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4*6 I JOHN D.

French

89 José Aranha de Assis Pacheco, Prevenção de dissídios trabalhistas. São Pau


lo: Imprensa Gráfica da Revista dos Tribunais, 1945, pp. 93-94.
90 Thomas Flory,Judge andjury in imperial Brazil, 1808-1871.Austin: University
ofTexas Press, 1981, pp. 149, 182.
91 Olyntho V. Scarmuzzi, Memória de um ex-polícia especial (obsessão ao po
der). Rio de Janeiro: Revista Continente Editorial, 1981, pp. 57, 69, 84, 86.
92 Entrevista com Philadelpho Braz, 17 de agosto de 1991, em Santo André.
93 Entrevista com Philadelpho Braz, 17 de agosto de 1991, em Santo André;
Marcelo Badaró Mattos et al. (eds.). Greves e repressão policial ao sindi
calismo carioca 1945-1964. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Rio de Janei
ro, Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado de Rio de
Janeiro, 2003.
94 Entrevista com Philadelpho Braz, 17 de agosto de 1991, em Santo André.
95 Entrevista com Philadelpho Braz, 17 de agosto de 1991, em Santo André.
Peruge, mencionado por Braz, é um tipo de doce europeu.
96 Entrevista com Philadelpho Braz, 17 de agosto de 1991, em Santo André.
DIREITOS POR LEI OU LEIS POR DIREITO?
POBREZA E ÀMBICOiDADE LEGAL NO ESTADO NOVO*

Brodwyn Fischer

Introdução

Em novembro de 1939, um trabalhador rural chamado Rosário


Patané escreveu a Getúlio Vargas de um hospital público no Rio
de Janeiro.' Aos 63 anos de idade,"brasileiro, e como tal [...] re
servista da 2^ Linha do Exercito Nacional", Patané vivia no Morro
de São Carlos, no centro da cidade. No entanto, assim como acon
tecia com um número surpreendente de habitantes urbanos, seu
trabalho se dava nos distritos ainda rurais da cidade, num pequeno
lote ao longo da Estrada de Ferro Rio D'Ouro, comprado "a pres
tações mensais"e cultivado com "plantas Nacionais".^ Após 35 anos
"de intenso trabalho" nesta e em outras terras, fora atingido por
uma "fatal moléstia" dos pulmões, que o deixara hospitalizado, in
capacitado para o trabalho e de pagar por sua terra ou sustentar
seus filhos. Com sua família "na mais desoladora miséria" e suas
terras abandonadas havia quatro meses, Patané escreveu a Vargas
uma "suplica" de quatro páginas, em suas palavras,"certo que na
Vossa bondade e humanitário coração a recebereis com aquele
carinho e consideração atendendo a justiça e caridade que Vos foi
por Deus confiada como Chefe Supremo de uma Nacionalidade
n'esta terra, enquanto depois da jornada recebereis a recompensa
no Céu".
A carta de Patané foi uma entre as milhares enviadas a Vargas
por pessoas pobres, ao longo dos anos 1930 e 1940.^ Como tantas

* Tradução de Cristina Meneguello.


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outras, ela habilmente se apropriava das idéias divulgadas pelo go


verno sobre trabalho, família e nacionalismo, em benefício de um
pedido de auxílio pessoal. Escritas principalmente durante uma
época de opressão e na esperança de obter benefícios concretos de
um líder cuja filosofia moral e social era bem conhecida, cartas como
a de Patané não revelam totalmente o que se passava na cultura polí
tica popular."^ Permitem, porém, vislumbrar de forma notável a mi-
ríade de modos concretos por meio dos quais os brasileiros pobres
esperavam beneficiar-se do regime varguista.
Particularmente importante a esse respeito é o fato de os pedi
dos dessas cartas terem sido feitos com base em uma lógica dual: de
um lado demandavam auxílio como um direito legal; de outro,como
uma forma de caridade ou de obrigação patronal. Nesse sentido, a
carta de Patané era bastante típica. O que nela há de incomum é sua
capacidade de articular claramente a divisão entre caridade e jus
tiça, percebendo de que formas a legislação da era Vargas tornava
formal essa divisão. A seu humilde primeiro parágrafo seguia-se
uma atípica e crítica série de "considerações necessárias que mui
to põem em relevo os grandes benefícios" que Vargas trouxera aos
brasileiros.Tais considerações centravam-se na exclusão dos"traba
lhadores do campo"das aposentadorias e seguros contra acidentes.
Para Patané, a lógica era clara. A "clarividencia e estrema bonda
de" de Vargas levaram-no a instituir "a salvação de todo povo bra
sileiro com lhe conceder caminho certo e patriótico da parte moral
e instrutiva, bem como garantia certa e segura no que diz a respeito
da sua vida econômica e individual". Como parte disso,"com a Vos
sa inteligente organização social, fizeste com que, todas e qualquer
camada social trabalhadora do Pais, goze de uma tal garantia que
não ha atualmente ser humano no Brasil que fique ao léu da sua
sorte, quando por infelizidade ficar invalidado para o serviço
Organizados em sindicatos, com contribuições regulares, os traba
lhadores de todo o país estavam agora garantidos."Nada mais cousa
mais Santa e Justa..."
Não obstante, a legislação não estava completa:"ha uma classe
de trabalhadores que ficou a margem da Lei pessoas que "ali
mentam todos os demais, e [...] cooperam com a parcela do seu
Direitos por lei ou leis por direito? |419

trabalho, para a grandeza do Brasil". Sua exclusão era apresentada


por Patané como uma falha lógica; se a proteção era justificada pelo
trabalho duro e pelos serviços prestados à família e à comunidade,
por que esses trabalhadores eram excluídos? Por que ele escrevia
para pedir "caridade" quando outros podiam exigir os mesmos be
nefícios como direitos? Nos dois anos que se seguiram, os ministros
de Vargas deram respostas insatisfatórias à demanda de Patané; mes
mo que muitos vissem a injustiça da situação, não havia espaço
para uma solução dentro dos limites de uma legislação traba
lhista incipiente. No final, ele foi avisado de que uma lei provisó
ria de 1939 suspendera a execução de hipotecas em terras rurais,
e instruído a ir ao Palácio do Catete para conhecer certas provi
dências caritativas preparadas para ele. A condição de trabalhador
rural de Patané impedia sua admissão em um terreno onde os tra
balhadores, como tal, exigiam e lutavam por direitos; em vez disso,
a ele restava o terreno inferior dos pobres que, individualmente,
negociavam caridade com um Estado beneficente.
O dilema de Patané não era apenas seu, e sua experiência põe
em relevo dois importantes (e pouco estudados) aspectos da histó
ria social urbana pós-1930. Patané era parte de um grupo enorme,
entre os pobres urbanos, cujo status de"trabalhadores"era altamente
instável. Essas pessoas (agricultores, trabalhadores autônomos ou
domésticos, ou trabalhadores informais em fábricas, na constru
ção e no transporte) podiam descrever a si mesmas como"trabalha
dores" no sentido literal do termo, significando que trabalhavam
para seu sustento, ou de forma defensiva, para se distinguirem de
malandros e marginais.^ A natureza de seu emprego e a ausência
de organização formal, porém, colocavam-nos numa posição mar
ginal em relação aos "operários", que dominavam o ativismo e a
política trabalhista. Graças a estudos recentes, podemos hoje com
preender melhor o que a transformação legal e política durante a
era Vargas significou para os pobres que eram considerados "tra
balhadores" dentro dos limites da legislação trabalhista e dos movi
mentos políticos da classe trabalhadora.^ Mas ainda conhecemos
pouco sobre o que essas mudanças significaram para aqueles cuja
cidadania econômica e social era mais limitada, tanto pelo status
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de seu trabalho quanto por sua dificuldade de acesso a recursos


materiais e sua falta de conhecimento da burocracia. Este artigo,
ao enfocar esse grupo, objetiva chamar a atenção para as diferenças
fundamentais entre suas lutas e aquelas dos trabalhadores que tão
freqüentemente estão no centro dos estudos de história da era
Vargas. Enquanto estes, na maior parte das vezes, buscavam assumir
e estender sua cidadania econômica e social, aqueles lutavam sim
plesmente para adentrar o restrito grupo de cidadãos que podiam
exigir quaisquer direitos.
Tais direitos de exigência nunca estiveram limitados aos privi
légios trabalhistas. Assim como os "trabalhadores" dominaram os
estudos dos historiadores a partir de 1930, as leis trabalhistas do
minaram nossa visão histórica da mudança legal e da cidadania na
era Vargas. A legislação trabalhista foi a mais importante e abran
gente de todo um conjunto de leis que transformou demandas an
teriormente ignoradas em direitos sociais e econômicos, mas não
foi seu único componente. Outros dispositivos, especialmente
aqueles voltados a "proteger a família brasileira", também faziam
parte da rede de assistência social promulgada na era Vargas. Além
disso, a nova legislação social era apenas uma das três categorias
de mudança legal que iam transformando o significado dos direitos
e da regulação na vida dos pobres urbanos. A segunda categoria
pode ser descrita como uma ampliação na abrangência da lei; ela
incluía ambiciosas tentativas locais de legislar sobre áreas de inte
ração econômica e social, antes sem nenhuma regulamentação. A
terceira incluía uma miríade de tentativas para estender o alcance
da lei. Principalmente no nível dos tribunais, elas constituíam uma
especie de movimento coletivo em busca de uma aplicação mais
ampla das leis federais e estaduais já existentes. Juntas, essas cate
gorias foram tão importantes quanto a legislação social de Vargas
para a mudança do significado e da importância da lei na vida co
tidiana das populações urbanas brasileiras após 1930.
Considerando esses três movimentos de transformação legal
e os efeitos bem variados que tiveram em vários setores das classes
populares urbanas, este artigo tenta estabelecer alguns alicerces
para uma historia social da mudança legal entre os pobres do Rio
Direitos por lei ou leis por direito? |421

de Janeiro entre 1930 e 1964. Para isso, divide-se em quatro partes.


A primeira e a segunda examinam os instrumentos legais de regula
mentação do trabalho e o abono familiar, como exemplos da le
gislação social na era Vargas. A terceira parte enfoca as origens e
os impactos do Código de obras do Rio de Janeiro de 1937, um
exemplo da expansão do alcance local da lei. Ao final, o texto des
creve as decisões das cortes civis do Rio de Janeiro em disputas por
propriedades, que em conjunto representavam o crescente poder
efetivo da lei.
A tarefa de explorar a história social dessas mudanças legais
está além do escopo deste artigo. O objetivo é fornecer uma base
para essa história, ao ilustrar como esses casos se encaixam em
um padrão estrutural similar. Em todas as instâncias, para usufruir
os benefícios plenos (ou evitar as piores sanções) das leis recém-
criadas ou aplicadas, os cariocas tinham que concentrar recursos
sociais, burocráticos e materiais que, não raro, eram simplesmen
te inalcançáveis pelos que viviam na miséria. Essa separação entre
o legal e o possível — que é notável, não em si, mas por sua dimen
são e significado prático — implicava que exigências similares
poderiam ser disputadas de várias formas diferentes, dependendo
do acesso de cada indivíduo aos recursos morais, materiais e buro
cráticos. Aqueles que podiam preencher as exigências mínimas da
lei podiam disputar benefícios como estabilidade de emprego,sub
sídios em dinheiro, acesso aos serviços urbanos e habitação, em
um espaço ao menos nominalmente delimitado pelos direitos.
Aqueles que não conseguiam preencher esses requisitos travavam
tais lutas em um terreno escorregadio, definido pela lógica da ca
ridade, do clientelismo, da ameaça ou da crítica moral radical con
tra a lei em si.
É importante notar que esse tipo de separação estrutural não
resultava numa nítida fronteira entre um grupo de cidadãos-traba
lhadores e outro de pobres privados de direitos. Laços familiares
e culturais com freqüência eram mais fortes que as divisões legais,
e a mesma pessoa podia demandar cidadania em uma arena e uti
lizar uma linguagem de caridade e de imperativo moral em outra.
Porém,de fato, criou-se um espectro em que a ausência de direitos
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se tornou cada vez mais identificada à condição extrema de pobre


za, enquanto a exigência por direitos se tornou a marca — e a
esperança — dos cidadãos-trabalhadores que mais se beneficiaram
da extensão do alcance da lei. O significado social e político desse
espectro permanece um tema a ser explorado, mas sua mera exis
tência indica quanto a lei na era Vargas auxiliou a forjar o perfil
das desigualdades sociais no Brasil moderno.

As leis trabalhistas e os pobres do Rio de Janeiro


A regulamentação das profissões, a carteira profissional e o sindi
cato público definem, assim, os três parâmetros no interior dos
quais passa a definir-se a cidadania. Os direitos dos cidadãos são
decorrência dos direitos das profissões e as profissões só existem
via regulamentação estatal. O instrumento jurídico comprovante
do contrato entre o Estado e a cidadania regulada é a carteira pro
fissional que se torna, em realidade, mais do que uma evidência
trabalhista, uma certidão de nascimento cívico.^

Quase 25 anos após a publicação de Cidadania e justiça, muito foi


escrito para contestar o retrato feito por Wanderley Guilherme dos
Santos da cidadania como algo definido principalmente pelo Esta
do,® e muitos autores aprofundaram e ampliaram o significado do
trabalho, que ele localiza de forma tão central na equação da cidada
nia corporativista.^ Não obstante, sua noção de cidadania brasileira
como aquela em que o status profissional serve de mediador para o
acesso aos direitos econômicos e sociais permanece fundamental, e
a questão da importância das leis na definição do perfil da desigualda
de social brasileira continua instigante e bastante inexplorada.Traba
lhos recentes sobre o significado da Consolidação das Leis do Tra
balho (CLT) para as classes trabalhadoras nos convidam a pensar
que a criação da lei é um processo interativo, longe de estar findo
quando o estatuto é decretado.^® Mas permanece o fato de que a
CLT, uma vez publicada, contribuiu bastante para demarcar os ter
renos nos quais os direitos eram construídos na era Vargas — e esses
terrenos não eram os mesmos para todos os grupos sociais. Embora
Direitos por lei ou leis por direito? | 423

a CLT tenha indubitavelmente aprofundado o significado da cida


dania brasileira — transformado-a em algo pelo qual valia a pena
lutar —,ao mesmo tempo limitou declaradamente o acesso de gru
pos que poderiam legitimamente apresentar suas demandas na lin
guagem dos direitos.
A retórica em torno da legislação trabalhista trouxe muitas
esperanças aos cariocas comuns e pouca clareza sobre as limitações
da lei, como transparece facilmente nas cartas que eles escreveram
a Vargas. Em alguns casos, os remetentes pareciam simplesmente
ignorar as leis que corporificavam a retórica de inclusão social do
regime varguista. Tais cartas apresentavam de forma inteligente
os valores de Vargas sobre o trabalho, a família e o nacionalismo, em
favor de pedidos que se resumiam a caridade à moda antiga. Um
exemplo foi enviado em 1943 — bem depois da publicação da
CLT — por Cantidio Francisco Egsindola, que descrevia a si mes
mo como um "humilde funcionário e dedicado amigo de V. Excia
de muito anos".'^ De início escrevendo longamente sobre sua de
dicação a Vargas — "este funcionário tem tanta amizade V. Excia.
que vosso retrato na minha Pequenina casa e um immam de com-
forto" —,Egsindola prosseguia apelando ao governante, que ele
considerava "o numero um dos Presidente umanitario, que não dei
xa o filho do Pais Passa miséria". Morador do município então rural
de São Gonçalo, empregado no Rio como "guarda sanitarista de
classe D", Egsindola explicava que, com quatro crianças para ali
mentar e o transporte para pagar,"Passa dia inteiro sem comer ja
vivo fraco..." e finalizava com um pedido simples:"eu nesecito de
V.Excia um auxilio Para manutenção de meus querido filhos".
Para Egsindola e centenas de outros que, assim como ele,
esperavam que provas de trabalho, lealdade e necessidade fossem
suficientes para receber alguma ajuda, a resposta era desapon-
tadora. A carta foi encaminhada para o Ministério da Saúde e da
Educação — vista, aparentemente, como um caso de caridade e
não de assistência trabalhista —,e o próprio Gustavo Capanema
respondeu com uma breve nota de cunho legal: "o signatário po
derá melhorar sua situação como funcionário, dentro das normas
legais, ao ser promovido. Quanto ao auxilio que pleiteia para sua
424 I Brodwyn Fischer

família, o pedido poderá ser examinado uma vez baixado o Esta


tuto da Família, em elaboração". Vargas pode ter afirmado não
existirem "intermediários" entre ele e o povo brasileiro, mas de
fato tanto suas leis quanto a burocracia se transformaram em bar
reiras para o acesso dos trabalhadores pobres aos benefícios do
Estado.
Com relação às leis trabalhistas, tais barreiras eram muitas, e
bem vigiadas. Mesmo para os habitantes da cidade do Rio de Janei
ro — que viviam no epicentro da gestação da CLT —,uma série de
exigências burocráticas, cada vez mais pesadas, mediava cada passo
do acesso aos direitos. Em primeiro lugar, era necessário apresentar
documentos de identidade, sem os quais nenhum direito traba
lhista poderia ser reclamado. Embora a carteira profissional, como
afirmou Santos, fosse o mais importante, ela muito dificilmente
poderia ser obtida sem o número de outros documentos básicos,
o principal deles, a certidão de nascimento. Em 1942, uma garoti-
nha chamada Luci Cabral de Lacerda escreveu a Vargas ("por sa
ber que o senhor é muito bom para as pessoas pobres") para expli
car que desejava prosseguir com seus estudos após a escola primá
ria, mas não podia, porque"não sou registrada, e isto me entristece
porque assim não sou ninguém". A carta encontrou apoio num
memorial de Leopoldo Maciel, da Legião Brasileira de Assistência
(LBA), no qual explicou que o registro civil era "difícil para o co
mum requerente [...] muito mais ainda o é para o pobre o mise
rável", devido à ignorância burocrática e às dificuldades trazidas
por um sistema que simplesmente exigia o impossível dos pobres
do Rio de Janeiro, como certidões de casamento (quando muitos
casamentos eram informais) e testemunhas (em um contexto no
qual muitos eram migrantes, de outras partes do Brasil ou do
exterior, sem possibilidades de conseguir testemunhas de seu nas
cimento).^^ Como resultado, agências como a LBA e mesmo a Pro
curadoria-Geral do Distrito Federal — que em 1942, por um breve
período, tentou fornecer um serviço de registro civil — se viram
completamente incapazes de atender as requisições de assistência,
deixando milhares sem certidão de nascimento e, assim,sem acesso
à escada dos direitos. Embora em 1943 e 1944 a legislação federal
Direitos por lei ou leis por direito?|425

tenha tentado simplificar o processo e reduzir seus custos (por


meio dos Decretos n- 13.556 e n- 16.146), milhares continuaram
sem a certidão de nascimento. Em 1948, o primeiro censo das
favelas no Rio indicou que 23,4% dos 138.837 moradores de favelas
não possuíam certidão de nascimento, e os órgãos de auxílio la
mentavam essa exclusão até durante a década de 1960.^^
O nascimento era apenas o primeiro de uma longa lista de
dados pessoais que os candidatos a uma carteira de trabalho tinham
que comprovar, com papéis ou com o testemunho de outros pos
suidores de carteira. Os outros dados incluíam estado civil, família,
grau de escolaridade, profissão, endereço, ficha de serviço militar,
filiação ao sindicato e naturalidade. No caso dos homens,era parti
cularmente difícil fornecer prova de serviço militar. Matilde Alves
Machado, que escreveu a Vargas em 1941 para pedir um trabalho
para o marido e o internamento dos cinco filhos pequenos, expli
cou que o marido "nunca foi sorteado e não adiqueriu carteira de
reservista, sendo este um dos maiores obstáculos para ele".^^ Pro
blemas semelhantes esperavam 18 mil habitantes de favelas, maio
res de 20 anos, que não possuíam certificado de reservista em 1948.
O dilema deles provavelmente era compartilhado por muitos habi
tantes de subúrbios e casas de aluguel do Rio de Janeiro.
Como não foram mantidos registros cuidadosos da porcenta
gem de cariocas em idade de trabalho que conseguiram carteiras
de trabalho entre 1930 e 1960, é difícil mensurar o impacto total
desses obstáculos burocráticos. Uma estimativa aproximada pode
ser obtida a partir da comparação do número de carteiras emitidas
com as taxas de mortalidade e com uma estimativa da população
carioca que estaria qualificada para obter esses documentos; por
esse cálculo, 50% dos adultos qualificados possuíam carteira de
trabalho em 1940, e cerca de 75% em 1960.^® Nos anos 1970, as
dificuldades ligadas à obtenção da carteira de trabalho entre os
habitantes de favelas permaneciam tão sérias que mereceram men
ção no livro de Janice Perlman, The myth ofmarginality— o que
nos sugere que, 40 anos depois da introdução das carteiras de tra
balho, obstáculos puramente burocráticos ainda impediam os cario
cas mais pobres de obtê-las.^^
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Além disso, naquilo que Perlman classificou como"um golpe


decisivo", a mera posse da carteira profissional era apenas o início.^®
A carteira pouco ou nada significava para categorias de trabalha
dores como empregados no campo, domésticos, autônomos ou tra
balhadores informais.^' Mesmo sem números exatos, calcula-se que
essas categorias chegavam a representar de 20% a 25% da força de
trabalho carioca entre 1940 e 1960. E mais, a carteira era inútil
para aqueles cuja situação econômica não lhes possibilitava con
seguir um emprego ou mesmo obrigar seus empregadores a assi
ná-la; é provável que entre 15% e 25% dos trabalhadores industriais
e de 12% a 29% dos trabalhadores no comércio se encontrassem
nessa situação entre 1940 e 1960.^^
No momento em que um trabalhador tivesse carteira profis
sional e um emprego reconhecido, a batalha pelos direitos estava
ainda iniciando uma escalada montanha acima," mas as lutas en
frentadas por esses trabalhadores eram qualitativamente diversas
daquelas enfrentadas pelos pobres que não possuíam esses docu
mentos. Ambos os grupos sofriam com salários injustos, falta de
estabilidade no emprego e más condições de trabalho; ambos viam
a si mesmos, de forma ampla,como"trabalhadores"que mereciam,
tanto da lógica moral do Estado Novo quanto de sua própria, uma
vida digna. No entanto, alguns podiam reivindicar essa dignidade
como um direito reconhecido pelo Estado, a ser disputado na lin
guagem legal da cidadania; outros não.
O significado dessa estruturação legal para a clivagem de clas
se e para a identidade é complexo. Não faria sentido estabelecer
limites imutáveis ou claramente definidos entre os dois grupos,
tendo em vista os padrões de mobilidade e o fato de muitos "tra
balhadores" serem parentes, vizinhos ou amigos de outros excluí
dos de sua condição. Mas resta pouca dúvida de que, na era Vargas,
uma das características constituintes dos mais destituídos entre
os pobres urbanos era sua exclusão do território dos direitos.
Direitos por lei ou leis por direito? |427

O abono familiar

A CLT, com foco nos direitos e restrições da classe trabalhadora,


tem dominado os estudos das lutas sociais na era Vargas, porém
não foi o único corpo de legislação social a encaminhar demandas
e necessidades populares. Tanto no campo da lei quanto no da
palavra, a proteção à "família" era ao menos tão importante para
Vargas quanto o auxílio ao "trabalhador", e o Estatuto da Família
de 1941, nesse sentido, foi uma contrapartida importante — e
pouco estudada — da legislação trabalhista. Mesmo que,no limite,
tenha sido menos significativo no delineamento dos contornos da
cidadania econômica e social, o Estatuto da Família e a propaganda
que o antecedeu provocaram uma enorme resposta popular nas dé
cadas de 1930 e 1940, e foram vitais na construção da imagem de
Vargas como o "pai dos pobres". Não obstante, as expectativas
populares ultrapassaram as possibilidades da lei; em seu detalha
mento técnico encontram-se exigências que claramente limitaram
o significado de "família", quase no mesmo sentido em que se deli
mitou o significado de "trabalhador" na CLT.
Uma mal-ajeitada justaposição de engenharia social e solução
de problemas práticos, o Estatuto da Família de 1941 atendia as
promessas constitucionais do governo de "proteção" à família bra
sileira por meio de uma ampla gama de medidas, a maior parte
convergindo para o objetivo tríplice de ajudar as famílias pobres,
modelar o comportamento familiar e ampliar a regulação do Es
tado. Nenhuma dessas medidas ganhou maior resposta popular
do que o abono familiar, um subsídio a famílias grandes que tanto
encapsulava os três objetivos do Estatuto da Família quanto definia
suas restrições. Amplamente divulgado e desejado, o abono con
cedia ajuda em dinheiro a funcionários públicos e ao "chefe de
família numerosa [...] que percebe retribuição que de modo ne
nhum baste às necessidades essenciais mínimas da subsistência de
sua prole".
Entretanto, assim como a CLT,a retórica em torno da lei mas-
carava uma série de restrições burocráticas e morais que efetiva
mente limitavam os benefícios que os pobres mais necessitados
428 I Brodwyn Fischer

poderiam receber. Para começar, assim como em outras leis sociais


da era Vargas, os funcionários públicos recebiam automaticamente
um benefício bem maior que o de outras classes. Além disso, para
que se pudesse demandar o abono, a lei exigia certidão de casa
mento e de nascimento de todos os filhos, que deveriam ser "legíti
mos", assim como um certificado anual, algo intangível (fornecido
pela polícia local ou pelos inspetores de escola), de que os pais
"têm feito ministrar a seus filhos educação, não só física e intelec
tual, senão também moral Ao final, a gama de benefícios
garantidos pela lei estava disponível apenas aos funcionários pú
blicos com emprego e casamento estáveis, que houvessem criado
oito ou mais filhos biológicos e conseguido proporcionar "educa
ção" para todos, sem exigir que nenhum deles contribuísse com a
renda familiar — proposta inteiramente irreal, dadas as privações
econômicas dos pobres no Brasil. Aqui, mais uma vez, o amplo
apelo populista da legislação original rapidamente se desfazia na
sua aplicação, deixando em seu cerne uma série de benefícios que
constituíam privilégio individual e não direito público.
Permanecem arquivadas cerca de 95 cartas enviadas a Vargas
por cariocas que queriam obter o abono. Embora animadas de es
perança, seus conteúdos revelam que muitos percebiam que dis
tinções equívocas entre necessidades, meritórias ou não, compro
metiam a generosidade da retórica varguista. Assim, cabia a eles
negociar sua posição em uma nova ordem legal. Entretanto, ape
nas alguns poucos construíam seus pedidos como uma demanda
por direitos, demonstrando domínio das minúcias técnicas e morais
capazes de transformá-los em beneficiários. Um caso típico é o
de Otávio Almada, que escreveu a Vargas em 8 de agosto de 1941,
logo após a aprovação do Estatuto da Família:

Otávio Almada, portador da Carteira de identidade no. 504208,


brasileiro, com 43 anos de idade, casado com Julieta Cartriola Al
mada, residente em Bangú à rua Mangel Pestana no. 66 neste Dis
trito Federal, estabelecido com uma pequena oficina de concertos
de calçados, pai de 8 filhos menores, achando-se em serias difi
culdades, para mante-los e educa-os convenientemente, vem mui
Direitos por lei ou leis por direito?|429

respeitosamente pedir a V. Ex.a que se digne em mandar conce


der-me o auxilio previsto no Decreto lei n^ 3200, publicado em
Diário Oficial de 19 de Abril de 1941, assignado porV. Ex.a, em cujo
Decreto lei me acho enquadrado no Artigo 29 para que junto a estes
todos os requisitos necessários de acordo com que exige o artigo
39, deixando de selar de acordo com o artigo n^ 40 do mesmo
Decreto Lei.

Respeitosa, mas exigente, a carta de Almada era a de um ci


dadão que se esmerara em atender a todas as exigências da lei —
preparando documentos, casando-se legalmente, trabalhando de
modo regular, buscando manter e educar os filhos — e que vinha
reivindicar sua justa recompensa. Outros, como Evaristo Muniz
Coelho, trabalhador fabril que vivia em uma rua cercada por fave
las no subúrbio ferroviário de Olaria, ecoavam a linguagem meritó-
ria de Almada, mas também repetiam os toques morais e patrió
ticos da retórica de Vargas:

O motivo que obriga a dirigir-me aV. Excia., é ser operário ha 35


anos da fabrica de vidros"esberard"e ganhar deficientemente para
a manutenção de minha familia. Resolvi por isto solicitar de V.
Excia. o auxilio que suponho ter direito, pelo feliz decreto assi
nado por V. Excia. para a proteção e auxilio aos pais de numerosa
prole, e não dispor de recursos para a educação e alimentação
suficiente, capaz de satisfazer o desenvolvimento fisico de meus
filhos, para torna-los futuros homens e mulheres úteis, como partí
culas do nosso grande e prosperoso Brasil, cujo destino V. Excia.
tão bem dirige com raciocinio e patriotismo!
Apezar de perceber o salario de 18$000 por dia e 16$000 quando
trabalho na turma da noite, tenho que enfrentar serias dificulda
des na manutenção de minha numerosa familia, pois atualmente a
fabrica acha-se em uma situação tal, que só permite os seus ope
rários trabalharem 4 ou 3 e às vezes só 2 dias por semana.
Pelo que acabo de expor, apélo para o grande espirito humanitário
deV. Excia., na certeza de que serei atendido, baseado na Lei so
bre Proteção à Familia Brasileira, lei essa tão sabiamente assinada
porV. Excia.
43° I Brodwyn Fischer

É impossível determinar por que Coelho, Almada e outros


que encamparam as distinções morais e burocráticas de Vargas em
pregaram a linguagem da forma como o fizeram; se era um plano
estratégico para conseguir benefícios, ou o reflexo de uma crença
, profunda — ou rasa — na legitimidade das ligações entre trabalho,
família, burocracia e direitos feitas por Vargas. Porém, entre todas
as cartas relativas ao Estatuto da Família, estas parecem excepcio
nais por ecoar os ideais e exigências burocráticas de Vargas. Boa
parte dos remetentes, e uma porcentagem desproporcional de mu
lheres, claramente não atendiam às exigências de trabalho, docu
mentação e vida familiar demandadas pela legislação de Vargas.
Em vez disso, articulavam uma linguagem de merecimento que
não dependia de seus direitos como cidadãos, mas de uma lógica
de humanidade e dever que obrigava os ricos e poderosos a assistir
os pobres "virtuosos". Um exemplo típico é o de Ermelinda Sole
dade Campos, residente da favela Babilônia, na zona sul, que es
creveu a Vargas em 1943:

0 fim da prezente cartinha e somentes para vos implorar pedin


do-lhe um axilio para mim poder cria meus filhos, pois eu tenho
1 3 Filho sendo 7 homem e 6 mulher então eu vendo me apertada
sem comforto para dar a eles vos fasso este apelo para ver se sou
feliz, alem disso sou uma pobre doente, todo povo me diz que eu
indo Ia a vossa prezença voz me dará um axilio por isso eu sabendo
que sua Exma. e tão bondoso e que estou aqui para pedir-lhe um
axilio eu queria que sua inçelencia me favorecese ao menos em
uma casa para morar porque meu marido trabalha todos os dias
mais nao da para comer, então eu sabendo da vossa bondade venho
vos implorar para ver se sou feliz e aqui termino, confiando em
Deus e na sua inçelencia. e sem mais da menor criada Ermelinda
da Souledade Campos.^'

Não há nessa carta nenhum traço de direitos de cidadania


sendo exigidos, nenhum fornecimento de número de carteira de
trabalho ou certidões de nascimento ou casamento, nenhuma
menção a emprego estável, nem ao menos um apelo superficial
aos aspectos moralistas e eugênicos dos programas de Vargas. A
Direitos por lei ou leis por direito? |431

justificativa aqui é a necessidade, não a adequação; a necessidade


de trabalhadores — virtuosos pelo fato de trabalharem e não pela
natureza de seus empregos — sem educação ou algum patrão digno
de ser mencionado, vivendo em uma favela ilegal e incapazes de
alimentar os filhos. O apelo é à generosidade, não à obrigação
legal. Uma última carta — provavelmente não escrita no Rio, mas
tão reveladora que merece ser citada — aponta que as raízes des
sa lógica se estendiam tão longe quanto as memórias históricas
dos que as articulavam. Em 20 de janeiro de 1943, Petronilha Sil
va dos Anjos enviou uma mal redigida e quase ilegível carta a Vargas,
de um núcleo rural chamado Sítio do Grotão, provavelmente pró
ximo à estação do Retiro, da Estrada de Ferro Leopoldina, em
Minas Gerais. Lê-se:

Saudação illmo. Snr. Persidente Dr Getulio Varga com grande sen


timento pego na pena para Le escerver esta precalmosa carta Pe
dindo voso Sr um Auxilio porque me acho en grande nesesidade
porque meu esposo moreu no dia 18 de outubor de 1942. me
Deixou com 8 filho eu tenho tabem uma filha horfao de pai e mãe
en minha companiha. [...] eu fui casado No cartorio do Sr. Lan-
dislau Na cidade de S. Paulo do Muriahe no Estado de Minas. A
Baixa do meu esposo foi dado no cartorio da Lage. ele cahmava
Raimundo farnsisco dos Anjos eu me chamo Petronilha Silva dos
Anjos con 35 Annos de idade o fílho mas velho esta com 17 annos
[...] eu moro aqui perto da estasão do Retiro no tereno do Sr.
Álvaro Basto num sitio por nome grotão eu mas meus filho tarbalho
[...] de segunda a salbado de manha a noite eu peso o Sr. um Au
xilio não por que não trabalho eu mais os filho trabalhamos muitos
mais a nesesidade e muito eu nao poso por as criansas na escola
porque não poso compares roupa para eles eu peso un secoro para
comprar Livor e roupa e para compares Alimento para elles peso
o Sr. pelo Leite que vos Alimentou no seio de vosa Persada mãe
me de un conforto todos mes. D. Pedor 2 Livoru a nossa Patira
daquela terivel mancha socoreu muitos Pober Asin tanbem o noso
governador pode secorer uma Pober como eu que estou pedindo
caridade eu teno un Auxilio ja tarbalho mas sastifeita porque elles
pode ir a escola e o Sr. me desculpa Alguma falta de Litras.
Ass. Petronilha Silva dos Anjos.
432 I Brodwyn Fischer

A virtude de Petronilha, segundo seu próprio relato, reside


em sua vontade de trabalhar, em sua adequação parcial às normas
burocráticas e em seu desejo de educar e alimentar os filhos. Pouco
importava que suas condições de trabalho e residência fossem ile
gais, ou que não fornecesse nenhuma documentação para provar
o registro civil dos filhos; pouco importava que ela parecesse nem
ao menos saber em que lei poderia basear-se para pedir algum
benefício. Apelava não para as obrigações do Estado para com sua
cidadã, mas para a responsabilidade moral de um líder patriarcal
que estendia sua misericórdia aos pobres e fracos honestos, uma
obrigação que persistia mesmo depois de abolida a escravidão.
Essa era, precisamente, a lógica negada pela letra da lei na apli
cação do Estatuto da Família. Carta após carta, torna-se patente
que os apelos fundados em necessidade ou obrigação patriarcal se
riam atendidos com os parcos recursos da caridade privada ou pa
trocinada pelo Estado. O Estatuto da Família — que trazia qualifi
cação em vez de esmolas — seria aplicado àqueles cujas circuns
tâncias de família, trabalho e documentação atendessem a severas
especificações. Assim como a CLT criava um abismo de significados
morais e materiais entre o trabalho legal e o não legalizado, a lei
para a família criava um vácuo entre as famílias de cidadãos e as
famílias de suplicantes.

k lógica exciudente da legislação local: planelamento


urbano e lei de propriedade no Rio de Janeiro

A CLT e o Estatuto da Família tiveram um impacto enorme sobre


milhares de famílias no Rio de Janeiro, simbolizando e perpe
tuando a criação de uma cidadania diferenciada na Cidade Mara
vilhosa. No entanto, as leis que afetaram mais diretamente as po
pulações mais pobres do Rio não eram federais, centralmente pla
nejadas, nem sequer novas. Ao final da década de 1930 e início da
de 1940 — em parte como resposta às fases iniciais de industria
lização e à ampliação do emprego público e dos benefícios sociais
do Estado —,a cidade deu início ao mais rápido período de cres-
Direitos por lei ou leis por direito? | 433

cimento de sua história contemporânea,^^ o que acelerou duas al


terações legais, cujas origens eram bem anteriores à revolução de
Vargas. A primeira estendeu a ambição da lei, buscando moldar o
crescimento urbano caótico e desgovernado por meio de planeja
mento urbano e leis de zoneamento. A segunda, enraizada na ex
plosão dos valores das propriedades, concomitante à expcinsão e
ao adensamento urbanos, estendeu gradualmente o alcance da lei
sobre as relações de propriedade, que haviam permanecido bas
tante informais em muitas áreas desde as origens da cidade.
Nem o planejamento urbano nem a aplicação das leis de pro
priedade guardavam muita relação com a CLT e o Estatuto da Famí
lia. Para os habitantes do Rio, contudo, eles tinham muito em co
mum. Novas leis ou leis recém-aplicadas criaram a possibilidade de
direitos: o direito a condições de trabalho dignas, o direito ao auxí
lio do Estado, o direito ao pertencimento legal a uma cidade ou
região, o direito à propriedade garantido pela Constituição. Em
quase todos os casos, porém, esses direitos eram distribuídos com
base em pressupostos irreais ou iníquos a respeito das capacidades
materiais da população,da sua agilidade burocrática e das suas prefe
rências culturais. Como resultado, o acesso a esses direitos —justi
ficado, quase sempre, com base em valores aparentemente univer
sais — era bastante restrito e superficial.
No caso da legislação trabalhista e social, os excluídos dos
benefícios das leis sentiam o impacto dessa oportunidade perdida
como um prejuízo em relação àqueles que haviam sido contem
plados. No caso do planejamento da cidade e da lei de propriedade,
a perda era muito mais problemática. Sem a legalidade, os resi
dentes não podiam requerer acesso aos serviços públicos — água,
esgoto, asfalto, educação —,que eram as bases da cidadania urbana
no Rio de Janeiro em meados do século XX. E a ausência de reco
nhecimento legal também trazia conseqüências mais profundas e
imediatas: insegurança permanente, expulsão de casas e de terras
há muito cultivadas, perda de investimentos no longo prazo, rup
turas na família e na comunidade.Talvez por isso os pobres do Rio
de Janeiro tenham reagido ferozmente às mudanças legais que afe
tavam seus lares, geralmente conseguindo retirar comunidades
434 I Brodwyn Fischer

inteiras da jurisdição de autoridades legais que não reconheciam


seus direitos.

Em parte devido às pressões galopantes da expansão urbana e em


parte por causa da ampla e autocrática liberdade obtida pelos in
terventores federais durante o Estado Novo, os prefeitos do Rio
na era Vargas implementaram uma intensa transformação da pai
sagem carioca. A maioria dos projetos desenvolvidos era herdei
ra das grandes intervenções urbanas ocorridas no Rio desde o
século XIX, que incluíam tanto os enormes empreendimentos
residenciais característicos da época quanto as obras públicas e
projetos de saneamento que continuam a capturar a imaginação
dos historiadores.^^ Como aqueles projetos anteriores, estes tam
bém almejavam transformar radicalmente a geografia econômica
e social do Rio e eram igualmente controversos, devido a sua
imposição autocrática e hierárquica e sua visão elitista da ordem
social no Rio.
O Código de obras de 1937 é o contraponto regulador des
ses projetos urbanos. Embora pouco estudado, o Código — como
a mais importante e duradoura extensão da abrangência da lei local
no Rio de Janeiro do Estado Novo — teve mais impacto na vida
das populações mais pobres do Rio do que todos os projetos de
obras públicas combinados. No entanto, assim como os projetos
de transformação física, o código não se sustentava sozinho. Ele
se baseava em cerca de quatro décadas de legislação que, no con
junto, buscou casar uma ampla visão urbanística com a regula
mentação de construções e do uso do solo no Rio de Janeiro.
O Código de obras e o Código sanitário de 1903 e 1904 foram
arquétipos pioneiros nessa linhagem. Parte dos amplos projetos
transformadores de Pereira Passos e Osvaldo Cruz utilizou regras
detalhadas em questões como esgoto, drenagem e normas de cons
trução, para criar uma cidade não apenas mais saudável e segura,
mas que fosse também mais adequada à visão que seus autores ti
nham de civilização e beleza. Esse duplo objetivo explica em par
te os aspectos declaradamente irrealistas das leis de 1903-1904, tais
Direitos por lei ou leis por direito? |435^

como o banimento dos distritos centrais das construções/habi


tações coletivas feitas em madeira que abrigavam boa parte dos
miseráveis cariocas, ou a proibição de reservatórios de água em
distritos, que teriam de esperar décadas para usufruir da rede pú
blica de água e esgoto. Dado o número de pessoas que viviam em
circunstâncias inteiramente proibidas pelas novas leis, teria sido
virtualmente impossível para as autoridades da cidade aplicar tais
medidas por completo. De fato, as estatísticas sobre a construção
civil entre 1920 e 1933 indicam que milhares de casas não aten
diam a essas exigências, mesmo décadas depois da aprovação do
código.
O resultado criou um importante precedente para a legisla
ção urbana subseqüente: a força das leis de 1903-1904 não advinha
de sua aplicação, mas de seu uso potencial. Fosse por razões dire
tamente relacionadas aos propósitos declarados das leis (trans
formar o Rio em uma cidade mais segura e saneada), fosse por
motivos completamente diversos(a necessidade de livrar areas aris
tocráticas ou politicamente influentes da proximidade de popu
lações indesejáveis, ou o desejo de "liberar" certas áreas para a
especulação imobiliária), as medidas de 1903-1904 eram invocadas
a qualquer momento para agilizar a transformação radical de pon
tos espalhados pela cidade. Elas se tornaram,assim,fonte de grande
vulnerabilidade para a maior parte dos pobres do Rio, que não ti
nha condições de atender aos padrões que definiam. A lei, nesse
contexto, não servia para transformar a realidade social ou para
criar direitos confiáveis de moradia, mas para criar distinções entre
um grupo com direito à segurança da moradia e outro cujo lo
cal de residência seria marcado pela insegurança e pela ambigüi
dade legal.
Uma série de medidas subseqüentes manteve o espirito das
leis de 1903-1904, em especial os Códigos de obras de 1924-1926.^^
Porém foi somente após o final da década de 1920 que o prefeito
Antônio Prado Júnior embarcou num projeto amplo de urbanismo,
somando ao legado de Cruz e Pereira Passos uma visão urbana
holística e hierárquica que serviu de modelo imediato para o Códi
go de obras de 1937. O renomado urbanista francês Donat-Alfred
436 I Brodwyn Fischer

Agache chegou ao Rio em 1927, contratado para ser — em suas


próprias palavras — o "médico" que iria curar "Mlle. Carioca", um
"caso patológico"de "crise de crescimento"; ou o"regente da orques
tra ao qual cumprirá confiar a direção da sinfonia urbana, na qual
ele harmonizará todos os elementos". Agache era um fundador e
defensor do "urbanismo", "uma ciência e uma arte, e sobretudo
uma filosofia social'"^ que buscava criar cidades modernas, eficien
tes e esteticamente harmoniosas por meio da cuidadosa imple
mentação de "planos" compreensivos para o desenvolvimento ur
bano. Diferentemente das medidas esparsas e paulatinas que mol
daram o Rio desde o fim do século XIX,o plano de Agache atrelava
as ambições individuais dos prefeitos da cidade a uma visão discipli
nada e abrangente que afirmava levar em conta não apenas a his
tória da cidade, sua economia e seu papel no desenvolvimento na
cional, mas também suas prováveis transformações futuras.'^'
Publicado em 1930,numa edição luxuosamente ilustrada, o pla
no de Agache era ao mesmo tempo notadamente engenhoso e assus
tadoramente obtuso. O gênio do autor se manifestava no elegante
detalhamento das necessidades funcionais urbanas — articulado por
meio de metáforas biológicas de circulação (tráfego), digestão (água
e esgotos), respiração (espaços abertos); em suas considerações cui
dadosamente pesquisadas sobre a história da cidade; em sua análise
perspicaz do lugar da cidade dentro da economia e da política bra
sileiras; e em seu imaginativo delineamento da reconstrução ideal
da cidade em um maravilhoso e hierarquicamente organizado ar
quipélago de bairros, cada qual com sua função social e econômica
claramente demarcada, cercados por parques e conectados por ro
tas de automóveis e tráfego rápido.
Agache, não obstante, fechou os olhos para aspectos funda
mentais da cultura, economia e estrutura administrativa do Rio. A
história que ele produziu, por exemplo, observava atentamente
as limitações e o potencial da localização natural do Rio. Reconhe
cia o valor artístico de suas jóias arquitetônicas coloniais e do sécu
lo XIX e analisava os desafios técnicos de drenagem, distribuição
de água e rotas de circulação. Porém desse panorama estava prati
camente ausente a população da cidade, em especial os habitantes
Direitos por lei ou leis por direito?|437

com poucos recursos. Os moradores das favelas eram caracteri


zados como "uma população meio nômade"/^ com a clara impli
cação de que os espaços que ocupavam pouco significavam para
eles. A Praça Onze e o Campo de Santana — ambos centros da
cultura popular afro-brasileira — eram discutidos apenas quanto
a suas estruturas físicas."^ O retrato feito por Agache é, curiosa
mente,o de uma metrópole funcionalista e genérica, cuja paisagem
urbana é esvaziada de significação cultural e social, e cujos espaços
são destituídos de comunidade, tradição, ritual e celebração. Os ha
bitantes do Rio surgiam como células intercambiáveis em um sis
tema urbano genérico, cujas únicas identidades residiam em cate
gorias sociológicas rudes (elites, burocratas, trabalhadores de co
larinho branco, classes trabalhadoras) e cujas necessidades funcionais
eram determinadas por leis de uma natureza humana sem rosto.
Sua visão da estratificação econômica e social da cidade, além disso,
era declaradamente simplista; ele superestimava a importância da
indústria carioca e apresentava uma visão homogeneizadora das po
pulações mais pobres do Rio, classificando-as como membros de
uma genérica "classe trabalhadora", cujas necessidades funcionais
eram indiferenciadas e completamente determinadas por suas su
postas identidades de classe. Por fim,Agache parecia ignorar com
pletamente a fragilidade relativa das leis brasileiras, sua pouca capaci
dade de impor visões radicais e transformadoras a populações recal-
citrantes. O plano simplesmente assume que o governo municipal
seria capaz de apagar grandes porções da cidade velha e ao mesmo
tempo regular de forma diligente a nova urbe que brotaria de suas
cinzas.
Do início ao fim, os cidadãos e os políticos do Rio contesta
ram vivamente o direito de Agache de impor ao futuro sua própria
visão sobre a história e o propósito da cidade. Muitas reclamações
apontavam o eurocentrismo de Agache,seu favorecimento aos mais
abastados e sua incapacidade de aceitar as necessidades das popu
lações suburbanas da cidade; apontavam também as ambições clara
mente utópicas do plano. Entre os mais eloqüentes de todos os pro
testos, porém,estava um samba de carnaval de 1927,escrito em defesa
da mais antiga favela do Rio de Janeiro,que parecia então uma possível
43^ I Brodwyn Fischer

vítima do desprezo de Agache por morros cuja "lepra suja a vizi


nhança das praias e os bairros mais graciosamente dotados pela
natureza Nesse samba, o compositor Sinhô — morador
desde o nascimento da região da Cidade Nova, onde se localizava
a Favela, e um dos mais famosos sambistas gerados no fecundo
solo musical e cultural da Praça Onze — articulava de maneira
eloqüente o significado cultural dos espaços retratados como mera
matéria-prima nos planos grandiosos de Agache:

Minha cabocla, a Favela vai abaixo


Quanta saudade tu terás deste torrão
Da casinha pequenina de madeira
que nos enche de carinho o coração

Que saudades ao nos lembrarmos das promessas


que fizemos constantemente na capela
Pra que Deus nunca deixe de olhar
por nós da malandragem e pelo morro da Favela
Vê agora a ingratidão da humanidade
O poder da flor sumítica, amarela
que sem brilho vive pela cidade
impondo o desabrigo ao nosso povo da Favela

Minha cabocla, a Favela vai abaixo


Ajunta os troço, vamo embora pro Bangu
Buraco Quente, adeus pra sempre meu Buraco
Eu só te esqueço no buraco do Caju

Isto deve ser despeito dessa gente


porque o samba não se passa para ela
Porque lá o luar é diferente
Não é como o luar que se vê desta Favela
No Estácio, Querosene ou no Salgueiro
meu mulato não te espero na janela
Vou morar na Cidade Nova
pra voltar meu coração para o morro da Favela"^^
Direitos por lei ou leis por direito? ( 439

O morro da Favela existe até hoje, o que é uma evidência de


que o plano de Agache não se realizou plenamente. Publicada as
vésperas da Revolução de 1930, sua visão holística foi atacada por
todos os lados e considerada exageradamente ambiciosa. Mas o
núcleo ideológico do plano sobreviveu intacto: uma visão da cidade
como uma entidade estética e funcional, a ser moldada a partir do
alto por urbanistas "iluminados", guiados por uma visão limitada
de história e com pouca compreensão do significado vivido da
cidade. Também sobreviveram muitas de suas medidas principais,
como o desmonte do Morro de Santo Antônio (antigo local de
luta entre os moradores de favelas e os agentes públicos de saúde)
e a construção da Avenida Presidente Vargas (que demoliu a Praça
Onze e parte do Campo de Santana, assim como cerca de 550
construções, a maioria casas do que restava da população pobre
do centro da cidade). O principal mecanismo de aplicação do
plano Agache — a utilização de leis de zoneamento e de Codigos
de obras para atar cada zona a uma função específica e impor re
gras estéticas e sanitárias em uma paisagem difícil de governar
surgiu praticamente intacto no Código de obras de 1937.
O código ecoava o plano de Agache em sua divisão esque-
mática e funcional da cidade em zonas, e revelava a marca presente
nas regulamentações de Agache e de Pereira Passos de utilizar a
lei para impor uma proposta grandiloqüente, no lugar de uma po
lítica realizável. O código separou a cidade em cinco zonas e inú
meras subzonas, ratificando a visão de Agache de uma zona norte
voltada às indústrias e à habitação operária, um centro voltado ao
comércio e ao governo e uma zona sul definida pela riqueza de
seus moradores. Ainda de acordo com Agache,em contraste com
o Código de obras de 1903, o novo código proibia novas edifi
cações em favelas e impunha uma série de padrões de construção,
regulamentações sanitárias e licenças tão limitadoras que tornavam
ilegais boa parte das construções que, fora das favelas, ja vinham
abrigando os pobres do Rio. Algumas medidas foram estabelecidas
para as assim chamadas"habitações operárias", mas tais construções
ficaram relegadas a localizações distantes e indesejáveis e regu
ladas por normas bizantinas de autorização. Em suma, os usos que
44° I Brodwyn Fischer

OS pobres do Rio faziam da cidade não estavam previstos nos parâ


metros legais da construção da paisagem.
O código de 1937 nunca foi efetivamente cumprido. Mora
dores mais ricos, industriais e empresários descobriram diversos
meios de garimpar exceções em meio a suas rigorosas exigências.
O protesto popular contra a grande burocracia levou a modifi
cações significativas em 1946, assim como a anistias periódicas.
Ao longo das décadas de 1930 e 1940, as favelas e os loteamentos
semilegais cresceram como nunca, testemunhando tanto os esfor
ços de organização dos moradores das favelas quanto as ações de
especuladores inescrupulosos e políticos ambiciosos, que tinham
suas próprias razões para atuar em favor das populações pobres."
A não-aplicação do código, entretanto, não o tornou irrele
vante. Em termos simbólicos, o código formalizou uma visão de
Rio de Janeiro que marginalizava os direitos culturais e econômicos
dos mais pobres. Em termos práticos, criou uma insegurança cons
tante para todos os que vivessem fora da lei e sem sanção oficial.
Mesmo quando tinham permissão para construir a vida à parte
das regulamentações do código, os pobres do Rio sabiam que o
faziam com a condescendência dos administradores e políticos. Seus
lares eram concessões, não direitos, mantidos em constante inse
gurança por um regime legal que criava um poder aleatório e não
sancionava uma ordem pública. Assim como os que trabalhavam
não eram de fato "trabalhadores" sem a carteira assinada e famí
lias nao tinham direito aos auxílios federais sem os documentos
civis e atestados morais, os habitantes do Rio não eram dotados de
plena cidadania urbana até que seus lares recebessem o "habite-se",
que significava estarem conformes ao Código de obras de 1937.

Seguir leis como o código de 1937 era apenas um passo no cami


nho em direção à segurança residencial e à cidadania urbana. Outro
era conseguir acesso aos direitos de propriedade, cujo significado
mudou radicalmente para a maior parte dos cariocas durante a
era Vargas." Essa mudança resultava não de uma ação legislativa
substantiva, mas do fato de as leis de propriedade existentes te-
Direitos por lei ou leis por direito?|441

rem-se tornado mais relevantes para a vida cotidiana dos cariocas.


Conforme a cidade se foi expandindo, nas primeiras décadas do
século XX, o valor da terra aumentou, a especulação tornou-se
mais lucrativa, os serviços da cidade tornaram-se mais valiosos e
terrenos antes indesejáveis ou inacessíveis tornaram-se bastante
atraentes. Por essa razão, um número cada vez maior de cariocas
ia à Justiça registrar o título — legítimo ou não — de terrenos
cuja ocupação era antes apenas uma realidade sem fundamento
legal. Tal processo excluía os muito pobres,tanto posseiros quan
to inquilinos de proprietários que tampouco possuíam documentos
de posse. Em ambos os casos, sem os direitos, os moradores po
bres se viam diante do despejo, e os intermediários que podiam
decidir seus destinos eram as cortes civis do Rio de Janeiro.
A ambigüidade esteve sempre presente na lei de propriedade
no Brasil. Nesse sentido, o Rio de Janeiro era simplesmente um
microcosmo urbano de um fenômeno bem mais amplo. Em par
te, essa ambigüidade tinha origem em questões referentes ao pró
prio direito e capacidade do Estado brasileiro de regulamentar o
uso do solo. Devido á abundância histórica de terra ociosa e a uti
lidade política e econômica da posse informal da terra, as escrituras
haviam tecido uma rede apenas parcial sobre o território brasileiro
no início do século XX. Padrões relativamente bem estudados
para as áreas rurais são igualmente válidos para o Rio, onde havia
terras vazias e aparentemente sem interesse dentro dos limites da
cidade ainda no século XX,e onde muitas relações de patronagem
política e econômica haviam sido construídas com base na inse
gurança residencial, tanto nos cortiços e barracões de quintal
quanto nas favelas e loteamentos clandestinos.
Mesmo onde a regulamentação do Estado prevaleceu, o con
flito filosófico permaneceu. Estava centrado principalmente em
distinguir qual era a fonte mais legítima do direito de propriedade:
se a transação comercial, se a necessidade ou a posse. Também
essas controvérsias atravessaram séculos. O sistema de sesmaria,
existente mesmo após a Independência, privilegiava as dotações
da Coroa e a venda em detrimento da reivindicação de posse, mas
também ligava os direitos à terra a seu uso. Embora ineficiente, a
442 I Brodwyn Fischer

noção de que a legitimidade da sesmaria estava baseada em sua


utilização — juntamente com o peso dado à posse como fonte de
direitos, segundo as Ordenações filipinas e a realidade da extensa
ocupação extralegal — manteve a posse como origem de direitos
de propriedade por todo o período colonial, posição que ganhou
predomínio legal após 1822. Apesar de a lei de terras de 1850 ter
teoricamente alterado o equilíbrio em favor da transação comer
cial, o Código civil de 1916 incorporou direitos que derivavam da
posse por usucapião, mesmo quando afirmava que o princípio que
regia a propriedade legal estava assentado apenas na doação ou
na transação comercial.^® A Constituição de 1934, sancionando a
noção de que "o direito de propriedade [...1 não poderá ser exer
cido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei deter
minar", definiu as necessidades sociais como mais uma fonte de
direito de propriedade.^^ Assim, a transação comercial, a posse e
a necessidade social constituíram-se em uma tríade de princípios
conflitantes a partir da qual se originavam os direitos de proprie
dade, estabelecendo, assim, o palco para amplas batalhas jurídicas
e políticas sobre qual dessas noções deveria prevalecer.
No início dos anos 1930, a incerteza sobre o poder de juris
dição dos tribunais começou a se dissipar no Rio de Janeiro, mesmo
quando os debates sobre a origem de direitos de propriedade se
intensificavam. A medida que crescia o valor do solo, a especula
ção e o desenvolvimento tornavam-se fontes potenciais de enormes
fortunas, e ambos podiam ser mais bem obtidos a partir de uma
posse legal e rigorosa. Assim, inúmeros grupos subiram os de
graus das cortes de Justiça, buscando estabelecer a posse ou o do
mínio legal sobre terras de títulos ambíguos. Alguns eram proprie
tários que haviam deixado seus pedidos "caducarem" e agora bus
cavam consolidá-los para explorar suas terras recém-valorizadas
e protegê-las da especulação.^^ Outros eram empreendedores ur
banos, como a Companhia Predial de Saneamento, que ficou fa
mosa por se beneficiar do desenvolvimento de terras centrais e
suburbanas nas primeiras décadas do século XX. Alguns eram
grandes empresas, como a Empresa Saneadora Territorial e Agrí
cola, cujos proprietários demandaram vastos terrenos do então
Direitos por lei ou leis por direito? ( 443

rural Jacarepaguá por meio da compra de terras com títulos duvi


dosos, envolvendo-se em lutas intensas (legais e físicas) para manter
sua legitimidade.^^ Outros ainda eram especuladores de ordem
diversa, pequenos empresários como Emilio Turano, imigrante
italiano que começou como administrador de aluguéis e aos poucos
chegou a orquestrar a instalação de comunidades faveladas intei
ras — hoje conhecidas como Liberdade e Turano —,aparentemen
te com a esperança de requerer a posse das terras onde se localiza
vam.^"^ E alguns poucos eram moradores pobres de terras poten
cialmente(ou já)reclamadas,que demandavam direito de preempção
ou buscavam impedir o que viam como expulsões injustas.
Documentos que poderiam elucidar a lógica dos tribunais
na distribuição dos direitos de propriedade, em tais casos, são ra
ramente acessíveis. Nosso conhecimento sobre essas questões esta
baseado em um emaranhado de fontes: algumas cartas, poucas e
preciosas causas e, principalmente, fragmentos das decisões dos
juizes publicados na imprensa local e nos debates das Assembléias
Legislativas locais e nacional. Somadas, essas fontes sugerem que
a era Vargas testemunhou uma violenta e corrupta posse de terras
no Rio de Janeiro, que repetidamente colocou moradores e pro
prietários dos títulos em confrontos,judiciais ou não, sobre a ori
gem dos direitos de propriedade. Também revelam que as cortes
quase sempre privilegiavam o direito ao título em detrimento do
direito à ocupação ou à necessidade, bloqueando quaisquer espe
ranças que os moradores mais pobres pudessem ter de reivindicar
direitos legais sobre seus lares.
Nenhum desses confrontos é tão revelador quanto aquele
sobre títulos de terra precários em Jacarepaguá, do inicio da década
de 1930 até o fim da de 1940. Uma parcela dessa historia, alega
vam os moradores, originara-se em meados do século XIX, quan
do um grupo de escravos fora libertado por monges beneditinos.^^
Os monges lhes deram terras para cultivar, que haviam passado de
geração a geração, mesmo sem uma escritura legal. No inicio da
década de 1930, os interesses dos moradores entraram em choque
com os dos herdeiros de uma fírma de especulação, hipotecas e se
guros chamada Banco de Crédito Móvel,já então os maiores espe-
444 I Brodwyn Fischer

culadores de terras em Jacarepaguá e Guaratiba. Pelo menos uma


análise dos papéis legais associados ao caso indica que a causa do
banco estava sólida e meticulosamente documentada; a firma havia
comprado algumas terras diretamente dos beneditinos e obtido
outras por meio de empréstimos não pagos, mas todas pertenciam
legalmente a eles/® Mas no mundo dinâmico, do lado de fora dos
documentos judiciais, as coisas eram vistas de modo diferente. Um
testemunho desse "outro mundo"foi o de José de Lima Soares, mo
rador que escreveu uma carta desesperada ao presidente Vargas em
novembro de 1931,acusando os especuladores de manterem ligações
corruptas com os chefes da polícia local e de atacarem com violência
e até violentarem residentes do local, como forma de os expulsarem
de suas próprias terras. Apelidando um dos especuladores de "o
Lampião de Jacarepaguá", Lima Soares prosseguiu justificando sua
reivindicação à terra e contestando as maneiras corruptas pelas quais,
afirmava, os títulos haviam sido falsificados:

Vou esplicar a Vossa Excia. porque tem motivado essas questões,


essas terras em outros tempos pertenceu o Mosteiro de São Ben
to, porem,o mosteiro povoau o solo com seus escravos desde 1864
naquele tempo não havia documentos, e mais tarde o mosteiro
hipoteca ao Banco Credito Movei, este Banco faliu em 1891 e nunca
incomodou ninguém, nenhum situante tem Contrato de arrenda
mento com o ex-Banco Credito Movei. Ultimamente apareceu o
Sr. Manuel José Ferreira e [ilegível] Castro, filhos dos acionistas
daquele ex Banco, dizendo ser os legitimos donos dessas terras
porque os seus pais eram acionista do ex-Banco, esses espertalhões
sabendo que o povo todos analfabeto, e juntaram-se com os por-
tuguez [lista de nomes]. Conseguiram embrulhar os situante, para
agora estarem praticando crimes de todo naturesa, o tal Castro e
mais esperto esta riquissimo de dinheiro roubado do povo, di
nheiro que tem chegado até para comprar diversos autoridade
inclusive um suplente de juiz da 8® Pretória civil, ele não pode
despejar ninguém judicialmente porque não tem título que prova
ser o legitimo dono dessas terra, então os despejos são feitos vio
lentamente pelos assaltante a mando das autoridades policial,
também levo ao conhecimento de vossa Excia. que tem um outro
Direitos por lei ou leis por direito? |44^

espertalhão neste meio, que é o tabellião Castro na rua do Rozario,


este é o fabricante de escrituras falsa, peço a vossa Excia. nos
amparar com um socorro urgente, não consentir no vosso gover
no que as autoridade assim proceda; no caso de ser aberto inqué
rito as primeiras pessoa que devem ser ouvida [são][lista de nomes]
e preciso notar que o povo tem um medo terrivel do tal Castro.
José de Lima Soares.

As reivindicações de Lima Soares visavam assegurar os direi


tos dos moradores sobre as terras com base na sua longa e pacifica
ocupação, argumento potencialmente válido em termos legais. Ele
ainda foi mais além, afirmando que os tribunais estavam fazendo
vista grossa ao costume do século XIX, pois demandavam prova
documental de posse da terra a moradores cuja história na região
retrocedia a épocas em que os documentos não eram fundamen
tais para a ocupação daqueles terrenos. Como os documentos asso
ciados a esse caso foram perdidos, podemos apenas especular que
esses argumentos devem ter criado uma base sólida para uma de
manda por usucapião, e que as denúncias de Lima Soares sobre os
documentos falsificados devem ter levantado dúvidas sobre o modo
pelo qual os títulos estavam sendo produzidos. Sabemos com cer
teza que um advogado atuou vigorosamente nessa causa na 8^ Pre
tória Cível e em outras, o que evidencia que o apelo de Lima Soares
a Vargas era apenas parte de uma estratégia maior para preservar
as terras dos moradores. Ao final, porém, eles parecem ter sido
derrotados. Vargas afirmou nada poder fazer para ajudá-los e os tri
bunais parecem ter coletivamente negado essas e outras demandas
similares. Em meados do século XX, agora incorporados como
"Empresa Saneadora Territorial e Agrícola", os descendentes dos
acionistas ainda possuíam as terras em Jacarepaguá e ainda estavam
sendo criticados pela Câmara Municipal por sua voracidade por
mais terrenos. Desde aquele momento, com a expansão da Barra
daTijuca e dos distritos na região oeste do Rio, a terra em questão
foi gradualmente parcelada pelos investidores.^®
Esse tipo de resultado era comum por todo o Rio de Janeiro
entre os anos 1930 e 1960. Durante esse período, a posse infor
mal em áreas centrais foi gradualmente reduzida a algumas favelas
44^ I Brodwyn Fischer

concentradas, à medida que os moradores e encarregados dos bar


racos isolados e cortiços de quintal foram sendo expulsos em be
neficio de empreendimentos mais rentáveis.^' Comunidades maio
res tampouco tiveram seus direitos de propriedade reconhecidos;
debates intensos tiveram lugar na Câmara Municipal quando os
tribunais emitiram ordens de despejo para as favelas na Rua Barão
de Petrópolis (1941), Morro do Simão (1947 e 1951), Jacarezinho
(1951), Rua Ati, em Jacarepaguá (1954), Morro da União (1954),
Dendê (1954), Santa Marta (1954), Borel (1954), Vila do Vintém
(1955) e Maré (1955). Ocorreram algumas exceções — os des
cendentes de Emilio Turano, por exemplo, perderam na Justiça
suas reivindicações ao Morro do Turano para a argumentação do
então vereador e advogado Breno de Silveira —,mas a regra geral
era a negação dos direitos dos moradores em favor dos direitos
daqueles que se diziam donos legais. Os moradores (e os políticos
e os intermediários que fizeram suas carreiras a partir das necessi
dades deles) defendiam-se vigorosamente nos tribunais contra sua
expulsão, fato que desafia a imagem tradicional dos moradores de
favela do período como indefesos e desorganizados. Mas eles quase
sempre eram derrotados; os argumentos baseados na posse e na
necessidade eram minorados ante os títulos legais obtidos por meio
de transação comercial.
Assim como os trabalhadores sem carteira de trabalho, as famí
lias sem certidões de nascimento e os residentes sem o "habite-se",
os favelados cujos direitos eram negados nos tribunais encontra
vam-se em um espaço indefinido entre a lei e a realidade social.
Eles não podiam legalmente reivindicar seus lares, nem o podiam
aqueles intermediários que freqüentemente os alocavam em ter
ras de favelas para conseguir seus aluguéis. E o Rio não lhes oferecia
virtualmente nenhuma alternativa legal ou razoável. Assim, aos
moradores restava questionar a validade da lei, negando seu poder
de determinar a propriedade efetiva; resistiam física e politicamen
te à remoção, aceitavam como intermediários os políticos pode
rosos e "grileiros" que desejassem defendê-los nos corredores da
Justiça, ou simplesmente pegavam suas coisas e se mudavam para
outro pedaço de terra, numa situação igualmente precária.
Direitos por lei ou leis por direito?|447

E notável como essas estratégias freqüentemente deram cer


to. Os moradores resistiram fisicamente aos despejos, e a Câmara
Municipal, em resposta ao intenso iobbjentre moradores e incan
sáveis vereadores que afirmavam defendê-los, conseguia efetiva
mente bloquear todas as remoções daqueles locais anteriormente
mencionados. A despeito de ameaças continuas, as favelas do Rio
sobreviveram e se expandiram durante a era Vargas. Mas a perma
nência física dos moradores não era um triunfo dos direitos. Os
moradores permaneciam em seus lares porque sua remoção era
politicamente impossível, e não porque eles fossem reconhecidos
como ocupantes legais. Conseqüentemente, o preço da ocupação
era a dependência política e a falta de acesso permanente aos ser
viços básicos da cidadania urbana (entre os quais escolas, asfalto,
água encanada e sistema de esgotos). Essas regiões, literalmente,
se constituíram em territórios fora dos limites da lei, a expressão
física das ásperas divisões sociolegais da cidade.

Conclusão

Apenas o mais ingênuo dos leitores reagiria com surpresa a idéia


do grande abismo entre a lei e a prática — no Brasil ou em qual
quer outro lugar. José Murilo de Carvalho afirmou que esse abismo
estava no próprio coração do sistema político da Primeira Repu
blica.^^ Roberto Da Matta não foi o primeiro a considerar que o
poder legal e público é o primo pobre das redes relacionais que
continuam a moldar a vida pública no Brasil moderno. As recentes
observações de John French sobre a qualidade idealizada da CLT
ecoam estudos sobre todos os sistemas de leis herdados da tradição
continental européia, e são especialmente familiares aos estu
dantes das leis constitucionais brasileiras.^''^ E os perspicazes co
mentários de James Holston sobre a ambigüidade intencional que
permeia a lei de propriedade no Brasil sintetizam anotações espar-
samente publicadas pelo menos desde os anos 1950.^^ No contexto
de códigos e estatutos individuais, é simples ver a distancia entre a
lei e a prática no Brasil como um acidente, um engano; mas, quando
44^ I Brodwyn Fischer

a lei no Brasil é analisada de forma ampla, a ambigüidade legal


emerge em manifestações tão nítidas que se torna difícil não com
preendê-la como parte fundamental do todo.
A distância entre lei e prática pode ser amplamente reconhe
cida, mas não seu significado histórico para a sociedade brasileira.
Entre todos os trabalhos que evidenciam o papel ambíguo da lei no
Brasil, apenas poucos examinam o significado diferencial da "lei frá
gil" para os brasileiros de diferentes estratos sociais, e praticamente
nenhum atinge o papel da lei de perpetuar as divisões sociais e po
líticas no país.^^ Ao enfocar os legados comuns de ambigüidade e
exclusão deixados no Rio de Janeiro por transformações legais apa
rentemente divergentes na era Vargas, busquei trazer à tona essas
questões amplamente complexas. Os estatutos federais sobre o traba
lho e o bem-estar social tinham pouco — ou nada — a ver com os
estatutos municipais concernentes ao planejamento da cidade ou às
cortes civis no que tange à lei de propriedade. Mas todas essas in-
junções legais compartilhavam uma ambigüidade que podia ser tudo,
exceto neutra, em termos de classe. Todas foram moldadas para ser
aplicadas a uma população como por encanto liberta dos piores as
pectos da pobreza abjeta e que queria e podia seguir cegamente os
ditames sociais e morais dos governos em vigor. Aqueles habitantes
do Rio que não podiam atender às exigências mínimas em ter
mos de alfabetização, posse de documentos, estado civil, situação
econômica e conhecimento e agilidade legais — simplesmente eram
excluídos da lei, deixados para solucionar seus problemas exclu
sivamente na base da caridade e do patronato, sem recurso à lingua
gem dos direitos. A ilegalidade não era reino exclusivo dos miserá
veis, e a caridade e o patronato estimularam a prática de distribuição
de direitos, assim como ocorria em quase qualquer outra interação
entre classes na sociedade brasileira. Nesse sentido, os direitos eram
simplesmente um entre muitos outros instrumentos de que os brasi
leiros pobres podiam servir-se para prosseguir. Para muitos dos mi
seráveis, porém, a opção de reclamar direitos nem sequer existia: a
vida no reino da ambigüidade legal era imposta, e a conseqüente
vulnerabilidade e inferioridade civil permanecem o mais evidente
estigma da pobreza no Rio de Janeiro moderno.
Direitos por lei ou leis por direito?|449

NOTAS

1 Rosário Patané para Getúlio Vargas, 7 nov., 1939. Arquivo Nacional (AN),
Secretaria da Presidência da República (SPR), série 17.10, caixa 206. Nas
citações, a concordância, a sintaxe e os erros evidentes de escrita originais
não foram corrigidos.
2 Em 1940, 18.023 trabalhadores rurais foram declarados ao censo, cerca de
3% da força de trabalho no Rio. Além disso, muitas pessoas com outras pro
fissões buscavam ocupações "rurais", ocasionalmente, para aumentar a renda.
Muitos viviam no "sertão carioca", mas outros, como Patané, combinavam a
casa na cidade com o trabalho rural. Sobre a idéia de "sertão carioca", ver
Carlos Eduardo Barbosa Sarmento, Pelas veredas da capital: Magalhães Corrêa
e a invenção formal do sertão carioca. Rio de Janeiro: Cpdoc, 1998.
3 Para discussões sobre essas cartas, ver Jorge Ferreira, Trabalhadores do Bra
sil. Rio de Janeiro: FGV, 1997; CliffWelch, The seed wasplanted. University
Park: Pennsylvania State University Press, 1999; JoelWolfe,"*Father of the
poor' or *mother of the rich*?". Radical History Review^ vol. 58, 1994,
pp. 80-111.
4 Tais problemas são intensificados pelo fato de que muitas dessas cartas fo
ram provavelmente escritas por intermediários e não pelos suplicantes. Por
todas essas razões, a noção de que "o conjunto de idéias, valores, conceitos
e imagens socialmente reconhecidos e manifestados pelos trabalhadores na
correspondência" pode ser lido de forma transparente, como "a expressão
da cultura popular da época", parece ser altamente questionável (Ferreira,
op. cit., p. 23). Para alguns casos, isso era verdade; o retrato pintado por
Ferreira dos "trabalhadores" que "se apropriavam do discurso de Vargas ,
fundindo-o com seus próprios imperativos morais em busca de melhorias
individuais, provavelmente representa um segmento da cultura política
brasileira nas décadas de 1930 e 1940. Mas essas cartas são poucas, os reme
tentes, selecionados, e a escrita, estratégica. Entre os milhões que não escre
veram, havia muitos alienados por aspectos do regime de Vargas ou descren
tes de suas chances de obter algo dessa maneira. Entre os milhares que escre
veram, boa parte provavelmente se apropriou das palavras de Vargas de forma
puramente estratégica, no sentido de que as cartas não expressavam os con
ceitos genuínos de"justiça"do remetente, mas sua elaboração em um contexto
no qual Vargas poderia reconhecer suas demandas como justas.
5 O uso defensivo da identificação "trabalhador" era comum,em parte, devido
à repressão policial contra a "vadiagem" naqueles anos. Ver Olivia Maria
Gomes da Cunha, Intenção e gesto: pessoa, cor e a produção cotidiana da
(in)diferença no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2002.
Mas também possuía profundas raízes populares, algumas ate o presente.
Ver também Sueann Caulfield, Em defesa da honra. Campinas: Editora
4-So I Brodwyn Fischer

da Unicamp, Cecult, 2000; e Alba Zaiuar, A máquina c a revolta. Rio de


Janeiro: Brasiliense, 1985.
6 Ver Jorge Ferreira (org.), O populismo e sua história. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001; Alexandre Fortes et ai., Na luta por direi
tos. Campinas: Editora da Unicamp, 1999; John French, Afogados em leis.
São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001; Barbara Weinstein, For social
peace in Brazil. Chapei Hill: University of North Carolina Press, 1996;
Cláudio H. M. Batalha,"A historiografia da classe operária no Brasil: tra
jetórias e tendências", in Marcos Cezar Freitas (org.). Historiografia bra
sileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998; Angela de Castro
Gomes, A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Vértice, lUPERJ, 1988.
7 Wanderley Guilherme dos Santos, Cidadania e justiça: a política social na
ordem brasileira^ 2^ ed. Rio de Janeiro: Campus, 1987, p. 69.
8 Alexandre Fortes expressa diretamente essa crítica ao texto de Santos em
"Trabalhadores e populismo: novos contornos de um velho debate", artigo
inédito gentilmente enviado a mim. Uma crítica indireta ao retrato da cons
trução de cidadania de Santos pode ser encontrada também nas recentes
críticas ao conceito de populismo que opõem uma noção interativa do pro
cesso de construção da cidadania ao velho paradigma de um Estado benevo
lente (ou malevolente) que concede (ou coopta) uma população dócil. Ver
John French, op. cit.; Fernando Teixeira da Silva e Hélio Costa,"Trabalha
dores urbanos e populismo: um balanço dos estudos recentes" e Angela de
Castro Gomes,"O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a
trajetória de um conceito", ambos em Jorge Ferreira (org.), O populismo
e sua história, op. cit., pp. 205-72 e 17-58.
9 Ver Ângela de Castro Gomes, A invenção do trabalhismo, op. cit., e idem,
"A construção do homem novo", in Lúcia Lippi Oliveira, Mônica Pimenta
Velloso e Ângela Maria de Castro Gomes (orgs.). Estado Novo, ideologia e
poder. Rio de Janeiro: FGV, 1982; Barbara Weinstein, op. cit.
10 Fortes, "Trabalhadores e populismo", op. cit.; French, op. cit.
11 Carta de 10 de julho de 1939, AN, SPR, série 17.4, caixa 193.
12 Carta de 9 de novembro de 1942, AN, SPR, série 17.7, caixa 339.
1 3 Memorial de Leopoldo Maciel, 30 dez., 1942, AN, SPR, série 17.7, caixa 340.
14 Prefeitura do Distrito Federal (PDF), Secretaria Geral do Interior e Segu
rança, Departamento de Geografia e Estatística, Censo das favelas: aspectos
gerais. Rio de Janeiro, 1949, p. 27.
1 5 Ver, por exemplo,a publicação mensal da organização, o Boletim da "S. O.S.",
1930-1964.

16 Carta de 19 de dezembro de 1940, AN, SPR, série 17.4, caixa 277. Em 6 de


fevereiro de 1941, a carta recebeu uma resposta tipicamente concisa; o
auxílio à família teria que aguardar pelo Estatuto da Família, e a admissão
ao cargo público deveria ser obtida apenas por meio de concursos.
Direitos por lei ou leis por direito? |4^1

17 PDF, Censo das favelas. Em 1957, perante essas dificuldades, esse requisito
foi eliminado pela Lei n^ 3.359.
18 Essa estimativa, antes de mais nada, superestima a porcentagem de adultos
com carteira de trabalho, pois não leva em conta aqueles que deixaram o
Rio de Janeiro durante esses anos. Ver Brodwyn Fischer, The poverty of
law. Tese de doutorado, Harvard University. Harvard, 1999, cap. 2.
19 Janice E. Perlman, The myth of marginality. Berkeley: University of Cali
fórnia Press, 1976, p. 158.
20 Ibidem.
21 O problema dos trabalhadores rurais é tema de vários trabalhos históricos
recentes, notadamente Cliff Welch, op. cit. Outros grupos ainda deman
dam estudos extensos.
22 Todos números dos Censos econômicos e demográfícos dos recenseamen-
tos gerais do Brasil de 1940, 1950 e 1960. Ver Fischer, op. cit., pp. 167-68.
23 French, op. cit.; Fortes, "Trabalhadores e populismo", op. cit., e Na luta
por direitos, op. cit.
24 Decreto-Lei n" 3.200, de 19 de abril de 1941, regulamentado pelo Decreto
n^ 12.299, de 22 de abril de 1943. A ausência dessas medidas, amplamente
divulgadas durante o governo de Vargas, das discussões sobre legislação
social e da correspondência popular é talvez sintomática dos limites do
foco exclusivo nos "trabalhadores" por parte dos historiadores.
25 Entre outros fatores, a lei garantia que os casamentos civis podiam ser cele
brados e registrados sem pagamento de taxas; simplificava os procedimentos
para o reconhecimento legal de filhos ilegítimos; prometia bônus e auxilio-
moradia para trabalhadores legalmente reconhecidos que se casassem; aju
dava casais legalmente casados que cuidavam de forma adequada de grande
quantidade de filhos e lhes proporcionavam educação; delineava os proce
dimentos para garantir o apoio a crianças de esposas abandonadas; reduzia
as taxas cobradas por educação secundária e profissional para famílias que
tinham mais de um filho; incentivava os governos federal, estadual e local
a subsidiar instituições de caridade locais que assistissem famílias miserá
veis"; e determinava que os clubes recreativos e esportivos admitissem certa
proporção de crianças pobres sem cobrança de taxas.
26 Decreto-Lei n^ 3.200, de 19 de abril de 1941, art. 29.
27 Decreto-Lei n^ 3.200, art. 28.
28 Decreto-Lei n" 3.200, art. 39.
29 Carta de 8 de agosto de 1941, AN, SPR, série 17.4, caixa 277.
30 Carta de 8 de julho de 1940, AN, SPR, série 17.4, caixa 194.
31 Carta de 31 de janeiro de 1943, AN, SPR, série 17.4, caixa 516.
32 Carta de 20 de janeiro de 1943, AN, SPR, série 17.4, caixa 516. As elipses
indicam passagens ilegíveis ou repetidas. Não está totalmente claro, na carta,
onde vivia Petronilha; sua carta apenas diz"Estação do Retiro, Sitio do Grotào".
45^2 ( Brodwyn Fischer

Não havia "Estação do Retiro" no Rio, embora houvesse uma com esse nome
na linha férrea da Leopoldina,em Minas Gerais, próxima a outros locais mencio
nados na carta. Essa é a origem mais provável da carta, embora o fato de estar
classificada como enviada do Rio possa indicar que a remetente vivesse na Estra
da do Retiro, próximo à Estação de Bangu, em um Rio de Janeiro ainda rural.
33 Entre 1920 e 1940, a população do Rio cresceu a uma taxa anual de 2,16%;
entre 1940 e 1950, a taxa subiu para 3,05% e, entre 1950 e 1960, para
3,34%. Ibge, Recenseamentogeral do Brasil, I setembro 1940. Rio de Janei
ro, 1951; idem, VI recenseamento geral do Brasil — 1950. Rio de Janeiro,
1955; idem, VII recenseamento geral do Brasil. Rio de Janeiro, 1968.
34 Isso incluía a reconstrução radical das áreas centrais do Rio, a finalização
em 1946 da Avenida Brasil, que se tornaria a principal via de acesso aos
subúrbios da zona norte, a incorporação de imensas áreas suburbanas re
centemente saneadas pelo Serviço de Saneamento da Baixada Fluminense e
incontáveis projetos menores relativos ao crescimento dos subúrbios e à
rápida transformação da zona sul em uma área comercialmente ativa e den
samente povoada. O melhor resumo das obras públicas nesses anos perma
nece o de Maurício de A. Abreu, Evolução urbana do Rio de Janeiro, 2^ ed.
Rio de Janeiro: IPLANRIO, 1988. Para interessantes artigos recentes sobre
esses temas, ver Lúcia Lippi Oliveira (org.). Cidade: história e desafios.
Rio de Janeiro: FGV, 2002.
35 Abreu, op. cit.; Luiz César de Queiroz Ribeiro, Dos cortiços aos condomí
nios fechados. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997; Sidney Chalhoub,
Cidade febril. São Paulo: Companhia das Letras, 1996; Jaime Benchimol,
Pereira Passos; um Haussmann tropical. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca,
1990; Oswaldo Porto Rocha, A era das demolições, 2^ ed. Rio de Janeiro:
Biblioteca Carioca, 1995; Lia de Aquino Carvalho, Habitações populares. Rio
de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1990;Teresa Meade, Civilizing Rio. University
Park: Pennsylvania State University Press, 1997.
36 Decreto n® 6.000, de 1^ de julho de 1937.
37 Decreto Municipal n^ 391, de 10 de fevereiro de 1903; Decreto Federal n^
5.156, de 8 de março de 1904.
38 Decreto n^ 2.021, de 11 de novembro de 1924; Decreto n" 2.087, de 19 de
janeiro de 1925; Decreto n" 2.474, de 9 de novembro de 1926.
39 Alfred Hubert-Donat, Agache, Rio de Janeiro: extensão, remodelação e
embellezamento. Paris: Foyer Bresilien, 1930, p. 8.
40 Idem, op. cit., p. 4.
41 Sobre Agache, ver Denise Cabral Stuckenbruck, O Rio de Janeiro em ques
tão: o plano Agache e o ideário reformista dos anos 20. Rio de Janeiro:
Observatório de Políticas Urbanas e Gestão Municipal, 1996; e Luiz César
de Queiroz Ribeiro e Robert Pechman, Cidade, povo e nação. Rio de Janei
ro: Civilização Brasileira, 1996.
Direitos por lei ou leis por direito?|45^3

42 Agache, op. cit.


43 Agache, op. cit., p. 19.
44 Sobre a Praça Onze, ver Roberto Moura, Tia Ciata e a pequena África no
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1995; sobre o significado
cultural do Campo de Santana, ver Martha Abreu, O Império do Divino.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
45 O equívoco dessa percepção reside em parte no recenseamento de 1920,
que utilizou uma definição muito ampla de "indústria" e assim apresentou
de forma incorreta o grau em que as atividades produtivas do Rio podiam
ser consideradas de fato industriais.
46 É notável a forma como Agache caracteriza as reformas de Pereira Passos;
ele as apresenta como um grande triunfo da civilização urbana e ignora as
lutas violentas que acompanharam sua implementação.
47 Stuckenbruck, op. cit.
48 Agache, op. cit., p. 190.
49 Sinhô (J. B. da Silva), A Favela vai abaixo, 1927.
50 Sobre a Avenida Presidente Vargas, ver Evelyn Furkim Werneck Lima, Ave
nida Presidente Vargas: uma drástica cirurgia. Rio de Janeiro: Biblioteca
Carioca, 1990.
51 A regulação em zonas não era inédita, tampouco o era a influencia de Aga
che, evidente também no Código de obras de 1935. Mas o código de 1937
era novo na maneira pela qual detalhava e estendia suas decisões.
52 Sobre o crescimento das favelas nesses anos, ver Maurício de A. Abreu,
op. cit.; Alba Zaluar e Marcos Alvito, Um século de favela. Rio de Janeiro:
FGV, 1998; Luiz Antonio Machado da Silva,"A continuidade do 'problema
da favela'", in Lippi (org.). Cidade: história e desafíos, op. cit., pp. 220-37;
e Dulce Pandolfi e Mario Grynszpan,"Poder público e favelas: uma relação
delicada", in Lippi (org.), op. cit., pp. 238-55. Entre os poucos autores que
lidaram com os loteamentos ilegais e as favelas estão Anthony e Elizabeth
Leeds, A sociologia do Brasil urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1977; e Ribei
ro, op. cit.
53 Um terceiro passo — acesso ao aluguel — também sofreu mudanças con
sideráveis durante o Estado Novo, que não podem ser aqui consideradas
devido à limitação de espaço. Ver Fischer, op. cit.
54 Esse padrão — segundo o qual a posse da terra permanecia informal ate
que os valores aumentassem — é comum por todo o Brasil. Ver Lee Alston,
Gary Libecap e Bernardo Mueller, Titles, conflict and land use. Ann Arbor:
University of Michigan Press, 1999.
55 Sobre a ambigüidade, ver James Holston, "The misrule of law: land and
usurpation in Brazil", Contemporary Studies in Society and History, vol. 33,
n^ 4, 1991, pp. 695-725. Para discussões mais gerais sobre a lei de proprie
dade no Brasil, ver Ruy Cirne Lima, Pequena história territorial do Brasil:
4Í4 I Brodwyn Fischer

sesmarias e terras devoJutas, 2^ ed. Porto Alegre: Livraria Sulina, 1954;


Costa Porto, O sistema sesmarial no Brasil. Brasília: Universidade Federal
de Brasília, 1979; Márcia Maria Menendes Motta, Nas fronteiras do poder.
Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998; Hebe
Maria Mattos de Castro, Das cores do silêncio. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1995, especialmente cap. 4; EmíliaViotti da Costa,"Land policies:
the Land Law, 1850, and the Homestead Act, 1862", in The Brazilian empire:
myths and histories. Chicago: The Dorsey Press, 1985. Sobre as terras
municipais no Rio, ver Noronha Santos, As freguesias do Rio antigo. Rio
de Janeiro, 1965; João da Costa Ferreira, A cidade do Rio de Janeiro e seu
termo: ensaio urbanológico. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1933; Fania
Fridman, Donos do Rio em nome do rei. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
56 O clássico sobre a relação entre o poder patronal e o de proprietários é de
José de Souza Martins, O cativeiro da terra, 3"* ed. São Paulo: HUCITEC,
1986.

57 VerViotti da Costa, op. cit.; Costa Porto, op. cit.; Cirne Lima, op. cit.; Mattos
de Castro, op. cit., cap. 4; e Motta, op. cit., especialmente pp. 15-22.
58 Sobre o usucapião, ver Código civil brasileiro, arts. 550-53.
59 Constituição da República do Brasil, 16 de julho de 1934, título III, cap. II,
art. 113, n^ 17.
60 Maurício de A. Abreu, op. cit.; Ribeiro, op. cit.; Robert Moses Pechman,
A gênese do mercado urbano de terra, a produção de moradias e a forma
ção dos subúrbios no Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado, PUR-Ufrj.
Rio de Janeiro, 1985.
61 Ver, por exemplo, a causa aberta pela Associação Hospital Alemão contra
JoãoTosta de Couto, um sublocatário informal que encorajou o crescimento
de uma favela em terras do hospital no fim da década de 1930 e início de
1940. A causa não foi ganha, mas referência e transcrição parcial dela podem
ser encontradas em uma carta ao presidente Vargas enviada por Eulalia
Moreira em 4 de fevereiro de 1942, agora depositada no Arquivo da Cidade
de Rio de Janeiro, PDF, série Saúde e Assistência, 1937-1945, caixa 203,
processo 2801/1942.
62 Sobre a companhia, ver Lilian Fessler Vaz, Habitação coletiva no Rio de Ja
neiro, séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2002, pp. 41-44; a com
panhia aparece com freqüência em processos de despejo e posse nos livros
de tombo do tribunal civil do Rio. Outros exemplos são discutidos em Ri
beiro, op. cit.
63 Essa história apareceu na imprensa popular (especialmente em A Batalha),
numa carta a Vargas (citada abaixo) e em vários processos existentes no
Arquivo Nacional (ver, por exemplo, 3^ Pretória Civil, caixa 2436/208).
64 Turano é continuamente citado nos debates da Câmara Municipal entre
1946 e 1952 (Anais da Camara do Distrito Federal); também é lembrado
Direitos por lei ou leis por direito? ( 4^^

em relatos populares sobre a origem das favelas, em torno daquela que


hoje leva seu nome (ver IPLANRIO,"Cadastro das favelas", Morros da Cha-
crinha, da Liberdade e do Turano, Arquivo do Instituto Pereira Passos).
Processos de propriedade que envolviam seu nome foram constantes nos
tribunais do Rio no início dos anos 1930 (ver, em especial, os livros de
tombo da 6^ e 2^ Varas Criminais, assim como processos, no Arquivo Nacio
nal, da 3^ e 5^ Pretorias e da 8^ Vara).
65 Um interessante caso foi levado à 3^^ Pretória Civil em 1934 por Antonia
Maria da Conceição, que apresentou um processo por usucapião para re
clamar a posse de terras em Salgueiro, que ela afirmava ocupar desde 1902.
AN, 3^ Pretória Civil, caixa 2415/262.
66 Embora sua existência possa ser verificada nos livros de tombo dos tribu
nais do Rio, os processos, quando requisitados, são na maior parte dos casos
classificados como perdidos ou destruídos.
67 Carta de José de Lima Soares ao presidente Vargas, novembro, 1931, AN,
SPR, série 17.7, caixa 41.
68 Fridman, op. cit.
69 Carta de José de Lima Soares ao presidente Vargas.
70 Ver Fridman, op. cit., os Anais da Câmara do Distrito Federal, especial
mente 1951, vol. 27; e o Diário oficial, seção II, juL, 1947.
71 Em 1933, cerca de 43% de todos os barracos do Rio eram localizados em
grupos de 50 ou mais, definidos no censo subseqüente como favelas. Em
1970, essa percentagem cresceu para 70%. Ver Ministério do Trabalho, In
dústria e Comércio, Departamento de Estatística e Publicidade, Estatística
predial do Distrito Federal (1933); e IBGE, Departamento de Censos, VIII
Recenseamento do Brasil.
72 José Murilo de Carvalho, Os bestializados. São Paulo: Companhia das Le
tras, 1991.
73 Roberto Da Matta,"Do you know who you're talking to? , in Carnivals,
rogues and heroes. Notre Dame: Notre Dame University Press, 1991.
74 French, op. cit. Sobre o sistema legal herdado da Europa continental, ver
John Henry Merryman, Tbe civil law tradition. Stanford: Stanford University
Press, 1985.
75 Holston, op. cit. As observações de Holston ecoam termos teoricamente
sofisticados encontrados em artigos de revistas de direito no Rio de Janei
ro dos anos 1950. Ver Waldir Meurin,"Breves considerações sobre a lei das
favelas". Revista Forense, 186, nov.-dez., 1959, pp. 462-67; Alexandre Jose
Lima Sobrinho, "Favelas: situação jurídica e situação de fato , Revista de
Direito da Procuradoria Geral, vol. 7, 1957, pp. 515-18; e, especialmente,
Manoel de Carvalho Barroso,"Favelas: desapropriação, impeditiva de des
pejo, pagamento em apólices"(parecer). Revista de Direito da Procurado
ria Geral, vol. 7, 1957, pp. 509-14.
4^6 I Brodwyn Fischer

76 É particularmente surpreendente, nesse contexto, o artigo de Holston,


op. cit., que argumenta explicitamente que a ambigüidade legal é perpe
tuada por brasileiros de todas as classes sociais, sem diferenciar de forma
explícita os impactos nas diversas classes.
TERRITÓRIOS DE CONFRONTO
UMÂ HISTÓRIA DA LUTA PELA TERRA NAS LICAS CAMPONESAS*

Marid do Socorro Rangel

O senhor Antônio Joaquim era um morador foreiro na Zona da


Mata da Paraíba na década de 1950.Tinha a concessão de um sitio
onde plantava macaxeira, milho, inhame, feijão: "Plantava de um
tudo que a terra era boinha demais".^ Ele conta que trabalhava
com a família e que o esforço de todos garantiu, por muitos anos,
"uma vida de pobre, mas sem sustos". Para ter acesso a esse sitio,
o senhor Antônio tinha feito um acordo com o dono das terras.
Tratava-se de um ajuste claro e plenamente reconhecido por ele,
que pagava o foro, trabalhava os dias de cambão (nome dado ao
trabalho não pago nas terras do proprietário) e estava sempre a
disposição do patrão:"E era assim que nós vivia, combinado. No
dia que ele precisava, pronto! Ele mandava me chamar e eu ia . As
exigências do acordo de moradia pareciam ser compensadas pela
concessão do sítio que o senhor Antônio considerava como seu:

Às vezes, eu até esquecia que aquela terra não era minha, porque
era como se fosse, entende? Ali num tinha vigia, num tinha condi
ção, num tinha aperto. Eu cumpria o acordo,pagava o foro,e quando
precisava, trabalhava no engenho. Mas não era esse negocio de ser
todo dia da semana, era alguns dias. Era assim, tudo no respeito
daquele acordo que nós fazia quando entrava na propriedade para
pedir morada.

* Quero agradecer a prestimosa consultoria de Jose Joacir da Silva Filho, que


me ajudou a entender um pouco melhor a intricada linguagem e a lógica
dos processos judiciais.

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