atraso, vícios, degeneração e hábitos
destabilizadores dos “tempos modernos” anunciados com a República brasileira. Mas, como
demos indícios e sugerimos ao longo dessa dissertação, além das infrações e, sobretudo, em
decorrência destas, algumas estratégias tiveram de ser adotadas pelos “indesejáveis” para
conseguir driblar as autoridades e garantir sua sobrevivência e dos seus.

III. Quando “a astúcia enfrentava à força”: contestações e negociações

Se os últimos anos do século XIX agitaram os ânimos e propuseram uma modificação


dos costumes da população nazarena, é possível afirmar que o ano de 1893 foi, entre outros,

389
AFEM. Jornal O Regenerador. Nazareth, 25 de Setembro de 1904. Ano XLIII. Nº 22. p. 2.
168

um dos mais significativos. Naquele ano, em 13 de fevereiro, na Secretaria da Intendência, no


Paço Municipal, situado na Praça da Municipalidade, a senhora Maria Lauriana de Jesus
Rebello, quitandeira, vendedora dos quitutes e bebidas espirituosas na Travessa do Monte
Bello, margem direita do rio Jaguaripe, registrou o seguinte requerimento ao Intendente Dr.
Alexandre Sobrinho:

[...] requerendo o perdão da multa de 30$000 que lhe fora imposta


pelo fiscal, digo que fora imposta pelo fiscal a seo marido Manoel
Henrique da Silva Rebello, alegando não ter seo marido casa de
negocio e sim ela uma pequena quitanda em casa de sua mãe e estar
onerada com cinco filhos menores e que não tem um marido que cuide
em seos deveres.390

Registrado no livro do expediente daquele turno e posteriormente analisado pelo


intendente municipal, o requerimento foi indeferido, sendo julgada “infundadas as allegações
da supplicante”. Igualmente, na ânsia de ser isenta da multa, e contestando ação do fiscal
municipal, a senhora Anna Maria da Rocha Peixoto, em 20 de abril de 1893, fez o seguinte
requerimento na secretaria da mesma intendência:

[...] impetrando a graça de ser dispensada da multa que lhe fora


imposta pelo fiscal municipal, alegando ser quase octogenária, em
intimo estado mórbido e por isso paupérrima, tendo um pequenino
negocio na casa em que reside de esmola.391

Verifica-se, portanto, dois casos de mulheres que foram à instituição municipal,


contestar a seu modo, o pagamento forçado como resultado das variadas formas de controle a
elas exercidas. Tomando como referência os dois requerimentos acima citados, ambos
formulados por “negociantes” e “mercadoras” nazarenas que foram multadas ou diretamente
penalizadas por conta de práticas vinculadas ao exercício dos negócios, percebe-se que as
legislações destinadas a regulamentar os fazeres e viveres cotidianos tinham como
contrapartida, em caso de transgressão, a força das penalidades, de modo que as multas eram
mais recorrentes, mas as prisões também eram previstas. Todavia, como fica patente, foi neste
mesmo contexto que se deu a incidência de atitudes de contestações e/ou negociações da
população ante as regras normatizadoras impostas pela administração da cidade de Nazareth.

390
APMN. Livro de Registro de Expediente da Intendência Municipal de Nazareth, 1893-1900, p. 5
391
APMN. Livro de Registro de Expediente da Intendência Municipal de Nazareth, 1893-1900, p. 14
169

Em 1893, por exemplo, antes da reelaboração do Código de Posturas, de fevereiro a


agosto, os livros do poder municipal contabilizam um total de 74 casos de transgressões à lei.
41 destas pagaram devidamente as multas de forma espontânea ou forçada; 24 casos
contestaram e tiveram seus pedidos indeferidos, dos quais 22 casos nem assim pagaram;
outras 8 pessoas foram dispensadas de pagar as multas; e, por fim, há um caso em que não se
especifica a decisão do intendente. Trata-se exatamente do caso de Ana Maria da Rocha
Peixoto 392 . Assim, entre aplicações, execuções e perdões de multas de posturas, o poder
municipal intervinha na vida daqueles sujeitos que ao mesmo tempo elaboravam meios de se
livrar dos dois pesos: as proibições e as multas. Estes dados são reveladores e talvez
explicativos da ação de reelaboração das Posturas em meados de 1893.
Ainda sobre aqueles dois requerimentos, cabe considerar: como vimos, o primeiro não
obteve êxito; o segundo, apesar de desconhecermos seu desfecho, acreditamos por presunção
que a negociante octogenária se desviou como pôde da multa. Após a análise do pleito, o
intendente solicitou “que a suplicante provasse o alegado”, solicitação que não foi atendida
pela mesma; do mesmo modo, seu nome também não figura no rol dos pagamentos efetuados.
Em síntese, ambos os casos revelam iniciativas empenhadas pelas munícipes em contestação
ao controle exercido pela municipalidade sobre suas práticas e profissões, usando para isso
uma justificativa quase convincente se não fosse corriqueira: a condição de pobreza. Tais
requerimentos são exemplos das implicações das legislações editadas pelo poder público no
cotidiano da população. Representam, sobretudo, uma parcela dos inúmeros e iniciais meios
de desvio encontrados pela população, em que pese o controle exercido pela municipalidade,
tendo em vista que o indeferimento de um requerimento contestatório por parte do intendente
não significou necessariamente a obediência dos infratores.
As infrações das infrações eram cometidas corriqueiramente. Em 1893, das 37
contestações indeferidas durante todo o ano, apenas Samuel Tintilino dos Santos, proprietário
de armazém de 2ª classe no Onha e a quitandeira Maria Lauriana de Jesus Rebelo, em nome
do seu esposo Manoel Henrique de Jesus Rebelo, pagaram ao município as multas de
infrações. Estas duas multas somaram 38$000 aos cofres do município, enquanto as demais
não pagas somariam 200$000, o valor exato do previsto na receita do orçamento anual sobre
as infrações de posturas. Enquanto Samuel desembolsou apenas 8$000, Maria Lauriana quitou
o débito de 30$000. Em situação inversamente proporcional, a multa de valor menor foi paga
pelo proprietário do comércio mais abonado. Ainda que os valores fossem iguais, os dois

392
APMN. Livro de Receita da Intendência Municipal de Nazareth (1893-1902) e Livro de Registro de
Expediente da Intendência Municipal de Nazareth (1893-1900).
170

comerciantes estariam em condições desiguais. Por isso, o volume de pedidos de isenções era
elaborado majoritariamente pelas comerciantes mais empobrecidas. E mesmo que
comerciantes como Samuel Tintilino – proprietários de casas comerciais mais estabelecidas
na cidade e nas povoações – tivessem seus pedidos indeferidos, quitar uma multa daquelas
não onerava tanto quanto aos comerciantes de molhados, açougues e quitandas de últimas
classes.
Ademais, os requerimentos formulados representam, de todo modo, o aspecto
relacional pertinente à intervenção nos modos de vida, seja para o lazer ou para o trabalho,
provocado pelas legislações que mesmo quando não deixavam brechas jurídicas visíveis,
eram interpeladas pela força do costume e por motivos que marcavam o dia a dia dos
trabalhadores. Especialmente a primeira suplicante, Maria Lauriana de Jesus Rebello, ao
requerer o perdão da multa, justificou seu pedido através da sua condição de pobreza, por ser
mãe de cinco filhos menores e pela incapacidade do marido em cuidar dos seus deveres e
responsabilidades. Ela procurou sensibilizar o intendente, pois além da multa da abertura da
quitanda sem licença ser dela, embora tenha sido aplicada ao marido, o mesmo talvez não
tivesse argumentos aparentemente tão sensíveis, que, ainda assim, por fim, foram
considerados insatisfatórios às vistas do médico intendente. Desse modo, o apelo de Maria
Lauriana passou invisível, como talvez tivesse ela teria passado também se não tivesse ousado
em expor a sua condição feminina e de provedora do lar na oficialidade da intendência
municipal, à revelia do entendimento daqueles contemporâneos que reservavam às mulheres
espaços de submissão aos maridos e às atividades domesticas393.
Historicamente, o papel desempenhado pelas mulheres no comércio informal em
cidades como São Paulo, especialmente durante o seu processo de urbanização incipiente,
semelhante ao momento histórico que analisamos em Nazareth, era de um constante vaivém
que “marcava a dura luta de sobrevivência de uma maioria de mulheres sós chefe de
família”.394 Deste modo, a fonte em questão nos permite afirmar que Maria Lauriana poderia
ser uma dessas inúmeras mulheres que chefiavam famílias e lutavam diariamente pela sua
sobrevivência e dos seus, atuando no pequeno e informal comércio que se tornara alvo das
autoridades sedentas em modernizar o espaço urbano. Assim, requerendo perdão de multas,
reclamando sobre taxas e licenças, fazendo pedidos pessoais a fim de possibilitar condições
de trabalho ou mesmo de lazer, as intervenções de mulheres como Maria Lauriana ou Anna
Maria foram incessantes e corriqueiras e acabaram gerando um substantivo volume de papeis

393
Sobre esta questão ver: SOHIET, Rachel. Condição feminina e formas de violência...
394
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder... p. 25.
171

nos setores do Paço Municipal que, infelizmente perderam-se no tempo. Certamente a


população faziam seus requerimentos através de um procurador ou agente letrado, sendo que
estes eram, possivelmente, até os próprios empregados municipais. Entretanto, seus pedidos
eram próprios, pois eram as experiências conflituosas da vida cotidiana que pautavam o teor
das suas intervenções.
Requerimentos como das quitandeiras Maria Lauriana e Anna Maria revelavam o
perfil e condições de vida que passavam alguns transgressores. Nesse caso especifico,
estariam elas burlando a lei por conta da abertura das casas de negocio, ainda que pequeninas
e insignificantes sem a devida licença e sem o pagamento dos tributos municipais. Além de
elucidar as implicações que as posturas tiveram no cotidiano dos munícipes, e o
direcionamento da lei a uma das atividades mais influentes na economia local, qual seja, o
exercício do comércio, os pedidos das negociantes mostram que as medidas adotadas pelo
poder público tiveram incidência de modo desigual com casas comerciais e de negócios,
pequenas ou sofisticadas, ambulantes e quitandeiras, na medida em que os submetiam às
determinações como se tivessem em igualdade.
Por conta da situação de pobreza vivenciada pelas quitandeiras, ambulantes e
proprietárias de estabelecimentos do pequeno comércio, presumimos que a obrigatoriedade da
licença municipal para o exercício das suas funções tenham sido uma das medidas com
maiores implicações em suas vidas 395 . O fato é que as posturas, quando não proibiam,
dificultavam a vida de muitas quitandeiras, lavadeiras, artistas e negociantes do pequeno
comércio, através da exigência das licenças e altas taxas. Neste caso muitas mulheres
diretamente afetadas pela crescente perseguição lutaram pela sua sobrevivência, e passaram a
empregar ações políticas disponíveis no seu cotidiano mais incisivamente, a partir de uma
conjuntura desfavorável, de constante intervenção na vida urbana, pública e privada, de
delimitação de uso e ocupação dos espaços, de controle social e físico exercido sobre todos os
modos e lados, caracterizado por uma vida de pobreza aguda e de papeis informais sem
reconhecimento nem valorização, mas extremamente importantes na vida cotidiana da cidade.
Isso quer dizer que as leis, enquanto instrumentos de controle social, formuladas por um
determinado grupo em detrimento de outro, não foram capaz de adequar de imediato às
práticas sociais da população, e reações como estas se configuravam enquanto um campo de

395
Maria Odila Leite em seu estudo sobre o comercio informal e as burlas na cidade de São Paulo colonial,
asseverou que: “as posturas e as taxas municipais sobrecarregavam de despesas as proprietárias empobrecidas.”
Cf.: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder... p. 144.
172

forças que resultaram em resistências, transgressões ou, ainda, em negociações frente às


relações estabelecidas e assim não atingiram o objetivo esperado396.
Consideramos que as obrigações e limitações presentes nas posturas expressaram a
preocupação do poder público com as práticas e modos pelos quais a função do comércio e
vendas vinha se processando na cidade. Contudo, o padrão exigido não foi tacitamente aceito.
Deste modo, como o número de tentativas de burla às posturas com ou sem sucesso
constituíram práticas corriqueiras no cotidiano dos trabalhadores e outros sujeitos, aliada a
tentativa de desvio das penalidades aplicadas pelo poder municipal, optamos nesse momento,
em reunir alguns fragmentos documentais encontrados nos arquivos para reconstituir
caminhos e trajetórias de vida de alguns desses indivíduos que se embaraçaram nos falsos
limites da lei. Tal documentação permitiu visualizar, a partir de uma compreensão
“microssocial do cotidiano”397, alguns aspectos inerentes às populações pobres da cidade de
Nazareth em fins do século XIX e início do XX, cujas vidas foram marcadas por experiências
múltiplas, seja de amizades, compadrio, solidariedades, conflitos, tensões e negociações, ou
mesmo de sentimentos que marcaram a cotidianidade de sujeitos históricos que esboçaram os
caminhos, espaços e trajetórias que podem ser historicamente narradas e visualizadas a partir
da história regional e local398.
Assim, considerando que a recomposição é sempre parcial, tentaremos, na medida do
possível, reconstituir, doravante, a trajetória de vida da quitandeira Maria Lauriana de Jesus
Rebello que, com o conjunto de sua família, foi autuada pelo controle da lei, por desobedecer
ao ato normativo, e mais especificamente por ter imprimido algumas de suas experiências
cotidianas no requerimento que fez ao intendente. Nosso objetivo é compreender a
complexidade que envolvia a vida social dos homens e das mulheres naquele tempo.

396
Wellington Castellucci Júnior em estudo especializado, ao analisar situação semelhante com o comércio dos
derivados da baleia em Itaparica, indicou que os sujeitos sociais locais “articulavam variadas formas de burlar a
vigilância do poder municipal”. Cf.: CASTELLUCCI JUNIOR, Wellington. Pescadores e Baleeiros: a atividade
da pesca da baleia nas últimas décadas do oitocentos, Itaparica: 1860-1888. Revista Afro-Ásia, Salvador, v. 33,
p. 133-168, 2005. p. 166.
397
Segundo Maria Odila Leite da Silva Dias as “novas abordagens e métodos adequados libertam aos poucos os
historiadores de preconceitos atávicos e abrem espaço para uma história microssocial do cotidiano”. Cf.: DIAS,
Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder... p. 14.
398
O estudo da história numa perspectiva regional contribui para evidenciar o que é especifico de um
determinado lugar, localizando-o e inserindo-o numa realidade mais ampla da qual não estava distanciado. Ver:
ARAS, Lina Brandão de. Comarca de São Francisco: a política Imperial na confrontação nacional. In.:
OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos; REIS, Izabel Cristina Ferreira dos (Orgs.). Historia Regional e
Local: Discussões e Práticas. Salvador: Quarteto, 2010.
173

IV. Fragmentos de vidas: a trajetória da família Rebello

Em decorrência daquele requerimento anteriormente transcrito, em 04 de abril de


1893, quase dois meses depois, Manoel Henrique da Silva Rebello se dirigiu a contadoria da
Intendência Municipal com uma única tarefa: efetuar o pagamento da multa que lhe fora
imposta, em função da infração ao artigo 20 das posturas que, astuciosamente, sua esposa,
Maria Lauriana de Jesus Rebello, tentou negociar com o intendente, sem sucesso. As
alegações da quitandeira não convenceram o médico intendente, que, naquele mesmo ano, no
segundo semestre, tomou a iniciativa de reelaborar e colocar em prática juntamente com o
Conselho Municipal um novo Código de Posturas, sendo que o anterior lhe havia multado.
Pagava-se assim, certamente com muito sacrifício, o valor de 30$000 (trinta mil reis). Aquela
foi à multa mais alta paga entre as 78 aplicadas pelo agente fiscal durante todo o ano e
representou cerca de 12% do total arrecadado em 1893 com as multas de infrações de posturas
que havia somado o valor de 260$000.
O requerimento de solicitação de perdão de multa impetrado por Maria Lauriana
apresenta alguns dados importantes, a partir dos quais buscamos complementar o mosaico
sobre sua vida e dos seus, recorrendo a alguns poucos e esparsos documentos. Diz ela: “não
ter seo marido casa de negocio e sim ela uma pequena quitanda em casa de sua mãe e estar
onerada com cinco filhos menores”. Filha natural de Dona Clara Maria de Jesus, velha
quitandeira da cidade, e casada com o artista Manoel Henrique da Silva Rebello, natural da
freguesia da Penha, cujo enlace matrimonial ocorreu no dia 08 de Julho de 1876 na Igreja
Matriz de Nossa Senhora de Nazareth399, Maria Lauriana e sua família residiam na Rua do
Monte Bello onde as sete pessoas dividiam a pequena casa com uma quitanda.
Cabe registrar que as casas de negócio que faziam o pequeno comércio como as
quitandas eram quase sempre instaladas nos espaços fronteiriços das residências dos seus
donos e às vezes o que eram para ser um cômodo da casa, serviam como locais de trabalho
onde um simples balcão de tijolos, bancos e prateleiras de madeira garantiam o espaço que
sustentaria as famílias400. A quitanda de Maria Lauriana, instalada na casa de sua mãe, onde
residiam todos, era de 5ª classe. Lá, além das “bebidas espirituosas”, podiam ser encontrados
gêneros de primeira necessidade cultivados nos quintais, que alimentavam as pessoas e
animais, a exemplo dos cereais, frutas e verduras ou mesmo os preparados na cozinha como
as pamonhas, mingaus e bolos de aipim.

399
Livro de Matrimônios de Nazareth, ano 1859-1887. Disponível em: www.familysearch.org
400
MARTINS, Valter. Mercados urbanos, transformações na cidade...
174

Ausente da documentação que diz respeito à circulação da família no ambiente social,


o Sr. Manoel Henrique aparece apenas em documentos oficiais, quais sejam, no registro de
matrimônio, batismos, alistamento eleitoral e no pagamento da multa. Conforme a revisão
eleitoral de 1893, Sr. Manoel Henrique declarou ser artista401 e estava alistado pelo quarteirão
do Jacaré, onde residia Dona Clara Maria e Maria Lauriana tinha a referida quitanda. O Jacaré
era exatamente na Rua Monte Bello, região relativamente próxima do centro, separada da
Praça do Porto pelo rio Jaguaripe que corta a cidade. Isso atesta, portanto, que o Sr. Manoel
Henrique residia com a família, apesar da indicação da esposa “que não tem um marido que
cuide em seos deveres”. Estratégia ou não de Maria Lauriana para se livrar da multa, o fato é
que a documentação escrutinada não aponta para qualquer atuação de Manoel Henrique, seja
com a família ou em algum exercício profissional; ou seja, como disse Maria Lauriana, seu
esposo aparentemente não cumpria com as obrigações de um membro familiar. Seja como for,
estava aquela família “numa situação inversa ao esquema dominante, em que o homem se
apresenta como mantenedor do lar e a mulher permanece no recinto do mesmo”402.
Naquele mundo, Maria Lauriana deveria contar com os laços de solidariedades para
garantir o sustento da família já que não tinha um marido provedor do lar. Quando alega
possuir “uma pequena quitanda em casa de sua mãe” ela revela não apenas a solidariedade
dos seus, mas também a força do laço de parentesco, mais precisamente de sua mãe que,
vivendo ou não com ela, lhe auxiliava na quitanda, seja alugando ou concedendo o espaço.
Assim, até para pagar aquela multa que a quitandeira fez questão de taxá-la como “imposta”,
Maria Lauriana certamente teve que se valer das relações sociais que havia estabelecido
naquela rua ou mesmo da notoriedade do seu oficio e casa comercial naquela região de
população eminentemente pobre, até juntar os 30 mil reis. Acrescenta-se que, além daquela
multa, a quitandeira teria outras obrigações tributárias naquele semestre, excluída as
obrigações de subsistência familiar, deveria pagar as licenças de sua profissão e a décima
urbana da casa.
De fato era necessário ser muito resistente e corajosa para enfrentar aquele cotidiano.
Esperta e sábia, quatro anos mais tarde, quando taxada pelos fiscais do município com uma
multa por negligência, Maria Lauriana novamente alegou “pobreza aguda” à Câmara
Municipal, que em sessão ordinária do Conselho Municipal no dia 30 de Julho de 1897,
reproduzia em ata mais um requerimento da quitandeira com despacho imediato:

401
Artistas eram uma categoria ampla de trabalhadores informais urbanos que congregava os pedreiros, pintores,
carpinteiros, marceneiros, sapateiros e etc.
402
SOHIET, Rachel. Condição feminina e formas de violência... p. 158.
175

[...] pedindo dispensa de multa por negligência e abatimento do seu


débito, relativo ao imposto de industrias e profissões. Teve este
despacho deferido, isto é, fica dispensado da multa e do pagamento da
quantia relativa ao 1º semestre de 1896, cujo pagamento prova com o
documento junto.403

Provando que não estava em atraso com o imposto da profissão do ano anterior, pelo
qual foi cobrada e taxada com mais uma multa, Maria Lauriana recorreu desta vez à Câmara
Municipal, obtendo êxito. Este ato atesta mais uma vez, por já termos visto casos semelhantes
anteriormente, que a instituição da camarária era um espaço de disputa e demandas da
população ante os problemas vivenciados no cotidiano, sobretudo aqueles provocados pelas
ações emanadas do poder publico e que se relacionavam diretamente com os direitos da
população404.
De todo modo, a repetida ação fiscal sobre os trabalhadores que desenvolviam
atividades no pequeno comércio é revelador de como, apesar da limitação de empregados
públicos, a execução da taxação e recolhimento dos tributos que gerassem renda ao município
aliada ao objetivo disciplinar da população era uma prioridade daquelas administrações que se
processavam no limiar do século XX.
É certo que a região do Monte Bello era onde residia a população mais pobre de
Nazareth, assim como o bairro do Camamú, na outra margem do rio, que abrigava os
pescadores e marisqueiras. Ali era rota de passagem para o ruralizado bairro da Muritiba, que
também abrigava a população negra e pobre da cidade, como já vimos no primeiro capítulo
dessa dissertação. Da Praça do Monte Bello era possível ver a efervescência das feiras na
outra margem do rio Jaguaripe, nos dias de quarta-feira e aos sábados. Para dali chegar a
Praça do Porto, dirigir-se às ruas onde estavam localizados os principais comércios de bens e
serviços da cidade, bem como comparecer ao Paço Municipal para fazer suas reclamações,
pedidos e requerimentos, Maria Lauriana e sua família tinham duas opções: atravessar o rio
Jaguaripe à canoa ou qualquer outra embarcação pequena, ou partir pela extensa Rua dos
Coqueiros, atravessando a ponte da Conceição e escolhendo o caminho entre a Rua do
Comércio ou a Barão Homem de Mello, permeando seus becos e travessas. Certamente estes
foram os caminhos percorridos pela família até a construção da ponte que ligaria a Praça do

403
APMN. Livro de Atas do Conselho Municipal de Nazareth, 1897. p. 05 verso e 6.
404
Sobre a relação dos trabalhadores com a Câmara Municipal, ver: TERRA, Paulo Cruz. Cidadania e
trabalhadores: cocheiros e carroceiros no Rio de Janeiro (1870-1906). Tese de doutorado. Niterói: UFF/ICHF,
2012. SOUZA, Juliana Teixeira. Dos usos da lei por trabalhadores e pequenos comerciantes... 2009.
176

Porto a outra margem do rio, encurtando o caminho. Mas isso só chegou para os netos de
Maria Lauriana, nos idos da década de 1950.
Como chefe de família, Maria Lauriana teve que percorrer vários caminhos da cidade
de Nazareth, à canoa ou à perna, para criar seus filhos, que não eram poucos, e negociar os
desafios colocados na sua luta pela sobrevivência. Talvez pela experiência da sua genitora,
enquanto mãe solteira, e as próprias experiências de pessoa pobre que se constituiu como
negociante do pequeno comércio certamente desde muito cedo, sobretudo porque era filha
única, e que volta e meia sofria a disciplina do poder público, Maria Lauriana destinou aos
filhos a sua profissão de negociante. Tudo indica que ela fazia parte daquele grupo de
mulheres pobres que compartilharam experiências semelhantes às vivenciadas no processo de
urbanização incipiente da cidade de São Paulo que, “cozinhando, lavando e passando roupa,
criando galinhas, vendendo doces e salgados” garantiam seus diminutos lucros e contribuíam,
igualmente, para o crescimento daquela sociedade405.
Essa batalha cotidiana enfrentada com a solidariedade e compromisso dos seus filhos e
sua mãe fez com que, ainda em 1907, a quitandeira passasse a ser taxada pela municipalidade
como proprietária de uma casa de molhados406, Evidente que tal fato decorreu, sobretudo, do
fenômeno que se notou na passagem do século XIX para o XX, de transformação das
quitandas em casas de molhados. Entretanto, ainda que ambos estabelecimentos pertencessem
ao pequeno comércio nazareno, a permanência no ramo comercial e a possibilidade de
acúmulo de bens, em meio às perseguições das autoridades, são indícios das formas de
resistências adotadas por Maria Lauriana e sua família. Tratava-se, talvez do desdobramento
das suas lutas travadas no cotidiano para continuar a mercadejar na cidade de Nazareth. Se a
mudança de taxação fiscal constituía apenas o aumento dos tributos e mudança da
nomenclatura da atividade comercial, a casa de molhados parece ter prosperado na mão dos
Rebellos. A partir deste momento, um dos seus filhos mais velhos, José Dionisio da Silva
Rebello, passou a tomar para si os cuidados do comércio de sua mãe. Presumimos que não foi
pela fraqueza ou estado de saúde da sua mãe, mas pelo fato de ela ter passado a viver também
de outros negócios: a transação imobiliária ou simplesmente viver de alugueis407.
Consideramos que o início do século XX foi propulsor para as finanças da família
Rebello. Tomando como base o histórico de mulher que “vivia dos seus negócios”, Maria
Lauriana pôde afirmar nesse novo momento que era então uma família que “vivia dos seus

405
SOHIET, Rachel. Condição feminina e formas de violência... p. 393.
406
APMN. Livro de Lançamento de Impostos, Industrias e Profissões de Nazareth – 1894-1921.
407
APMN. Livro de Lançamento da Décima Urbana 1913-1936.
177

negócios”. Dada à ausência do seu esposo, embora não saibamos por quais motivos, Maria
Lauriana continuou a ser uma mulher chefe de família, contando muito com a solidariedade
dos seus filhos e da sua mãe. Se em 1893 e 1897 ela percorreu a cidade para solicitar perdões
de multas em face da sua pobreza, e pela necessidade da continuidade da sua pequena
quitanda para garantir sua sobrevivência, em 1913, vinte anos após o primeiro requerimento,
ela voltaria mais uma vez à secretaria da Intendência, desta vez para solicitar averbação de
uma casa que havia comprado408.
Verificamos que em 1913, Maria Lauriana adquiriu uma casa térrea na Travessa do
Monte Bello, mesma região em que já residia, e que usou para servir de aluguel, certamente
para aumentar as suas rendas. Até 1930, a quitandeira continuou pagando a décima urbana
deste imóvel. Em 1931, adquiriu mais uma casa, agora na Praça Monte Bello, onde passou a
residir, depois de tê-la alugado por um ano. É nesta casa que ela certamente viveu até seus
últimos anos, tendo em vista que uma transação de venda deste imóvel foi realizada entre os
anos de 1942 e 1943, ano em que ela se dirigiu novamente ao Conselho Municipal para
solicitar dispensa de pagamento de uma décima urbana, tendo o pleito deferido por já ser
responsabilidade de outra pessoa409. Esta região era tão próxima do centro urbano naquela
época, apenas separada pelo rio que os cortava, que a enchente dos anos 1940 acabou
arrasando a casa da Praça Monte Bello, com a qual Maria Lauriana havia feito a referida
transação.
Como já dissemos, seu filho José Dionísio foi quem deu continuidade ao seu ofício.
Acumulou bens na mesma região do Monte Belo, juntamente com seus irmãos Waldomiro
Rebello, Públio Fructuoso Rebello e Francisca Bárbara. Por sua vez, seus netos seguiram a
natureza do seu oficio de negociar, mas com outros produtos e de outros modos, talvez mais
sofisticados. Consta que, na década de 30, os netos “Rebellos” passaram a comercializar
tecidos nas áreas centrais da cidade410.
Para tecer tais apontamentos, mapeamos, a partir dos livros de controle do poder
municipal, os imóveis adquiridos por Maria Lauriana e seus descendentes, pesquisando quais
eram as finalidades destes imóveis. Isso nos levou a constatar que, além das atividades
comerciais, inicialmente com a quitanda e posteriormente com a casa de molhados, e todos os
seus problemas envolvendo as profissões e atividades que se tornaram alvo das legislações
municipais, a família Rebello, levando em consideração o seu aumento ao passar dos anos,

408
APMN. Livro de Lançamento de Expediente 1916-1917.
409
APMN. Livro de Atas do Conselho Municipal de Nazareth, 1942-1943.
410
APMN. Livro de Registro Comercial de Nazareth, 1930.
178

também empreendeu outras formas de lucrar e garantir o sustento. A tabela abaixo apresenta
quais as aquisições da família.

Tabela X: Demonstrativo de bens imóveis (casas) da família Rebello.


NOME ENDEREÇO FINALIDADE
Clara Maria de Jesus (Mãe) Rua Monte Bello, nº 43 Moradia
Maria Lauriana de Jesus Rebello Travessa Monte Bello, nº 03 Aluguel e
(Ref.) 2. Praça do Monte Bello, nº 17 moradia (respec.)
José Dionisio de Jesus Rebello Rua Monte Bello, nºs 5 – 7 – 12 – Moradia, aluguel
(Filho) 39 – 41 e comercio.
Publio Fructuoso de Jesus Rebello Rua Monte Bello, nº 34 Aluguel, aluguel
(Filho) Rua da Fontinha de Baixo, nº 20 e comércio.
Rua Fernão de Ataíde, nº 12 (respec.)
Francisca Barbara de Jesus Rebello Rua Monte Bello, nº 7 - 41 Aluguel
(Filha) Rua Dep. João Bittencourt, nº 40
Travessa do Monte Bello, nº 1
Waldomiro de Jesus Rebello Rua Monte Bello, nº 20 Aluguel e
(Filho) Rua 05 de Julho, nº 11 comércio (resp.)
Antonio Rafael Rebello (Neto) Rua Leandro Santana, nº 03 Comércio.
Hamilton Rebello (Neto) Rua 05 de Julho, nº 11 Comércio.
Fontes: APMN. Livro de Registro Comercial; Livro de Lançamento da Décima Urbana 1913-
1936; Livro de Lançamento do Imposto Predial Urbano 1938-1946.

Talvez pelo fato de estar relativamente próxima do centro urbano, na outra margem do
rio, considerando ainda que esta região era visualizada pelas pessoas que aportavam no cais, é
que os fiscais do município não tardaram em fazer valer a lei das posturas municipais. Quanto
a isso, já pontuamos em diversos momentos deste trabalho que o ordenamento urbano
instituído pelas posturas previa o embelezamento da cidade, sob a égide do padrão burguês
que previa “desafricanizar” as ruas411. Deste modo, as regiões que concentraram as massas
populacionais pobres que estavam à margem do ideal pretendido pelas elites políticas e
intelectuais, sofreram mais incisivamente a ação do poder público. Como a região do Monte
Bello estava relativamente próxima da Praça do Porto onde desembarcavam viajantes,
políticos, comerciantes, intelectuais e pessoas de todos os padrões de vida, o intuito da
municipalidade era normatizar as formas e locais de trabalho daquela região, em sua maioria
pequenos comerciantes e trabalhadores informais, com o objetivo de ordenar aquela paisagem
urbana constantemente movimentada por uma população pobre e negra.
411
Ver: FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Desafricanizar as ruas: Elite letrada, mulheres pobres e cultura
popular em Salvador (1890-1937). Revista Afro-Ásia. 1998-1999.
179

Esta trajetória da família começa com Dona Clara Maria de Jesus, que presumimos ter
sido uma quitandeira ambulante que constituiu-se naquela região onde residia uma população
majoritariamente negra, apesar de não termos conseguido identificar suas origens. Maria
Lauriana, formulando ações aqui e acolá, negociando e sobrevivendo, conseguiu estruturar
sua quitanda fixa, transformando-a mais tarde em casa de molhados. Seus filhos deram
seguimento aos ramos do comércio da mãe, aperfeiçoando suas casas comerciais, vivendo
delas e das transações imobiliárias. Seus netos, por sua vez, acompanhando a modernização
da cidade de Nazareth após os anos 1940, conseguiram se estabelecer no centro da cidade
com casa de tecidos e ramos finos do comércio. Trata-se, portanto de uma trajetória de
sucesso, sobre a qual ainda resta desvendar muitas questões no entrecruzamento dos esparsos
fragmentos documentais disponíveis412.
Vivendo e formulando estratégias, inicialmente, nas fímbrias do sistema, Maria
Lauriana e sua família se valeram das suas experiências cotidianas para lidar com as
problemáticas do dia-a-dia naquela cidade. As aparentes conquistas que pontuamos até aqui,
reinterpretadas a partir de fontes cada vez mais dispersas, demonstram que e as experiências
de vida desta família são um exemplo de superação das dificuldades materiais proporcionadas
àquele grupo social, justamente no período em que a pauta da cidadania se desdobrava num
tom cada vez mais excludente. Ademais, é importante analisá-la, para quebrar a regra e o
pensamento equivocado que condicionou os grupos marginalizados à anomalia e à
incapacidade de inserção de maneira dinâmica na sociedade do período pós-abolição. Neste
sentido, foi utilizando de espertezas e astúcias que diversos sujeitos conseguiram burlar e usar
das regras sociais que os relegavam à condição de seres marginalizados e incapazes de ações
independentes.

412
Como nos informa Maria de Fátima Pires, “muitas lutas e conquistas cotidianas foram alcançadas através de
negociações mais invisíveis ao registro documental.” Cf.: PIRES, Maria de Fátima Novaes. Fios da vida... p.
288.
180

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao mesmo tempo em que o poder burguês se estruturava, consolidava-


se política e administrativamente, criava instituições, difundia normas
e valores, criava leis e pautava a conduta de cidadãos, ocupava terras e
erguia fábricas, remodelava cidades e propunha novos moldes de
educação, erguia-se também uma outra República, a dos cortiços e dos
porões superlotados, das longas jornadas de trabalho, de greves, dos
botequins, das brigas de navalha, dos subalternos, enfim.413

Tratamos nessa dissertação de um processo histórico que deu margem a diversas


experiências sociais. Da instauração de padrões e normas, mas também das lutas e burlas. Dos
doutores que mandavam e de sujeitos que resistiam cotidianamente. De vidas marcadas pela
reciprocidade de ações, que se influenciaram para além da relação dominação/subordinação,
embora conjugadas pela tomada de decisões de uns, em função do comportamento de outros.
Em síntese, resgatamos, para compor essa narrativa, um conjunto de ações, reações e
vivências que não podem ser lidas isoladamente, pois além de se interpenetrarem,
correspondiam, especialmente, a uma metabolização por parte dos subalternos aos padrões
que lhes foram impostos. Afinal, como já consagrado na historiografia brasileira, as
transformações urbanas que marcaram a virada do século XIX para o XX estiveram longe de
ser um processo linear e sem conflitos 414 , e por isso sujeitos como o magarefe Manoel
Henrique da Silva, o pedreiro José Antonio da Silva, a lavadeira Constança Carolina de Jesus,
o sem profissão Severiano Primo Tabireçá, o aguadeiro Faustino de Tal, o perturbador
Tertuliano de Tal, dentre outros anônimos, marginalizados e subalternizados, vivenciaram
experiências na cidade de Nazareth que muito se aproximam da epígrafe assinalada acima.
Notamos que, o amplo crescimento demográfico da cidade de Nazareth,
experimentado na passagem dos séculos XIX ao XX, ao mesmo tempo em que provocou certa
diversificação nas atividades econômicas e produtivas, influenciou o crescimento comercial e
industrial dinamizando sua paisagem, modernizando-a, sob os planos de renovação urbana
que previam, dentre outras coisas, sobretudo a “exclusão dos indesejáveis”.
Boa parte dos sujeitos que tornaram esse trabalho mais vivo, compreensível e
significativo, exceto as autoridades e comerciantes influentes na cidade, sofreram às incisivas
investidas do poder público municipal, seja tendo seus hábitos criminalizados, com atividades

413
PESAVENTO, Sandra Jatahy. O cotidiano da República. 2. ed. Porto Alegre: Ed. da Universidade (UFRGS),
1992. p. 12.
414
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril... p. 36.
181

e práticas associadas à barbárie, à incivilidade e à falta de decência, ou mesmo sendo


onerados monetariamente por conta de várias proibições e regulamentações já aculturadas,
pública ou particularmente. Segundo o arcabouço jurídico criado para isso – o princípio da
legalidade urbana –, agir desse modo era considerado “legal” e necessário. Um entendimento
que não buscava, portanto, compreender as condições econômicas e razões que levavam
sujeitos a agir e estar fora da lei. Tratava-se, enfim, de um projeto que previa a catalisação da
inibição da circulação de gente, com tentativas que já ocorriam desde o período colonial,
acentuadas na Monarquia, quando os poderes locais fortemente controlados por fazendeiros e
comerciantes se organizaram em torno das políticas de controle social.
Aquecido no alvorecer da República, o planejamento da cidade, elaborado por estes
mesmos setores, com destaque para os Bittencourt, “avessos aos costumes populares”. Tais
figuras, ao passo em que se arvoraram em interferir no mundo das ruas, com o qual não
demonstravam tanta intimidade,415 agenciaram os micro-conflitos cotidianos, em função dos
seus planos excludentes. Deste modo, as experiências trazidas nessa dissertação nos fazem
afirmar que, apesar das tentativas, as autoridades municipais jamais conseguiram de fato
exercer um efetivo controle sobre as sociabilidades desenvolvidas nas ruas e praças da
cidade416.
Tratamos, desse modo, de um conjunto de ações de inúmeros sujeitos sociais que,
embora aparentemente “desarticulados” entre si, indicaram como as múltiplas formas de
resistência operaram. Às vezes surdas e difusas, mas lutas miúdas que nos revelam o grau de
dificuldade de parte da população em absorver a intervenção das leis no seu cotidiano e, ao
mesmo tempo, sinais comportamentais de defesa dos seus costumes. Assim, os exemplos de
vida como da família da quitandeira Maria Lauriana de Jesus Rebelo, dentre outros inúmeros
sujeitos presentes ao longo dessa dissertação, cujas trajetórias não conseguimos recompor, nos
acenam para a possibilidade de enxergar suas transgressões cotidianas como elemento
importante no desafio de atenuar o desconforto e as torturas impostas às vidas da população
pobre, desprivilegiada e excluída de diversos modos no período em destaque.
Esperamos que esse estudo tenha contribuído para elucidar questões referentes ao
conflito histórico de exclusão dos pobres e de suas práticas nos principais arruamentos da
cidade de Nazareth – um conflito ainda não resolvido, cujas raízes ultrapassam o recorte
temporal desta pesquisa. Ademais, considerando o fato de que este estudo não pretende nem

415
SANTOS, Edmar Ferreira. O poder dos candomblés... p. 56.
416
FILHO, Alberto Heráclito Ferreira. Quem pariu e bateu, que balance!: mundos femininos, maternidade e
pobreza: Salvador, 1890-1940.Salvador: Centro de Estudos Baianos, 2003. p. 98-118.
182

conseguiria encerrar tal discussão, acreditamos que propostas de ampliação dos indicativos
que aqui fizemos colocam-se no horizonte historiográfico, possibilitando explorações mais
contundentes das trajetórias de vida dos trabalhadores do mundo rural e urbano, muitos dos
quais considerados itinerantes, a fim de se compreender de forma mais apropriada as
condições de vida e trabalho destes sujeitos, bem como as faces do desenvolvimento urbano
no Recôncavo pós-abolicionista. Considerar e priorizar os marcadores de gênero, raça e classe
será indispensável para ampliar a emergência dos excluídos, seus espaços de circulação e
projetos de vida, uma vez que eram estes os principais pré-requisitos que tornavam as pessoas
alvo da justiça, das autoridades e dos projetos que vimos nessa dissertação.
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193

ANEXOS

Anexo I: Porto de Nazareth e seus saveiros (1862)

Fonte: Coleção Gilberto Ferrez - Acervo do Instituto Moreira Sales417

Anexo II: Ponte da Conceição

Fonte: Camillo Vedani – Acervo pessoal de Jackson Freitas

417
Fotografia de Camillo Vedani. Fotógrafo e professor. Italiano, iniciou suas atividades fotográficas na cidade
do Rio de Janeiro em 1853, exercendo ainda a função de professor de desenho. Possuiu estúdios à rua da
Assembléia 76 e, posteriormente, à rua do Ouvidor 43; tendo atuado ainda em Salvador (BA) no início da década
de 1860. Inquestionavelmente foi um dos mais talentosos fotógrafos paisagistas a trabalhar no Brasil durante o
século passado, sendo dono de um estilo arrojado que o aproxima da estética fotográfica contemporânea. Seus
trabalhos estão preservados no Acervo Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro (RJ). Disponível em:
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&cd_verbet
e=1313&cd_item=1&cd_idioma=28555 (Acesso: dia 17/07/2014)
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Anexo III: Praça da Municipalidade (Atual Dr. Alexandre Bittencourt)

Fonte: SAMPAIO,Gastão. Nazaré das Farinhas...

Anexo III: Antigo Solar dos Bittencourt (Atual Abrigo Paulo de Tarso)

Fonte: Arquivo Pessoal Sr. Jackson Freitas


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Anexo V: Locomotiva da Tram Road Nazareth

Fonte: Arquivo Pessoal Sr. Jackson Freitas

Anexo VI: Motores da Cia Hidro Elétrica Fabril

Fonte: Arquivo Pessoal Sr. Jackson Freitas

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