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O CÂNTICO DOS CÂNTICOS

Uma Introdução

por

Gleisson Roberto Schmidt

trabalho apresentado em cumprimento parcial


aos requerimentos da disciplina
Metodologia da Pesquisa Teológica

Dr. Sebastião Lúcio Guimarães

Seminário Teológico Batista do Estado do Espírito Santo


Vitória, abril de 2003
ii

APRESENTAÇÃO

O trabalho a seguir consiste de um relatório isagógico produzido a partir da


pesquisa do livro do Cântico dos Cânticos. Pretende-se aqui apresentar as características
gerais do livro, desde sua composição e inclusão no cânon veterotestamentário até suas
diferentes tentativas de interpretação, desde as mais antigas às mais recentes. Optando
por uma destas correntes interpretativas poderemos também oferecer ao leitor a
estrutura, propósito e teologia da obra. Em toda a exposição procuraremos levantar e, na
medida do possível, resolver as dificuldades atinentes aos tópicos abordados.
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CONTEÚDO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................4

1. Título.............................................................................................................................5
1.1. Posição

2. Autoria e Data................................................................................................................6
2.1. A Posição da Corrente Teológica Liberal
2.1.1. Argumentos Contrários à Autoria Salomônica
2.2. A Posição da Corrente Teológica Conservadora
2.2.1. Argumentos Favoráveis à Autoria Salomônica
2.3. ... e então?
2.4. Data

3. Canonicidade...............................................................................................................13

4. Tentativas de Interpretação..........................................................................................15
4.1. O Cântico e a Poesia Amorosa no Antigo Oriente Próximo
4.2. O Cântico e a Literatura Sapiencial
4.2.1. A Literatura Sapiencial e a Linguagem Erótica
4.3. Tentativas de Interpretação
4.3.1. Histórico
4.3.2. As Diferentes Tentativas de Interpretação do Cântico
4.3.2.1. Alegoria Judaica
4.3.2.2. Alegoria Cristã
4.3.2.3. Interpretação Dramática
4.3.2.4. Interpretação Naturalista
4.3.2.5. Interpretação Cúltica
4.3.2.6. Como um Midrash Pós-Exílico
4.3.2.7. Interpretação Literal
4.3.2.8. Interpretação Erótica
4.3.2.9. Interpretação de Waterman
4.3.2.10. Interpretação Generalizante
4.3.2.11. Interpretação Típica

5. Esboço.........................................................................................................................28
5.1. O Cântico e a Poesia Hebraica
5.2. Esboço e Análise

6. Como, então, interpretar o Cântico?............................................................................31

7. Propósito......................................................................................................................33

8. Teologia.......................................................................................................................34

CONCLUSÃO.................................................................................................................36
BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................37
iv

INTRODUÇÃO

Viemos, por meio deste trabalho de pesquisa, apresentar um estudo isagógico do


livro de Cantares de Salomão, ou, como preferimos adotar aqui, o Cântico dos Cânticos.
Uma pesquisa isagógica por si só abrange a maior parte dos assuntos que são
preliminares ao texto bíblico, quais sejam questões de data, autoria, historicidade,
conteúdo, crítica textual e outros. Além de apresentar estes elementos, procuramos
desenvolver uma linha de pensamento segundo a qual partimos de um ponto primordial,
ou seja, o debate em torno da autoria da obra - apresentado no capítulo 2 - para então,
pela confrontação das diferentes correntes de pensamento, chegarmos a conclusões
claras para os assuntos que abordamos. Tal também é o objetivo da própria disposição
dos assuntos no trabalho. O trabalho é fruto de uma pesquisa bibliográfica realizada em
1998, na Escola Superior de Teologia do Instituto Concórdia de São Paulo, onde
aconteciam os estudos de graduação do autor, revisado em ampliado no corrente por
ocasião do Mestrado cursado no Seminário Teológico Batista do Estado do Espírito
Santo. Convém ressaltar, por fim, que todas as referências e citações bíblicas foram
extraídas do texto da 2ª Edição Revista e Atualizada de Almeida, publicada pela
Sociedade Bíblica do Brasil.
v

1. TÍTULO

O título hebraico do livro,  (shir há'shirim)


foi extraído de seu primeiro versículo, e significa "O Cântico dos cânticos", ou "o
melhor cântico", haja visto que a duplicação do substantivo é a expressão hebraica para
o superlativo. O mesmo acontece em construções como "o Rei dos reis", "Vaidade das
vaidades" e outras. A Septuaginta, seguindo o Texto Massorético, traduziu-o por ã'a|
v/sma aç/v|smaton (áisma aismaton) e a Vulgata por Canticum Canticorum.
Nas versões britânicas, seu título varia entre Canticle e Canticle of Canticles; nas
norte-americanas é o Song of Songs.
Na Alemanha, a partir de Lutero, o livro passou a ser chamado Das Hohelied
(Young, 1964, 347).
Nas versões do texto bíblico em português, seu título aparece como Cantares de
Salomão, Cântico dos Cânticos ou, ainda, Cântico.

1.1. Posição
Sua posição, o lugar que ocupa dentro do cânon bíblico é variável. Na Bíblia
Hebraica o Cântico vem depois de Jó, e é o primeiro dos cinco 
(megilôt), ou "rolos", designado para ser lido na Festa da Páscoa. Na tradição grega e
latina, partindo-se do princípio que é um livro escrito por Salomão, aparece depois de
Eclesiastes. Tal também é sua posição nas traduções da Bíblia para o português.
vi

2. AUTORIA E DATA

Poucos livros de todo o cânon bíblico apresentaram tantos problemas e tantas


discussões fervorosas a respeito de seu conteúdo quanto o Cântico. E neste momento,
quando passaremos à análise dos elementos que são preliminares à sua compreensão,
poderemos perceber o conteúdo e as implicações destes debates e as leituras dos
diferentes estudiosos. Começaremos debatendo as questões da data e da autoria do livro.
Tradicionalmente o Cântico é atribuído ao rei Salomão com base na própria
indicação presente em seu primeiro versículo: "Cântico dos cânticos, de Salomão". O
texto hebraico, transliterado, apresenta a construção asher le-Shelomoh, ou "que é de
Salomão". Tal leitura, se aceita, eliminará de início todos os problemas e discussões a
respeito de sua autoria. Contudo, acontece aqui um problema lingüístico: o hebraico
 (le) pode tanto expressar autoria quanto ser uma forma de dedicação de uma
obra. Assim, o Cântico poderia ter sido escrito por outro autor ou até mesmo ter sido
coletado do cancioneiro popular por algum redator e, então, ser atribuído, dedicado a
Salomão por um motivo qualquer. Tal problema ocorre não apenas com o Cântico, mas
também com os salmos davídicos, nos quais ocorre a mesma construção.
Devido ao sentido duplo do pronome está lançada a questão: o Cântico é, de
fato, de autoria salomônica? Duas correntes teológicas tentam responder esta pergunta
com argumentos próprios. Tais correntes são denominadas liberal e conservadora. Em
resumo, esta defende a autoria salomônica; aquela, nega-a completamente.

2.1. A Posição da Corrente Teológica Liberal


A teologia liberal nega por completo a autoria salomônica, e para tanto
desenvolve uma argumentação crítica que sustente tal posição.
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2.1.1. Argumentos Contrários à Autoria Salomônica


O ponto de partida, como vimos, é a questão da dupla função do hebraico 
(le), que tanto pode indicar autoria quanto atribuição de uma obra. A partir disso surgem
diversos outros argumentos, quais sejam:
1º - O livro foi atribuído a Salomão devido ao fato de ter sido ele uma dos
maiores expoentes da literatura sapiencial hebraica, escritor de Provérbios e Eclesiastes,
ou então no intuito de facilitar sua aceitação como livro canônico para os judeus.
2º - As sete referências a Salomão que aparecem no texto (1.1,5; 3.7,9,11; 8.11-
12) não implicam necessariamente uma autoria salomônica, podendo ser lidas
literalmente como referências históricas a uma figura protótipa (Hummel, 1979, 493).
3º - Ainda, em nenhuma destas passagens é Salomão quem está falando, e nem
mesmo nas referências ao "Rei" (1.4,12; 7.6). Todas elas estão na terceira pessoa,
exceto um vocativo "ó Salomão", em 8.11.
Indo mais a fundo na questão lingüística, a teologia liberal desenvolve ainda
argumentos baseados em palavras ou expressões contidas no texto que projetam a data
de autoria da Cântico a um período muito posterior ao do rei Salomão. Apontam, entre
outros, que:
4º - em 2.7 a palavra she aparece unida a adh no sentido de "até que", quando o
pronome usual na época de Salomão seria asher.
5º - em 4.13 o substantivo pardês ("pomar") vem do grego paradeisos ou então
do persa pairideça (Zenda pairizaëza), significando "área cercada".
6º - em 3.9, a palavra "palanquim" provém do grego 'appiryõn.
7º - são constantemente usadas expressões aramaicas.
Por tudo isso conclui-se que o livro teria sido escrito numa época posterior ao
cativeiro babilônico ou dentro do próprio período helenístico, sendo, por isso,
impossível aceitar que o rei Salomão fosse seu escritor. Assim, não só se cogita a
possibilidade de que um outro autor o tenha escrito, como também dá-se vazão à
possibilidade de uma autoria múltipla em diferentes épocas. E quanto à argumentação
de que a consistência lingüística, o estilo e a perspectiva do texto apontam para um
único autor, rebatem "by ascribing all the Song's parts to a single literary tradition, since
Near Eastern tradition were very careful to maintain stylistic uniformity" (Concordia
Self-Study Bible, 1986, 1005)1.

1
"atribuindo todas as partes do Cântico a um única tradição literária, uma vez que a tradição do Oriente
Próximo era muito cuidadosa em manter uma uniformidade de estilo".
viii

2.2. A Posição da Corrente Teológica Conservadora


A teologia conservadora defende a autoria salomônica de Cantares. Para tanto, à
semelhança da teologia liberal, desenvolve sua própria argumentação mesclando
elementos externos e internos ao texto.

2.2.1. Argumentos Favoráveis à Autoria Salomônica


Já vimos que o ponto de partida para a argumentação liberal que refuta a autoria
salomônica é o duplo sentido que o vocábulo  (le) pode ter. A teologia
conservadora tem consciência disso e sabe que as provas cabais que apontam para uma
autoria salomônica são bastante tênues (Hummel, 1979, 493).Contudo, parte ela do
princípio de que esta preposição (le) é a única maneira de exprimir posse ou
autoria em hebraico, quando o mesmo autor pode ter composto várias obras. Delitzsch,
Raven, Steinmueller e Young concordam com isto (Archer, 1991, 448). Vemos que,
sem dúvida, apenas de cânticos, semelhantes ao Cântico dos cânticos, Salomão compôs
outros 1005, segundo 1 Reis 4.32. Partindo desse princípio, desenvolve-se a
argumentação que segue, defendendo a autoria salomônica:
1º - Assim como Moisés é o pai da Lei, Davi dos Salmos, na literatura hebraica
Salomão é o "pai da literatura sapiencial". É o "sábio de Israel por excelência", o que é
justificado em 1 Reis 3.11 e 5.1ss. Os livros de Provérbios e Eclesiastes são-lhe
atribuídos, e o Cântico, como a "pérola" dos escritos, também (Childs, 1987, 578).
2º - A generalização reflexiva presente em 8.6-7 ("... porque o amor é forte
como a morte e duro como a sepultura o ciúme...") é característica da literatura
sapiencial e dos escritos salomônicos.
3º - O livro tem certos pontos de contato com os outros escritos salomônicos que
conhecemos e especialmente uma considerável semelhança de vocábulos e sintaxe para
com Eclesiastes. Note-se, por exemplo, a construção "Cântico dos cânticos" comparada
a "Vaidade das vaidades", de Eclesiastes.
4º - Também entre o Cântico e Provérbios percebemos grandes semelhanças, a
começar pelo próprio tema dos livro. Temas como amor, sexo e casamento são
proeminentes em Provérbios também. Também percebemos repetidas instruções morais
nessas áreas, como nas metáforas metafísicas da "Dama Sabedoria" contra "a mulher da
perdição" (Hummel, 1979, 491), que aparecem em Provérbios 1 a 7. Ainda, aparecem
ix

semelhanças no vocabulário empregado, como "cisterna" e "água corrente" de Pv 5.15-


19 e "fonte selada" de Ct 4.12.
5º - Alguns expoentes da teologia liberal, dentro dos estudos da evolução do
texto bíblico e do "contexto vital", situam o texto do Cântico no mesmo período
histórico em que Provérbios e Eclesiastes foram escritos.
6º - O tetragrama, (YHWH) não aparece nem em Eclesiastes,
nem no Cântico.
7º - Ainda, existem diversas palavras que só pertencem a estes dois livros.
8º - O conhecimento enciclopédico do rei Salomão, conforme descrito em 1 Reis
4.33 pode ser facilmente identificado no texto do Cântico. Nele são citadas 21 espécies
de plantas e 15 espécies de animais, segundo Steinmueller (Young, 1964, 346).
9º - A cavalaria do Faraó, presente em 1.9 ("... às éguas dos carros de Faraó...")
condiz com 1 Reis 10.28. A cavalaria foi um item importante no exército de Salomão e
foi ele quem importou muitos cavalos do Egito, daí a referência ao "Faraó" (1 Reis
10.28).
10º - O livro descreve um luxo verdadeiramente digno de uma corte real: nele
são citados o nardo (1.12), a mirra (1.13), o incenso (3.6), palanquins (3.9), pós
cosméticos, prata, ouro, púrpura, marfim e berilo.
11º - Àqueles que, devido a certos fenômenos lingüísticos, situam o livro numa
data muito posterior ao reinado de Salomão, a corrente teológica conservadora rebate,
afirmando que as referências geográficas favorecem uma data anterior a 930 a.C., já que
menciona indiscriminadamente localidades do Sul e do Norte de Israel (Jerusalém,
Carmelo, Sarom, Líbano, En-Gedi, Hermon, Tirza) como uma única área política. Ora,
tal não seria possível após a divisão do reino em dois, o reino do Norte (Israel) e do Sul
(Judá).
Tirza, em 6.4, é mencionada com muita glória e beleza, como Jerusalém. Isso
não seria assim depois de ter sido rejeitada a dinastia davídica e escolhida como a
primeira capital do reino do Norte. E ainda Samaria, fundada por Omri em 885-874 a.C.
não recebe qualquer citação.
12º - Aceitando-se que de fato o livro teria sido escrito em um período em que o
reino estivesse novamente unificado, a teologia liberal reporta-o novamente a uma
época pós-exílica (o que também justifica os fenômenos lingüísticos com os quais esta
argumenta para tal datação). Contudo, é difícil aceitar-se que mesmo após o cativeiro
isso pudesse ter acontecido. A área inteira foi reunida sob o governo dos hasmoneus
x

João Hircano e Alexandre Janeu, e a Caverna nº 4 de Qmram indica que o Cântico já


existia em sua forma final bem antes da revolta macabéia de 168 a.C. (Archer, 1991,
458).
13º - Dando-se vazão à possibilidade de o Cântico ser, de fato, uma coletânea de
canções escritas não de uma só vez, ainda assim existem subsídios para afirmar que, no
mínimo, tais canções tenham sido escritas na época de Salomão. R. Gordis, comparando
o texto do Cântico ao Salmo 45, divide-o em diversos cânticos isolados, afirmando que
o cap. 3, vv. 6-11 é "a poesia mais antiga da coletânea, tendo sido composta na ocasião
dum dos casamentos de Salomão com uma princesa estrangeira" (Archer, 1991, 458).
14º - Ainda, em 8.11, Salomão não é apenas o remetente, mas também o
destinatário da ação (Childs, 1987, 577).
Rebatendo as argumentações liberais baseadas em fenômenos lingüísticos, a
teologia conservadora afirma:
15º - Apesar do uso de she no lugar de asher, um cognato do relativo acadiano
sha, que remonta ao 3º milênio, aparece no Cântico de Débora, em Juízes 5, em Jó
19.29, 2 Reis 6.11, Jonas, Lamentações de Jeremias e vários Salmos. Seu uso, portanto,
pode não apontar uma datação alheia à da época de Salomão, mas sim sua aceitação no
estilo poético hebraico. Sendo provável característica dos dialetos do Norte, seu uso
abundante na literatura pós-exílica pode refletir seu subsequente uso comum na língua
falada. E, quanto a ser característica de um dialeto nórdico, não devemos esquecer que
o termo "Sulamita", ao que tudo indica, refere-se a Suném, na planície de Esdraelom,
da tribo de Issacar, ou seja, no Norte do país. Ora, um poeta hábil como Salomão,
educado em toda a sabedoria da corte, poderia perfeitamente escrever numa linguagem
nórdica (Hummel, 1979, 494).
16º - A presença de aramaísmos como nãtar (cognato de nãsar, que significa
"vigiar, guardar"), berõt (de berõsh, "cipreste"), setãw ("inverno") pode indicar sua
importância, como já vimos, dentro da literatura hebraica e, ainda, segundo Driver e
Briggs, palavras como berõt são, na verdade, termos nórdicos, e não aramaísmos.
17º - Quanto às expressões gregas ou mesmo persas encontradas no texto, não
deve ser esquecido o fato de que Salomão praticou um comércio bastante intenso com
os reis vizinhos, até mesmo com a Índia, e dentro de sua grande sabedoria poderia ter
usado expressões aprendida com estes em sua obra.
xi

18º - Por fim, até mesmo uma curiosa suposição é esboçada, de que o termo
"Sulamita" possa ser "an artificial feminine construct paralel to 'Shlomo', or as derivate
from 'shalem', thus 'perfect one' or the like"2 (Hummel, 1979, 494).
A argumentação lingüísticanão pode ser simplesmente ignorada, mas igualmente
não deve ser aceita irrefletidamente como sendo o elemento decisivo na questão da
autoria. Eissfeldt, neste sentido, afirma que "os fenômenos lingüísticos se aplicam
somente na forma como o texto chegou até nós. Trata-se de uma obra de Salomão e as
alterações foram feitas pelo editor para torná-la mais compreensível às gerações
futuras" (Young, 1964, 346).

2.3. E então?
Reconhecemos que os argumentos são fortes em ambos os lados. Muitos
escritores, como Hummel, preferem não pronunciar qualquer sentença final na questão
da autoria, se de fato o livro é ou não salomônico.
Contudo, através da breve exposição dos argumentos favoráveis e contrários que
fizemos pudemos perceber que mesmo as argumentações baseadas em fenômenos
lingüísticos têm uma justificativa plausível e digna de aceitação dentro da visão
tradicional da autoria salomônica. Em outras palavras, para tudo o que a teologia liberal
argumenta a visão conservadora possui justificativas equilibradas e equivalentes. A
autoria salomônica, assim, pode ser sustentada sem melindres de qualquer ordem.
Aliado a isto está a questão do sentido do Cântico: para que propósito tal poema
de amor figura entre os escritos bíblicos? Tal discussão a faremos nos capítulos
seguintes. Por hora, cremos que o testimonium Spiritus Sanctu internum corrobora e
valida a presença do texto na história sagrada.

2.4. Data
Seguindo a questão da autoria a datação do Cântico é outro motivo de discussões
entre liberais e conservadores. Como vimos acima, baseados especialmente em
fenômenos lingüísticos, os teólogos liberais mais radicais como Kuenem, Cornill,
Cheyne, Bude, Kautsch e Eissfeldt projetam a data de autoria do Cântico para o período
pós-exílico ou até mesmo para dentro do período helenístico. Afirmam ter sido escrito
entre os séculos V e III a.C.. Já os teólogos moderados, como W.R. Smith e S.R. Driver

2
"uma construção feminina artificial paralela a 'shlomo', ou como derivada de 'shalem', significando
assim 'a perfeita' ou algo parecido".
xii

situam-no ainda numa época pré-exílica (negando, porém, a autoria salomônica)


anterior a 600 a.C..
É uma tarefa árdua encontrar provas arqueológicas ou textuais que provem
cabalmente uma data específica ou um autor específico. Como afirmou Pope,
the dating game as played with biblical books like Job an Song of Songs, as
well as with many of the Psalms, remains imprecise and the score is difficult
to compute. There are grounds for both the oldest and the youngest estimates3
(The Anchor Bible Dictionary, 1992, 150)

Contudo, se afirmamos a autoria salomônica devemos igualmente aceitar a


datação como sendo da época do próprio Salomão, ou seja, entre 970 e 931 a.C.
Contudo, por falta de indicações precisas, não nos é possível apontar para um único ano
específico. Existem sim suposições, tradições que apontam para o Cântico como uma
obra da juventude de Salomão, logo no início de seu reinado, e personificam a Sulamita
como sendo Abisague, a qual foi escolhida para tomar conta de Davi em sua velhice (1
Reis 1.3). Porém, devido às muitas controvérsias concernentes a isto, não podemos
tomar tal posição como definitiva.

3
"o 'jogo' de datação jogado com muitos livros como Jó e o Cântico dos Cânticos, bem como com muitos
dos Salmos, permance impreciso e o resultado é difícil de ser computado. Há boas razões tanto para as
estimativas mais recentes quanto para as mais recentes".
xiii

3. CANONICIDADE

Não é possível discernir a razão da inclusão do Cântico no cânon hebraico ou


mesmo a data exata do mesmo (The Anchor Bible Dictionary, 1992, 150). Alega-se
para tanto a autoria salomônica e sua interpretação religiosa, mas estas não são
conclusivas. Há muito tempo têm-se levantado dúvidas a respeito de seu verdadeiro
aspecto canônico.
Não sabemos a razão exata pela qual o livro fora incluído no cânon hebraico. O
que sabemos é que os primeiros cristãos aceitaram os escritos canônicos hebraicos. Mas
permanece aberta a questão: o que levou os exegetas judeus a canonizar o Cântico?
Sabemos que sua aceitação definitiva aconteceu no Concílio de Jâmnia, em 90
A.D. Desde o período pós-exílico, aproximadamente no II século antes de Cristo, o
livro, como o primeiro dos cinco "rolos", foi liturgicamente associado à celebração da
Páscoa judaica, numa alegorização de seu conteúdo, representando o amor de Deus por
Israel. Ainda assim, havia exegetas, rabinos e estudiosos judeus que punham em dúvida
se de fato o Cântico deveria prefigurar no meio de livros como os de Moisés ou dos
profetas. A Escola de Shamai era dessa posição. O Cântico até chegou a ser listado
como um dos 5 antilegomena, escritos dos quais duvidava-se que tivessem qualquer
caráter religioso.
No Concílio de Jâmnia, recebe grande destaque histórico a posição do Rabi
Akiba. Sua argumentação a favor do Cântico foi decisiva para ele ser definitivamente
aceito como canônico. Akiba criticou o costume de usar-se o Cântico nas tabernas e
salões de festa e defendeu fervorosamente seu caráter espiritual. Disse ele:
Ninguém em Israel jamais pensou que o Cântico de Salomão pudesse
manchar as mãos. Pois em todo o mundo nada há que possa comparar-se ao
dia em que Cantares de Salomão foi dado a Israel. Todos esses escritos são
santos, mas num grau superior o Cântico dos Cânticos e, se alguma dúvida
surgiu foi acerca de Eclesiastes (Young, 1964, 351)
xiv

A partir de então, ao que tudo indica, foram eliminadas as contradições


referentes ao Cântico no meio judaico. Não mais houveram manifestações radicalmente
contrárias à sua canonicidade, ao menos abertamente, entre os estudiosos judeus.
Contudo, no meio cristão a controvérsia persistiu ainda por algum tempo. O motivo
principal é o fato de que no Novo Testamento não existe nenhuma referência ao
Cântico; apenas é referido no deuterocanônico IV Esdras (5.24-26; 7.26) e no Ta'anith
(um tratado mishnaítico), em 4.8, declarando que certas porções do Cântico eram usadas
em Festivais judaicos antes de 70 A.D.. Em vista disso, muitos pais eclesiásticos, entre
eles Filo e Josefo, não citaram qualquer trecho do Cântico em nenhum de seus escritos.
Merece destaque ainda a atuação de Teodoro de Mopsuéstia (falecido em 428),
pertencente à mais literal e histórica escola de Antioquia. Aparentemente, Teodoro
interpretou-o no mínimo em parte como referindo-se ao amor de Salomão pela filha do
Faraó, rejeitando todo significado espiritual ou inspiração, mas não sabemos exatamente
o porquê. O 5º Concílio Ecumênico, em Constantinopla (553 A.D.) rejeitou
enfaticamente tal opinião como "ofensiva aos ouvidos cristãos" (Hummel, 1979, 497).
Durante a Idade Média constatamos ainda algumas controvérsias isoladas dentre
os estudiosos cristãos a respeito de sua canonicidade (Calvino denunciou Castellio por
seguir a opinião de Teodoro de Mopsuéstia, e a Inquisição condenou Luís de Leon por
semelhante posição), controvérsias estas que foram eliminadas a partir de uma nova e
mais bíblica interpretação dada ao livro na época da Reforma, começando por Lutero. É
interessante observar como Lutero, que pôs em dúvida epístolas como a dos Hebreus e
outros livros, como o Apocalipse, tenha aceito sem grandes dificuldades a inspiração
divina do Cântico, justificando-a com argumentos perfeitamente plausíveis.
Observamos, entretanto, que para aceitá-lo como verdadeiramente canônico, é
indispensável que se compreenda seu conteúdo corretamente. Trataremos deste assunto
no capítulo seguinte.
Em nossos dias, o que prevalece a respeito de sua canonicidade é que "except
aberant instances, no real opposition to the canonical standing of the book has been
voiced"4 (The Anchor Bible Dictionary, 1992, 150).

4
"à exceção de algumas ocasionais instâncias, nenhuma real oposição ao status canônico do livro tem
sido ouvida".
xv

4. TENTATIVAS DE INTERPRETAÇÃO

Chegamos agora a um dos elementos mais controversos e para o qual mais


alternativas têm sido propostas com o passar dos anos para entendimento do Cântico.
Nas palavras de Childs, "few books of the Old Testament exhibit such a wide range of
differing opinions on the part of interpreters as does the Song of Songs" 5 (Childs, 1987,
571) . Qual é a interpretação correta deste documento?
Para responder tal pergunta é necessário analisar muitos aspectos preliminares
ao texto, quais sejam eles a tradição literária hebraica, especialmente a literatura
sapiencial, a história da interpretação do livro, entre outros.

4.1. O Cântico e a Poesia Amorosa no Antigo Oriente Próximo


Quanto à sua forma não podemos negar que o Cântico constitui um poema de
amor. Tendo em vista ter sido escrito na época salomônica, e pertencendo a nação
hebraica ao conjunto dos povos residentes no antigo Oriente Próximo, é necessário que
tomemos conhecimento de algumas características gerais da poesia amorosa daquela
região e daquela época.
A maior parte daquela poesia trata sobre o amor divino entre deuses e deusas
(nos seus estudos dos antigos textos sumérios S.N. Kramer tem descartado, entretanto,
que tal característica se aplique no caso de amor descrito no Cântico, o qual caracteriza
o masculino como pastor e rei, e o feminino como uma noiva e irmã). Num poema de
Shu-Sin, o qual retrata um deus chamado Dumuzi, a mulher chama o rei de "irmão", o
qual lhe oferece vida e abundância de bens. O rei Shulgi convida sua "irmã" Innana com
as palavras : "Eu iria com você para meu campo ... Eu iria com você para o meu
jardim".

5
"poucos livros do Antigo Testamento exibiram tão larga gama de opiniões diferentes por parte dos
intérpretes como o Cântico dos Cânticos".
xvi

Pela natural influência cultural do meio, é esperado que alguns dos temas
tratados em tais poemas apareçam também no Cântico. Há lugares comuns na
linguagem amorosa, seja falando dos deuses ou dos homens. Mas não há meio lógico de
detectar a direção da influência, ou que a vida amorosa das divindades tenha fornecido
motivos para a expressão do amor humano, no Cântico.
Apenas poucos textos da poesia do antigo Oriente Próximo relatam amor
legítimo entre seres humanos. O mais pertinente é um mero diálogo entre um homem e
uma mulher, refletindo um "broken love affair" (The Anchor Bible Dictionary, 1992,
151) e uma posterior reunião. A semelhança para com o Cântico repousa na experiência
amorosa em si: procurando pelo amante, e desfrutando as delícias do amante.
A poesia do antigo Egito apresenta impressionante paralelos com o Cântico.
Existem 4 coleções de poesias de amor, datadas por alguns do 14º ao 12º séculos a.C.,
as quais diferem do Cântico no que não apresentam nenhum diálogo entre os amantes.
Eles apresentam apenas solilóquios, do homem ou da mulher, à semelhança de Ct 2.8-
17. A mulher remete-se ao homem na segunda pessoa e às vezes na terceira, como em
Ct 1.2-4. Ela é descrita ainda como "irmã" (Ct 4.9-12; 5.2) e o homem é chamado de
"irmão" (o que não acontece no Cântico). Apresentam o mesmo gênero literário do
Cântico; são poemas de admiração, ânsia, desejo do amantes, descrição da sua beleza
física, exaltação, vanglória, etc. Em ambas literaturas os sentidos são amplamente
envolvidos: toques, visões, cheiros, fragrâncias. Aparecem elogios, às vezes
extravagantes. O amado é sempre o mais belo, o único, como em Ct 1.8 e 6.9. Por isso
tudo, a atmosfera de ambas tradições poéticas é similar.
Outros pontos de contato entre ambas literaturas são as freqüentes alusões à
natureza, o paralelismo com o amanhecer e o desejo sexual na humanidade ao despertar
da natureza na primavera, e o tema da paixão na ausência do objeto da afeição.
Contudo, como afirma o Anchor Bible Dictionary, "the similarities to the Song
are evidence of the common experience of love, not of a mutual influence" 6(Anchor
Bible Dictionary, 1992, 151).

4.2. O Cântico e a Literatura Sapiencial


Há controvérsias, mesmo entre teólogos considerados conservadores, quanto ao
Cântico figurar entre os escritos sapienciais hebraicos. Hummel, por exemplo, afirma

6
"as semelhanças ao Cântico são evidência da experiência comum do amor, não de uma influência
mútua".
xvii

que por não ser explicitamente didático, o Cântico é mantido junto a este gênero
literário por falta de uma classificação melhor (Hummel, 1979, 492). Os liberais vão
mais além, afirmando que apenas é considerado sapiencial devido à tradicional
associação a Salomão, ou porque os círculos humanísticos desta literatura arranjaram
ou transmitiram o material "as one aspect of their general 'humanistic' concern"7
(Hummel, 1979, 492). Contudo, a análise do texto deixa claro que ele é de fato fruto
desta literatura.
A literatura sapiencial hebraica desenvolveu-se durante toda a história de Israel.
Seu objetivo era "to understand through reflection the nature of the world of human
experience in relation to divine reality"8 (Childs, 1987, 573). Sua função era
essencialmente didática, não filosófica como na cultura grega. Seu maior tema,
portanto, era a natureza, ou a criação de Deus. Dentro desta temática, ao contrário da
tradição e cultura ocidental, a polaridade "secular versus sagrado", ou "terreno versus
celestial", não aparece, pois ambos se relacionam, e não se confrontam. Assim, a
reflexão na experiência humana sem valer-se da linguagem religiosa das tradicionais
instituições israelitas da lei , culto e profecia é característica da sabedoria, e não é, de
maneira nenhuma, sinal de uma origem secular (Childs, 1987, 574).

4.2.1. A Literatura Sapiencial e a Linguagem Erótica


Os livros sapienciais têm feito freqüente uso da linguagem erótica (cf. Pv 7.6;
Eclo 51.13; Sab 8.2). Estudiosos têm debatido se, por exemplo, a caracterização da
Sabedoria como uma encantadora mulher de rua que chama os que passam para si,
como acontece no livro de Provérbios, não tenha sido uma tentativa consciente de opôr-
se à invasão do culto da deusa cananéia do amor através do retratar a Sabedoria como a
verdadeira e boa "companheira" que chama os homens a escolherem o caminho da vida.
Von Rad refletiu se Israel lera o Cântico como uma alegoria da busca, do caminho a ser
percorrido para se alcançar a sabedoria. De acordo com este entendimento, Israel não
apenas sapiencializa o livro, mas também os sábios teriam mudado o nível semântico a
um nível metafórico, como vimos acima. Desta forma, o Cântico foi posto em linha com
outras imagens bíblicas que interpretam o anseio erótico como uma busca pela
sabedoria.

7
"como um aspecto do seu interesse 'humanístico' geral"
8
"entender, através da reflexão, a natureza do mundo da experiência humana em relação à realidade
divina"
xviii

Ora, se o maior assunto da sabedoria é a natureza, como vimos, a sexualidade


pode perfeitamente ocupar um lugar de destaque na literatura sapiencial. Como afirma
ironicamente Hummel:
One does not need to be Freudian to recognize that little is done in life
without some references to sexuality and most of life's ultimate questions
cannot be posed without consideration of its origin and transcendental
significance9 (Hummel, 1979, 493).

Muito da linguagem sensual e erótica do texto do Cântico é por vezes


"suavizada" por eufemismos na tradução. No período helenístico, a sensibilidade
israelita fora chocada e ultrajada pela nudez da arte grega e o Gymnasium helenístico,
mas as descrições verbais da época de Salomão tendiam a ser muito mais globais e
francas que aquilo que é geralmente considerado "pudico" na cultura ocidental. Desta
forma, os sentimentos culturais sobre gosto e problemas de moralidade básica não
devem ser confundidos, como no caso das famosas "éguas de Faraó" em 1.9. Tais fazem
parte, intrinsecamente, do contexto da cultura israelita, e como tal, são expressos na
literatura sapiencial. São ainda uma recordação salutar que a Bíblia não é alheia ao
tempo, mas sim expõe particularidades de tempo e espaço, e qualquer tentativa de
interpretação que abandone este princípio é em si fraudulenta.

4.3. Tentativas de Interpretação

4.3.1 Histórico
A espécie de história da interpretação que precedeu a Jâmnia é para nós motivo
de especulação. Contudo, não podemos aceitar, por um lado, que os estudiosos judeus
tenham sido superficiais no seu julgamento a respeito da canonicidade do Cântico, e por
outro lado, que não haveria um motivo espiritual muito forte por detrás da
argumentação enfática de Akiba em favor do livro.
Como já vimos, no cristianismo o livro foi aceito aparentemente sem um
questionamento profundo. Alguns pais eclesiásticos preferiram não citá-lo em suas
obras, Teodoro de Mopsuéstia refutou-o totalmente, mas não se tem notícias de um
profundo estudo na igreja primitiva para comprovar sua inspiração ou não. Qual seria o
motivo disto?

9
"Ninguém precisa ser freudiano para reconhecer que pouco é feito na vida sem alguma referência à
sexualidade, e a maioria das mais cabais questões da vida não podem ser colocadas sem a consideração
sobre sua origem e significado transcendente".
xix

Talvez a resposta para esta pergunta esteja no fato de que, da mesma forma que
a tradição judaica popularizou-o como uma alegoria do amor de Yahweh por Israel, os
cristãos, em sua primeira leitura do livro, interpretaram-no não mais como a relação
acima, mas sim como o amor de Cristo por sua Igreja neo-testamentária. Nisto baseia-se
a interpretação alegórica, a mais antiga e tradicional de que se tem notícia. Na igreja
primitiva. Orígenes é considerado o maior dos alegoristas, e outros pais o seguiram,
como Jerônimo.
Já na Idade Média, Bernard de Clairvaux refutou a alegoria, como muitos outros
místicos, aplicando o livro não mais ao relacionamento geral de Cristo com a Igreja,
mas sim de Cristo ou de Deus com a alma individual (Hummel, 1979, 497). Sua intensa
popularidade foi realçada por uma freqüente mariologia. A alegoria, então, tendeu a ser
reprimida após a Reforma, mas ainda esteve presente em trabalhos como os de
Spurgeon , Hengstenberg e Keil. Merece destaque o trabalho de Cocceius, que foi tão
hábil a ponto de interpretá-lo como uma história da própria igreja cristã, climaxizada na
Reforma.
Então, não há dúvida que no mínimo alguma espécie de posição espiritual-
alegórica é a mais antiga, descrevendo o amor de Deus por seu povo em linguagem
humana. No Novo Testamento, o paralelo "noiva de Cristo" é desenvolvido
especialmente em Efésios 5. Para objetar um exegese espiritual no Cântico é dito que
nestas passagens a alegoria é claramente indicada, e no texto do Cântico, porém, tal não
aparece. A objeção não é vã, mas no mínimo os paralelos sugestionam um clima no qual
um entendimento similar poderia desenvolver-se ou florescer.
Especialmente no catolicismo, o uso estrito do termo "alegoria" torna-se
incoerente por pressupor um significado para cada detalhe do texto, o que acarretaria e,
de fato, acarretou em interpretações que chegavam ao extremo de caracterizar cada
mínimo detalhe como denotando um elemento espiritual, caindo numa profunda
subjetividade. Exemplo famoso disto é a interpretação que se faz da menção às 80
concubinas de Salomão como 80 heresias que haviam de afligir a Igreja.
A partir de 1800, aparentemente abandonou-se a alegoria por completo em seu
sentido estrito. O século XIX inclinou-se para a interpretação dramática sob os moldes
da Hipótese de Delitzsch, porém muitos detalhes do livro resistem a ela, como, por
exemplo, Salomão no papel de um pastor, e a cena final na vila da Sulamita, entre
outras.
xx

Mais popular ainda foi a hipótese dramática de três personagens, comumente


chamada de Hipótese do Pastor. Ewald, ainda no século XIX, foi seu primeiro e maior
expoente. Muitos têm-no seguido, ao menos em princípios gerais. Nesta teoria, o livro
torna-se uma espécie de protótipo de um "eterno triângulo": Salomão já não é mais o
pastor, mas o vilão da trama. Entretanto, tal visão, como veremos logo a seguir, possui
aproximadamente tantos detrimentos quanto a alegórica, e encontra muito poucos
defensores. De outra parte, algumas interpretações cúlticas mais recentes têm seguido as
linhas quase-dramáticas, sendo, contudo, ainda muito especulativas. Internamente, no
próprio texto, há tantas indicações de drama quanto de alegoria, ou seja, nenhuma. "The
closest we come is a possible dialogue, but mere dialogue does not constitute drama" 10
(Hummel, 1979, 499). O Codex Sinaiticus, como outros textos hebraicos, procura
mostrar os personagens em notações marginais, tal qual os títulos presentes nas versões
modernas, "O Noivo", "A Noiva", "O Coro"; contudo, para ser um drama, por definição,
não há no texto a fluência própria de um drama: "The expressions of love appear remain
on essentially the same level throughout; we have more the expression of a mood than
dramatic action"11 (Hummel, 1979, 499). Além disso, a arqueologia e a antropologia
mostram que o drama como o concebemos não era comum na literatura da época, como
vimos acima. Do ponto de vista cristão, nem se pode entender a presença de tal gênero
entre os escritos sagrados.
Subsequentes teorias histórico-críticas tentaram provavelmente concordar em
pouco mais que uma total rejeição das interpretações acima. A integridade do livro é
abandonada em favor da idéia de que ele apenas contenha uma miscelânea de discretos
poemas de amor. Contudo, se a repetição denota unidade, então o Cântico apenas perde
para Eclesiastes, em toda a Bíblia, a esse respeito.

4.3.2. As Diferentes Tentativas de Interpretação do Cântico

4.3.2.1. Alegoria Judaica


Este foi o mais antigo sentido dado ao livro. Tal aparece já em tratados da
Mishnah, do Talmude e diversos Targuns pós-exílicos, interpretando-o como uma
alegoria histórica da relação de Yahweh com Israel desde o Êxodo até a volta do Exílio
(exegetas católicos medievais como Nicolas de Lyra chamariam esta relação de um
10
"O mais próximo de que chegamos é um diálogo, mas um mero diálogo não constitui um drama".
11
"As expressões de amor permanecem essencialmente no mesmo nível durante toda a trama; temos mais
a expressão de um humor que ação dramática"
xxi

"amor místico"); daí ser ele lido como parte da liturgia pascal, e daí também é difícil
imaginar um uso ou uma origem secular anterior ao período pós-exílico. Talvez
justifique-se pelo fato de os profetas, como Isaías (cf. 51.1-7) pensarem o casamento
como a relação entre Deus e Israel, e a apostasia como adultério. Êxodo 34.14-16 e
Levítico 20.5-6 também chamam a idolatria de prostituição. É interessante observar que
tal interpretação mostra como estava o nível da exegese judaica na época. Igualmente
interessante é perceber, como vimos em parte e ainda veremos mais adiante, que tal
teoria teve grande aceitação não só no cristianismo primitivo como também entre
muitos estudiosos modernos, como Hengstenberb e Keil (Archer, 1991, 452).
Tal interpretação, seja ela dentro do judaísmo ou do cristianismo, declara o livro
como destituído de qualquer suporte de sentido literal próprio, caso único em toda a
Bíblia; ou seja, "although the text seemed to be speaking about one subject, its real
meaning was thought to be different from the verbal sense"12 (Childs, 1987, 571).
Como tímida e quase inexpressiva subdivisão desta interpretação alegórica,
surge uma corrente interpretativa histórica, que propõe que, ou o livro retrate um
confronto entre o povo de judeu com algum outro povo, em dado momento da história,
ou um (curioso) confronto entre o próprio Yahweh e seu povo, Israel (Tradução
Ecumênica da Bíblia, 1995, 844).
Além daquela implicação citada acima, outras mais tornam inviável tal
interpretação.

4.3.2.2. Alegoria Cristã


Surgida logo no século I. Orígenes, além de seu introdutor na igreja cristã, foi
também seu maior defensor. Junto a ele encontram-se Hipólito, Jerônimo e outros. Para
muitos, tal visão "neutraliza o escândalo dessa poesia erótica" (Tradução Ecumênica da
Bíblia, 1994, 844). Segundo esta visão, o livro não mais trataria do amor de Yahweh
para como Israel, mas sim de Cristo para com sua Igreja neo-testamentária.
Manifestação latente desta interpretação são os títulos e subtítulos dados ao livro por
Hengstenberg e Keil na Versão Autorizada Inglesa da Bíblia: O Amor Mútuo de Cristo
e da Sua Igreja (caps. 1-3), As Graças da Igreja (cap. 4), O Amor de Cristo para com
Ela (5), A Igreja Manifesta sua Fé (6-7) e O Amor da Igreja para com Cristo (8)
(Young, 1964, 349).

12
"ainda que o texto pareça estar falando sobre um assunto, seu real significado deve ser diferente do
sentido verbal".
xxii

Outra corrente notadamente católica, dentro desta teoria, é a corrente


mariológica. Segundo Rowley, no século XVII certas frases do Cântico eram, a partir de
uma base exegética que desconhecemos, aplicadas à Virgem Maria. De fato: nas
liturgias tradicionais de festas em homenagem a Maria, o Cântico era largamente
utilizado. Segundo tal entendimento, Maria, representando Israel e a mãe do
cristianismo, "concurs in Christ's accomplishment to the mystical union between God
and man"13 (Hummel, 1979, 498). Ainda, outra corrente interpretativa que merece
destaque é aquela que retrata o Cântico como a relação de amor de Cristo ou de Deus
com a alma individual do cristão, ou ainda como o Espírito Santo e Maria, ou o próprio
Salomão e a Sabedoria. Tal era defendida pelos exegetas cristãos medievais "místicos"
(daí chamar-se também de Interpretação Mística).
Afirmam alguns que se não houvesse tal interpretação religiosa o Cântico não
poderia nem teria sido incluído no cânon. Também, que as Escrituras freqüentemente se
utilizam da imagem do casamento com um sentido espiritual. Tais asserções não
justificam a interpretação alegórica. A Palavra de Deus, quando se utiliza da imagem do
casamento (ou qualquer outra comparação) usa-a sempre como um símbolo, servindo de
base para uma explicação didática. Há diferença entre interpretação alegórica e
interpretação de uma alegoria. Por não partirmos do princípio de que o Cântico seja uma
alegoria, aquela primeira não se justifica. Além do mais, admitindo o fato de tratar-se
realmente de uma alegoria "intencionalmente alegórica", se podemos nos expressar
desta forma, como interpretá-la então, se o esposo do texto não é Yahweh, ou Cristo,
mas o próprio Salomão? Outra implicação necessária seria o atribuir a cada elemento
exposto no Cântico um significado dentro do judaísmo ou do cristianismo - e, de
preferência, que tivessem vazão nos dois. Seria isso possível? Ou melhor, seria isso
possível sem serem cometidos erros históricos e interpretações superficiais?
O Cântico parece descrever um acontecimento realmente histórico na vida de
Salomão. Justifica-se isto pela referência feita às suas 80 concubinas. Tal referência é
interpretada como sendo feita a uma época do reinado de Salomão em que seu harém
ainda era pequeno, se comparado com o final de sua vida. Seguindo este pensamento, se
interpretarmos alegoricamente o Cântico, qual será o papel destas 80 concubinas, e qual
será sua relação com Deus ou com Cristo?

13
"concorre na realização de Cristo da união mística entre Deus e o homem".
xxiii

Em resumo, a interpretação alegórica é fruto do erro de aplicar-se um caráter


profético a um livro sapiencial, a despeito de todas as características próprias a cada um
dos gêneros.

4.3.2.3. Interpretação Dramática


Surgida no século XVIII, dominou todo o século XIX. Franz Delitzsch e Otto
Zoeckler foram seus introdutores. Segundo esta teoria, o Cântico seria apenas um drama
sobre os amores de Salomão, o qual levara para o seu harém em Jerusalém, a capital do
reino, uma jovem sunamita pela qual se apaixonara, comumente personificada em
Abisague. Henrich, Ewald, Strack, Koenig e Driver introduziram uma forma
especializada desta teoria, denominada Hipótese do Pastor; segundo eles, apesar do fato
de o texto conter apenas duas vozes, tal teoria aponta a presença de 3 personagens:
Salomão, a Sunamita e seu noivo pastor da sua cidade natal. Como vimos, nesta visão
Salomão torna-se o vilão da trama, ao passo que a sunamita, resistindo a todas as ofertas
de luxo e riquezas reais, recusa-se a ser seduzida e permanece fiel ao seu noivo pastor
até o fim. Não deixa de existir uma certa caracterização histórica, na qual Israel
aparece como uma nação envolvida nos prazeres do mundo durante o reinado de
Salomão (Hummel, 1979, 499).
Diversos elementos tornam inviável tal teoria. O primeiro deles afirma que o
drama, como o concebemos, não existia entre os povos do Antigo Oriente Próximo.
Ainda, que tal interpretação é arbitrária, contradizendo até a estrutura do texto. Hummel
afirma, como já vimos, que para um drama falta-lhe a fluência natural do drama.

4.3.2.4. Interpretação Naturalista


Talvez a teoria dominante na atualidade, surgida na segunda metade do século
XIX. Segundo ela o Cântico seria uma coletânea de canções de amor, exaltando o amor
profano ou o puro amor humano em si. Rowley, Gordis, Gerleman e outros a
defenderam.
Sua origem está na descrição da cerimônia de casamento sírio feita por
J.G.Wetzstein, cônsul prussiano em Damasco, atual Síria, em meados de 1873. Segundo
ele, na véspera do casamento a noiva executa uma dança de espadas acompanhada por
um cântico em que se descreve a sua beleza; é o wasf ("descrição"). Durante a semana
seguinte, o casal é considerado como rei e rainha, sendo executadas em sua honra várias
canções. É a "Semana do Rei". Wetzstein afirma localizar ecos da dança de espadas
xxiv

realizada pela noiva em 6.13-7.6, e também de uma procissão na qual um "treshing


sledge" (Hummel, 1979, 500) serve como palanquim para a noiva. Eissfeldt, por sua
vez, pensa que 4.1-7 e 5.10-16 constituam um wasf. Pfeiffer, Lods, Reuss, Dussaud
concordam com tal opinião, também Herder e Goethe. D. Buzy ainda oferece uma
variação, segundo a qual as canções deveriam ser entendidas metaforicamente e o
louvor dirigir-se ao amor divino.
A partir destes dados, muitos comentários têm descrito o Cântico como uma
coleção de canções ou liras seculares, desenvolvido durante muito tempo dentro do
folclore de Israel. Tal posição não encontra estrutura ou movimento dentro do texto. O
Cântico pode sim ser considerado uma variedade de canções que celebram o amor
humano, e não um cântico de louvor (Childs, 1987, 572) ou canções de casamento,
como o wasf. Ainda, no Cântico a moça nunca é caracterizada como uma rainha. A
antiga Síria e Israel não possuíam culturas semelhantes, e aplicar tal comparação hoje
em dia é questionável.

4.3.2.5. Interpretação Cúltica


Introduzida e defendida por T.J. Meek (daí o fato de ser também chamada
"Teoria de Meek"), W. Wittenkendt, M. H. Pope, os quais asseguraram que a função
original do Cântico era "ritual or cultic in close analogy to the Babylonian Tammuz
festival or the Baal cycles of Canaanite myth"14 (Childs, 1987, 571). Neste culto, "o
deus morria e a deusa descia ao inferno, o que significa a morte da natureza. Aquele rito
representava então o casamento dos dois deuses, após esse regresso" (Young, 1964,
370). Segundo esta leitura, com o passar do tempo esta "liturgia", purificada, passou a
ser usada em casamentos ordinários em Israel. Alguns a aplicam para a época do
reinado de Manassés, quando o Estado vassalo de Judá tornou-se especialmente
vulnerável às influências pagãs.
De certa forma, esta teoria também atenua o escândalo do erotismo, pois a união
sexual não tem finalidade em si mesma, mas está a serviço de uma causa religiosa, o
unir a terra ao céu. Tal posição continua crescendo, mas muitos críticos permanecem
cautelosos. Os paralelos são facilmente exagerados e não há evidências próprias no
texto, pois o próprio fala de um amor ordinário entre homem e mulher, não de uma
"fertilização cósmica" do culto pagão. Também, apesar da suposição de que este culto

14
"ritual ou cúltica, em analogia com o festival babilônico do Tamuz ou aos ciclos de Baal no mito
cananeu"
xxv

tenha sido introduzido durante o reinado de Manassés, como dissemos, não existem
provas cabais para tanto. E, mais uma vez, é difícil imaginar como uma obra com tal
origem possa ter sido incluída na cânon.

4.3.2.6. Como um Midrash Pós-Exílico


Teoria relativamente recente, surgida no final do século passado, e defendida
principalmente na França por estudiosos críticos como A. Robert e A Feuillet. Afirmam
que a interpretação alegórica tradicional é arbitrária e apologética (e de fato o é, se
observarmos simplesmente o fato de ter sido oficialmente fixada entre os estudiosos
judaicos por ocasião do Concílio de Jâmnia, sendo posteriormente assimilada pelos
cristãos). Segundo esta teoria, o livro fora construído a partir de um motivo mosaico ou
bíblico com a intenção de ser lido como uma alegoria profética do amor de Yahweh por
seu povo. Audit, Dubarle, Murphy afirmam que tal interpretação não condiz com o
gênero do texto, permanecendo críticos em relação à nova interpretação e preferindo
ainda a alegórica .

4.3.2.7. Interpretação Literal


Interpreta o Cântico como um poema secular de amor, sem quaisquer matizes
teológicos; é somente uma expressão lírica de amor humano num plano alto e
romântico. Young e Rowley defendem sua canonicidade explicando que implica numa
"sanção divina do relacionamento do amor nupcial, em contraste com as perversões
degeneradas ou polígamas do casamento que eram correntes na época de Salomão"
(Archer, 1991, 453). Porém, como entendê-lo como padrão se Salomão teve 700
esposas e 300 concubinas? Talvez que fora a sua única experiência de romance puro.
Delitzsch e Zoecher acrescentam dizendo que Salomão, sob influência da Sulamita,
teria passado por uma purificação após uma fase de grandes concupiscências e
desregramentos.

4.3.2.8. Interpretação Erótica


Surgida a partir de 1960, consiste numa oposição à alegoria. "The only 'spiritual'
or 'religious' meaning was allegedly that of sexuality and eroticism - of course, as great
xxvi

gifts of 'God' to be 'celebrated'"15 (Hummel, 1979, 502). Certas passagens, como 3.1-4.
5.3 e 8.1ss, chegam a ser apontadas como celebrando o sexo pré-matrimonial.
Sem dúvida a linguagem de certas passagens possui um tom bastante erótico.
Mas sob quais parâmetros o amor erótico é um amor ilícito? A resposta a esta pergunta
é necessária para a compreensão correta do livro, como veremos.

4.3.2.9. Interpretação de Waterman


Segundo Waterman o texto de 1.2 a 8.4 apresenta uma cena no harém de
Salomão entre ele e Abisague, quando esta veio servir de ama a Davi. Já 8.5-14 passa-se
numa aldeia em Suném. Baseia-se para tanto na seguinte interpretação da obra: 1.1; 3.6-
11; 4.1-6; 1.2 e seguintes; 4.7 e seguintes. Quase inexpressiva no meio acadêmico, deve
ser citada como mais uma tentativa.

4.3.2.10. Interpretação Generalizante


Admite o sentido literal próprio. Demitizando a liturgia pagã da hierogamia, o
Cântico mostra que a função do amor é unir, não a terra ao céu, mas duas pessoas que
Deus criou para se complementarem. Seria um comentário poético de Gn 2.24. Em seu
sentido literal o Cântico tem caráter espiritual e místico. "Como em longa parábola,
descreve-se ali o amor com a linguagem figurada da Aliança, para mostrar, como
modelo de toda união conjugal, o amor de deus por seu povo. Paulo falaria do amor de
Cristo pela Igreja" (Bíblia Sagrada, 1982, 799).

4.3.2.11. Interpretação Típica


Parece, até o momento, ser a mais satisfatória (Young, porém, a rejeita).
Segundo Rave e Unger o poema foi resultado de um fato que realmente aconteceu na
vida de Salomão. A sunamita, moça do campo, com uma bela alma além de um belo
corpo, através de sua sinceridade radiante e seus encantos pessoais, ensinou a Salomão,
pelo menos por um breve tempo, a entender o significado do verdadeiro amor
monógamo, um amor pelo qual ele de boa vontade trocará o esplendor corrupto de sua
corte. Transfigura o amor natural elevando-o a um nível sagrado (em contraste com os
literalistas). O autor então pretende representar um relacionamento típico como o amor
do Senhor por seu povo e um prenúncio de Cristo. Os pontos de analogia só poderão ser
encontrados em linhas gerais (no que contraria a alegoria), pois mesmo o rei Salomão é
15
"O único significado 'espiritual' ou 'religioso' foi alegadamente aquele da sexualidade e do erotismo - é
claro, como grandes dádivas de 'Deus' para serem 'celebrados'".
xxvii

de fato citado como tipo de Cristo, como rei da dispensação milenar (cf. 2 Samuel 7.12-
17; 23.1-7; Salmo 72; Mt 12.42). Assim, o Cântico e "rico em matizes espirituais que
têm oferecido consolo e encorajamento para estudantes devotos da Escritura em todas
as épocas da história da Igreja" (Archer, 1991, 453).
xxviii

5. ESBOÇO

O Cântico é um poema. Como tal, possui ele características próprias que


distinguem o texto em prosa do texto em poesia. Contudo para tentarmos fazer um
esboço dele é necessário conhecer um pouco da poesia hebraica antiga.

5.1. O Cântico e a Poesia Hebraica


Ao contrário da poesia moderna, que tem como característica a combinação de
fonemas ou "tonemas", a poesia hebraica executa uma combinação de idéias, de
pensamentos. Tal "rima de conteúdos" é chamada de paralelismo. A obra clássica no
estudo desta poesia é De Sacra Poesi Hebraeorum Praelectiones Academiae, escrita
em 1753 pelo bispo Roberth Lowth. Foi ele o primeiro a cunhar o termo "Parallelismus
Membrorum", ou seja, paralelismo dos membros (Roos, [s.d.], 69).
Em linhas gerais, este paralelismo consiste em contrabalançar um pensamento
ou frase por outro que contenha aproximadamente o mesmo número de palavras, ou
pelo menos, uma correspondência de idéias. Lowth apontou 3 tipos básicos de
paralelismo na poesia hebraica: o sinomínico, o antitético e o sintético. Outros autores,
entre eles S.R. Driver, acrescentaram, mais tarde um quarto tipo, o climático.
O Cântico a rigor não encaixa-se diretamente em nenhum destes tipos de
paralelismo; é característica, outrossim, de um subdivisão do paralelismo sinomínico,
chamada de paralelismo quiásmico. A expressão deriva da consoante grega c (chi),
que, através de sua forma, designa a disposição das idéias no texto: em vez de citar a s
idéias paralelas na mesma ordem, ou seja, a - b, a¹ - b¹, apresenta-se a ordem oposta a -
b, b¹ - a¹. Ou, ainda, simplesmente a - b, b - a. Para tornar mais clara a compreensão
deste paralelismo, vejamos o exemplo do Salmo 51.1:
A: Compadece-te de mim, ó Deus,
B: segundo a tua benignidade;
B: e, segundo a multidão das tuas misericórdias,
xxix

A: apaga as minhas transgressões.


Como podemos observar, o salmista faz uma combinação de idéias entre as
secções inicial e final, e entre as duas secções centrais.
Daí provém a dificuldade de fazer-se um esboço do Cântico. Os diferentes
autores têm proposto os mais variados tipos de esboço, e a maioria deles prefere, por
motivos que desconhecemos, ignorar esta característica poética. Contudo, cremos que
sem ferir o caráter canônico do Cântico, e sem afetar a nossa percepção de que ele seja
um livro inspirado, podemos e devemos respeitar as características próprias que a obra
teve no momento em que foi escrita e a criatividade e habilidade que seu escritor
humano teve no momento em que a compilou. Por isso, o esboço que propomos a seguir
seguirá aproximadamente o esquema da poesia em paralelismo quiásmico.

5.2. Esboço e Análise


O Cântico está estruturado em seis canções, cujos poemas se relacionam
segundo a seguinte disposição: secção inicial (1.2-17) com secção final (8.6-14);
primeira secção intermediária (2.1-17) com a segunda secção intermediária (7.11 - 8.5);
primeira secção central (3.1-5.1) com a segunda secção central (5.2-7.10). Então, o
esboçaremos assim:
Título e Autor (1.1)
Secção Inicial: Prelúdios de Amor (1.2-17)
a) Anseios de Amor (1.2-4)
b) Ufania de Amor (1.5-6)
c) Ambição do Amor (1.7-11)
d) Exaltação do Amor (1.12-17)
Secção Final: Triunfo do Amor (8.6-14)
d) Perenidade do Amor (8.6-7)
c) O poder do Amor (8.8-10)
b) A Riqueza do Amor (8.11-12)
a) A Intimidade do Amor (8.13-14)

As duas secções intermediárias constituem a transição entre as outras unidades;


os temas da primeira, sobre encontros de amor, são complementados na segunda, em
disposição quiásmica, sobre a felicidade do amor.

Primeira Secção Intermediária: Encontros de Amor(2.1-17)


a) Sob a Macieira (2.1-3)
b) Em casa (2.4-7)
c) Nos campos (2.8-15)
d) A posse do amor (2.6-17)
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Segunda Secção Intermediária: Felicidades do Amor (7.11-8.5)


d) Na pose do Amor (7.11)
c) No Retorno aso Campo (7.12-14)
b) No Retorno à Casa (8.1-4)
a) No Retorno à Macieira (8.5)

As duas secções centrais são cantigas de amor que se complementam em forma


progressiva, com sempre maior intensidade: primeiro devaneio de amor (3.1-5);
segundo devaneio de amor (5.2-8); primeira descrição dos encantos do amado (3.6-11);
segunda descrição dos encantos do amado (5.9-6.3); primeira descrição dos encantos da
amada (4.1-15); segunda descrição dos encantos da amada (6.4-7.10); diálogo de amor
(4.16d-5.1), servindo de transição entre as duas secções.
Primeira Secção Central: Primeiro Devaneio de Amor (3.1-4.16c)
a) Busca e Encontro (3.1-5)
b) Cortejo Nupcial (3.6-10)
c) Esplendor do Amado (3.11)
d) Descrição da Amada (4.1-7)
e) Apelo do Amado (4.8)
f) Encantamento (4.9-11)
g) Recanto de Amor (4.12-16c)
Segunda Secção Central: Segundo Devaneio de Amor (5.2-7.10)
a) Encontro e Busca (5.2-8)
c) Esplendor do Amado (5.9-16)
g) Recanto de Amor (6.1-3)
f) Encantamento (6.4-7)
b) Cortejo Nupcial (6.8-12)
d) Descrição da Amada (7.1-6)
e) Apelo do Amado (7.7-10)
Diálogo de Amor (4.16d-5.1) (Bíblia Sagrada, 1982, 801-2)
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6. COMO, ENTÃO, INTERPRETAR O CÂNTICO?

Os teólogos conservadores pensam estar assumindo uma posição cada vez mais
literal, comparados aos teólogos liberais no que se refere à interpretação do Cântico.
Contudo o que acontece, de fato, é que ambos partem de princípios hermenêuticos
fundamentalmente diferentes. Alguns, como Young, têm ressaltado o caráter da
exaltação do amor monogâmico contra as modernas e antigas depravações referentes ao
sexo. Sua idéia de "ideal monogâmico" como leitura do amor de Deus pela humanidade
perdida não é realmente parte do significado textual do Cântico. De certa forma, é até
mesmo característica do criticismo textual.
Verdade é que nunca chegará o dia em que a igreja cristã poderá parar de
advertir o mundo contra as aberrações concernentes ao sexo. A revelação natural já traz
à luz tais práticas, e a revelação divina confirma-as, caracterizando-as como quebra da
norma da lei moral, os Dez Mandamentos. E mais uma vez, vemo-nos mergulhados
dentro de uma era hedonística, que não cuida em ouvir do pecado original e suas
conseqüências. De outro lado, salientar-se um significado espiritual ao longo do texto
não diminui, mas realça a mensagem da legitimidade do amor humano no próprio
contexto da obra (Hummel, 1979, 503). Como vimos em capítulos anteriores, sob que
parâmetros o amor erótico é realmente ilícito? O amor humano, o ato e os prazeres
decorrentes do sexo, sob os padrões por Deus estabelecidos, não são necessariamente
indecentes ou pecaminosos.
Daí a propriedade com que o autor, Salomão, descreve os prazeres e as alegrias
do amor humano. A literatura sapiencial hebraica, cujo contexto vital incluía toda a
tradição israelita de lei, culto e aliança com Deus, não possuía a nossa concepção
helenística de "sagrado versus profano"; os aspectos visíveis da vida e do mundo
mantinham relação constante com a realidade supernatural de Yahweh. Por isso, é
compreensível que uma obra poderia, mesmo sem citar o nome de Deus, possuir um
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significado espiritual no próprio texto em si, extraindo-o do mesmo sem o uso de


metáforas ou alegorias.
Por isso, se o livro realmente possui tal significado, como expressá-lo? Por mais
que a linguagem seja usada, a unidade dos vários níveis de significação deve ser
enfatizada. Isso não estará caracterizando um sentido duplo ou mesmo múltiplos
sentidos, mas sim os vários aspectos do unus sensus literalis do texto bíblico. Este foi o
entendimento do livro a partir da Reforma. Comparada a toda a hermenêutica medieval,
a interpretação cristológica da Reforma era fundamentalmente diferente. O princípio da
Reforma pode ser caracterizado como "teologicamente literal": o significado espiritual
ou teológico era, de fato, o significado literal, não algum sentido secundário ou interno.
Muitos conservadores falam de uma interpretação "parabólica", apontando a
existência de apenas um tertium (o amor de Deus em termos humanos), contrariando a
compulsão generalizante da alegoria. Outros, como já vimos, preferem o termo "típico"
ou "tipológico", usualmente acentuando algum incidente histórico na vida de Salomão
como sublinhando o poema e apontando o paralelismo com o uso profético da analogia
do casamento para a aliança. Apontam também para o fato de ser Salomão um tipo de
Cristo, comprovado em 2 Samuel 7.12-17, 23.1-7 e outras passagens.
De todas as tentativas de interpretação citadas até agora, vamos preferir a última.
Cremos, porém, que seja necessário refiná-la um pouco mais. Podemos falar de uma
"tipologia vertical" aliada a um significado sacramental do livro. O adjetivo sacramental
aponta tanto para a indispensabilidade dos elementos (um aspecto literal, histórico)
quanto um certo "duplo entendimento" construído no texto, e não lido nele. Para o
crente o amor humano é tanto um eco do amor divino quanto uma transparência de uma
outra ordem de amor perfeito. É aqui que entra a aliança de Deus com Israel, a qual
apontava inteiramente para Cristo, e, por, conseguinte, aqui está também Cristo e sua
Igreja.
Em última análise, usando-nos da analogia fidei, ao contrário do que muitos,
com suas interpretações tentam sugerir, lemos o Cântico à luz de Cristo e de sua noiva,
a Igreja - não alegoricamente, nem "literalisticamente", mas sim tipologica,
cristocêntrica e sacramentalmente.
O "fio vermelho" que conduz a Cristo, que muitos julgavam partido no Cântico,
está nele presente como nos demais escritos do Antigo Testamento.
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7. PROPÓSITO

O tema do Cântico é o amor de Salomão pela Sunamita e a profunda afeição dela


por ele. Cientes destas informações podemos afirmar que o Cântico tem como propósito
ser uma descrição sapiencial de um relacionamento amoroso legítimo, abençoado por
Deus - ou seja, dentro de um casamento - com todas as suas alegrias e proveitos.
Encaram-nos como presentes de Deus. É, por isso, aliado ao seu caráter tipológico e
sacramental, didático também. Young afirma que ao ler o livro "os olhos da fé lembrar-
se-ão daquele amor que está acima de todas as afeições terrestres e humanas - talvez o
mesmo amor do Filho de Deus pela humanidade perdida" (Young, 1964, 351). Da
perspectiva cristã, indica o compromisso mútuo entre Cristo e sua igreja e a plenitude
que deve haver entre ambos.
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8. TEOLOGIA

A multiplicidade de interpretações sugerida para o Cântico oferece também uma


grande variedade de ensinos teológicos que dele podemos extrair. Cada um destes irá
variar conforme a própria interpretação dada ao livro. Neste trabalho, procuramos
enfatizar e justificar a sua interpretação tipológica "vertical", cristocêntrica e
sacramental, como vimos. Assim, o ensino que dele poderemos extrair estará baseado
em tal interpretação.
O Cântico não é um livro doutrinário. Antes trata-se de uma poesia que, nos
moldes da literatura sapiencial hebraica discorre sobre o amor legítimo entre um homem
e uma mulher - entenda-se "legítimo" como abençoado por Deus dentro de um
casamento legítimo - em todos os seus aspectos, tais como o romance, a admiração
mútua, a relação sexual, etc. Logo, dele poderemos extrair dois ensinos teológicos
básicos, quais sejam: primeiro, que a relação legítima entre homem e mulher sob a
bênção de Deus não apenas pode, mas deve ser plena de alegrias, gozos e de uma
intimidade sadia, até na sexualidade do casal. Por causa do pecado original sempre
houve, em todos os tempos, perversões referentes ao sexo. O ser humano demonstrou
não saber distinguir corretamente o que era e o que não era sexo ilícito. Em nossa época
não é diferente, e mesmo nos meios cristãos existem muitos "tabus" e conceitos pré-
estabelecidos em matéria de sexo. Para esclarecer tais problemas, o Cântico levanta sua
voz e afirma que em Gênesis 2.24 o Senhor propõe realmente que homem e mulher
devam formar "uma só carne" no sentido mais amplo da palavra, ou seja, em todos os
aspectos que se referem ao seu relacionamento mútuo. Propõe, logo, uma verdadeira
"complementação mútua" para a qual "o homem deixará pai e mãe e se unirá a uma
mulher".
Em segundo lugar, através de seu caráter tipológico, cristocêntrico e sacramental
o Cântico propõe que Deus deseja um relacionamento tão íntimo com Seu povo como
xxxv

deve ser o relacionamento entre um homem e uma mulher. Mas sob que condições tal
relacionamento pode ser alcançado? Por causa do mesmo pecado original, o homem por
si só não pode chegar a tal relacionamento. Logo, competia ao Senhor estabelecer tal
relação. Esta foi alcançada por Cristo no Calvário. Através de Cristo, Deus atribui
justiça a todo aquele que crê e o convida a ter este amor íntimo e pleno com Ele e a
desfrutar desta relação como também pode desfrutar da plenitude do matrimônio. Desta
forma o Cântico aponta para Cristo e o "fio vermelho" que muitos julgavam partido
neste ponto continua a percorrer seu caminho até o túmulo aberto na manha da Páscoa.
É através do nosso "cordeiro pascal" que todos os crentes de todos os tempos podem ter
uma plena comunhão com Deus, e Deus a deseja ardentemente.
Logo, em Cristo torna-se verdadeira a reflexão sapiencial de 8.6-7: "... porque o
amor é forte como a morte... as suas brasas são brasas de fogo, são veementes labaredas.
As muitas águas não poderiam apagar o amor, nem os rios, afogá-lo; ainda que alguém
desse todos os bens da sua casa pelo amor, seria de todo desprezado". Através de Cristo,
Deus e o homem pecador podem viver uma comunhão com toda esta intensidade
amorosa, ao mesmo tempo que, sob a bênção de Deus, homem e mulher podem vivê-la
dentro do casamento.
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CONCLUSÃO

A despeito de todos os que contradizem tal afirmação, o Cântico, como vimos,


não é apenas uma coleção de poemas líricos que exaltam o amor humano per se, e que
por acidente foi incluída no cânon veterotestamentário. Pelo exposto chegamos à
conclusão que tal livro não interrompe, dentro do texto bíblico, a linha histórico-
profética que culmina com o nascimento, morte e ressurreição do Salvador Jesus Cristo;
pelo contrário, tal qual os sacrifícios do povo de Israel, cumpre um caráter tipológico
que aponta com toda a clareza e certeza para o Messias prometido, cerca de 900 anos
antes de seu nascimento. Ao mesmo tempo, esclarece e dá aos cristãos uma nova
percepção de como pode manifestar-se o verdadeiro amor dentro de um casamento
estabelecido e abençoado por Deus: que tal união pode ser plena de alegrias e
satisfações mútuas decorrentes de tudo aquilo que é parte integrante daquela relação, ou
seja, o amor, a admiração recíproca, o sexo etc. Tais elementos afirmam a grande
importância que cumpre, em nosso meio, a interpretação e o ensino corretos a respeito
deste livro que, ainda que não seja fonte de doutrina, bem ao estilo da antiga literatura
sapiencial hebraica, discorre sobre elementos da vida diária em conexão com a realidade
transcendente, a realidade de Yahweh.
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OBRAS CONSULTADAS

ARCHER, Gleason L. Enciclopédia de Dificuldades Bíblicas. São Paulo: Vida, 1997.


Pp. 278-280.

ARCHER, Gleason L. Merece Confiança o Antigo Testamento? São Paulo: Vida Nova,
4ª ed., 1991. Pp. 382-8, 448-55.

A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 7ª impressão, 1995. Pp. 1182-4.

Bíblia Sagrada. São Paulo: Vozes/Santuário, 33ª ed., 1982. Pp. 789-802.

A Bíblia Vida Nova. São Paulo: SBB/Vida Nova, 2ª ed., 1996. Pp. 4328-9.

BOYER, O. S. Pequena Enciclopédia Bíblica. São Paulo: Vida, 22ª impressão, 1996. P.
125.

CARR, G. Lloyd; EATON, Michael A. Eclesiastes e Cantares (Introdução e


Comentário). São Paulo: Mundo Cristão/Vida Nova, 1989. Pp. 168-215.

CHILDS, Brevard S. Introduction to the Old Testament as Scripture. Philadelphia:


Fortress Press, 1ª ed., 5ª imp., 1987. Pp. 569-79.

Concordia Self-Study Bible. St. Louis: Concordia, 1986. Pp. 1005-6.

DAVIS, John D. Dicionário da Bíblia. Rio de Janeiro: JUERP, 17ª ed., 1985. Pp. 103-
5.

EHLKE, Roland Cap et all. Ecclesiastes and Song of Songs. Milwaukee: Northwestern,
1988. Pp. 135-44.

HALLEY, Henry A . Manual Bíblico. São Paulo: Vida Nova, 4ª ed., 1995. Pp. 250-1.

HUMMEL, Horace D. The Word Becoming Flesh. St. Louis: Concordia, 1979. Pp.
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The Interpreter's Dictionary of the Bible. Nashville: Abingdon Press, 16ª ed, 1986. Vol
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MEARS, Henriqueta C. Estudo Panorâmico da Bíblia. São Paulo: Vida, 8ª impressão,


1996. P. 185.

ROOS, Deomar. Apostila de Isagoge do Antigo Testamento. Escola Superior de


Teologia do Instituto Concórdia de São Paulo, 1987. Pp. 68-71, 81-5.

ROOS, Deomar. Apostila de Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Escola


Superior de Teologia do Instituto Concórdia de São Paulo, [s.d.]. Pp. 46-7.

The Anchor Bible Dictionary. New York: Bantam Doubleday Dell Publishing Group, 5ª
ed., 1992. Vol. VI. Pp. 150-6.
xxxviii

TIDWELL, J. B. Visão Panorâmica da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1ª ed., 1985. Pp.
102-5.

Tradução Ecumênica da Bíblia. São Paulo: Loyola, 1995. P. 844.

YOUNG, Edward J. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1964.
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