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Antes do fim - memórias

Ernesto Sabato

Titulo original: Antes del fin.

Tradução: Sérgio Molina São Paulo - Companhia das Letras, 2000

Gênero: memórias autobiográficas

Numeração: Ausente (165 pp)

Digitalizado e revisto por Virgínia Vendramini

Outubro de 2018

Orelhas

Aos trinta anos, Ernesto Sabato deixou uma carreira científica promissora para dedicar-se à
literatura. Muito depois, fechado na solidão de um quarto, interrompe a pintura, sua principal
atividade há mais de vinte anos, e escreve este relato autobiográfico. Lançado em 1999,
Antes do fim é o livro de um homem triste. Velho, quase cego, distante dos livros e das
pessoas que mais amou, Sabato faz um belo e amargo apanhado dos fatos fundamentais de
sua existência. Reúne imagens dispersas no tempo, organiza lembranças e reflexões, procura
a cor do que se estampou na memória, refaz seus trajetos e compõe este testamento
espiritual. Um de seus legados é a certeza íntima de que "a razão não serve para a
existência". Com efeito, a vida de Sabato foi palco de paixões e rupturas, de contradições e
buscas - regidas pelo senso de liberdade e pelo rigor ético. O relato abrange desde a infância
modesta no vilarejo de Rojas à velhice e à perda de seus dois grandes amores: a mulher,
Matilde, e o filho, Jorge. Mas vai além da esfera pessoal. O autor de O túnel fala em tons
sombrios do mundo moderno, tempo de crise em que um certo racionalismo parece disposto
a usurpar o espaço da espiritualidade, em que a suposta "luz da ciência" parece levar o
homem a um abismo de abstração e treva. Em meio à desilusão, Sabato encontra esperança
nos jovens. Dedica-lhes o livro e, oferecendo uma lição apaixonada de humanismo e
liberdade, conclama-os, de certa forma, à - solidariedade e à resistência: "A maior nobreza dos
homens é a de erguer sua obra em meio à devastação'.

Ernesto Sabato nasceu em Rojas, província de Buenos Aires, em 1911. Doutor em física pela
Universidade de La Plata, trabalhou no Laboratório Curte, em Paris, e em 1945 abandonou a
ciência. Sua obra foi reconhecida por escritores como Camus e Thomas Mann. Em 1983 foi
eleito presidente da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas, cujo trabalho
originou o relatório Nunca más, conhecido como "Informe Sabato". Entre seus ensaios,
destacam-se Nós e o universo, Homens e engrenagens e O escritor e seus fantasmas.
Publicou os romances Sobre heróis e tumbas, Abadon, o exterminador e O túnel, este
reeditado pela Companhia das Letras.

ERNESTO SABATO

Antes do fim Memórias

Tradução

Sérgio Molina

COMPANHIA DAS LETRAS

Copyright (c) 1948 by Ernesto Sabato

Título original

Antes del fin

Capa

Angelo Venosa sobre "Egito", Bernard Plossu (1977).

Copyright (c) by Bernard Plossu / Métis

Preparação

Cássio de Arantes Leite


Revisão

Maysa Monção

Beatriz de Freitas Moreira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (ciP) (Câmara Brasileira do Livro, sP, Brasil)

Sabato, Ernesto

Antes do fim : memórias / Ernesto Sabato ; tradução Sérgio Molina. - São Paulo : Companhia
das Letras, anuo.

Título original: Antes del fin. ISBN 85-359-0044.6

r. Memórias autobiográficas 2. Sabato, Ernesto, inn I. Título.

oo-3264 eDD-ar86o.9492

Índice para catálogo sistemático: r. Memórias Literatura argentina ar86o.949z

[2000] Todos os direitos desta edição reservados à

EDITORA SCHWARCZ LTDA.

Rua Bandeira Paulista 702 cj. 32 04532-002 - São Paulo - SP

Telefone (11) 3846-0801 Fax (II) 3846-0814 www.companhiadasletras.com.br

Em memória de minha mãe, de Matilde, de Jorge Federico


Índice

PALAVRAS PRELIMINARES 9

I. PRIMEIROS TEMPOS E GRANDES DECISÕES 13

II. TALVEZ SEJA O FIM 83

III. A DOR ROMPE O TEMPO 123

EPÍLOGO

PACTO ENTRE DERROTADOS 153

PALAVRAS PRELIMINARES

Venho acumulando muitas dúvidas, tristes dúvidas sobre o conteúdo desta espécie de
testamento que tantas vezes me induziram a publicar; finalmente decidi fazê-lo. Muitos me
dizem: "Você tem o dever de terminá-lo, os jovens estão sem esperanças, ansiosos, e
acreditam em você; não pode decepcioná-los". Pergunto-me se mereço essa confiança, tenho
graves defeitos que eles não conhecem e que procuro expressar da maneira mais delicada,
para não feri-los, pois necessitam ter fé em algumas pessoas em meio a este caos, não só
neste país, mas no mundo inteiro. E a maneira mais delicada de fazer isso é dizer-lhes, como
tantas vezes escrevi, que não esperem encontrar neste livro minhas verdades mais atrozes;
só as encontrarão em minha ficção, naqueles sinistros bailes de máscaras que, por isso
mesmo, dizem ou revelam verdades que não ousariam confessar de rosto descoberto.
Também os grandes carnavais de outrora eram como um vômito coletivo, uma coisa
essencialmente saudável, uma coisa que nos deixava novamente em condições de suportar a
vida, de levar a existência; cheguei mesmo a pensar que, se Deus existe, está mascarado.

Sim, escrevo isto sobretudo para os adolescentes e jovens, mas também para aqueles que,
como eu, se aproximam da morte e se perguntam para que e por que vivemos e lutamos,
sonhamos, escrevemos, pintamos ou, simplesmente, empalhamos cadeiras. Assim, entre
recusas a escrever estas páginas finais, estou fazendo isso quando meu eu mais profundo, o
mais misterioso e irracional, me inclina a fazê-lo. Talvez eu ajude a encontrar um sentido
transcendente neste mundo repleto de horrores, de traições, de inveja; desamparos, torturas
e genocídios. Mas também de pássaros que levantam meu ânimo quando ouço seus cantos,
ao amanhecer; ou quando minha velha gata vem deitar-se em meu colo; ou quando vejo a
cor das flores, às vezes tão minúsculas que é preciso observálas de muito perto.

Modestíssimas mensagens que a Divindade nos dá de sua existência. E não só por meio das
inocentes criaturas da natureza, mas também encarnada em heróis anônimos, como aquele
pobre homem que, no incêndio de uma favela, entrou três vezes no barraco de chapas de
metal onde umas crianças estavam trancadas - ali deixadas pelos pais, que haviam ido
trabalhar -, até morrer, na última tentativa. Mostrando-nos que nem tudo é miserável,
sórdido e sujo nesta vida, e que este pobre ser anônimo, como aquelas florezinhas, é uma
prova do Absoluto.

I PRIMEIROS TEMPOS E GRANDES DECISÕES

Como um exilado caminho pelas vielas da cidade mais antiga, a primeira a nascer. Minha
alma vai à frente, vacilante e ansiosa. - O que a perturba? Seu abandono ou sua busca de
uma nova morada? Ali estou, sonâmbula, órfã e vencida. Saudosa da praia e das altas colinas
e daquele barco azul que perto da costa espera por mim.

MATILDE KUSMINSKY-RICHTER PP"

Acabo de levantar-me; logo serão cinco horas da manhã; procuro não fazer barulho, vou até a
cozinha e preparo uma xícara de chá enquanto tento resgatar fragmentos de meus
entressonhos, esses entressonhos que, aos 86 anos, aparecem-me atemporais, misturados
com lembranças da infância. Nunca tive boa memória, sempre sofri essa desvantagem; mas
talvez seja um modo de recordar apenas o que se deve, talvez a maior coisa que nos
aconteceu na vida, a que tem algum significado profundo, a que foi decisiva - para o bem e
para o mal - nesta complexa, contraditória e inexplicável viagem rumo à morte que é a vida de
toda pessoa. Por isso minha cultura é tão irregular, repleta de enormes lacunas, como que
construída com restos de belíssimos templos cujos pedaços se encontram entre detritos e
plantas selvagens. Os livros que li, as teorias que freqüentei, deveram-se a meus próprios
tropeços com a realidade.
Quando me param na rua, numa praça ou no trem, para perguntar-me que livros é preciso ler,
respondo sempre: "Leiam o que os apaixone, apenas isso os ajudará a suportar a existência".

Por isso descartei o título de Memórias e também o de Memórias de um desmemoriado,


porque me pareceu quase um trocadilho, inadequado para esta espécie de testamento, escrito
no período mais triste da minha vida. Neste tempo em que me sinto tão desvalido, ao não
recordar os poemas imortais sobre o tempo e a morte que me consolariam nestes anos finais.

Na cidadezinha em que nasci, tínhamos o costume de, antes de deitar, pedir que nos
acordassem dizendo: "Recuérdenme a las seis", acordem-me às seis. Sempre me espantou
aquela relação que se estabelecia entre a memória e a continuação da existência.

A memória foi muito valorizada pelas grandes culturas, como resistência ante o devir do
tempo. Não o registro de meros acontecimentos, nem aquela memória que serve para
armazenar informações nos - hoje - computadores: falo da necessidade de atentar para as
verdades primordiais.

Nas comunidades arcaicas, enquanto o pai saía em busca de alimento e as mulheres se


dedicavam à olaria ou ao cuidado das roças, as crianças, sentadas no regaço dos avós, eram
educadas em sua sabedoria; não no sentido que a civilização cientificista atribui a essa
palavra, mas aquela que nos ajuda a viver e a morrer; a sabedoria daqueles conselheiros, que
em geral eram analfabetos, mas, como um dia me disse o grande poeta Senghor, em Dacar: "A
morte de um desses anciãos é o que para vocês significaria o incêndio de uma biblioteca de
pensadores e poetas". Naquelas tribos, a vida tinha um valor sagrado e profundo; seus rituais,
não apenas belos mas misteriosamente significativos, consagravam os fatos fundamentais da
existência: o nascimento, o amor, a dor e a morte.

Rodeado de penumbras que entrevejo, em meio ao abatirnerito e à desgraça, como um


daqueles anciãos de tribo que, assentados junto ao calor das brasas, rememoram seus antigos
mitos e lendas, disponho-me entremesclados, difusos, que fizeram parte de tensões profundas
e contraditórias, de uma vida cheia de equívocos, desordenada, caótica, numa desesperada
busca da verdade.

Meu nome é Ernesto, porque quando nasci, em 24 de junho de 1911, dia do nascimento de
são João Batista, acabava de morrer o outro Ernesto, que, mesmo em sua velhice, minha mãe
continuou a chamar Ernestito, pois morreu ainda criança. "Aquele menino não era para este
mundo", dizia ela. Acho que nunca a vi chorar - tão estóica e valente foi ao longo da vida -,
mas, certamente, deve tê-lo feito a sós. E tinha noventa anos quando mencionou, pela última
vez, de olhos úmidos, o remoto Ernestito. O que prova que os anos, as desgraças, as
desilusões, longe de facilitar o esquecimento, como se costuma pensar, tristemente o
reforçam.

Aquele nome, aquele túmulo, sempre tiveram para mim algo de noturno, e talvez tenha sido
essa a causa de minha existência tão difícil, ser marcado por essa tragédia, pois quando ela
ocorreu eu estava no ventre de minha mãe; ela motivou, talvez, os misteriosíssimos pavores
que sofri em criança, as alucinações em que de repente alguém se aproximava com uma
lanterna, um homem que me era impossível evitar, por mais que me escondesse, tremendo,
embaixo das cobertas. Ou aquele outro pesadelo em que me sentia sozinho em uma abóbada
cósmica, tiritando diante de alguma coisa ou de alguém - não consigo precisá-lo - que
vagamente me lembrava meu pai. Durante muito tempo sofri de sonambulismo. Saía da cama
e ia do quarto dos fundos, onde eu dormia com Arturo, meu irmão mais novo, até o
dormitório de meus pais, falava com mamãe e, em seguida, voltava para meu quarto. Deitava
sem saber de nada do que havia acontecido, sem a menor consciência. De modo que quando,
na manhã seguinte, ela me dizia, com tristeza - tanto sofreu por mim! -, com uma voz que mal
se ouvia: "à noite você se levantou e me pediu água", eu sentia um estranho tremor. Ela temia
aquele sonambulismo, contou-me muitos anos mais tarde, quando me mandaram para La
Plata para fazer os estudos secundários e ela deixou de estar a meu lado para me proteger.
Pobre mamãe, não compreendia, nem eu ainda, que aquele tormento era em grande parte
fruto da convivência espartana regida por meu pai.

A terra de minha infância, como um povoado estremecido por forças estranhas, estava
invadida pelo terror que eu sentia por ele. Eu chorava escondido, pois éramos proibidos de
fazê-lo, e, para evitar seus acessos de violência, mamãe corria para ocultarme. Era tanto o
desespero com que, sem desejá-lo, minha mãe se aferrara a mim para me proteger, que
acabou isolando-me do mundo. Transformado em um menino só e assustado, eu contemplava
da janela o mundo de brincadeiras de pião e esconde-esconde que me fora vedado.

De certo modo, nunca deixei de ser o menino solitário que se sentiu abandonado, e por isso
vivi sob uma angústia semelhante à de Pessoa: "serei sempre o que esperou que lhe abrissem
a porta ao pé de uma parede sem porta".

E assim, de uma forma ou de outra, necessitei de compaixão e carinho.


Quando me mandaram de minha cidadezinha para o Colégio Nacional de La Plata a fim de
cursar o secundário, no instante em que me puseram no trem, senti rachar-se o chão incerto
sobre o qual eu me movia, mas cujos piores afundamentos ainda estavam por vir. Durante
algum tempo, continuei a sonhar com aquela mãe que via entre lágrimas, enquanto me
afastava rumo a tão infinita solidão. E quando a vida já havia marcado as desgraças em meu
rosto, quantas vezes, em um banco de praça, pesaroso e abatido, voltei a esperar um trem de
regresso.

Caminho pela Costanera Sur contemplando o portentoso rio que, no crepúsculo do século
passado, cruzaram milhões de espanhóis, italianos, judeus, poloneses, albaneses, russos,
alemães, acossados pela fome e pela miséria. Os grandes visionários que então governavam o
país ofereceram essa metáfora do nada, que é o nosso pampa, a "todos os homens de boa
vontade" necessitados de um lar, de um chão onde arraigar-se, já que é impossível viver sem
pátria, ou Mátria, como preferia Unamuno, uma vez que é a mãe o verdadeiro fundamento da
existência. Mas esses homens, em sua maioria, encontraram outro tipo de pobreza, causada
pela solidão e a saudade, pois, enquanto o navio se afastava do porto, com o rosto sulcado de
lágrimas, viam suas mães, seus filhos e irmãos desvanecerem-se na morte, pois nunca
tornariam a vê-los.

Desse irremediável desconsolo nasceu a mais estranha canção que já existiu, o tango. Certa
vez o genial Enrique Santos Discépolo, seu máximo criador, definiu-o como um pensamento
triste que se dança. Artistas sem pretensões, com instrumentos que mal sabiam segurar, um
violino, uma flauta, um violão, escreveram, sem saber, uma parte fundamental de nossa
história. Que marinheiro, vindo de algum porto germânico, trouxe entre as mãos o
instrumento que lhe daria sua marca mais funda e dramática: o bandônion? Criado para servir
a Deus pelas ruas, em hinos religiosos dos cultos luteranos, aquele instrumento humilde
encontrou seu destino a milhares de léguas de distância. Com o bandônion, sombrio e
sagrado, o homem pôde exprimir seus sentimentos mais profundos.

Quantos desses imigrantes continuariam vendo suas montanhas e seus rios, separados pela
dor e pelos anos, neste caótico entreposto, nesta cidade erguida sobre o porto e agora
transformada em um deserto de amontoadas solidões.

E, ao caminhar por este terrível Leviatã, pelas costas que pela primeira vez divisaram aqueles
imigrantes, creio ouvir o melancólico gemido do bandônion de Aníbal Troilo.

Cuando la desdicha y el furor de Buenos Aires


hacen sentir más la soledad,

busco un suburbio en el crepúsculo, y entonces,

a través de un brumoso territorio de medio siglo

enriquecido y devastado por el amor y el desengano,

miro hacia aquel nino que fui en otro tiempo. Melancólicamente me recuerdo sintiendo las
primeras gotas de una Iluvia en la tierra reseca de mis calles sobre los techos de zinc "que
Ilueva que llueva la vieja está en la cueva"

hasta que los pájaros cantaban y corríamos descalzos a largar los barquitos de papel.

Tiempo de las cintas de Tom Mix y de las figuritas de colores, de Tesorieri, Mutis y Bidoglio,

tiempos de las calesitas a caballo,

de los manises calientes en las tardes invernales

de la locomotora chiquita y su silbato.

Mundo que apenas entrevemos cuando estamos muy solos

en este caos del cuido y del cemento

ya sin lugar para los patios com glicinas y claveles.

Quando a desgraça e o furor de Buenos Aires/ fazem sentir mais a solidão,/busco um subúrbio
no crepúsculo, e então/ através de uni brumoso território de meio século/ enriquecido e
devastado pelo amor e o desengano,/ olho para aquele menino que fui em outros tempos./
Melancolicamente me recordo/ ouvindo as primeiras gotas de uma chuva/ na terra seca de
minhas ruas, sobre os tetos de zinco/ "que llueva que llueva la vieja está en la cueva"/ até que
os pássaros cantavam e corríamos descalços/ para soltar os barquinhos de papel./ Tempo das
fitas de Tom Mix/e das figurinhas coloridas,/ de Tesorieri, Mutis e Bidoglio,/ tempos dos
carrosséis de cavalinho,/dos amendoins quentes nas tardes invernais/ da locomotiva
pequenina e seu apito./ Mundo que mal entrevemos quando estamos muito sós/ neste caos
de ruído e de cimento/ já sem lugar para os pátios com glicínias e cravos.

Em meio àquela multidão de colonizadores, meus pais chegaram a estas praias com a
esperança de fecundar esta "Terra de promissão", que se estendia para além de suas lágrimas.

Meu pai descendia de montanheses italianos acostumados às asperezas da vida,


diferentemente de minha mãe, que pertencia a uma antiga família albanesa e teve de
suportar as carências com dignidade.
Juntos se instalaram em Rojas, que, como boa parte dos velhos povoados do pampa, foi um
dos tantos fortins erguidos pelos espanhóis, demarcando a fronteira da civilização cristã.

Lembro-me de um velho índio que me contava histórias de lutas sangrentas e de malones,1


que trançava os tentos com paciência e que, quando lhe disseram que estavam transmitindo
por uma rádio de galena a luta de Firpo com Dempsey, respondeu: "Quanto mais ciência, mais
mandinga".

*1.Ataques repentinos de indígenas. (N. T.)

Naquele lugarejo do pampa meu pai chegou a ter um pequeno moinho de farinha. Centro de
cândidas fantasias para o menino que eu era então, quando, aos domingos, ficava na oficina
de carpintaria fazendo coisinhas de madeira, ou escalava com Arturo as pilhas de sacos de
trigo e, às escondidas, como se fosse um misterioso segredo, passávamos a tarde comendo
biscoitos.

Meu pai era a autoridade suprema daquela família em que o poder era transmitido
hierarquicamente para os irmãos mais velhos. Ainda me recordo fitando com medo seu rosto
sulcado a um só tempo de candor e dureza. Suas decisões inapeláveis eram a base de um
férreo sistema de normas e castigos, também para mamãe. Ela, que sempre foi muito
reservada e estóica, é provável que a sós tenha sofrido com aquele caráter tão enérgico e
severo. Nunca ouvi dela uma queixa, e, em meio às dificuldades, teve de assumir a árdua
tarefa de criar onze filhos homens.

A educação que recebemos deixou marcas tristes e duradouras em meu espírito. Mas essa
educação, muitas vezes duríssima, ensinou-nos a cumprir o dever, a ser conscientes, rigorosos
com nós mesmos, a trabalhar até concluir toda tarefa começada. E, se conseguimos alguma
coisa, foi graças a esses atributos que asperamente tivemos de assimilar.

A severidade de meu pai, por vezes terrível, motivou, em grande medida, essa tonalidade de
fundo de meu espírito, tão propenso à tristeza e à melancolia. Mas também foi a origem da
rebeldia em dois de meus irmãos que fugiram de casa: Humberto, de quem falarei mais
adiante, e Pepe, conhecido em nosso povoado como "o louco Sabato", que acabou indo
embora com o circo, para desonra de minha família burguesa. Decisão que entristeceu minha
mãe, mas que ela superou com o estoicismo que manteve até a velhice, quando, aos noventa
anos, depois de longo sofrimento, morreu serenamente em sua cama nos braços de Matilde.
Meu irmão Pepe tinha paixão pelo teatro e atuava no grupo interiorano "Los treinta amigos
unidos"; quando, no cine-teatro La Perla, encenavam sainetes criollos, sempre conseguia
algum papel, por menor que fosse. Em seu quarto tinha toda a coleção de Bambalinas,
editada em Buenos Aires, com capas coloridas, onde além desses sainetes eram publicadas
peças de Ibsen e uma, que ainda recordo, de Tolstói. Toda essa coleção foi devorada por mim
antes dos doze anos, marcando fortemente minha vida, já que sempre tive paixão pelo teatro
e, embora tenha escrito várias peças, elas nunca saíram de minhas gavetas.

Sob a aspereza no trato, meu pai ocultava seu lado mais vulnerável, um coração cândido e
generoso. Possuía um assombroso sentido da beleza, tanto que, quando a família teve de se
mudar para La Plata, ele mesmo projetou a casa em que moramos. Tarde descobri sua paixão
pelas plantas, de que cuidava com uma delicadeza para mim desconhecida até então. Nunca o
vi faltar com a palavra empenhada e, com os anos, admirei sua fidelidade para com os
amigos. como foi o caso de don Santiago, o alfaiate que adoeceu de tuberculose. Quando o
doutor Herrera o avisou de que sua única chance de sobrevivência era ir para as serras de
Córdoba, meu pai o acompanhou num daqueles minúsculos camarotes dos trens antigos, em
que o contágio parecia inevitável.

Sempre recordo essa atitude, que define sua devoção pela amizade e que eu soube avaliar
vários anos depois de sua morte, como costuma ocorrer nesta vida que, tantas vezes, é um
permanente desencontro. Quando já era tarde para dizer-lhe que o amamos apesar de tudo, e
para agradecer-lhe os esforços com que tentou afastar de nós as desgraças, que são
inevitáveis e, ao mesmo tempo, instrutivas.

Porque nem tudo era terrível em meu pai; com saudade, vislumbro antigas alegrias, como as
noites em que, comigo no colo, ele cantava para mim canções de sua terra, ou quando, à
tarde, ao voltar do jogo de baralho no Club Social, me trazia Mentolina, as pastilhas de que
todos gostávamos.

Infelizmente, ele não está mais aqui, e coisas fundamentais ficaram sem ser ditas entre nós;
quando o amor tornou-se inexprimível e as velhas feridas permanecem sem cuidado. Então
descobrimos a última solidão: a do amante sem o amado, a dos filhos sem os pais, a do pai
sem os filhos.

Há muitos anos fui até Paola de San Francesco - onde um dia ele se apaixonou por minha mãe.
Entrevendo sua infância naquelas terras saudosas, olhando para o Mediterrâneo, inclinei a
cabeça e meus olhos se nublaram.
À medida que nos aproximamos da morte, também nos voltamos para a terra. Mas não para a
terra em geral, e sim para aquele pedaço, aquele ínfimo mas tão querido, tão saudoso pedaço
de terra em que transcorreu nossa primeira idade. E porque ali começou a dura
aprendizagem, ele permanece amparado na memória. Melancolicamente rememoro aquele
universo remoto e distante, agora condensado num rosto, numa humilde praça, numa rua.

Sempre tive saudade dos ritos de minha infância, com seus Reis Magos que já não existem
mais. Agora, até nos países tropicais eles foram substituídos por esses pobres-diabos
fantasiados de Papai Noel, com peles polares, barbas longas e brancas, como a neve de onde
fingem vir. Não, estou falando dos Reis Magos que em minha infância, em meu povoado rural,
vinham misteriosamente quando todos nós, crianças, já estávamos dormindo, para deixar em
nossos sapatos alguma coisa muito desejada; também nas famílias pobres, em que apenas
deixavam um brinquedo de lata, ou um punhado de balas, ou uma tesourinha de brinquedo
para que alguma menina pudesse imitar a mãe costureira cortando vestidinhos para sua
boneca de pano.

Para esses Reis Magos eu pediria hoje uma única coisa: que me levassem de volta àquele
tempo em que eu acreditava neles, àquela remota infância, mil anos atrás, em que eu
adormecia desejando sua chegada nos milagrosos camelos, capazes de atravessar muros e até
de passar pelas frestas das portas - pois assim nos explicava mamãe que podiam fazer -,
silenciosos e cheios de amor. Aqueles seres que ansiávamos ver, resistindo a dormir, até que
o invencível sono de todas as crianças podia mais do que nossa ansiedade. Sim, eu gostaria
que me devolvessem aquela espera, aquela candidez. Sei que é pedir muito, um impossível
sonho, a irrecuperável magia de minha meninice com seus Natais e aniversários infantis, o
rumor das cigarras nas sestas de verão. Ao cair da tarde, mamãe me mandaria à casa de Misia
Escolástica, a Velha Senhorita; momentos do rito das guloseimas e dos biscoitos Lola, em
troca do recado de sempre: "Mamãe manda dizer como vai a senhora e muitas lembranças".
Coisas assim, não grandes, mas pequenas e modestíssimas coisas.

Sim, eu gostaria que me devolvessem àquela época em que as histórias começavam com "Era
uma vez..." e, com a fé absoluta das crianças, éramos imediatamente elevados a uma
misteriosa realidade. Ou àquele comovente ritual de quando recebíamos a visita dos grandes
circos que ocupavam a praça Espana e em silêncio contemplávamos os truques de mágica e o
número do domador, que entrava com seu leão em uma jaula montada fora do picadeiro. E o
palhaço, Scarpini y Bertoldito, que gostava dos papéis trágicos, até que uma noite, quando
interpretava Espectros, tomou veneno em cena enquanto o público aplaudia inocentemente.
Quando a cortina levantou encontraram-no morto, e a mulher dele, Angelita Alarcón, chorava
abraçando desconsoladamente seu corpo. Sempre o rememoro ao contemplar os palhaços
pintados por Rouault: esses pobres bufões que, finda sua parte, na solidão da carroça tiram
as lantejoulas e voltam à opacidade do cotidiano, no qual nós, velhos, sabemos que a vida é
imperfeita, que as histórias infantis com Bons e-Maus, Justiça e Injustiça, Verdade e Mentira
não passam, afinal, de sonhos inocentes. A dura realidade é uma desoladora confusão de
belos ideais e canhestras realizações, mas sempre haverá alguns obstinados, heróis, santos e
artistas, que em sua vida e em sua obra apanham pedaços do Absoluto, que nos aj udam a
suportar as repugnantes relatividades.

Na solidão de meu estúdio contemplo o relógio que pertenceu a meu pai, a velha máquina de
costura New Home de mamãe, uma jarrinha de prata e o Colt que papai sempre mantinha em
sua gaveta, e que depois foi passando como herança para o mais velho dos irmãos, até
chegara minhas mãos. Sinto-me portanto uma triste testemunha da inevitável transmutação
das coisas que se revestem de uma eternidade estranha aos homens que as usaram. Quando
sobrevivem a eles, voltam a sua inútil condição de objetos e toda a magia, todo o candor,
sobrevoa como uma fantasmagoria incerta diante da gravidade do vivido. Restos de uma
ilusão, meros fragmentos de um sonho sonhado.

Adolescente sin luz,

tu grave pena llorás,

tus suenos no volverán,

corazón, tu infancia ya terminó.

La tierra de tu ninez

quedó para siempre atrás

sólo podes recordar, com dolor,

los anos de tu esplendor.

Polvo cubre tu cuerpo,

nadie escucha tu oracíón,

his suenos no volverán,

corazán, tu infancia ya terminó.

Adolescente sem luz,/ choras teu grave pesar,/ teus sonhos não voltarão,/ coração,/ tua
infância já terminou.//A terra de tua infância/ficou sem dó para trás/só podes ora lembrar,
todo em dor,/ de seu tempo de esplendor./ O pó recobre teu corpo/ ninguém ouve tua
oração,/ teus sonhos não voltarão,/ coração, tua infância já terminou.

Ao terminar a escola primária em minha cidadezinha, em 1923, em meio à dilaceração mais


profunda de minha vida, meu irmão Pancho me levou a La Plata para que eu lá completasse
meus estudos. Recordo a primeira noite, com sua enigmática madrugada na casa da rua Pedro
Echagüe, ouvindo entre sonhos um ruído para mim inédito, que através das décadas
conservou-se como uma imagem de minha tristeza infantil: o barulho dos cascos dos cavalos e
das rodas contra o calçamento de pedra. Remotíssimos tempos em que não existiam os jeans,
quando os meninos usávamos calças curtas e as calças compridas simbolizavam um terrível
evento de nossas vidas, marcado pelo orgulho e pela vergonha.

Muitas vezes chorei de noite nessa cidade que depois chegaria a estar tão intimamente ligada
a meu destino. Nos penosos dias que precederam o início das aulas, sofri uma de minhas
maiores dores. Eu levara ao bosque uma paletinha de lata, uma humilde imitação da paleta
de um pintor, que meu irmão comprara na loja de ferragens de nosso lugarejo. Tinha umas
pastilhas de aquarela que para mim eram um tesouro, com as quais eu copiava as ilustrações
dos calendários. Lembro-me de uma tróica na neve de uma Rússia longínqua e misteriosa.

Perguntei como chegar ao famoso bosque de La Plata e para lá rumei com as aquarelas, um
frasco de água, um par de pincéis e um caderno de folhas brancas. Sentei na grama entre os
enormes eucaliptos e comecei a pintar um daqueles troncos descascados, com seus
cambiantes tons de verdes, ocres e marrons, imbricados de um modo que me comovia. Tudo
era plácido naquela manhã e, pelo poder da beleza, eu esquecera minha melancolia. Súbito
ocorreu um cataclismo: eu tinha menos de doze anos e estava sozinho, em uma cidade
desconhecida, quando de repente apareceu um grupo de marmanjos, de uns quinze anos,
que, rindo de mim, arrancaram-me a paleta, pisotearam as humildes pastilhas de aquarela,
quebraram meus pincéis e atiraram longe o vidrinho com água; rindo, até que foram embora.
Durante um tempo que me pareceu infinito, eu permaneci sentado na grama, enquanto
minhas lágrimas caíam. Depois consegui me levantar e comecei a voltar lentamente para a
pensão, mas me perdi e tive de perguntar várias vezes onde ficava minha rua.

Quando por fim cheguei, entrei em meu quartinho e permaneci o dia inteiro na cama. Tiritava
como quem tem febre, e talvez tivesse.

Voltei ao prédio da universidade de La Plata - depois de tantos anos! - e despertaram minhas


recordações esquecidas, sentimentos que jaziam em minha alma. Neste colégio e nesta
cidade, lançaram-se as raízes de tudo o que depois teve de ser. Porque o tempo transcorrido,
as cidades que mais tarde percorri pelo mundo, não puderam apagar suas ruas arborizadas,
essas tílias, esses plátanos. Passaram-se os anos, mas repetidas vezes volta minha memória
esta cidade, onde ocorreram momentos importantes de minha vida. Onde Matilde e eu nos
conhecemos, onde terminamos o secundário e depois a universidade. Aqui nasceu nosso filho
Jorge Federico e aqui também morreram nossos pais. Nestes pátios, neste bosque por vezes
inspirador, por vezes melancólico, forjaram-se as idéias essenciais que me acompanharam pela
vida.

A universidade, fundada por don Joaquín V. González, foi famosa em toda a América
espanhola. A ela afluíam alunos vindos da Colômbia, do Peru, da Bolívia, da Guatemala, que
criavam suas próprias repúblicas em casarões; uma universidade que contratou na Europa
homens eminentes da ciência e das humanidades, como foi o caso dos Schiller. Nascera com
uma inspiração diferenciada, integravam-na grandes institutos científicos, organizados por
notáveis homens, como o astrônomo Hartmann, com um nível comparável ao dos centros de
Heidelberg ou Goettingen. A universidade chegava, verticalmente, até o ensino secundário e
primário, onde as crianças tinham sua própria tipografia.

Quanta saudade sinto daquele colégio onde não se fabricavam profissionais! Onde o ser
humano ainda era uma integridade, quando os homens defendiam o humanismo mais
autêntico e o pensamento e a poesia eram uma mesma manifestação do espírito. O ex libris
da universidade trazia escrita uma frase daquele nobre cientista que foi Emil Bosse: "Toma a
verdade e leva-a pelo mundo"; ele era um desses homens que almejavam ansiosos o espírito
puro, mas que o depunha ou postergava para arregaçar as mangas e sujar as mãos forjando
esta nação que hoje é quase uma dolorosa carcaça.

Na época em que eu cursava o primeiro ano, soubemos que teríamos como professor um
"mexicano", que a rigor era portoriquenho. E sinto um nó na garganta ao recordar a manhã em
que vi entrar na sala de aula esse homem silencioso, aristocrata em cada um de seus gestos,
que com palavra comedida impunha uma secreta autoridade: Pedro Henríquez Urena. Um ser
superior, tratado com mesquinharia e reticência por seus colegas, com o típico ressentimento
dos medíocres, a ponto de nunca ter chegado a professor titular de nenhuma das faculdades
de letras.

A ele devo minha primeira aproximação aos grandes autores, e sua sábia advertência que
ainda recordo: "Onde termina a gramática começa a grande arte". Porque ele não era
partidário de uma concepção purista da linguagem, ao contrário, estava perto de Vossler e
Humboldt, que consideravam o idioma uma força viva em permanente transformação. Nos
anos seguintes, junto com ele e Raimundo Lida, tivemos longas conversas sobre esses
assuntos no Instituto de Filologia, na época dirigido por Amado Alonso.
Mais tarde, voltando a viajar de trem, sonhei com encontrar esse professor do meu
secundário, sentado em algum vagão, com a valise cheia de lições corrigidas, como daquela
vez - há tanto tempo! - em que viajamos juntos e eu lhe perguntei, condoído de ver como ele
dedicava os anos a tarefas menores, "Por que, don Pedro, o senhor perde tempo com essas
coisas?". E ele, com seu amável sorriso, respondeu: "Porque entre eles pode haver um futuro
escritor".

Quanto devo a Henríquez Urena! Aquele homem encurvado e pensativo, com seu rosto
sempre melancólico. Pertencia a uma raça de intelectuais hoje em extinção, um romântico
que Alfonso Reyes chamou "testemunha insubornável", um homem capaz de atravessar a
cidade em plena noite para socorrer um amigo. E por causa dessa nobre concepção da vida,
da comunhão e da coragem com que enfrentava o infortúnio, paradoxalmente, junto àquele
intelectual de meu secundário, vem-me à lembrança o rosto de meu irmão Humberto,
aventureiro que nunca realizou estudos superiores, mas que foi admirado e respeitado por
todos aqueles que o conheceram e que iam consultá-lo quando tinham de tomar uma decisão
difícil.

Por isso, quando a doença de Humberto se agravou, entristeceu-me enormemente que o


enganassem dizendo que era uma simples infecção, quando todos sabíamos que se tratava de
um terrível câncer do estômago. Esse homem, tão admirado por sua retidão e inteireza,
merecia saber e enfrentar a verdade como costumava fazê-lo. E então tomei a dura decisão de
falar com ele.

Jamais esquecerei seu silêncio; aqueles olhos bem abertos pareceram divisar o fim, sem
abatimento, com essa serenidade que sempre o fortalecera. Acendeu um cigarro. Não
choramos. Não devíamos fazê-lo. Tampouco pudemos nos abraçar; ainda nos pesava sobre os
ombros o olhar imperativo de nosso pai.

Todos choraram a perda de Humberto, alguém que fora, como disse durante o enterro um de
seus grandes amigos, "Nada menos que um homem inteiro".

Sim, querido irmão, você foi desse tipo de homem da estatura de Saint-Exupéry, que em seu
avião lutou contra a tempestade, junto com seu telegrafista, unidos no silêncio, pelo perigo
comum, mas também pela esperança. Esses homens que levantaram seu altar no meio da
imundície, com sua camaradagem ante o fracasso e a morte.
Os conflituosos anos de meus estudos secundários, além de serem o tempo de dolorosas
angústias, foram também de importantes descobertas.

No primeiro dia de aula ocorreu uma portentosa revelação. Em um banco não muito visível,
assustado e solitário menino de um lugarejo pampiano, vi don Edelmiro Calvo, mestiço
cavalheiro de província, alto e de porte distinto, demonstrar com esmero o primeiro teorema.
Fiquei fascinado por esse mundo perfeito e límpido. Ainda não sabia que acabara de descobrir
o universo platônico, alheio aos homens e à condição humana; mas intuí, sim, que esses
teoremas eram como majestosas catedrais, belas estátuas em meio às derruídas torres de
minha adolescência.

Para apaziguar o caos da minha alma, despejei minhas emoções e ansiedades em uma série de
cadernos, diários, que queimei quando cresci. Devido à angústia em que vivia, busquei refúgio
nas matemáticas, na arte e na literatura, em grandes ficções que me deram guarida em
mundos remotos e passados. Da biblioteca do colégio, tão vasta, e para mim inexplorada,
apesar de sabiamente organizada, li sempre aos trancos, impelido por minhas simpatias,
ansiedades e intuições.

Lembro-me das bibliotecas de bairro fundadas por homens pobres e idealistas que, com
grande esforço, depois de um dia inteiro de trabalho, ainda tinham ânimo para atender
carinhosamente as crianças, ávidas de fantasia e aventura. De meu modesto quartinho na rua
61, eu embarcava para os mundos de Salgari e Júlio Verne; assim como mais tarde me deleitei
nas grandes criações do romantismo alemão: Os bandidos, de Schiller, Chateaubriand, Gotz
von Berlichingen, Goethe e seu inevitável Werther, e Rousseau. Com o tempo descobriria os
nórdicos: Ibsen, Strindberg, e os trágicos russos que tanto me influenciaram: Dostoiévski,
Tolstói, Tchekóv, Gogol; até a aventura épica de Mio Cid e o tão querido cavaleiro de La
Mancha. Obras às quais voltei repetidas vezes, como quem regressa a uma terra com a qual se
sonha no exílio, onde ocorreram fatos fundamentais da existência.

Crime e castigo, que aos quinze anos me parecera um romance policial, depois considerei um
extraordinário romance psicológico, até por fim desentranhar o fundo do maior romance já
escrito sobre o eterno problema da culpa e da redenção. Ainda me vejo embaixo das cobertas,
devorando com avidez aquela obra em brochura, em traduções de segunda ou terceira mão.
Ainda me escuto rir do descaramento e da encarniçada ironia com que Wilde desnudava a
hipocrisia vitoriana. Ou o tremor que sentia entre as páginas de Poe e seus maravilhosos
contos; ou os paradoxos de Chesterton e o misterioso Padre Brown.
Ao longo dos anos li apaixonadamente os grandes escritores de todos os tempos. Dediquei
muitas horas à leitura e sempre foi para mim uma busca febril.

Nunca fui um leitor de obras completas e não me guiei por nenhum tipo de sistematização.
Pelo contrário, em cada uma de minhas crises eu mudei de rumo, mas sempre me
comportando perante as obras supremas como se adentrasse em um texto sagrado; como se
em cada oportunidade me fossem revelados os marcos de uma viagem iniciática. As cicatrizes
que deixaram em minha alma são o testemunho de que se tratou de uma coisa assim. As
leituras me acompanharam até o dia de hoje, transformando minha vida com essas verdades
que só a grande arte pode entesourar.

Na irremediável solidão deste amanhecer escuto Brahms, e sempre, por suas melancólicas
trompas, volto a vislumbrar, tênue mas certamente, o limiar do Absoluto.

Penso no tempo em que Matilde ainda podia andar, apoiada em sua bengala, quando Gladys a
trazia para o estúdio e a sentava a meu lado, apoiada em almofadas. Eu punha alguma coisa
de Schubert, de Corelli ou de algum outro músico, que tanto bem lhe faziam nos momentos
de tristeza. Ouvíamos a música enquanto ela ia pegando no sono, pouco a pouco, até
adormecer por completo, com a cabeça inclinada para um lado. Eu a contemplava de olhos
marejados. Passado um tempo, ela acordava e perguntava, com voz imperceptível: "Por que
não vamos para dentro?". "Certo", eu lhe dizia então, "já vamos." E com a ajuda de Gladys ela
voltava para seu quarto.

Recordo muito bem um dia remoto de 1968, quando Matilde e eu viajamos à cidade de
Stuttgart, onde eu receberia um prêmio. Ao chegar, peregrinamos - essa é a palavra
adequada, pois era um

momento de respeito religioso - a Tubingen, e entramos no Seminário Evangélico, onde


contemplamos emocionados o banco em que se sentou o jovem estudante Schelling e seu
colega Hegel. Permanecemos em silêncio. Depois fomos até a casinha do carpinteiro Zimmer,
onde durante trinta anos viveu louco Holderlin, carinhosamente protegido por aquele ser
humano; um desses feitos absolutos que redimem a humanidade. Da pequena torre olhamos
correr o rio Neckar, como tantas vezes o contemplara aquele gênio delirante.

Acho que depois percorremos um trecho do Reno que nos evocou um passado de baladas,
bardos, heróis, bandidos e lendas: Roland, que chega tarde à ilha de Nonnenwert, apenas para
saber que sua amada, desconsolada, tomara o hábito religioso, e Lohengrin, e o castelo de
Cleves, imponente e sombrio. Na garoa do entardecer de outono, contemplamos os restos
dos castelos feudais, as fortalezas em ruínas que presenciaram combates ferozes, que
guardaram horríveis ou belos segredos de amores incestuosos, de solidão, de traições. Aí
estava Die Feindlichen Bruden, os restos decadentes das torres dos irmãos inimigos, e A
Muralha das Querelas. No topo da montanha, voltadas para o nascente, as ruínas sombrias
entre rajadas de garoa gelada. E também A Torre dos Ratos, onde o bispo Hatto H, depois de
ter mandado queimar os camponeses famintos, foi trancado vivo em sua torre, para ser
devorado pelos horrendos bichos. Até que divisamos a aziaga garganta de Loreley, e olhamos
para cima, para o alto do promontório que cai a pique sobre as águas do rio, como se ainda
quiséssemos entrever a silhueta da feiticeira que levava à morte com seu canto.

Então, ressuscitando de nossa juventude, acudiram a minha memória fragmentos de um


daqueles lieder que minha amalucada professora de alemão tentava gravar em mim com a
música de Schumann, de Brahms, de Schubert. Não os sei no parco alemão que aprendi
quando tinha uns dezoito anos, mas lembro-me de um par de versos que diziam, mais ou
menos

Warum diese dunkien Ahungen, mein Herz.

Ruínas majestosas surgiam diante dos turistas, com suas câmeras e salsichas; como um arauto
que, depois de penosas vicissitudes, com suas vestes sujas e rasgadas, tentasse transmitir-nos
uma mensagem bela e poética, em meio a empurrões, gritos e vulgaridades. E o conseguisse,
apesar de tudo, graças ao misterioso poder da poesia.

Por que esses negros presságios,/ oh, coração?

Ali pelos dezesseis anos, comecei a me aproximar de grupos anarquistas e comunistas, porque
nunca suportei a injustiça social, e porque alguns estudantes eram filhos de operários, de
imigrantes socialistas, com quem eu debatia durante a noite em intermináveis discussões, por
vezes violentas, por vezes fraternais, que costumavam durar até altas horas da madrugada.

Uma dessas reuniões realizou-se na casa de Hilda Schiller, filha do geólogo alemão Walter
Schiller. Ela havia formado um grupo de meninas, chamado Atalanta, às quais ensinava de
esporte a história e literatura. Ali, uma mocinha me escutou com seus grandes olhos fixos,
como se eu - pobre de mim - fosse uma espécie de divindade. Aquela moça era Matilde.

Desse tempo, lembro as manifestações de Primeiro de Maio, uma conjunção de protesto e ao


mesmo tempo de profunda tristeza pelos mártires de Chicago. Eterno funeral por modestos
heróis, operários que lutaram pela jornada de oito horas e que depois foram condenados à
morte: Albert Parsons, Adolf Fischer, George Engel, August Spies e Louis Lingg, de vinte e três
anos, que se matou quebrando na boca um tubinho de fulminato de mercúrio. Os outros
quatro foram enforcados. Posteriormente, as investigações provaram que eram inocentes da
bomba contra a polícia. Esses operários declararam orgulhar-se de sua luta pela justiça social
e denunciaram os juízes e o sistema do qual eles eram típicos representantes. Até o último
momento, não renegaram suas convicções. Muitos anos depois, o governador reconheceu a
inocência desses homens, e foi erguido um monumento, o Túmulo dos Mártires.

Nessa época também se organizavam marchas de apoio ao general Sandino e aos nobres e
valentes Sacco e Vanzetti. As manifestações congregavam perto de cem mil operários e
estudantes, uns sob a bandeira vermelha dos socialistas, e os anarquistas sob a bandeira
preta e vermelha. Em todo o mundo realizaram-se protestos em solidariedade àqueles
mártires do movimento, condenados à morte por um crime que não cometeram. Tal como
ocorrera com os operários de Chicago, os tribunais norte-americanos tiveram de reconhecer
sua inocência. Até o momento mesmo em que foram barbaramente amarrados à cadeira, eles
declararam sua inocência. Morreram com coragem e dignidade. Em um grande filme que
tempos depois os norte-americanos fizeram no intuito de mostrar a verdade, aparece esta
comovente carta que Vanzetti escreveu ao filho:

Meu querido filho, tenho sonhado com vocês noite e dia. Sem saber se ainda continuava vivo
ou estava morto. Gostaria de abraçar você e sua mãe. Me perdoe, meu filho, por esta morte
injusta que tão cedo o deixa sem pai. Hoje poderão assassinarnos, mas não poderão destruir
nossas idéias. Elas ficarão para geraçães futuras, para os jovens como você. Recorde, meu
filho, a felicidade que você sente ao brincar, não a guarde toda para você. Procure
compreender o próximo com humildade, ajude os fracos, console aqueles que choram. Ajude
os perseguidos, os oprimidos. Eles serão seus melhores amigos. Adeus, minha esposa. Meu
filho. Camaradas.

BARTOLOMEO VANZETTI

As discussões e brigas entre anarquistas e marxistas eram freqüentes, mas, mesmo assim, tive
companheiros dos dois lados com quem até hoje - os que sobreviveram! - mantenho longas
conversas evocando aqueles anos heróicos.

Com quanta emoção vem-me à memória aquele tempo em que eu inventava - ou descobria
no fundo de minha alma - o analfabeto Carlucho, um desses anarquistas infinitamente
bondosos que iam de vila em vila, até chegar a alguma fazenda onde se costumava ter um
catre para esses seres que predicavam na noite, em volta do fogo, a beleza do anarquismo. E
Carlucho, esse homenzarrão, que por causa da tortura perdera sua força, teve por fim um
quiosque de miudezas onde explicava com palavras desajeitadas a um meninote chamado
Nacho, filho de uma família aristocrática, por que era belo o anarquismo. Contava-lhe como
os homens aprisionavam grandes e inocentes hipopótamos para servir de diversão às
crianças, longe de suas pradarias africanas, de seus belíssimos amanheceres e de sua
liberdade remota.

A Revolução Russa tinha ainda o brilho romântico daquele Outubro, e os companheiros


comunistas terminaram por me convencer, dizendo que os anarquistas eram utópicos e que
jamais conseguiriam tomar o poder como eles haviam feito no império czarista. Como ainda
não havia começado o stalinismo e seus crimes, senti, com romântico fanatismo, que a
revolução do proletariado acabaria trazendo aos homens o orbe puro que eu vislumbrara nas
matemáticas.

Afastei-me dos claustros universitáriose me filiei à Juventude Comunista; junto a eles, percorri
os grandes frigoríficos Armour e Swift, instalados em Berisso, uma vila no subúrbio de La
Plata, onde os operários viviam na mais terrível miséria, amontoados em casebres de zinco,
entre pântanos verdes e malcheirosos, arriscando tudo em sua luta por um aumento de vinte
centavos a hora. Ainda hoje recordo essa confraternidade entre operários e estudantes, e com
profunda emoção a resgato.

Em 1930 ocorreu o primeiro golpe militar, terrível e sanguinário, e foi em reação ao perigo que
os movimentos sociais significavam para os militares e os capitalistas. A ditadura de Uriburu
seria a precursora dos golpes de Estado seguintes sofridos por nosso país.

Aquele primeiro golpe foi decisivo em minha vida, pois tive de entrar na clandestinidade,
primeiro devido à minha condição de militante - sempre desprezei os revolucionários de salão
- e, depois, porque cheguei a secretário da Juventude Comunista, e era muito visado pelos
repressores. Por causa das perseguições tive de fugir de La Plata, interromper os estudos e
abandonar minha família para instalar-me em Avellaneda, o centro operário mais importante.
Graças à sorte que sempre me acompanhou, não caí nas mãos da sinistra Seção Especial
contra o Comunismo, famosa por suas torturas, e que andava em meu encalço. Tinha de
mudar de pensão e de nome a cada certo tempo; e numa ocasião me salvei pulando pela
janela. Então usava o nome de Ferri, talvez - agora é que penso nisso - derivado
inconscientemente do sobrenome Ferrari, de minha mãe. A militância era muito perigosa e
não se limitava ao trabalho, havia além disso uma formação - teórica obrigatória, na qual se
estudava não apenas Marx mas também outros escritores.
Aos operários falava-se em liberdade, mas eles eram encarcerados por participar das greves;
falava-se em justiça, mas eram reprimidos e barbaramente torturados; o habeas corpus e
outros recursos constitucionais eram cinicamente burlados na prática do dia-a-dia. Até que as
ameaças e o risco de vida que sofríamos se abateram sobre os grandes dirigentes anarquistas:
Severino di Giovanni e Scarfó. Di Giovanni eu conheci no Centro Cultural Ateneu e, apesar de
seu aspecto de mestre-escola, com sua pistola e seu bando, tornou-se uma figura lendária.
Ambos foram presos e, diante do pelotão de fuzilamento, morreram gritando: "Viva a
anarquia!"; grito que, depois de sessenta e tantos anos, ainda continua a me comover.

50

Já nada resta da pensão da rua Potosi, onde uma tarde, trazida por um bom amigo, chegou
Matilde a seus dezenove anos, fugindo de um lar em que a adoravam, para vir juntar-se, em
um quartinho de Buenos Aires, com essa espécie de delinquente que eu era. Para lutar na
clandestinidade contra a ditadura do general Uriburu, por um mundo sem miséria e sem
desamparo. Uma utopia, claro, mas sem utopias nenhum jovem pode viver em uma realidade
horrível. Ali, muitas vezes suportamos a fome, quando partilhávamos um pouco de pão e
mate, salvo nos dias de sorte, em que a generosa dona Esperança, responsável pela pensão,
batia à nossa porta para nos oferecer um prato de comida.

Nesse tempo de pobreza e perseguição, desencadeou-se uma grave crise e, por fim, minha
ruptura com aquele movimento pelo qual eu tanto me arriscara.

Os membros do Partido, que, claro, vigiavam qualquer "desvio", detectaram em mim certos
indícios suspeitos. Em conversas com camaradas íntimos, eu sustentei que a dialética era
aplicável aos fatos do espírito, mas não aos da rrlatureza, de modo que o "materialismo
dialético" era uma completa contradição. Alguém que não tenha conhecido a fundo a
mentalidade do comunista militante poderia pensar que não se tratava de nada grave,
quando, a rigor, era uma coisa gravíssima para- os dirigentes, que consideravam um delito
separar a teoria da prática. Demoraria muito explicar em que fundamentos eu me baseava, só
posso dizer que isso ocorreu por volta de 1935 e que, muitos anos mais tarde, em um
encontro teórico realizado na Mutuaiité de Paris, esse assunto foi debatido por grandes
filósofos, como Sartre e outros, onde se sustentou exatamente o mesmo.

Seja como for, aquela hipótese era arriscadíssima, porque o marxismo-leninismo estava
codificado de uma maneira férrea e inapelável. O Partido - palavra que sempre se escrevia
com maiúscula - resolveu enviar-me por dois anos às Escolas Leninistas de Moscou, onde o
sujeito se curava ou terminava num gulag ou num hospital psiquiátrico. Sem dúvida eu teria
acabado em um desses campos de concentração, dada a minha profunda convicção acerca
desse disparate filosófico. Considerando o espírito de sacrifício que reinava entre os militantes,
Matilde aceitou minha viagem à União Soviética por dois anos - e quem sabe para sempre -,
ficando escondida na casa de minha mãe.

Antes de ir para Moscou, eu devia passar pelo Congresso contra o Fascismo e a Guerra,
presidido em Bruxelas por Henri Barbusse, organizado pelo Partido e sob seu rigoroso
controle. A viagem partia de Montevidéu, atravessei o delta do Prata à noite, em uma lancha
de contrabandistas, para depois seguir de navio, com documentos falsos, até Amberes; e, por
fim, de trem até Bruxelas. Ali tive a oportunidade de ouvir pessoas da Schutzbund, da Áustria,
e de militantes que vinham da Alemanha, onde o hitlerismo estava em ascensão. Puseram-me
em um quarto dos Albergues da Juventude junto com um companheiro que conheci pelo
suposto nome de Pierre. Era um dirigente do Comitê Central da Juventude Francesa, de cega
obediência à teoria, o que me deixou de sobreaviso, porque no Partido não se permitia esse
tipo de engano; aquele jovem militante depois cairia nas mãos da Gestapo, e seria morto
depois de submetido a bárbaras torturas.

Num dos diálogos que mantínhamos antes de dormir, surgiu uma discussão, e cometi o
perigoso erro de expor minhas dúvidas sobre aquele problema filosófico. Na manhã seguinte,
disse a meu companheiro que estava com dor de estômago e que iria tão logo a dor aliviasse.
Depois de uma hora ou mais, quando achei que ele não voltaria, arrumei minha malinha e fugi
de trem para Paris. Já haviam começado os "processos" do sinistro império stalinista e, ao ter
aquela conversa com Pierre, compreendi que se eu fosse a Moscou não voltaria nunca mais.
Todos os diálogos, as experiências que conheci por meio de militantes de outros países,
acabaram trincando de forma irreversível a frágil construção que em minha mente veio
abaixo.

Como eu havia ido a Bruxelas já com sérias dúvidas acerca da ditadura de Stalin, ainda em
Buenos Aires, um amigo meu, exsimpatizante do Partido, me dera o endereço de um trotskista
argentino diretor de um semanário francês, que anos mais tarde morreria em um tanque na
Guerra Civil espanhola. Ele me pôs em contato com um porteiro da École Normale Supérieure,
excomunista, que me ofereceu um lugar para dormir em seu quartinho, numa dessas grandes
camas parisienses. Como não havia aquecimento e o frio era intenso naquele 1935, além das
mantas, usávamos para nos cobrir uma quantidade de L'Humanité. Durante o dia eu
perambulava à deriva pelas ruas de Paris, sem poder ver a que terras me arrastaria o meu
naufrágio. Até que uma tarde entrei na livraria Gilbert, no bulevar Saint-Michel, e roubei um
livro de análise matemática de Emil Borel, fugindo com ele escondido no casaco. Recordo
aquele entardecer gélido de inverno, lendo os primeiros fragmentos, com o tremor de um
devoto que volta a entrar em um templo depois de um obscuro périplo de violências e
pecados. Aquele sagrado tremor era uma mescla de deslumbramento, de recolhida admissão
e de uma paz que fazia tempo meu espírito ansiava: o orbe matemático me chamava às suas
portas pela segunda vez.

De regresso ao país, espiritualmente aniquilado, encerrei-me no Instituto de Físico-


Matemática, e em poucos anos terminei meu doutorado. Ali eu me preparava quase que
diariamente para resistir aos insultos e ofensas por causa de minha "traição" ao comunismo,
quando a rigor era exatamente o contrário. O grande traidor foi esse homem monstruoso, ex-
seminarista, que liquidou todos aqueles que de fato haviam feito a revolução, até pegar o
próprio Trotsky, um dos mais brilhantes revolucionários da primeira hora, assassinado no
México pelas machadadas stalinistas.

Em meio à crise total da civilização deflagrada no Ocidente devido à primazia da tecnologia e


dos bens materiais, milhares de jovens voltamos os olhos para a grande revolução que na
Rússia parecia anunciar a liberdade do homem. Não o fizemos depois de estudar
minuciosamente O capital, nem por nos convencermos da validade do materialismo dialético,
ou por compreendermos o que era a mais-valia, e sim porque, simples mas poderosamente,
naquela revolução encontramos enfim um vasto e romântico movimento de libertação. A
palavra "justiça" prometia conquistar um lugar na história que nunca lhe fora dado. A luta em
favor dos deserdados e a portentosa frase "um fantasma ronda o mundo" colocaram-nos sob
o justo apelo de sua bandeira.

Na época do famoso boom, à margem de seus valores literários, muitos escritores me


acusaram de traidor do comunismo, pretendendo ignorar que eu vivera aquela entrega, mas
também a desilusão de ver como o stalinismo comprometera os princípios que o movimento
pretendia enaltecer. E alguns desses comunistas de salão, que os franceses chamam la gauche
caviar, longe do perigo, manifestaram-se atrás de suas escrivaninhas, em confortáveis
gabinetes da Europa, numa indigna, covarde retaguarda. E outros, depois de um breve passeio
pelo comunismo, transformaram-se por fim em empresários da literatura.

Contudo, mantiveram-se calados ante as atrocidades cometidas pelo regime soviético,


torturas, assassinatos, que, como costuma acontecer, foram perpetrados em nome de grandes
palavras em prol da humanidade. Camus tinha razão ao dizer que "sempre existe uma
filosofia para a falta de coragem". Eles se calaram quando podiam e deviam ter falado sem
temor de dissentir, o que pode ser legítimo em reuniões mas é indefensável diante de fatos
que dizem respeito à honra e aos valores em nome dos quais muitos perderam a vida de
forma horrenda e cruel. Não existem ditaduras más e ditaduras boas, todas são igualmente
abomináveis, assim como tampouco existem torturas atrozes e torturas benéficas. E a luta
contra o capitalismo não deveria impedir-lhes de repudiar os atos que atentavam contra a
dignidade da criatura humana, qualquer que fosse o nome da ideologia que pretendia justificá-
los.
Quão diferente teria sido a situação se o "socialismo utópico" não tivesse sido destruído pelo
"socialismo científico" de Marx!

Equivocadamente acredita-se que os anarquistas são espíritos destrutivos, homens de capa


que carregam uma bomba dentro de uma pasta. Claro que, como toda iniciativa que traz a
marca do ser humano, naquele movimento infiltravam-se delinqüentes e pistoleiros - alguns
dos quais conheci nos anos 30 -, mas isso não deve fazer-nos esquecer esses seres nobres que
desejavam um mundo melhor, onde o homem não se transformaria nesse lobo implacável
vaticinado por Hobbes.

Outra falácia freqüente é considerar que esses espíritos rebeldes eram ressentidos sociais, pois
foram anarquistas do príncipe Bakunin ao conde Tolstói, passando pelo poeta Shelley, o conde
de Saint-Simon, Proudhon, em certo sentido Nietzsche, o poeta Whitman, Thoreau, Oscar
Wilde, Dickens e, no nosso tempo, Sir Herbert Read, o arquiteto Lloyd Wright, o poeta T. S.
Eliot, Lewis Munford, Denis de Rougemont, Albert Camus, Ibsen, Schweitzer, em boa medida
Bernard Shaw, o conde Bertrand Russell e, anos atrás, o Campanella de La città del sole e o
Thomas Morus de Utopia. Bem como todos aqueles ligados aos grandes pensadores
religiosos, como Emmanuel Mounier - cujo "personalismo" tem muito a ver com a concepção
anarquista -, e judeus como Martin Buber.

Talvez devido a minha formação anarquista, fui sempre uma espécie de franco-atirador
solitário, pertencendo ao tipo de escritores que entendem, como Camus, que "não se pode
ficar do lado de quem faz a história, mas a serviço de quem a padece". O escritor deve ser
uma testemunha insubornável de seu tempo, com coragem para dizer a verdade, e rebelar-se
contra todo oficialismo que, cegado por seus interesses, perde de vista a sacralidade do ser
humano. Deve preparar-se para assumir aquilo que a etimologia da palavra testemunha lhe
adverte: para o martirológio. É árduo o caminho que o espera: os poderosos o qualificarão de
comunista por pedir justiça para os desvalidos e os famintos; os comunistas o tacharão de
reacionário por exigir liberdade e respeito pela pessoa. Nessa atroz dualidade viverá dividido e
dilacerado, mas deverá manter-se a prumo com unhas e dentes.

Do contrário, a história da posteridade terá toda a razão de acusá-lo de trair o mais precioso
da condição humana.
Acordo sobressaltado. Nunca fui de ter bons sonhos, salvo nestes últimos anos, talvez porque
minha inconsciência foi-se limpando com as ficções. E a pintura ajudou a libertar-me das
últimas tensões. Provavelmente porque é uma atividade mais sadia, porque permite verter de
modo imediato nossas pavorosas visões, sem a mediação da palavra. Mas nas telas ainda
perdura certa angústia, um universo tenebroso que só uma luz tênue ilumina.

Sonho, de vez em quando, com grandes profundezas do mar, com misteriosos fundos
submarinos esverdeados, azulados, mas transparentes. Há noites em que sou arrastado por
fortes correntezas, mas não é nada triste nem angustiante, muito pelo contrário, sinto uma
grande euforia.

Enquanto espero a chegada" de Silvina Benguria, retomo uma pintura em que estive
trabalhando ontem, até tarde da noite, e que tanto me fez bem, afastando-me das tristezas e
dos horrores do mundo cotidiano. Arrastado pelo cheiro da terebintina, meu espírito volta
àquele tempo em que vivi a tensão entre o universo abstrato da ciência e a necessidade de
voltar ao mundo obscuro e carnal a que pertence o homem concreto.

Quando terminei meu doutorado em ciências físico-matemáticas, o professor Houssay, prêmio


Nobel de medicina, concedeu-me uma bolsa que era outorgada anualmente pela Associação
para o Progresso da Ciência, enviando-me para trabalhar no laboratório Curie.

Assim cheguei a Paris pela segunda vez, em 38, mas nessa ocasião acompanhado por Matilde
e nosso pequeno Jorge Federico, com quem vivia em um quartinho localizado na rue du
Sommerard.

O período no laboratório coincidiu com essa metade do caminho da vida em que, segundo
certos obscurantistas, costuma inverter-se o sentido da existência. Durante esse período de
antagonismos, de manhã eu me enterrava entre eletrômetros e provetas, e anoitecia nos
bares, ao lado dos delirantes surrealistas. No Dôme e no Deux Magots, embriagados com
aqueles arautos do caos e do descomedimento, passávamos horas elaborando "cadavres
exquis". Um dos primeiros contatos que lembro ter feito com esse mundo que logo me
fascinaria ocorreu em um restaurante grego, sujo mas muito barato, onde costumava almoçar
com Matilde. De repente vimos entrar um mulato, alto e magro, e ela temeu que se sentasse
conosco, coisa que por fim fez. Dirigindo-se a minha mulher, disse com seu inconfundível
sotaque cubano: "Não tenha medo, minha senhora, sou uma pessoa de bem"; assim começou
a amizade com aquele excepcional pintor: Wilfredo Lam. Logo me aproximei de todo o grupo
surrealista de Breton: Oscar Dominguez, Féret, Marcelle Ferri, Matta, Francés, Tristan Tzara.
Uma manhã chegou ao laboratório Cecilia Mossin, com uma carta de apresentação de
Sadosky. E embora sua intenção fosse trabalhar com raios cósmicos, eu a dissuadi para que
ficasse como minha assistente e apresentei-a a Irene Juliot Curie, que a aceitou de imediato.
Por entre a bruma das lembranças, eu a vejo em pé, sempre correta, com seu jalequinho
branco, observando com preocupação certas mudanças em minha pessoa. A própria Irene
Curie, como uma dessas mães assustadas com um filho que se desencaminha, alarmava-se
quando me via chegar, ainda sonolento, cansado e desalinhado, por volta do meio-dia.
Coitada, não sabia que o honorável Dr. Jekyll começava a agonizar entre as garras do satânico
Mr. Hyde. Uma luta que se travava no coração mesmo de Robert Stevenson.

Antigas forças, em algum escuro recinto, preparavam a alquimia que me afastaria para sempre
do incontaminado reino da ciência. Enquanto os fiéis, na solenidade dos templos,
murmuravam suas orações, ratos famintos roíam ansiosamente os pilares, derrubando a
catedral de teoremas. Acabara de começar a crise que me afastaria da ciência. Pois meu
espírito, que sempre foi regido por um movimento pendular, de alternância entre a luz e as
sombras, entre a ordem e o caos, do apolíneo ao dionisíaco, em meio a esse caráter
desventurado, meu espírito encontrava-se agora conturbado entre a forma mais extrema do
racionalismo, que são as matemáticas, e a mais dramática e violenta forma da
irracionalidade.

Muitos, com perplexidade, já me perguntaram como é possível que, tendo feito meu
doutorado em ciências físico-matemáticas, tenha-me ocupado depois de coisas tão díspares
como os romances com ficções demenciais como o Informe sobre ciegos, e por fim esses
quadros terríveis que surgem de meu inconsciente. Na maior parte dos casos, sobretudo
neste período de minha existência, é para mim impossível explicar aos que me interrogam o
que eu quis dizer, ou o que eles representam. É a mesma pergunta que nos fazemos logo ao
acordar de um sonho, sobretudo de um pesadelo; tamanha sua ilogicidade, tantas as suas
contradições. Mas de um sonho pode-se dizer qualquer coisa, menos que é mentira.

É o que todos os homens fazem com sua dupla existência: a diuma e a noturna. Um pobre
escriturário sonha com matar seu chefe a punhaladas, e durante o dia cumprimenta-o
respeitosamente. O ser humano é essencialmente contraditório, e até o próprio Descartes,
pedra angular do racionalismo, criou os princípios de sua teoria a partir de três sonhos seus.
Belo começo para um defensor da razão!

Um pouco semelhante é o caso do desventurado Isidore Ducasse, um dos patronos do


surrealismo, que em um de seus primeiros Cantos, já transformado, quem sabe por que
irônico impulso, no conde de Lautréamont, faz o elogio das matemáticas, das quais se
aproximou com indiferença ou talvez com desprezo:
Ó matemáticas severas, não vos esqueci, desde que vossas sábias lições, mais doces que o
mel, instilaram-se em meu coração, como uma onda refrescante. Eu, desde o berço, aspirava
instintivamente, a beber de vossa fonte, mais antiga que o sol, e continuo ainda a pisar o átrio
sagrado de vosso templo solene, eu, o mais fiel dos vossos iniciados.

São muitos os que em meio ao tumulto interior foram em busca da cintilação de um paraíso
secreto. O mesmo fizeram românticos como Novalis, possessos como o engenheiro
Dostoiévski e tantos outros que afinal estavam fadados para a arte. A mim, como a eles, a
literatura permitiu expressar horríveis e contraditórias manifestações de minha alma, que,
nesse obscuro território ambíguo mas sempre verdadeiro, lutam como inimigos mortais.
Visões que depois expressei em romances que me representam em suas parcial idades ou
extremos, no mais das vezes desonrosos e até detestáveis, mas que também me traem,
burlando a censura de minha consciência. E agora, desde que minha visão deteriorada me
impediu de ler e escrever, voltei no final de minha existência àquela outra paixão: a pintura. O
que parece provar que o destino sempre nos conduz ao que teríamos de ser.

Em meio à horrível instabilidade dessa época conheci um personagem estranho, Oscar


Dominguez. Nos freqüentes encontros em seu ateliê, ele insistia para que eu abandonasse as
"bobagens" do laboratório e me dedicasse por inteiro à pintura. Passávamos longas horas
literalmente delirando, entre o cheiro de terebintina e com uma garrafa de conhaque ou de
vinho que não cessava de passar de mão em mão. A instigação ao suicídio, por momentos
aterradora, era uma presença constante ao fim de cada garrafa. Sugestão que ele reiterou em
um domingo chuvoso, a um passo do marché aux puces. Ao que lhe respondi: "Não, Oscar,
tenho outros planos".

Suas loucuras, suas permanentes divagações eram um espaço de liberdade em meio à


estreiteza do mundo cientificista. Seu desenfreio era capaz de suscitar as idéias mais
disparatadas. Anteriormente dedicara-se à pesquisa no campo da escultura, para obter
superfícies "litocrônicas". Como eu vinha da física, inventei essa palavra que significa
"petrificação do tempo", brincadeira que me ocorreu baseando-me na conhecida
justaposição, feita por Oscar, da Vênus de Milo com um violino. Então sugeri a ele a
possibilidade de forrar a escultura com um tecido fino e elástico para depois deslocar o violino
de diversas formas, e conseguir assim o que ele, em sua meia-língua, denominou
"anquietanz".

O texto completo foi publicado na revista Minotaure e para mim ficou como testemunho de
um tempo de crise. Mas Breton elogiou-o com sua costumeira solenidade, sem dar-se conta
de que era um misto de disparate e humor negro, o que prova, por outro lado, a ingenuidade
desse grande poeta que, com uma delirante mistura de materialismo dialético e Lautréamont,
pretendia disfarçar sua falta de rigor filosófico.

Em outra ocasião, Dominguez falou-me de um amigo que pintava a quarta dimensão e,


embora houvesse tentado me convencer, eu lhe disse que era isso era algo impossível de se
pintar. Mas como explicar-lhe, se Oscar mal sabia multiplicar? E eu o adorava exatamente por
esse tipo de ignorância. Até que um dia o acompanhei até o ateliê do tal amigo, um rapazote
tirante a baixo e mirrado, que me mostrou seus quadros. Gostei muito do que ele fazia, mas
disse-lhes que aquilo não era a quarta dimensão nem nada parecido, que era necessário o
conhecimento das matemáticas superiores para entender seu fundamento. Durante muitos
anos perdi de vista o jovem amigo de Dominguez, até que, em 1989, quando viajei a Paris em
razão de minha exposição no foyer do centro Pompidou, reencontrei com profunda alegria
aquele ser generoso e de curioso talento que é Matta. Mantém o encanto que conheci então,
e agora está acompanhado pela bela Germaine. Nessa mesma tarde jantamos juntos, e
recordamos com emoção pessoas e acontecimentos que nos acompanharam em um período
fundamental de nossas vidas. Nessa exposição, o grande pensador surrealista Maurice Nadeau
teve a generosidade de participar de uma homenagem que me foi feita.

Quando entrei em contato com o surrealismo, já se vivia a nostalgia do que haviam produzido
seus maiores representantes. Finda a Primeira Guerra, a necessidade de destruir os mitos da
sociedade burguesa foi o solo fértil para o espírito demolidor dos surrealistas. Mas depois da
bomba atômica, dos campos de concentração e de seus seis milhões de mortos, esses homens
não souberam como reconstruir um mundo em ruínas. Nunca o espírito destrutivo em si
mesmo é benéfico. Hitler demonstrou isso de modo terrível. E quando, depois da guerra, em
1947, voltei a Paris, vindo de uma cidade como Buenos Aires, que não havia sofrido nenhum
efeito direto da catástrofe, tive uma dolorosa impressão. Encontrei-a triste e, coisa curiosa,
um dos detalhes que mais me deprimiu, talvez por seu valor simbólico, foi encontrar-me um
sábado chuvoso e cinzento em um café desmantelado. Recordei então aquelas montanhas de
croissants e brioches que se viam nos balcões de qualquer café de bairro. Mas, acima de tudo,
a maior tristeza foi ver Breton, que não se conformava a deixar em paz o cadáver de seu
movimento.

Entretanto, o surrealismo teve o alto valor de permitir-nos indagar para além dos limites de
uma racionalidade hipócrita e, em meio a tanta falsidade, oferecer-nos um novo estilo de
vida. Muitos homens, desse modo, pudemos descobrir nosso ser autêntico.

Por isso minha aspereza, e até minha indignação, diante dos mistificadores que o
conspurcaram, como Dali, mas também meu reconhecimento a todos os homens trágicos que
salvaguardaram o que houve de verdadeiro nesse importante movimento. Como aquele
amalucado, violento, Dominguez, um dos poucos personagens surrealistas que amei.
Surrealista em seu modo de conceber e resistir à existência. Passou a última etapa de sua vida
entre drogas, álcool e mulheres. Até que uma noite suicidou-se cortando os pulsos, e com seu
sangue manchou a tela pousada em seu cavalete.

No laboratório Curie, uma das mais altas metas a que podia aspirar um físico, vi-me vazio de
sentido. Golpeado pela descrença, continuei avançando impelido por uma forte inércia que
minha alma repelia.

Minha bolsa foi transferida para o Massachusetts Institute of Technology, o MIT, na cidade de
Boston, onde publiquei um trabalho sobre raios cósmicos. Mas eu estava fatalmente dividido
entre o que havia significado para mim essa vocação, à qual sacrificara anos, e a incerta mas
invencível presença de um novo chamado. Momento pendular em que já não encontramos a
identidade naquilo que fomos.

Voltei a Buenos Aires envolto em trevas. A decisão estava tomada em meu espírito, mas tinha
de arraigar-se na luta contra aqueles que me tentavam com cargos importantes e me
assediavam com sua certeza da transcendente missão que eu devia à física. Resgato com
emoção o profundo apoio que Matilde me deu nesse momento. Ela nunca considerou que eu
devia fazer outra coisa além de me consagrar àquilo que minha intuição me indicava e nunca
me recriminou a perda de conforto que nossa família haveria de sofrer.

Fiz esse trâmite, como através de uma ponte que se estende entre duas colossais montanhas,
por momentos tonto e sem saber o que estava fazendo, e noutros, em compensação, com o
prazer incontível que acompanha o nascimento de toda grande paixão.

como último dever para com as pessoas que me concederam a bolsa, lecionei teoria quântica
e relatividade na universidade de La Plata, onde tive como alunos Balzeiro, cujo nome hoje
preside um centro atômico na cidade de Bariloche, e Mario Bunge.

Quando, no início da década de 40, tomei a decisão de abandonar a ciência, recebi duríssimas
críticas dos cientistas mais destacados do país. O doutor Houssay negou-me o cumprimento
para sempre. O doutor Gaviola, então diretor do observatório de Córdoba, que tanto me
estimara, disse: "Sabato abandona a ciência pelo charlatanismo". E Guido Beck, emigrado
austríaco, discípulo de Einstein, em uma carta lamenta-se dizendo: "Em seu caso, perdemos
um físico muito capaz em quem depositamos muitas esperanças".
O mundo dos teoremas e meu trabalho sobre raios cósmicos que acabava de sair na Physical
Review perderam-se em meio a tanto alvoroço.

Acompanhado por Matilde e Jorge, de quatro anos, fui viver nas serras de Córdoba, em um
rancho sem água corrente nem luz elétrica, na localidade de Pantanillo. Sob a majestade dos
céus estrelados, senti certa paz. Uma coisa parecida com o que diz Henry David Thoreau:

Fui para o bosque porque desejava viver ponderadamente, enfrentar apenas os fatos
essenciais da vida, e ver se podia aprender o que ela tinha a ensinar-me; não fosse, prestes a
morrer, descobrir que não vivi.

Não tínhamos nem vidros nas janelas, e nesse inverno suportamos catorze graus negativos, a
ponto de o rio Chorrillos, que atravessava o terreno, congelar. Nós nos aquecíamos com o
mesmo lampião que nos iluminava, e às sete da manhã tínhamos de voltar para a cama, tanto
era o frio. Na calma de uma tarde serrana, conheci um jovem médico que estava de passagem,
visitando uns parentes, a caminho da América Latina, onde curaria doentes e encontraria seu
destino. Aquele rapaz, hoje símbolo das melhores bandeiras, é lembrado pela história com o
nome de Che Guevara.

Portentosas torres desmoronavam à minha frente. Entre os escombros, como uma erva entre
rochas estorricadas, meu eu mais profundo tentava ressurgir entre dúvidas, inseguranças e
remorsos. De meu tumulto interior nasceu meu primeiro livro, Uno y el universo, registro de
um longo questionamento sobre aquela angustiosa decisão e, também, da nostálgica
despedida do universo puríssimo.

Enfurecidos pelo que chamavam de minha pirraça, em reiteradas ocasiões o doutor Gaviola,
junto a Guido Beck, foram até nosso rancho para tentarconvencer minha mulher da loucura
que eu estava cometendo, justo quando o país mais precisava de cientistas. E embora
houvesse tentado explicar-lhes minha crise espiritual, e convencê-los de que minha verdadeira
vocação era a arte, não conseguiram me entender, pois, para esses homens, a ciência é a
criação suprema do homem. Guido Beck atribuía minha decisão à superficialidade sul-
americana, e Gaviola disse que me perdoaria se algum dia eu conseguisse escrever algo como
A montanha mágica. Pobre Gaviola, acho que nunca soube que a leitura de O túnel
impressionou o próprio Thomas Mann, conforme ele registrou em um volume de seus diários.
Por fim concordei em terminar um trabalho sobre termodinâmica, que me preocupara durante
meu doutorado. A termodinâmica é um ramo fundamental da física do qual depende a
evolução do universo; daí se entende o porquê de ter subjugado tantos espíritos inquietos
pelo devir do Grande Todo. Alguns recordarão o poema "Eureka", escrito a propósito desse
assunto por aquele aficionado da ciência que foi Edgar Allan Poe. Eu sustentei que havia um
erro na ordenação em que estavam enunciados seus três grandes princípios. Seria impossível
explicar meus fundamentos, bastante dor de cabeça me causaram na época em que estudava
a fundo a energética. Quando expus minhas primeiras idéias aos doutores Loyante e Teófilo
Isnardi, eles pretenderam dissuadirme, pois a termodinâmica era um harmonioso edifício
impossível de inovar, desde o grande Leonardo, até enormes cabeças como Henri Poincaré e
Caratheodory. A segunda negativa viria do laboratório Curie, pois um selvagem sul-americano
não podia questionar o próprio fundamento da termodinâmica.

Então aqueles doutores amigos convenceram-me a comparecer um dia por semana ao grande
observatório de Bosque Alegre, no mais alto das serras cordovesas, para ali concluir minha
hipótese. No silêncio sideral das noites, junto com os astrônomos, como é freqüente nesses
solitários vigias da escuridão, escutava Bach, Mozart, Brahms. E, olhando as estrelas, senti
pela última vez a atração daquele universo alheio aos vícios carnais. Então tive plena certeza
daquilo que expressei no prólogo de meu primeiro ensaio: "Muitos pensarão que é uma
traição à amizade, quando é fidelidade a minha condição humana".

Quando voltamos a Buenos Aires, depois dessa temporada nas serras de Córdoba, nossa
situação econômica era delicada. A vida não foi fácil, tivemos de vender quadros de certo
valor, enquanto esperávamos encontrar um trabalho que nos permitisse sobreviver. Ganhei
algum dinheiro dando aulas e fazendo traduções pélas quais me pagavam miseravelmente,
como ocorreu com' o livro de Bertrand Russell O ABC da relatividade. Então também ofereci
minhas idéias de publicidade a grandes empresas, que as recusaram sistematicamente. Uma
delas apareceu plagiada na revista Life.

Em meio a essas tensões, conheci o biólogo polonês Nowinsky, que, considerando meus
antecedentes, ofereceu-me um cargo na Unesco, confirmado pouco tempo depois por um
telegrama de Julian Huxley. Tive de viajar sozinho a Paris, novamente para a cidade em que eu
vivera fatos fundamentais, ainda sem saber que ali me aguardava uma nova crise.

O prédio onde funcionavam os escritórios da Unesco fora sede da Gestapo, e aquela


atmosfera rarefeita de trâmites burocráticos abalou mais uma vez o universo kafkiano em que
me movia. Mergulhado numa profunda depressão, frente às águas do Sena, subjugou-me a
tentação do suicídio.
Um romance profundo surge em situações-limite da existência, dolorosas encruzilhadas em
que intuímos a inescapável presença da morte. Em meio a um tremor existencial, a obra é
nosso intento, nunca totalmente bem-sucedido, de reconquistar a unidade inefável da vida.
Através da angústia, em uma máquina portátil, comecei a escrever de maneira febril a história
de um pintor que tenta desesperadamente se comunicar.

Perdido em um mundo em decomposição, entre restos de ideologias falidas, a escritura foi


para mim o meio fundamental, o mais absoluto e poderoso, que me permitiu expressar o caos
em que me debatia; e assim pude libertar não apenas minhas idéias, mas, sobretudo, minhas
obsessões mais recônditas e inexplicáveis.

A verdadeira pátria do homem não é o orbe puro que subjugou Platão. Sua verdadeira pátria, à
qual sempre regressa ao fim de seus périplos ideais, é esta região intermediária e terrena da
alma, este dilacerado território em que vivemos, amamos e sofremos. E, em um tempo de
crise total, somente a arte pode expressar a angústia e o desespero do homem, pois,
diferentemente de todas as demais atividades do pensamento, é a única que capta a
totalidade de seu espírito, especialmente nas grandes ficções que conseguem adentrar o
âmbito sagrado da poesia. A criação é essa parte do sentido que conquistamos em tensão
com a imensidão do caos. "Não há ninguém que tenha alguma vez escrito, pintado, esculpido,
modelado, construído, inventado, a não ser para sair de seu inferno." Absoluta verdade,
querido, admirado e sofrido Artaud!

Anos atrás, um grupo de colegas da universidade me convidara a escrever para uma revista
literária da qual participariam vários escritores do Prata. Teseo era graficamente muito bonita,
mas desse tipo de revista que não passa do terceiro ou quarto número, o que de fato
aconteceu. No entanto, foi fundamental para mim. E tal como quando nos sentimos perdidos
e sem rumo, também nossa vida segue caminhos aparentemente incertos, mas em que, no
fundo, uma vontade para nós desconhecida nos conduz aos lugares em que encontraremos
homens e coisas fundamentais para nossa existência.

O artigo que escrevi para a revista despertou o interesse de Pedro Henríquez Urena, que eu
deixara de ver. Quando nos reencontramos, tornei a sentir a admiração que sempre despertou
em mim aquele estranho humanista, que antepunha a luta pela justiça à própria busca de
perfeição intelectual. Uma pessoa diante da qual eu me sentia confirmado por sua visão da
vida. Desde então, perdura minha gratidão e a honra de ter merecido seu reconhecimento.
Naquela conversa don Pedro me perguntou se eu não queria escrever um artigo para a Sur, a
grande revista dirigida por Victoria Ocampo. Nervoso, com grande emoção, pouco depois
entregueilhe meu trabalho em um café. Ainda o vejo sugerindo a supressão do primeiro
parágrafo, perguntando-me com suave ironia "Begin here?", como para não magoar-me, para
disfarçar sua observação. Não esqueço sua extrema delicadeza, aquelas notas marginais com
letra quase ilegível com que corrigia a todos os que tivemos o luxo de ser seus alunos.

Poucos dias depois, telefonou-me para dizer que Sur publicaria o artigo e que José Bianco
desejava conhecer-me. Lembro a cordialidade com que Bianco me recebeu; convidou-me a
publicar regularmente, e em seguida encomendou-me o antigo Calendário, que deixara de sair
anos atrás.

Sempre tive Bianco em boa conta devido a sua preocupação democrática, pois, ao contrário
do que muitos pensam, Bianco não era um escritor de torre de marfim, e sim um fervoroso
defensor da liberdade e dos direitos humanos; com ele mantive longas conversas sobre o
nazismo na época da guerra. A qualidade da revista era fruto de seu corpo-a-corpo com a
tipografia e da revisão de todos os originais, que muitas vezes ele se via obrigado a corrigir,
pois do contrário "é impossível publicá-los", como costumava dizer, com a cabeça enterrada
em papéis, fazendo seu trabalho de inquisidor.

Sur foi acusada de elitista e reacionária, o que sempre considerei uma opinião falsa e
demagógica. Tais qualificativos pretendem ignorar que ali escreveram comunistas como
Sartre, anarquistas como Camus e Herbert Read, católicos progressistas como Emmanuel
Mounier; e que de seu conselho participava uma comunista militante como Maria Rosa Oliver.
Em Sur publicaram-se importantíssimos trabalhos sobre o nazismo, a justiça social, a
Revolução Russa, o anarquismo, os direitos humanos. Sem dúvida, cometeram-se equívocos,
mas caberia perguntar-se em que revista do mundo não acontecem coisas semelhantes.

É preciso reconhecer a Victoria Ocampo tudo o que ela fez para difundir a cultura universal.
Minha relação com ela foi como a desses casamentos em que há amor e violentas brigas, mas
em que um não pode prescindir do outro. E se Bianco foi um motor indispensável para a
continuidade de Sur, Victoria criou aquela revista, que nunca teria alcançado sua notável
transcendência sem sua insaciável voracidade pela cultura, pelas artes e letras de todo o
mundo. E graças a seus esforços vieram ao país homens notáveis como Ortega y Gasset,
Stravinsky, Tagore e tantos outros.

As páginas de Sur foram educadoras de toda a minha geração. Por meio dela chegaram a
todos os países de língua castelhana autores como Virginia Woolf, D. H. Lawrence, Aldous
Huxley, Lawrence da Arábia, Henri Michaux, William Faulkner; a nata do pensamento, do
Japão aos Estados Unidos, foi publicada ali. A descoberta dessas destacadas personalidades
era realizada não só por Victoria e Pepe, mas também por um Conselho de Colaboradores.

As reuniões na casa de Victoria significaram para mim uma segunda formação, uma nova
universidade da qual resultei por fim um mau aluno. Nessas ocasiões eram indefectíveis a
presença 1 de Bianco e a famosa sopa para Borges. Também compareciam Patricio e Estela
Canto, Rodolfo Wilcock e, às vezes, Mastronardi. Em meio às discussões sobre Stevenson,
Henry James, Coleridge, Quevedo, Cervantes, eram freqüentes as conversas acerca do tempo,
Nietzsche e o eterno retorno, os números transfinitos e a expansão do universo. Vindo do
mundo obscuro dos surrealistas, naquele límpido ambiente eu me sentia uma espécie de
bárbaro; isso até que conseguia infiltrar os escritores russos e, sob o olhar irônico de Borges,
as discussões se prolongavam até a madrugada.

Então surgiu meu vínculo com Borges, intermináveis foram nossas conversas sobre Platão e
Heráclito de Efeso, sempre sob o pretexto das vicissitudes portenhas. Lamentavelmente, em
1956, separaram-nos ásperas discrepâncias políticas - quanto o lamento! -, mas assim como,
segundo Aristóteles, as coisas se distinguem naquilo que se parecem, às vezes os seres
humanos se afastam por causa do que amam em comum.

Eu não fui antiperonista por defender privilégios, mas porque não podia suportar o
despotismo e a expulsão de mestres-escolas e professores por não se submeterem às
diretrizes do governo. Naquele movimento houve um justificado anseio de justiça e de
dignidade, perante uma sociedade fria e egoísta que explorava os pobres da maneira mais
degradante, escravizando-os nessa espécie de campos de concentração que eram os ervais e
quebrachais. Enquanto isso, muitos intelectuais, em vez de responderem ao drama desses
homens, entregaram-se a seus próprios e mesquinhos interesses.

Todos esses desamparados, como os chamou Evita, que lutou verdadeira e heroicamente por
eles, Perón soube mobilizá-los. Meio século depois, a desbotada foto de Evita preside, junto à
estampa de Nossa Senhora, os lares mais pobres do país. Simboliza a devoção e a gratidão por
aquele período único de prosperidade e respeito para com os mais humildes. Apesar dos erros
que todos conhecemos, houve ali gente tão honrada como Scalabrini e Jauretche, de quem
fui amigo.

Mesmo tendo perdido meus cargos docentes durante o governo peronista, quando, em 1955,
fui nomeado diretor da revista Mundo Argentino, opus-me a qualquer medida repressiva
contra a oposição. De imediato percebi que a meus superiores incomodava o fato de que na
revista pudessem colaborar pessoas de diversos setores; até que por fim fui forçado a me
demitir quando denunciei a tortura de operários peronistas em vários centros do país e nos
porões do Congresso Nacional. Depois, em um programa de rádio, tornei a falar daqueles
acontecimentos, o que motivou o escândalo e a ruptura de boa parte dos intelectuais.

Nessa ocasião, além das torturas, mencionei grandes escritores cuja militância valeu-lhes a
inimizade, o rancor e o silêncio. E falei do homem eminente que foi Leopoldo Marechal. Nessa
época de ressentimento político, negou-se o reconhecimento a um dos maiores escritores
argentinos; obrigando-o a suportar um duríssimo exílio em sua própria pátria, a que tanto
amor o unia. Apoiando-se no esteio que foi sua companheira, em um momento de extrema
amargura, ouviu-se esse modesto homem murmurar: "Quando meus compatriotas deixarão
de urinar sobre mim?".

A família de Marechal, que estivera escutando a transmissão de rádio, telefonou-me para


agradecer o que eu havia dito. Desde então, perdurou uma amizade que sempre valorizei, de
que é prova esta carta tão bonita:

Queridos Matilde e Ernesto: Elbia e eu recebemos os carinhosos votos que vocês nos
formularam e que, literalmente, são outras tantas "bênçãos". Neste fim de ano estamos
pedindo aos céus para nós e para vocês dois, nossos amigos: paz e alegria na existência,
facilidade e felicidade na criação literária e outras boas obras, que Deus nos livre dos filhos-
da-puta literais ou alegóricos que pretendem afligir-nos, e que nos guarde de toda
empulhação ou impostura: se havemos de combater, que Deus nos ponha na melhor
trincheira e na batalha mais justa. Queridos Matilde e Ernesto, digam conosco "amém", e
vamos viver! Recebam os dois o sempiterno abraço fraternal de Elbia e Leopoldo.

Marechal foi Lim homem atormentado pelo destino de sua pátria, como transparece em suas
obras e nessas tristes reflexões em que ele critica aqueles que a sujam ou arrastam pelo chão,
os que sempre a desdenham em favor de seus sórdidos bolsos. Quando alguém de alma tão
nobre critica a pátria, só o faz por conhecer a possibilidade de sua grandeza. Foi o que fizeram,
com o coração dilacerado e sangrento, de Hólderlin a Nietzsche, Dostoiévski e Tolstói. E o
maravilhoso Pushkin, que, depois de rolar de rir com as descrições que seu amigo Gogol lia
para ele, termina exclamando com a voz embargada pela amargura: "Meu Deus, como é triste
a Rússia!".
Do mesmo modo, em um verso memorável, Leopoldo Marechal diz: "A pátria é uma dor que
ainda não sabe seu nome". Parece que ainda o ouço, com sua voz suave, apenas um grave
murmúrio.

O túnel foi o único romance que eu quis publicar, e para consegui-lo tive de sofrer amargas
humilhações. Devido a minha formação científica, ninguém achava possível que eu pudesse
me dedicar seriamente à literatura. Um renomado escritor chegou a comentar: "Imagine um
físico escrever um romance!". E como defender-me quando meus melhores antecedentes
estavam no futuro?

O túnel foi rejeitado por todas as editoras do país; até por Victoria Ocampo, que se desculpou
dizendo: "Estamos meio falidos, não temos um centavo". Quão autêntica me pareceu então
esta frase de Oscar Wilde: "Há quem dê mais importância ao dinheiro que os pobres: os
ricos". Ainda me lembro da tarde em que se abriu a porta do Querandí - o mesmo café que
depois freqüentaria em meus encontros com Gombrowicz -, e vi Matilde aparecer chorando,
encurvada, trazendo nas mãos os originais de meu romance, que eu não me atrevera a retirar,
tamanha era a minha vergonha.

Por fim, com o empréstimo de um generoso amigo, Alfredo Weiss, a obra pôde ser publicada
na Sur, e imediatamente se esgotoo. No ano seguinte, recebi a notícia de sua edição francesa,
graças à generosa iniciativa de Camus.

Paris, 13 de junho de 1949

Agradeço-lhe sua carta e seu romance. Li-o por recomendação de Callois e gostei muito de sua
secura e intensidade. Aconselhei-o a Gallimard, e espero que O túnel tenha na França o êxito
que merece. Gostaria de poder dizer-lhe tudo isto de viva voz, mas a proibição de uma de
minhas peças em Buenos Aires impede-me de dar aí as conferências previstas. Se, não
obstante, eu for ao Brasil, tentarei passar por Buenos Aires, a título pessoal, e então me
alegraria conhecê-lo. Até lá, conte com toda a minha simpatia fraternal.

ALBERT CAMUS
Quanto devo a esse escritor genial, com quem depois compartilharia inquietações metafísicas
e éticas! Muito se falou de seu niilismo; em todo caso, foi desse tipo de niilista cuja blasfêmia
é uma maneira de crer em Deus. Vivia um idealismo desesperado, foi um homem cheio de
amor e de paixão.

Quando, anos mais tarde, comentei a história em um jornal, Victoria chamou-me enfurecida
para recriminar-me a infamante lembrança, uma vez que o livro fora recebido com
entusiasmo por um dos maiores escritores da França. Mas c'est la vie, como diria ela. Já falei
da importante contribuição que deu à nossa cultura; mas a mútua e sincera estima que
tínhamos um pelo outro não me eximia da falta de não ser francês.

Nunca me considerei um escritor profissional, desses que publicam um romance por ano. Ao
contrário, muitas vezes eu queimava à tarde o que escrevera de manhã. E, assim, vi contos,
ensaios e peças de teatro serem consumidos pelo fogo, a que também estava destinado Sobre
heróis e tumbas; tantas foram sempre minhas dúvidas. Devido à minha propensão às chamas,
carrego alguns arrependimentos; obras que hoje recordo com saudade, como El hombre de los
pájaros e o romance que escrevi durante meu período surrealista, La fuente muda, título que
tomei de um verso de Antonio Machado, e do qual sobrevivem poucos capítulos e algumas
idéias. Quem conhece minhas reticências e contradições sabe como é difícil suportar-me em
qualquer empresa. Sofreram-no todos aqueles que, de várias partes do mundo, pediram-me
autorização para trabalhar sobre meus romances, para realizar filmes ou adaptações teatrais,
de grandes realizadores a grupos independentes. Piazzola quis fazer uma ópera sobre uma
adaptação de meu romance Sobre heróis e tumbas; projeto do qual, por culpa de minhas
incertezas, só chegou a realizar uma belíssima introdução.

Lamentavelmente, nestes tempos em que a palavra perdeu seu valor, também a arte se
prostituiu, e a escritura reduziu-se a um ato similar ao de imprimir papel-moeda. Como já
disse em O escritor e seus fantasmas: "Ficam os poucos que contam: aqueles que sentem a
necessidade obscura mas obsessiva de testemunhar seu drama, sua desventura, sua solidão.
São as testemunhas, os mártires de uma época". Estão destinados a uma missão superior, não
pertencem a nenhuma igrejinha literária nem cenáculo e, por isso, não é sua finalidade
tranqüilizar indivíduos confinados em uma sacristia, e sim romper todas as conveniências,
devolvendo-nos o sentido de nossa trágica condição humana. Nesta vocação, muitos foram
levados à loucura, às drogas ou a tantas outras formas de suicídio. Lembro quando o doutor
Cárcamo me dizia que eu devia começar urgentemente uma terapia psicanalítica, porque
estava à beira da loucura. Certamente manifestava uma preocupação verdadeira, pois era um
bom homem, mas eu lhe respondi que só a arte me salvaria.
Nunca saberemos a angústia com que Beethoven compôs sua última e maravilhosa sinfonia,
ou os momentos de solidão em que os grandes compositores criaram suas obras. Por isso, se
o fracasso é triste, o fracasso na arte é sempre trágico.

Emocionadamente visitei em várias ocasiões o túmulo de Van Gogh, aquele desventurado que
nunca conseguiu vender um quadro, e cujas obras hoje são disputadas aos milhões de dólares,
para serem exibidas em um supermercado. Pobre Vincent; habitado por Deus e pelo Demônio,
humilde e bondoso, que ia pregar o Evangelho aos mineiros e que ao mesmo tempo dirigia
violentos ataques a Gauguin; que recolhia as pobres prostitutas da rua, como aquela com
uma criancinha, para servir-lhe de modelo, e terminava levando-a para viver com ele,
provavelmente porque a compreendia, já que os dois sofriam o mesmo desamparo. Como diz
Artaud, outro possesso que sempre admirei, Van Gogh morreu suicidado por uma sociedade
que não podia continuar suportando suas terríveis revelações. Como duvidar que Artaud
estava também falando de si mesmo; em uma carta a seu médico, depois de terríveis
eletrochoques, declarou sentir-se "tratado como um alienado e maltratado em razão de um
gesto, de uma atitude, de uma maneira de falar e de pensar que foram na vida as de um
homem de teatro, do poeta e do escritor que eu era". Acabou morrendo como um cão; o
jardineiro encontrou-o uma manhã, sentado em sua cama com um sapato na mão. Nunca
saberemos aonde ele se dirigia nesse dia de sua última solidão.

Por isso, a raça de artistas que sempre admirei é aquela a que pertencem esses homens.

Homens que aliaram a sua atitude combativa uma séria preocupação espiritual; e que, na
busca desesperada de sentido, criaram obras cuja nudez e crueza é o que sempre imaginei
como única expressão da verdade.

A epifanias de que enigmáticos Deuses meu destino me conduzia? Por que, aos trinta anos,
quando a ciência me assegurava um futuro tranqüilo e respeitável, abandonei tudo em troca
de um. ermo escuro e frio? Não sei. Uma vez após outra, como um náufrago em meio a
tempestades escuras, parti com rumo insuspeita do sem divisar nem sequer a existência de
uma ilha distante. Ao olhar para trás, volto a repetir aquela súplica de Baudelaire:

Oh, Senhor! Dai-me a força e a coragem de contemplar meu coração e meu corpo sem nojo!

Por mais terrível que seja entendê-lo, a vida se faz em rascunho, e não nos é dado revisar suas
páginas.
E quando leio a carta que recebi de uma garota de dezenove anos, dizendo que me admira e
que, embora sua casa fique a poucos quarteirões da minha, nunca se atreveu a falar comigo,
sinto vergonha. Que carta linda! Tão nobre, e ao mesmo tempo tão triste! Ela diz que eu a
ajudo a viver, que está pintando e que gostaria de algum dia mostrar-me as coisas que faz;
quando passa em frente a minha casa e vê o jardim abandonado, sempre sonha em me
encontrar. E eu me sinto envergonhado, porque ela me põe nas alturas, quando talvez valha
muito menos que ela, tão pura, tão autêntica. Eu, ao contrário, um ser cheio de gravíssimos
defeitos, com personagens tão sinistros como Fernando Vidal Olmos. Mas também tremi
escrevendo esses fragmentos onde aparecem seres infinitamente bondosos como Hortensia
Paz, o caminhoneiro Busich ou o louco Barragán, o profeta do bairro. Aqueles seres
modestos, esses analfabetos cheios de bondade, são os que me salvarão. Por outro lado, todo
o resto, as precárias hipóteses, as idéias e teorias dos ensaios, não servem para justificar a
existência.

E então, quando o final se aproxima, ao rever trechos de uma longa travessia, posso afirmar
que sou desses homens que se formam nos tropeços com a vida. De modo que, quando algum
exegeta fala de minha "filosofia", só posso sentir constrangimento, pois tenho com um
filósofo a mesma relação que existe entre um guerrilheiro e um general de carreira. Ou talvez,
melhor, entre um geógrafo e um aventureiro explorador, cuja intuição lhe sugere a busca de
um tesouro no coração da selva malaia, do qual tem uma vaga notícia, nem sequer a certeza
de sua existência. No árduo trajeto contemplei lugares maravilhosos, mas também tive de me
confrontar com seres sinistros e obstáculos quase insuperáveis, e caí uma vez e outra vez,
Desesperado por não topar com o tesouro, desacreditando em minha capacidade de
encontrá-lo entre tanta penúria, perdi reiteradamente a fé.

Digo a verdade quando afirmo que desconheço outras regiões, que minha ignorância de
outras realidades é inumerável, mas em troca posso reivindicar a busca apaixonada pelo
caminho que segui.

Hora de luto, tacitumo olhar do sol, é a alma um estranho na terra.

GEORG TRAKL.
Vejo os noticiários e corroboro que é inadmissível entregar-se tranqüilamente à idéia de que o
mundo superará sem mais a crise que atravessa.

O desenvolvimento facilitado pela tecnologia e a dominação econômica tiveram


conseqüências funestas para a humanidade. E assim como em outras épocas da história, o
poder, que num primeiro momento parecia o melhor aliado do homem, prepara-se
novamente para lançar a pá de cal sobre o túmulo de seu colossal império.

Sem dúvida, cada geração julga-se predestinada a refazero mundo. A minha, no entanto, sabe
que não poderá fazê-lo. Mas sua tarefa é talvez maior. Consiste em impedir que o mundo se
desfaça. Herdeira de uma história corrupta em que se mesclam as revoluções fracassadas, as
tecnologias enlouquecidas, os deuses mortos e as ideologias gastas; em que poderes
medíocres, que podem hoje destruir tudo, não sabem convencer; em que a inteligência se
humilha até pôr-se a serviço do ódio e da opressão.

No ocaso do século XX, como duvidar da veracidade dessas palavras de Camus? No entanto,
há quem pretenda continuar falando acerca do progresso da História, num gesto suicida que
se nega a olhar de frente o patético legado racionalista.

A história não progride. Foi o grande Gianbattista Vico quem o disse: Corsi e recorsi. A história
é regida por um movimento de marchas e contramarchas, idéia retomada por Schopenhauer
e, mais tarde, por Nietzsche. O progresso só é válido para o pensamento puro. As
matemáticas de Einstein são evidentemente superiores às de Arquimedes. O resto, na prática
o mais importante, ocorre do córtex cerebral para baixo. E seu centro é o coração. Essa
misteriosa víscera, quase rima bomba de sangue mecânica, tão insignificante perto da
incomensurável e labiríntica complexidade do cérebro, mas que por alguma razão dói quando
nos encontramos diante de grandes crises. Por motivos que não alcançamos, o coração parece
ser o que mais acusa os mistérios, as tristezas, as paixões, a inveja, os ressentimentos, o amor
e a solidão, até a existência mesma de Deus ou do Demônio. O homem não progride, porque
sua alma é a mesma. Como diz o Eclesiastes, "nada de novo debaixo do sol", referindo-se
justamente ao coração do homem, em todas as épocas habitado pelos mesmos atributos,
impelido a nobres heroismos, mas também seduzido pelo mal. A tecnologia e a razão foram os
meios que os positivistas postularam como archotes que haveriam de iluminar o caminho
rumo ao Progresso. Bela luz nos deram! O fim do século surpreende-nos às escuras, e a
evanescente claridade que ainda nos resta parece indicar que estamos rodeados de sombras.
Náufrago nas trevas, o homem avança rumo ao próximo milênio com a incerteza de quem
entrevê um abismo.
Em 1951 publiquei Hombres y engrenajes. Infelizmente, cumpriu-se aquela intuição devido à
qual recebi tamanha quantidade de críticas dos famosos progressistas que, durante dez anos,
tiraram-me o desejo de voltar a publicar.

Mais de quarenta anos se passaram desde a aparição daquele balanço espiritual de minha
existência, escrito em meio às grandes convulsões do mundo. Agora, grande parte do que ali
expus é uma horripilante realidade. Muitos dos que então me atacaram e me ridicularizaram,
acusando-me de obscurantista, só agora estão entendendo o mundo atroz que engendramos.

Ali expus toda a minha desconfiança e preocupação com o mundo tecnólatra e cientificista,
com essa concepção do ser humano e da existência que começou a ser supervalorizada
quando o semideus renascentista se lançou com euforia à conquista do universo, quando a
angústia metafísica e religiosa foi substituída pela eficácia, a precisão e o saber técnico.
Aquele irrefreável processo resultou em um terrível paradoxo: a desumanização da
humanidade. Nesse livro, há mais de meio século, escrevi:

Esse paradoxo, cujas últimas e mais trágicas conseqüências padecemos na atualidade, é


resultado de duas forças dinâmicas e amorais: o dinheiro e a razão. Com elas, o homem
conquista o poder secular. Mas - e aí está a raiz do paradoxo - essa conquista é feita por meio
da abstração: do lingote de ouro ao clearing, da alavanca ao logaritmo, a história do crescente
domínio do homem sobre o universo foi também a história das sucessivas abstrações. O
capitalismo moderno e a ciência positiva são duas faces de uma mesma realidade desprovida
de atributos concretos, de uma abstrata fantasmagoria da qual também o homem faz parte,
mas não mais o homem concreto e individual, e sim o homem-massa, esse estranho ser com
aparência ainda humana, com olhos e choro, voz e emoções, mas na verdade engrenagem de
uma gigantesca máquina anônima. Esse é o destino contraditório daquele semideus
renascentista que reivindicou sua individualidade, que orgulhosamente se rebelou contra
Deus, proclamando sua vontade de domínio e transformação das coisas. Ignorava que
também ele chegaria a transformar-se em coisa.

Aqueles não foram pensamentos improvisados, mas abonados por grandes pensadores
existenciais, por espíritos profundos e visionários como Pascal, Buber, Berdiaev, Nietzsche,
Unamuno, Jaspers, Schopenhauer, Emerson, Thoreau. Importantíssimos em minha formação
foram Dostoiévski, com seu subsolo transcendental, e Kierkegaard, que pusera suas bombas
nos alicerces da catedral hegeliana. Foi barbaramente ridicularizado pela imprensa de seu
país e pelos luteranos, justo ele, que era uma espécie de. Cristo redivivo. Quanto ao que
poderíamos chamar de fundamentos sociológicos e históricos, foram de grande valia os
estudos de Munford, Denis de Rougemont, Pirenne, Von Martin e tantos outros que, como
profetas no deserto, anunciaram a tragédia que se avizinhava. Quando os motores da
Revolução Industrial puseram-se em movimento, o homem viu-se tragicamente desprezado.
Mas também aumentou a resistência de espíritos lúcidos e intuitivos que encararam valente e
tumultuosamente a rebelião romântica. Grandes poetas e pensadores daquele movimento
advertiram sobre as conseqüências que teria a dessacralização do cosmo e do ser humano.
Muitos foram caluniados, empurrados ao alcoolismo ou a um triste exílio. Como ocorreu coro
o genial Shelley, que em versos vaticinara: "Um povo morre de fome em campos sem cultivo".

Aquelas advertências não apenas foram ignoradas, mas também escarnecidas pela
prepotência racionalista. Guerras mundiais, terríveis ditaduras de esquerda e de direita,
suicídios em massa, ressurgimento do neonazismo, aumento da criminalidade infantil,
profunda depressão. Tudo corrobora que no interior dos Tempos Modernos, fervorosamente
louvados, estava sendo gerado o monstro de três cabeças: o racionalismo, o materialismo e o
individualismo. E essa criatura que com orgulho ajudamos a engendrar já começou a devorar a
si mesma.

Hoje padecemos uma crise não só do sistema capitalista, mas de toda uma concepção de
mundo e da vida baseada na deificação da tecnologia e na exploração do homem.

A materialização do universo, legítima para os poliedros e as reações químicas, foi dramática


para a futura sobrevivência do homem. Loucos por sermos admitidos no
hiperdesenvolvimento, cometemos o grave erro de abrir mão do nosso ser original imitando
os impérios da máquina e do delírio tecnológico.

Depois de tecnificado o logos, o processo de industrialização e mecanização correu paralelo


ao aperfeiçoamento dos meios de tortura e extermínio.

O terrorismo internacional, o horror na Bósnia, o recrudescimento dos conflitos no Oriente


Médio, e essas chagas na carne do mundo que são as ruas de Calcutá, confirmam que Hannah
Arendt tinha razão ao afirmar, já nos anos 50, que a crueldade deste século seria insuperável.

Não faz muitos anos, duas potências disputavam o mundo. Com o fracasso do comunismo,
difundiu-se a falácia de que a única alternativa é o neoliberalismo. Na realidade, é uma
afirmação criminosa, pois é como, se num mundo em que só houvesse lobos e cordeiros, nos
dissessem: "Liberdade para todos, e que os lobos comam os cordeiros".
Fala-se das conquistas deste sistema cujo único milagre foi concentrar mais de oitenta por
cento da riqueza mundial nas mãos de um quinto da população, enquanto o resto, a maior
parte do planeta, morre de fome na mais sórdida das misérias. Caberia perguntar-se o que se
entende por neoliberalismo, pois, a rigor, isso nada tem a ver com a liberdade. Ao contrário,
graças ao imenso poder financeiro, com os recursos da propaganda e as garras econômicas, os
Estados poderosos disputam o domínio do planeta.

O absolutismo econômico arvorou-se em poder. Déspota invisível, controla com suas ordens a
ditadura da fome, que não respeita ideologias nem bandeiras, e destrói igualmente homens e
mulheres, os projetos dos jovens e o descanso de nossos velhos.

Um exemplo da desumanização a que este sistema nos está levando é o Brasil: enquanto
quarenta milhões de famintos povoam o Nordeste, em São Paulo há quase um milhão de
crianças sem lar, que roubam nas ruas para ter o que comer, forçados a se prostituir em plena
infância, arrematados por cem ou duzentos dólares, assassinados por grupos de extermínio,
seqüestrados e mortos para vender seus órgãos aos laboratórios do mundo.

Contou-me um sacerdote dominicano, professor da Universidade de São Paulo, que um estudo


elaborado pela polícia federal revelou que, nos últimos três anos, 4600 crianças foram
assassinadas no país.

Milhares de meninas e meninos latino-americanos são exportados de seu país de origem para
a Europa, os Estados Unidos e o Japão; e há indícios suficientes para provar o sacrifício de
crianças, sobretudo no Brasil, em Honduras, na Guatemala e no México.

Tragicamente, a irmã Martha Pelloni mostrou-me que fatos atrozes similares estão ocorrendo
na Argentina. '"'I

Para todo homem é uma vergonha, um crime, a existência de 25o milhões de crianças
exploradas, obrigadas a trabalhar desde os cinco, seis anos em tarefas insalubres, em jornadas
esgotantes em troca de algumas moedas, com sorte, porque alguns pequenos trabalham em
regime de escravidão ou semi-escravidão, sem proteção legal nem médica.

Esses milhões de crianças, analfabetas, mais magras e mais baixas que nossas crianças que vão
à escola, sofrem doenças infecciosas, ferimentos, amputações e humilhações de toda espécie.
Encontram-se tanto nas grandes cidades do mundo como nos países mais pobres. Na América
Latina, quinze milhões de crianças são exploradas.

Quando tomamos conhecimento dessa realidade, logo nos lembramos da história das crianças
que trabalhavam nas minas de carvão na época da Revolução Industrial. Situações que
pareciam definitivamente superadas estão hoje ao alcance de nossos olhos. Representam a
involução das conquistas sociais ganhas com sangue ao longo dos séculos. Hoje no mundo já
não se respeitam mais a jornada de trabalho, a aposentadoria, o direito à educação e à saúde.
Doenças que julgávamos erradicadas estão de volta: tuberculose, sífilis, cólera.

O estado de desamparo e violência a que se encontram expostas as crianças demonstra-nos de


maneira palmar que vivemos num tempo de imoralidade. Esses fatos aberrantes tragam-nos
como um vórtice, tornando realidade as palavras de Nietzsche: "Os valores deixaram de
valer".

Toda manhã, milhares de pessoas retomam sua busca inútil e desesperada de um emprego.
São os excluídos, uma categoria nova que nos fala tanto da explosão demográfica como da
incapacidade dessa economia para a qual o único fator que não conta é o humano.

São excluídos os pobres que ficam fora da sociedade porque sobram. Já não se diz que são "os
de baixo", e sim "os de fora".

São excluídos das necessidades mínimas de alimentação, saúde, educação e justiça; tanto das
cidades como de suas terras. E esses homens que diariamente são jogados fora, como que
atirados de um navio no oceano, são a imensa maioria.

Tantos valores liquidados pelo dinheiro, e agora o mundo, que a tudo se entregou para
crescer economicamente, não pode abrigar a humanidade.

Para conseguir qualquer trabalho, por mais mal pago que seja, os homens oferecem a
totalidade de sua vida. Trabalham em lugares insalubres, em porões, em navios-fábricas,
amontoados e sempre sob a ameaça de perder o emprego, de serem excluídos.
Ao que parece, a dignidade da vida humana não estava prevista no plano da globalização. A
angústia é a única coisa que prosperou até níveis nunca vistos. É.um mundo que vive na
perversidade, onde uns poucos contabilizam seus ganhos à custa da amputação da vida da
imensa maioria. Fizeram algum pobrediabo acreditar que pertence ao Primeiro Mundo só
porque tem acesso aos inúmeros produtos de um supermercado. E, enquanto esse pobre
infeliz dorme tranqüilo, confinado em sua fortaleza de aparelhos e quinquilharias, milhares de
famílias têm de sobreviver com um dólar diário. São milhões os excluídos do grande banquete
dos economicistas.

Quando pela rua vejo tantas lojas fechadas, ou vizinhos do bairro me abordam para contar
que não poderão continuar mantendo sua pequena oficina, que não rende o suficiente para
pagar os impostos, penso na corrupção e na impunidade, no grosseiro esbanjamento e na
opulência amoral de um punhado de indivíduos, e tenho a sensação de que vivemos o
naufrágio de um mundo em que, ao mesmo tempo que grassa o desespero, aumentam o
egoísmo e o "salve-se quem puder". Enquanto os mais desafortunados sucumbem na
profundidade das águas, em algum recanto alheio à catástrofe, em meio a uma festa à
fantasia, continuam dançando os homens do poder, ensurdecidos em suas bufonarias.

O ensino público criado pelos grandes intelectuais que nos governaram no século passado,
que tiveram a iniciativa de construir um ensino primário livre, gratuito e obrigatório, é o
fundamento desta nação que hoje está sendo demolida.

Nessas escolinhas de minha infância, humildes professoras primárias ensinavam-nos a ser


"caçadores da verdade", como a negra Ozán, índia, filha de um domador, que nos levava com
rédea curta, mas que, ao mesmo tempo, soube educar-nos com carinhosa disciplina. Naquele
tempo, eu devia ter uns onze anos, era o desenhista da turma e, em dias como o 20 de junho,
pintava com giz colorido o general Belgrano fazendo seu exército jurar ante duas faixas de
tecido azul-celeste e uma branca, que em virtude desse gesto seriam capazes de convocar
batalhas e arrastar seus homens à morte ou à vitória, pois esse pano, muitas vezes sujo e
roto, era o símbolo da Pátria.

Em um caldeirão quase único no mundo, os filhos de pobres imigrantes, enquanto os pais lhes
contavam histórias de terras distantes, naquelas escolas escutavam com devoção a vida de
seus próceres, Belgrano e San Martin. Ou como no dia da Independência, quando içávamos a
bandeira ao som do Hino Nacional e esperávamos o chocolate quente, tiritando no frio
pampiano.
Assim aprendemos a amar a Pátria, com um nobre sentimento que congrega, pois quem ama
verdadeiramente sua pátria compreende e respeita as demais; ao contrário da patriotice, que
é baixa e mesquinha, presunçosa, carregada da vaidade que nos afasta e nos faz odiar. O que
ocorre com tantas potências que se julgam superiores pelo simples fato de dominarem as
outras nações.

Desde a sinistra noite em que os estudantes foram expulsos da universidade a bordoadas para
serem encarcerados, quando milhares de intelectuais tiveram de deixar o país, e depois,
quando fomos conhecidos pelas atrocidades cometidas durante a ditadura, a única coisa que
nos resgatou do menosprezo universal foi o alto nível dos nossos professores, engenheiros,
biólogos, médicos, físicos, matemáticos, astrônomos, escritores e artistas, que eram
convocados de todas as partes do mundo, pondo-nos acima de países altamente
desenvolvidos. Um arquiteto de sobrenome Pelli deslumbrou os norte-americanos com a
originalidade de suas construções. E um filho ou neto de imigrantes, como Milstein,
conseguiu recebeu o prêmio Nobel por seu revolucionário estudo no campo da genética, mas
teve de ir à universidade de Cambridge, porque aqui não tinha nem sequer os equipamentos
necessários para testar suas idéias.

Toda educação depende da filosofia da cultura que a preside; e por culpa desses obsegiientes
imitadores dos "países avançados" - avançados em quê? - corremos o risco de propagar ainda
mais a robotização. Devemos opor-nos ao esvaziamento da nossa cultura, devastada por esses
economicistas que só entendem do Produto Interno Bruto - nunca houve expressão mais
perfeita -, que estão reduzindo a educação ao conhecimento da tecnologia e da informática,
úteis para os negócios, mas carentes dos saberes fundamentais revelados pela arte.

Essa educação é acessível apenas àqueles que se incluem nos muros de nossa sociedade, pois
o mundo da tecnologia e da informática, que supostamente nos aproximaria uns dos outros,
significou um abismo intransponível para a imensa maioria. Nesta primavera de 1998,
esperando as primeiras luzes do amanhecer, que sempre ou quase sempre renovam as
esperanças, medito sobr este país destruído e conspurcado pelos governantes e pela maioria
dos políticos. Tão, mas tão longe da Argentina de minha ado lescência, com extraordinárias
universidades e que grandes homens deu ao mundo, mas que hoje não é mais do que a ruína'
de um belíssimo castelo.

Por tudo isso, em diversas oportunidades visitei os professores que há mais de um ano jejuam
na Tenda Branca, em frente ao Congresso. Símbolo comovente dessa reserva que salvará o
país, se conseguirmos recuperar os valores éticos e espirituais das nossas origens. A educação
é o bem menos material que existe, mas o mais decisivo para o futuro de um povo, já que é
sua fortaleza espiritual; e por isso é avassalada por aqueles que pretendem vender o país
como uma filial dos grandes conglomerados estrangeiros. Sim, queridos professores,
continuem resistindo, porque não podemos permitir que a educação se transforme em um
privilégio.

Os excluídos não têm justiça que os defenda. Acabo de visitar a favela Treinta y Uno, em
Retiro, para prestar minha solidariedade aos padres que jejuavam em protesto à crueldade
com que se pretendeu despejar os moradores, derrubando suas precárias construções com
tratõres selvagens.

De volta em casa, à noite ainda pude ver pela televisão as agressões a uns operários que se
negavam a desocupar uma fábrica, espancados violentamente, tratados como delinqüentes
por uma sociedade que não considera crime negar aos homens seu direito ao trabalho;
despojando-os até das poucas leis trabalhistas que os protegiam.

Também vi a polícia perseguir os ambulantes com cassetetes e jatos de água, em vez de


prender aqueles que estão roubando até as últimas moedas e têm dinheiro e poder para
comprar essa justiça cujo braço cai com impiedosa dureza sobre qualquer ladrão de galinha.
Como o rapaz que me escreveu de uma prisão cordovesa pedindo-me um exemplar do Nunca
mais autografado. Enquanto esse homem estava preso por um delito menor, em um gesto
aberrante foram postos em liberdade os culpados de dessangrar a Pátria.

Com grande amargura, na tarde em que escutei a notícia dos indultos, tranquei-me em meu
escritório sem vontade de ver ninguém, enquanto voltavam à minha mente as imagens do
horror, aqueles cenários do suplício.

Nos anos que precederam o golpe de Estado de 1976, ocorreram atos de terrorismo que
nenhuma comunidade civilizada poderia tolerar. Invocando esses fatos, criminosos da mais
baixa espécie, representantes de forças demoníacas, deflagraram um terrorismo infinitas
vezes pior, porque exercido com o poderio e a impunidade que permite o Estado absoluto,
iniciando uma caça às bruxas que não vitimou apenas os terroristas, mas milhares e milhares
de inocentes.

Quando o país amanheceu desse pesadelo, o presidente Alfonsin, em sua condição de chefe
supremo das Forças Armadas, ordenou aos tribunais militares o indiciamento dos culpados
desse horror histórico. Depois, como determina a Constituição, o Ministério Público daria a
última palavra. Por fim nomeou-se uma comissão de civis que, por meio de uma investigação
paralela, forneceu provas para a tarefa dos tribunais.
O horror que íamos descobrindo dia após dia deixou-nos, a todos os que integramos a
Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), a obscura sensação de
que nenhum de nós voltaria a ser o mesmo, como costuma acontecer quando se desce aos
infernos. Nunca esquecerei a inteireza ética e espiritual das personalidades da ciência, da
filosofia, de várias religiões e da imprensa que integraram a comissão.

O relatório era transcrito por datilógrafas que tinham de ser substituídas quando, aos prantos,
diziam-nos que não podiam d continuar seu trabalho. Em mais de cinqüenta mil páginas
ficaram registrados o desaparecimento, a tortura e o seqüestro de milhares de seres
humanos, em sua maioria jovens idealistas, cujo suplício permanecerá para sempre no lugar
mais pungido de nosso coração.

O terrorismo de Estado provocou também a destruição das famílias dos desaparecidos. Pais e
mães, em sua atormentada fantasia, enterraram e ressuscitaram seus filhos, sem nem
suspeitar a monstruosa realidade. Será difícil calcular quantos pais morreram ou se deixaram
morrer de angústia e de tristeza, quantos outros enlouqueceram. Como aconteceu com
Miguel Itzigson, meu grande amigo, que em seus anos finais teve como único objetivo
recuperar sua filha, conseguir alguma vez a verdade e a justiça. Mas o enfrentamento com
aquele horror, feito da crueldade de uns e da indiferença de outros, acabou quebrantando seu
admirável caráter. Deixou-se morrer de tristeza.

No dia em que a Conadep entregou o relatório ao presidente da República, a Plaza de Mayo


transbordava de homens, mulheres, jovens e mães com suas crianças no colo, que desse modo
davam seu apoio àquele acontecimento fundamental da nossa história. Já que Nunca mais
deveríamos repetir os fatos que nos tornaram tragicamente famosos, quando a imprensa do
mundo inteiro escrevia em castelhano a palavra "desaparecido".

Lamentavelmente, as leis de "Obediência devida" e de "Ponto final", e depois os indultos,


abortaram aquela vontade soberana que teria sido um exemplo de luta ética, que teria
conseqüências exemplares para o futuro da nossa pátria. Porque a tragédia que a Argentina
viveu jamais será esquecida pelos que possuem um coração nobre; não só por quem
presenciou aquele inferno, mas também por todos os seres conscientes do mundo, unânimes
em sua condenação. Prova disso é a investigação que em outros países está sendo conduzida
por seres como o juiz Baltazar Garzón, com quem estive em minha última viagem à Espanha.
O sangue, o horror e a violência questionam a humanidade inteira, e demonstram que não
podemos ignorar o sofrimento de nenhum ser humano.
Com quanta indignação vi, em um dia de greve geral, a polícia derrubar no chão com despótica
violência as panelas em que uns operários preparavam sua comida popular. E então me
pergunto em que tipo de sociedade vivemos, que democracia temos, onde os corruptos vivem
na impunidade e a fome dos povos é considerada subversiva.

Também de suas terras os homens foram excluídos. Anos atrás, estive com os índios wichis na
praça do Congresso. Fazia uma semana que estavam em greve de fome reivindicando as
terras que, como ocorreu com tantas comunidades indígenas, foram-lhes usurpadas desde o
tempo da conquista, vítimas de um genocídio que se realizou à força de guerras, epidemias
desconhecidas e o indefectível cativeiro. Desde então, a opressão e os maus-tratos de que
são vítimas em todo o continente obriga-os a sobreviver em miseráveis reservas,
incapacitados para satisfazer suas necessidades básicas de alimentação, saúde, moradia e
educação.

Hoje, um dos graves problemas que muitas dessas comunidades têm de enfrentar, expondo-se
a um risco vertiginoso e destrutivo, é a necessidade de emigrar para as grandes cidades, onde
vivem alienados, movidos pela fome mas também por ilusões descabeladas, como ocorreu em
Lima, que nos últimos vinte anos triplicou sua população com a chegada de indígenas. Cidades
em que vivem degradados em periferias onde se prolifera o cólera, a meningite, a tuberculose
e todas as calamidades resultantes da pobreza e do desarraigamento. Vivem, se é que se pode
usar esse verbo em seu sentido grande e misterioso, ou tristemente sobrevivem,
abandonados e perdidos.

Aqui mesmo, a Buenos Aires, capital de um país que num tempo foi quase um deserto, com
poucas comunidades autóctones, estão chegando milhares de índios bolivianos e paraguaios,
que atravessam a fronteira e que, por falta de documentos, são escravizados em trabalhos
clandestinos. Dormem no chão, amontoados e sujos. Perderam sua dignidade e seus rituais
arcaicos.

Nas comunidades indígenas, os fatos essenciais da existência estavam ligados ao ritmo do


cosmo e da natureza. E, ainda hoje, muitos deles conservam seus rituais, como os mapuches,
que se preparam para receber o ano-novo com cerimônias acompanhadas de danças e rezas,
em que pedem aos deuses que lhes dêem saúde e bons augúrios, que o ano que começa seja
pródigo em chuvas e colheitas. Os rituais e as tradições de nossas sociedades, ao contrário,
foram desvirtuados, ou transformados em simulacros em que ninguém mais acredita,
conseqüência do barbarismo tecnológico.
Com a cisão entre o pensamento mágico e o pensamento lógico, o homem foi exilado de sua
unidade primigênia; rompeu-se para sempre a harmonia do homem consigo mesmo e com o
cosmo.

Faz algum tempo assisti a um extraordinário filme de Emir Kusturica sobre a desaparição da
Iugoslávia. Impressionou-me o arrojo com que ele mostra a crueldade desse extermínio. E
quando vi esses seres em seu imundo subsolo, sustentando com sua dor a vida de indivíduos
mesquinhos e impiedosos, senti que era a grande metáfora deste tempo em que parte da
humanidade do homem está se eclipsando.

Uma sensação semelhante voltou a sacudir-me uma tarde, enquanto viajava de trem. Entrou
uma mulher esquálida, de pele morena, que, com uma sanfona estropiada, tocava uma
música lúgubre. Levava pendurado sobre o peito um cartaz onde explicava que tivera de fugir
da Romênia. Escutei sua melodia e me detive a observar essa mulher sem pátria e sem lar,
pouco importando se vinha da Romênia, da Bósnia ou da ex-Iugoslávia. Era unicamente um
ser errante, como os milhares de refugiados no mundo, ou os sem-terra do Brasil, ou os que
desesperadamente tentam fugir da desvalida Albânia. Uma entre milhões cuja intempérie nos
faz responsáveis. São os que desconhecem ideologias ou estatísticas sociológicas, mas que
bem sabem que eles não contam na história. Quando já se retirava para o vagão seguinte,
deparei-me com o olhar triste de uma criancinha que ela carregava nas costas. Fez-me pensar
no que está acontecendo: um mundo que parece caminhar para sua desintegração, enquanto
a vida nos observa de olhos abertos, famintos de tanta humanidade.

Estremeceu-me uma notícia que li esta manhã no jornal; recortei-a e guardei-a em uma das
gavetas de meu arquivo, entre esses tantos retalhos que nestes anos têm-me ajudado a viver.

Uma mulher, em um inverno rigoroso, vestindo apenas uma camiseta e uma calça, fugiu de
um hospital psiquiátrico no desejo de procurar seu companheiro. Aproveitando uma distração
do maquinista, roubou uma locomotiva e, fazendo-a funcionar sem dificuldade, começou sua
odisséia. Ele havia trabalhado na ferrovia e a ensinara a conduzir trens e "muitas outras
coisas".

"Se vocês soubessem o que é o amor, me deixavam continuar", dizia ao policial que a deteve,
e, enquanto a levavam para a delegacia, aos prantos desesperados, gritava: "Você nunca fez
nada por amor?".
Quão mais humanos são esses gestos que os de tantos indivíduos que correm pela cidade
toldados por seus projetos!

Quis resgatar essa história dentre meus papéis porque, de certo modo, quando a razão nos
leva à beira da psicose coletiva, atos como esse são o mais parecido com uma salvação.

As pessoas que me querem bem suplicam que eu não me levante tão cedo, temem por minha
saúde; os médicos me examinam, fazem análises. Na realidade, estou humanizando-me; é
uma das conseqüências do sofrimento. Seria isto uma justificação da dor?

Hoje tentei descansar pelo menos até as cinco, mas me assaltou uma espécie de visão da qual
aos poucos fui tomando semiconsciência, uma coisa deslocada, mas que ia se impondo sobre
mim, e assim fiquei um bom tempo debatendo-me entre a realidade e o delírio. Até que
comecei a rolar na cama, afastei as cobertas e esperei que o frio aplacasse meus nervos.

Uma coisa obscura, ligada à realidade em que estamos vivendo, vinda do inconsciente, como
um murmúrio, lembrava-me o que tenho pintado nestes últimos anos: esses seres terríveis
que saem do fundo de minha alma, torres que desmoronam, pássaros em céus incendiados.
Não sei o que significam, talvez advertências, talvez sequelas do que sofri escrevendo certas
passagens de minhas ficções, como o Informe sobre ciegos.

Não consegui dormir de novo, acendo uma lanterna e atravesso a escuridão do estúdio. Em
minha mesa vejo os envelopes contendo alguns fragmentos que incluirei neste livro feito sem
premeditação, que me sai da alma, não da cabeça, ditado pelas preocupações e pela tristeza
destes anos finais.

Reviso os papéis, alguns, muitos, estão assinalados, riscados com inúmeras correções. Dada a
angústia que me provoca, procuro esquecer esta tarefa, mas ela volta reiterada,
obsessivamente, como golpes de um punho no interior de minha cabeça.

Por fim me visto e, no jardim, aguardo o amanhecer que se demora sob um céu carregado de
nuvens tormentosas. Passo um tempo sentado, até que Gladys me chama para o café da
manhã, eu o tomo enquanto leio as manchetes do jornal: a crise social, o desemprego, a
corrupção, a impunidade, o estado geral do mundo. Mais do que o suficiente para aumentar a
tristeza e o desconcerto. Um subtítulo diz o seguinte: "Em uma semana, quinhentas pessoas,
em sua maioria mulheres e crianças, morrem queimadas na Indonésia". Recordo a expressão
com que Dante descreve o Inferno: "O sangue misturado ao pranto, recolhido por asquerosos
vermes".

Então vou até meu estúdio e espero a chegada de Diego que, como todas as manhãs,
afetuosamente voltará a me reanimar. Conversaremos longamente e depois poderemos dar
uma volta pelas ruas do bairro, ou pela estação, até que eu possa recuperar a energia para
continuar escrevendo.

A gravidade da crise afeta-nos social e economicamente. E vai muito além: o céu e a terra
estão doentes. A natureza, esse arquétipo de toda a beleza, transtornou-se.

Nosso planeta encontra-se em estado desolador e, se não forem tomadas medidas urgentes,
será inabitável em pouco mais de três ou quatro décadas. O oxigênio diminui de maneira
irreversível por causa do ácido carbônico de automóveis e fábricas e da devastação das
florestas. O homem necessita das árvores para viver. Parecem não sabê-lo ou não se
importarem com isso aqueles que estão derrubando a selva amazônica e as grandes reservas
do mundo. Os países desenvolvidos produzem anualmente quatrocentos milhões de toneladas
de resíduos tóxicos: arsênico, cianureto, mercúrio e derivados do cloro, que desembocam nas
águas dos rios e dos mares, afetando não apenas os peixes, mas também aqueles que se
alimentam deles. Poucos gramas bastam para uma intoxicação mortal para o ser humano.

Corremos o risco de consumir vegetais fumigados com pesticidas que atacam o fígado e os rins
e provocam distúrbios no sangue, leucemia, tireoidismo; atacam também o sistema nervoso
central e os olhos. Entre esses pesticidas encontra-se o terrível veneno chamado "agente
laranja".

Os cientistas ainda não nos explicaram como vamos sobreviverà radiatividade liberada pelos
reatores nucleares. Oito milhões de seres humanos ainda sofrem as conseqüências da
tragédia atômica de Chernobyl.

Durante sua visita à Argentina, conversei longamente sobre esses assuntos com o presidente
da ex-União Soviética, Mikhail Gorbatchov, já que os cientistas de seu país lançaram no mar
Báltico os "corações" de uma grande quantidade de reatores. Pensariam com isso apagá-los?
Entre esses refugos encontram-se produtos temíveis como o plutônio, sinistra referência a
Plutão, deus grego do inferno. Desconhecemos o que realmente fizeram, por seu lado, os
países mais desenvolvidos, mas é alarmante o descaso com que responderam às demandas de
destacadas organizações ecologistas, como o Greenpeace. Parece não ter a menor
importância o fato de estarmos a um passo da destruição física do planeta, tamanho o
individualismo e a cobiça.

Apesar dos altos riscos que os produtos radiativos acarretam, seu armazenamento continua a
constituir um inestimável agente de controle. Os países mais desvalidos, como a Índia, ou se
proclamam orgulhosamente uma nova potência nuclear ou correm o risco de serem vendidos
como lixeiras atômicas. Coisa que em repetidas ocasiões esteve a ponto de ocorrer com nosso
país.

Outro perigo a ter em conta é o do buraco de ozônio - que já tem o tamanho do continente
africano! Além disso, o aquecimento global, conseqüência da emissão de gases e do "efeito
estufa", põe em risco o futuro dos países insulares devido ao aumento do nível dos rios e
mares. Sem esquecer as espécies em extinção: calcula-se que setenta espécies desapareçam
por dia.

Na Antiguidade, segundo Berdiaev, o projeto do universo humano era também tarefa de


forças divinas. Dessacralizada a existência e esmagados os grandes princípios éticos e
religiosos de todos os tempos, a ciência pretende transformar os laboratórios ein ventres
artificiais. Pode-se pensar em coisa mais demoníaca do que a clonagem? Podemos continuar
desempenhando dia a dia as tarefas dos tempos de paz, quando às nossas costas se fabrica a
vida artificialmente?

Nada resta a respeitar. Apesar das atrocidades que já saltam aos olhos, o homem avança
invadindo os últimos interstícios em que se gera a vida. Com grandes manchetes anuncia-se
que a clonagem já é um fato. E nós, todos os homens do planeta que não queremos essa
profanação última da natureza, o que podemos fazer diante da imoralidade daqueles que nos
dominam?

A humanidade recebeu uma natureza em que cada elemento é único e diferente. Únicas e
diferentes são todas as nuvens que contemplamos na vida, as mãos dos homens e a forma e o
tamanho das folhas, os rios, os ventos e os animais. Nenhum animal foi idêntico a outro. Todo
homem foi misteriosa e sagradamente único.
Agora, o homem está a um passo de se transformar em um clone por encomenda: olhos azuis,
simpático, empreendedor, insensível à dor ou, tragicamente, pronto para ser escravizado.
Engrenagens de uma máquina, fatores de um sistema. Tão longe, Hôlderlin, do tempo em que
os homens se sentiam filhos dos Deuses!

Os jovens sofrem tudo isso: ja não querem ter filhos. Não existe ceticismo maior.

Como os animais em cativeiro, nossas jovens gerações não se arriscam a ser pais. Tal é o
estado do mundo que estamos entregando a eles.

A anorexia, a bulimia, a dependência de drogas e a violência são outros sinais deste tempo de
angústia ante o desprezo pela vida por parte dos que mandam.

Como poderíamos explicar a nossos avós que levamos a vida a tal situação que muitos jovens
chegam a morrer porque não comem ou vomitam os alimentos? Por falta de vontade de viver
ou para cumprir com o mandamento da televisão: magreza histérica.

Centenas de milhares de jovens são dependentes de drogas. Andam como em bandos pelas
praças do mundo.

Tudo leva a crer que a Terra está a caminho de transformar-se em um deserto superpovoado.
Não por acaso numa das últimas Cúpulas Ecológicas previram-se guerras, num futuro não
muito distante, para a obtenção de água potável.

Essa paisagem fúnebre e desolada é obra dessa classe de gente que sempre riu dos pobres-
diabos que há anos vínhamos alertando do perigo, alegando que eram fábulas típicas de
escritores, de poetas fantasiosos.

Conforme essa inversão semântica que as línguas comportam, o epíteto de realistas designa
indivíduos que se caracterizam por destruir todo tipo de realidade, até a mais cândida
natureza, até a alma de homens e crianças.
Por mais que os otimistas impertérritos aleguem que a humanidade sempre soube superar os
mais bárbaros acontecimentos, estamos longe de poder confiar nesse tipo de sofisma. Em
primeiro lugar, porque houve civilizações inteiras que nunca se recuperaram e, em segundo,
porque atravessamos uma crise total e planetária.

Faz já alguns anos, a capacidade destrutiva do mundo era cinco mil vezes superior à que havia
na Segunda Guerra Mundial, o poder dos arsenais atômicos era um milhão de vezes maior do
que o da bomba que arrasou Hiroshima.

uma criança morre de fome a cada dois segundos. O crime maior é que com meio por cento
do que se gasta com armamentos seria possível resolver o problema alimentar do mundo.
Nada indica que esses números estejam mudando para melhor. São tempos em que o
homem e seu poder só parecem capazes de reincidir no mal. Pusemos em funcionamento
potências destrutivas de tal magnitude que sua passagem, como apontou Burckhardt, pode
impedir para sempre o crescimento da relva.

Foi num café de Retiro que você veio me pedir umas moedas e eu perguntei se queria sentar-
se. Você era um dos tantos que mendigam sua inocência como anjos excluídos de algum céu
perverso e estranho. Claro que você não me conhecia, e me reconfortou compartilhar o
encontro. Pois você, com sua pouca idade, tinha o olhar envelhecido por essas atrocidades
que, em breve tempo, realizam no corpo e na alma a devastação dos anos.

Sempre que voltei a esse café, procurei por você no desejo de cumprimentá-lo. Você já não
estava, mas descubro-o em outras crianças, quando, à noite, ao voltar para casa, eu os vejo
remexer entre o lixo, enfiando na imundície suas pequenas mãos, destinadas aos balanços e
aos carrosséis. E então, não sei por quê, penso em Rimbaud. Talvez porque também ele
pertencia à raça dos que cantam no suplício. Rimbaud, que nas ruas de Paris alimentava-se
com o pão velho que tirava do lixo, e que à noite dormia encolhido sob as marquises. Recordei
suas palavras: "A verdadeira vida está ausente".

E fechado neste velho estúdio, sentado na beira da cama, volto a ver o desenho da casinha
que você me deu, e que eu supus ser sua casa dos sonhos, com flores, pequenas janelas e
cortinas, e uma grande chaminé no meio soltando fumaça colorida, toda essa magia
encantatória das crianças que nem a miséria parece sufocar.
Acabo de escrever estas linhas que provavelmente você nunca lerá; queria protegê-lo de
algum modo. Que horror, o mundo!

Sobre esses e outros assuntos conversei longamente com Cioran, numa tarde de 1989. Anos
atrás eu soubera de seu desejo de me conhecer; insistência que interpretei como mensagens
cifradas, reiteradas em diversas ocasiões. Marcamos um encontro em sua casa da rua Odeón,
a dois passos de meu hotel no bulevar Saint-Germain.

Custou-me demovê-lo de seu insistente oferecimento de esperar-me na entrada, temendo


que eu me perdesse; o que mais uma vez confirmou seu autêntico desejo de ver-me. Em
poucos minutos cheguei a sua casa, um daqueles velhos prédios franceses; e, depois de subir
os seis andares de escada, parei diante da porta de madeira onde estava colocado, no lugar
reservado para as chambres de bonnes, um cartaz que dizia "Ici Cioran".

Ao contrário do que muitos pressupõem e do que eu mesmo pensava, surpreendeu-me


aquele senhor amável, miúdo e pesaroso, pregador de um niilismo que não combinava com
ele. Era, antes, um grande pessimista, por momentos dominado por um outro, cético e
descrente. Mas sempre com um sorriso. Em nenhum momento um casmurro indiferente, ao
contrário, u desses homens solidários com a "desventurada multidão", com dissera Mallarmé,
em busca de alguém que expressasse sua aflição e seu tormento. Talvez possamos aplicar a
ele a frase de Strindberg: "Não detesto os homens, tenho medo deles".

Conversamos fraternalmente durante mais de quatro horas, até que tive de me retirar
porque, em um café não muito longe dali, esperava-me meu amigo Severo Sarduy. Descobri
em Cioran. a coerência de um homem autêntico, e partilhamos pensamentos de notável
semelhança. Como a necessidade de desmistificar o racionalismo que só nos trouxe a miséria
e os totalitarismos. E também a imbecilidade dos que crêem no progresso e no avanço da
civilização. "Tudo pode ser sufocado no homem, salvo a necessidade do Absoluto, que
sobreviverá à destruição dos templos, assim como ao desaparecimento da religião sobre a
terra." Palavras de um filósofo cuja lucidez era fruto de sua perplexidade e seu tormento.

Tenho a convicção de que sua dor metafísica teria se atenuado se ele tivesse podido escrever
ficção, dado seu caráter catártico, e porque os graves problemas da condição humana não são
aptos para a coerência, mas unicamente acessíveis a essa expressão mitopoética,
contraditória e paradoxal, como nossa existência.
"Na tristeza tudo vira alma", diz ele em um de seus ensaios que tanto ajudaram a desmascarar
a frivolidade e os sorrisos hipócritas dos tempos que correm.

Vim a Santander para receber o prêmio Menéndez y Pelayo, e pela manhã quis ir com Elvirita
ver o mar nos rochedos, talvez pela última vez. E enquanto escutava o rumor das ondas, e o
sol começava a ocultar-se entre as nuvens do poente, invadiu-me essa melancolia que sempre
senti diante de alguma beleza indescritível.

Como bem assinalou Berdiaev, o paradoxo dos tempos modernos reside no fato de o
humanismo ter se voltado contra o homem. A sacralização da inteligência empurrou-nos até a
beira do precipício, e o logos, uma vez dominado o mundo, em vão pretendeu responder
aquilo que só se sustenta como enigma ou como pranto. Chegamos à ignorância por meio da
razão. Pela boca de um personagem, Virginia Woolf se pergunta: "Com que nome temos de
chamar a morte? E qual a frase para o amor? Não sei. Necessito de uma linguagem elementar
como a dos amantes, palavras como as que usam as crianças".

O humanismo ocidental está falido, e o fim do século encontra-nos incapazes de indagar-nos


pela vida e pelo homem.

Uma vez afirmada em seu poder, a razão prometéica foi incapaz de resolver os problemas
fundamentais, pois não bastava roubar o fogo para iluminar a história. Ao descerrar os últimos
véus, o homem descobriu sua impotência e sua precariedade. Se neste últimos séculos de
história perdemos uma oportunidade, foi adi construir uma história em que o homem fosse
protagonista, em vez de ser um novo condenado.

Anos atrás, como um Cristo entre ladrões, Federico García Lorca foi assassinado em Granada.
E muitas vezes pensei que esse crime horrendo é um dos símbolos deste mundo que, tendo
erradicado a poesia, erigiu em seu lugar a dureza e o horror.

Não sabemos, mas podemos intuir, em meio a que profunda tristeza aquele jovem,
maravilhoso e desventurado Rimbaud, que, em busca do Absoluto, encontrou a mediocridade
e o desprezo, escreveu as primeiras linhas de seu inferno:
Outrora, se bem me lembro, minha vida era um festim em que todos, os corações se abriam,
em que todos os vinhos fluíam. Uma noite,;. sentei a Beleza sobre meus joelhos. E achei-a
amarga. E injuriei-a.

Quando caminho por uma praça, ao contemplar a nobreza dos jacarandás, ou quando vejo
aqueles rostos inefáveis que continuam a enternecer-se diante de um céu tormentoso, ou os
que ainda tremem ao pronunciar palavras sublimes, penso então na infelicidade dos homens
destinados à beleza, mas forçados a viver na banalidade desta cultura onde o que um dia foi
sentido degenerou em grosseira diversão, em estimulantes ou patéticos objetos decorativos.
Triste epílogo de um século devastado entre os delírios da razão e a crueldade do aço.

Elie Weisel disse que em Auschwitz morreu o homem e a idéia do homem. É o que ocorre nos
períodos em que parece dar-se uma ruptura, um corte tão profundo que corremos o risco de
ser tragados pelo vazio.

Como se afirma em Os possessos, o ser humano sente-se atraído pela criação tanto quanto
pela destruição; e este é um desses momentos. Vivemos como se tivéssemos chegado ao
limite último da existência. Já não estamos tão certos de poder dizer, junto com Goethe, que
"a humanidade acabará triunfando". Ao contrário, no horizonte parecem ouvir-se os últimos
estertores. Basta assistir a qualquer noticiário ou ler as manchetes do jornal para
compreender que estamos nos transformando nas sinistras criaturas que Goya pintava em
meio a grotescos sabás. "Os sonhos da razão engendram monstros", profetizou esse artista
genial que durante o dia retratava as gordas senhoras da corte, e depois se trancava para
fazer esses desenhos, como vômitos, que desmascaravam o cego positivismo da Ilustração.

Finalmente chegamos ao "mundo fraturado" de que nos falou Gabriel Marcel, e, enquanto a
realidade desmorona aos pedaços, o homem desfalece psíquica e espiritualmente cindido.

Provavelmente nunca entenderemos de todo o que quis dizer Kafka, que expressou, numa das
obras mais reveladoras e profundas do século XX, o desconcerto e o desamparo do homem
contemporâneo em um universo duro e enigmático. A queda do homem numa realidade em
que a burocracia e o poder tomaram o lugar da metafísica e dos Deuses. Perdido em um
mundo de túneis e corredores, atalhos e bifurcações, entre paisagens sombrios e obscuros
meandros, o homem treme ante a impossibilidade de toda meta e o fracasso de todo
encontro.
III

A DOR ROMPE O TEMPO

no fundo não há raízes há o arrancado

HUGO MUJICA

Desde que Jorge Federico morreu, tudo veio abaixo, e, passados vários dias, não consigo livrar-
me desta opressão que me sufoca.

Como que perdido em uma selva escura e solitária, procuro em vão superar a invencível
tristeza. Antes - antes do quê?: antes que este desastre ocorresse -, em momentos de
depressão, eu passava horas em meu estúdio de pintura, trabalhando em algum quadro até
que a desolação passasse. Mas agora o tempo parou. A angústia permanece e sinto-me
abandonado no incomensurável deserto destas quatro paredes.

Embriagado de dor, entre as ruínas de minha mente, ecoam ao longe uns versos de Vallejo:

Há golpes na vida tão duros,

golpes como do ódio de Deus.

A tarde desaparece imperceptivelmente, e vejo-me cercado pela escuridão que acaba


agravando as dúvidas, os desalentos, a descrença em um Deus que justifique tanta dor. Os
tons da tarde me invadem com estranhas presenças que antes eu não percebia.' Já os cantos
dos pássaros são outros, ou nenhum. Uma luz crepuscular derrama-se sobre cada objeto,
como se os elevasse a uma realidade nova, agora transfigurada pelo sofrimento.
Uma suave chuva de outono cai sobre o jardim, e também sobre os pássaros e as árvores que,
quem poderá saber?, talvez meditem como nós.

Quantos casais, nas ruas desta labiríntica Buenos Aires, vão encolher-se, protegendo-se do
frio, nesses gestos de um amor inexprimível e impossível.

Da janela de meu estúdio olho para o jardim. Os jasmins-do-cabo, o hibisco, as magnólias e


todas as demais plantas e flores evocam Jorgito. E a beleza volta a ensombrecer-me. Olho,
então, para o nada. Observo coisas sem importância: uma borracha, uma caneta, um
calendário, meu relógio. Meu Deus, o que é isso?

Passa um boeing, com estrondo. Aonde vai? Para quê? Em minha mesa de trabalho, olho uma
aranhazinha que cruza apressada, também rumo a seu destino. Mas qual? Embora pequenina,
pode ter um destino miúdo, a sua medida. Sigo-a comovido, até que chega à outra borda e
desce por um dos fios de sua teia; com quanta esperança continuo a observá-la enquanto
desaparece de minha vista aquele ser diminuto que vive sem tantas cogitações, sem esses
questionamentos que fazemos, para provar o quê?

Minha vida parece ir acabando como O túnel, com janelas e túneis paralelos, onde tudo é
infinitamente impossível. Como é estranho, como é terrível que, próximo à morte, voltem
essas tristíssimas metáforas!

Elvirita fala-me de Cristo. Deixo-me alentar por seu sentido religioso da vida, e da dor.

Pus sobre minha mesa uma fotografia de Jorge, e agora olho para ele, olho para ele com a
saudade de um abraço que me parte o coração. Como gostaria de voltar atrás no tempo.
Quando terá fim este peso esmagador e absoluto?

Meu pensamento afunda na dor. Aonde foram agora as palavras? Daria todos meus livros - tão
pobres, tão ridículos, tão precários, tão inválidos, tão nada perto desta perda - e daria meu
prestígio, esse prestígio que ponho muito entre aspas, e as honras e condecorações, para
recuperar a proximidade de Jorgito.
Acabo de voltar da Albânia, onde fui receber o prêmio Kadaré. Estava arrasado, mas fui para
não responder com uma nova negativa a esse pobre e heróico país que me escolhera para
inaugurar o prêmio.

Na cidade de Tirana recebi uma das homenagens mais emocionantes de minha vida. Esse povo
que sofreu uma tirania, que ainda mostra as marcas da ditadura, os rostos vincados pelo
sofrimento e os tenebrosos bunkers que o tirano mandou construir, celebrou-me como um
benfeitor, como um rei, como um filho dileto.

Houve danças e cantos na inesquecível entrega do prêmio. Um poeta entregou-me uma urna
contendo terra trazida da aldeia natal de minha mãe. E um grande escritor mostrou-me um
caderno que mantivera oculto na prisão; com letra minúscula, copiara um texto de Camus e
meu "Querido e remoto rapaz", deAbadon. Disse-me chorando que durante os muitos anos
em que estivera preso, lia diariamente essas páginas, às escondidas, para poder resistir. Tremi
por ter servido com minhas palavras a esse herói dentre tantos que povoam esse país, hoje
novamente em guerra.

No dia seguinte despediram-nos com música e flores; foi tão emocionante que passei mal nos
corredores do aeroporto de Viena. Elvira saiu em busca de um médico, e, algumas horas
depois, pudemos partir para Madri.

De volta em casa, penso no que vi naquela terra de parte de meus ancestrais, um povo que
vem padecendo anos de opressão; e recordarei sempre aquelas mães que viram morrer os
filhos das maneiras mais atrozes e que, no entanto, continuam tão generosas. Na solidão de
meu quarto, abatido pela morte de Jorge, perguntei-me que Deus parece esconder-se atrás do
sofrimento.

Caminhando por esta casa que em outros tempos todos partilhamos, e onde hoje perambulo
perdido, parei, Jorgito, diante do teu retrato. Silvina Ocampo, grande poeta e autora de
contos memoráveis, um dia também fez o mesmo, no tempo em que estávamos muito
próximos. Faz tantos, tantos anos.

Lentamente olhei um por um os traços desse menino de dez anos que eu levava pela mão,
pensando que para sempre o teria a meu lado. E então, através das rugas e das lágrimas, fui
recriando aquele tempo passado, mas tão saudoso, e sagrado.
Na solidão de meu estúdio, escuto o quinteto de Schumann para cordas e piano que você
tanto amava. Tão bem você compreendia que aquele sensível, melancólico e desventurado
músico enlouquecesse, e se atirasse no Reno.

Seu rosto se iluminava quando você falava dele, de sua família, de sua história, à qual você
sempre voltava, como se sentisse sua falta ou ele o ajudasse a viver. Você admirava em
Schumann seu gênio musical transbordante de poesia e de ternura e se comovia com o amor
de Clara. Ela o acompanhou, apoiou e protegeu. E, depois de sua morte, foi ela quem mais se
empenhou em divulgar sua obra, e em que fosse apreciada no mundo inteiro.

Vêm-me à memória as tardes que passávamos conversando, você, Mario e eu, sobre os mais
variados assuntos, para terminar, muitas vezes, falando de música. Concordávamos em que
Brahms era um dos supremos, e obviamente Beethoven e Bach. E o grande e maravilhoso
Schubert, que não chegou a ouvir seus últimos quintetos.

Meu Deus, onde você está? Se está neles, tão triste você deve ser também, tão melancólico!

Estou vendo você, Jorge, sentado ao piano em um banco, tocando a quatro mãos com Matilde
aquelas comoventes obras que nos ajudam a suportar a condição humana.

Desde muito pequeno você teve um espantoso dom para a música. Martinez Estrada sugeriu-
nos que o mandássemos estudar com uma das discípulas de Scaramuzza, e coube a ela
assombrar-se ao constatar que você tinha ouvido absoluto. Em um dos concertos de fim de
ano, D'Urbano, grande crítico musical, disse: "Há duas crianças que prometem ser grandes
concertistas; um é o filho de Sabato, a outra, uma menina chamada Martha Argerich". E, no
entanto, eu o arranquei da música quando Epstein me assegurou que você iria muito longe
como intérprete, mas que não seria um compositor. Fiz isso por considerar que seria um
destino cruel viver subindo e descendo de aviões, em inóspitos quartos de hotel, sem lar, sem
família, sem essas pequenas coisas cotidianas, talvez modestas, mas que nos ajudam a viver.
Uma coisa que você nunca me recriminou, apesar de sua paixão autêntica pela música, à qual
voltava todas as tardes, exausto pelo trabalho, como quem volta a um amor secreto e
verdadeiro.

Estou rendendo homenagem a você, Jorge, a sua maneira de ser, a sua humildade por vezes
irritante. Porque, com seu gênio, você nunca se importou em que outros usassem suas
pesquisas e suas idéias. Você deve ter orgulho de Lidia, sua mulher, que apesar da dor
continua lutando. E de suas filhas, que herdaram de você o talento e a honestidade. Dante e
Anne estão a seu lado.

Nunca sofri tristeza igual. Morreu um dos seres mais superiores que já conheci, generoso no
reconhecimento do gênio dos outros, daqueles que admirava. A começar por Schumann,:
Brahms, Beethoven, Malraux, Thomas Morus, Saint-Exupéry Jorge teve respeito pela criatura
humana, amor pelos pobres e desamparados, por quem trabalhou durante toda sua vida. Em
seu cargo de ministro, percorreu o país sem descanso, visitando as- escolas nos lugares mais
afastados.

Neste entardecer de 1998, continuo escutando a música que ele amava, aguardando com
infinita esperança o momento de nos' reencontrarmos nesse outro mundo, nesse mundo que
talvez, tal vez exista.

Saí para caminhar pelas ruas de Buenos Aires e, guiado por um obscuro presságio, cheguei às
velhas trilhas do parque Lezama. Acossado pelas recordações, parei diante da estátua de
Ceres, onde, quarenta anos atrás, misteriosamente, Martin encontrou-se com Alejandra.
Quando perdemos o sentido que norteou nossa vida, voltamos aos lugares em que
formulamos angustiosas indagações acerca da existência.

E, assim, em muitas ocasiões fui até essa praça e sentei em seus bancos, como ontem. E fiquei
durante oito horas observando esses desamparados tão numerosos em Buenos Aires, como
em todas as grandes cidades do mundo. Esses náufragos que, no meio de um oceano
tempestuoso, lançam sua garrafa ao mar. Até que um dia alguém recolhe esses fragmentos
ilegíveis, sem saber a quem pertencem, se falam do amor ou da calamidade. Mas na tarde de
ontem a depressão me sufocou, e Elvira teve de me levar, quase que empurrar, para que eu
pudesse caminhar, tamanha a minha angústia.

Hoje quero contar quem foi Elvira González Fraga em minha vida. Faço isto em sinal de
gratidão por tudo o que recebi dela.

Durante mais de dezoito anos, ela me auxiliou em minhas tarefas com grande talento e
extrema sensibilidade. Sempre espero que por fim publique o que tem escrito.
Com emoção, penso no amor que dedicou ao cuidado das traduções de minha obra, às
exposições de meus quadros, aos seminários e congressos, preterindo por mim tantas
possibilidades. Também acompanhou Matilde, e foi ela que organizou suas poesias e seus
escritos, e levou-os àquela tipografia artesanal no sul da cidade.

Desde que Matilde adoeceu, ela foi para mim a pessoa em quem descarreguei meu desalento
e minha angústia. Nestes tempos de dor, sem o apoio e a fé de Elvirita, eu teria morrido. E
agora, quando já não sei se estarei em condições de viajar, vem-me à memória uma manhã
em que a acompanhei, em Paris, a St. Julien Le Pauvre, a pequena e bela igreja onde
assistimos ao rito ortodoxo. Foi um momento transcendente.

Durante meses, depois, fui com ela às missas que celebrava Hugo Mujica, esse homem de
tanta fé quanto talento, e foi então que comunguei pela primeira vez. Elvirita é das pessoas
mais queridas, na vida.

Na praça, em frente à estação, passei algum tempo olhando um menino. E mais uma vez
admirei-me com o vagar do tempo na infância, que passa como se estivesse quieto. É um
infinito que se estende entre a festa de Reis que passou e a que virá, e os aniversários das
crianças se sucedem depois de tantos fatos, ou sonhos, que o próximo parece-lhes remoto
como a velhice.

Esse remanso faz da infância o período mais fértil e mais vulnerável, as crianças compartilham
a serenidade das árvores e o germinar da terra. Vivem em um tempo que não se acaba:
quanto falta para o Natal?, quanto falta para o meu aniversário? Para eles, o passado não
existe e o futuro é invisível. E, então, cada dia é eterno. Muitas vezes me detive, sozinho em
meu estúdio ou com amigos, a meditar sobre esse tema, sobre a diferença entre o tempo
existencial e o tempo cronológico: este é igual para todos; aquele, o mais pessoal de cada
homem.

Assim como vagarosas são as horas da infância, à medida que envelhecemos, as horas
encolhem, como um astro que girasse em órbitas cada vez menores, e a maior velocidade, de
tal maneira que nem chegamos a desfrutar dos presentes de aniversário quando já chega,
emboscado, um novo natalício.

Com os anos, o passado vai aumentando de peso, e a gravidade da existência parece ceder
para esse lado. Quando já abandonamos a energia dos trabalhos, o ardor da paixão, a ilusão de
outros projetos, com freqüência ficamos habitando o presente, distraidamente, como um jogo
ao qual não prestássemos atenção, porque nosso eu mais profundo ancorou-se àqueles
momentos em que a vida resplandecia.

Mas quantas vezes eu senti a vida renovada como a de uma águia! Quantas vezes a criação
entregou-me um fulgor de eternidade!

Voltei a ler santo Agostinho, e recordei proximidades e diferenças. Ele propõe, creio que pela
primeira vez na história da filosofia do Ocidente, essa idéia existencial do tempo que tanto me
entusiasmou; por outro lado, na época, eu nem me detive em sua avaliação da eternidade.

Na eternidade nada passa, tudo é presente, o passado vem empurrado por um futuro, e o
futuro vem atrás de um passado. Quem prenderá o coração do homem para que pare e veja
como, estando imóvel, a eternidade governa os tempos futuros e passados, sem ser nem
futuro nem passado?

Antes, naquela época, uma ansiedade criadora lançava-me sempre além, o ser e o tempo
pareciam-me inseparáveis, e eu avançava para o futuro como rumo a meu destino. Depois o
tempo foi se acelerando, e eu senti que devia resignar-me a abandonar tantos projetos.

Quando Jorge Federico morreu, a concepção que eu então tinha do tempo perdeu sua
validade. Já não foi vertiginoso seu passar nem opressivo seu passado, tudo ficou suspenso em
um vazio dilacerante.

Em minha impossibilidade de reviver Jorge, busquei nas religiões, na parapsicologia, nas


empulhações esotéricas, mas não buscava a Deus como uma afirmação ou negação, e sim
como uma pessoa que me salvasse, que me levasse pela mão como a uma criança que sofre.
O que antes eu lera com juízo crítico, agora o absorvia como um sedento.

Voltei a Jaspers. Logo nas primeiras páginas, dei com uma citação de Epicteto: "A origem da
filosofia está na constatação da própria fragilidade e impotência".

Quantas vezes, mergulhado em negras depressões, na mais desesperada angústia, o ato


criador foi minha salvação e meu baluarte! Acreditava então em Pavese, quando disse que ao
sofrer aprendemos uma alquimia que transfigura o barro em ouro, a desgraça em privilégio.
Mas a ausência de Jorge é irreparável. Soube que nenhuma obra nascida de minhas mãos
poderia aliviar-me, e me pareceu até mesquinho tentar distrair-me, ou mesmo pintar ou
escrever alguma coisa.

Tremendo, recordei um desses graves presságios que tive na vida. Vários anos antes de sua
morte, eu me propusera a escrever uma história sobre um homem velho, um artesão de
aldeia, um desses homens que são puro coração e acreditam na vida. Teria como único
parente uma neta que era sua adoração e a quem contava belas lendas. Minha intenção era
deixá-lo em uma situaçãolimite: se ele perdesse sua menina, dada sua grande bondade,
continuaria a acreditar na vida? Eu não sabia qual seria a reação desse avô, esperava que a
intuição me guiasse. Mas estava tão absorto na pintura que não cheguei a escrevê-la.

Agora sinto em plenitude o limite da vida, e a dor deteve o tempo em um ardor eterno.

Sei que Jaspers diz que "há nas situações-limite um impulso fundamental que move a
encontrar no fracasso o caminho que leva ao ser", e também "que a forma como o homem
experimenta seu fracasso é o que determina como ele acabará".

Não sei. O que posso dizer é que o tempo de minha vida se rompeu, que depois da morte de
Jorge não sou mais o mesmo, transformei-me em um ser carente ao extremo, que busca sem
cessar um indício que mostre essa eternidade onde recuperar seu abraço.

Em julho apresentamos o Romance de la muerte de Juan Lavalle, no teatro Cervantes, com a


desinteressada participação de Mercedes Sosa. Foi para nós uma homenagem que nos
permitiu reviver a emoção de trinta anos atrás, quando, pela primeira vez, ela emprestou sua
magnífica voz à desconsolada dor de Damasita Boedo.

Fazia um ano que estávamos levando essa cantata às velhas e pobres cidades do interior do
país, como as antigas Salta e Corrientes, a bela e heróica Jujuy. Elas foram rememorando-nos
os fatos da história e entregaram-nos a beleza da terra. Em Ushuaia fiquei transtornado pelas
enigmáticas montanhas do fim do mundo; também pelos lobos-marinhos e pelas baleias de
Puerto Madryn.
Sei que minha idéia de realizar o Romance não teria sido possível sem contar com um grande
compositor do talento de Eduardo Falú, e com sua voz excepcional.

Na cidade de Resistencia tive uma experiência que me parece decisiva. Foi no início do ano,
durante a grande enchente do Paraná. Então comoveu-me ver tanta pobreza e, ao mesmo
tempo, tanta humanidade. Como se fossem duas coisas inseparáveis, como se o essencial do
homem se revelasse em suas carências.

As águas avançavam como nas cheias dos grandes rios de montanha, destruindo casas,
arrasando plantações. A qualquer momento o Paraná poderia romper as barragens e sepultar
a cidade e os lugarejos vizinhos.

Muitas famílias haviam sido evacuadas, e, nessa atmosfera de perigo, em meio a chuvas
torrenciais, foi emocionante ver como se ajudavam uns aos outros, quanta humanidade vimos
aflorar no perigo!

Foi uma coisa tão reveladora para Eduardo e para mim, que decidimos colaborar em um
trabalho que transcorrerá em um povoado indígena da zona de El Impenetrable.

*2. Nome pelo qual se conhece o território semi-árido situado entre as províncias do Chaco e
de Salta, onde se concentram os índios wichis. (N. T.)

É admirável a religiosidade em que vivem os homens desses lugarejos do interior; em seu


modo de enfrentar a pobreza encontrei rastros de uma vida mais poética. São eles que
timidamente nos mostram valores que aqui sentimos já sem vigência, já sem tempo.

Passo diante da porta do quarto onde morreu Matilde, depois de uma dura e longa doença
que a manteve prostrada durante anos. Nesse tempo em que o mal a vencia, ela recebeu o
amoroso cuidado das enfermeiras e de Gladys, que agora sofre comigo essa dor. Cuidaram
dela como de uma criança indefesa. Tão superior é a mulher ao homem! Matilde foi atendida
por médicos notáveis, e a ajuda de nossa amiga Stella Soldi foi fundamental para enfrentar
essa enfermidade.

Eu costumava encostar-me ao lado de sua porta e, apoiando o ouvido, ficava assim,


escutando. A enfermeira falava-lhe como se ela entendesse, até que lhe respondia com uma
voz que mal se escutava, vinda de uma distância indecifrável. Numa ocasião, Matilde contou-
me que não havia dormido a noite inteira. Falou-me de um pássaro de cor negra-azulada,
grande, bonito, que se aproximou dela para dizer-lhe que estava chegando a hora de sua
morte. Fora um sonho muito nítido, que lhe dera uma espécie de paz.

Até que voltava a enfermeira e eu ia fechar-me em meu estúdio. Durante um tempo muito
longo permanecia sentado, como tantas vezes, fitando o jardim, sem saber o que fazer, sem
vontade de nada, pensando em coisas obscuras e indefinidas.

Quanta aflição! Como vai escurecendo esta casa outrora cheia dos gritos das crianças, de
festas infantis, das histórias que à noite Matilde inventava e contava para os netos. Tão longe,
meu Deus, aquelas tardes em que seus amigos vinham conversar com ela, quando recebia a
visita de Julia Constenla ou de Ana Maria Novik.

Com enorme desconsolo penso em tudo que teve de suportar por minha culpa. Lembro-me da
tarde em que a deixei em Paris, para ir com uma mulher que fora condessa nos anos
anteriores à Revolução Russa. Fora-me apresentada por um príncipe que então trabalhava
como motorista de táxi, com quem eu conversava sobre Tchekóv, Dostoiévski, Tolstói. Minha
agitação durante o período surrealista era tal que, por fim, abandonei Matilde no porto, com
o pequeno Jorge nos braços, cometendo um ato horrendo que nunca deixou de atormentar-
me. Por isso quando, na rua, no trem, alguém vem apertar-me a mão, ou algumas mulheres e
até velhas beatas me dizem: "Que Deus o conserve ainda por muitos anos", eu me pergunto
se mereço tanta consideração. Tantos foram meus descuidos para com aquela mulher que
deu a alma e a vida por mim, para evitar, justamente, que meus desalentos me levassem a
queimar tudo o que escrevia. Ela sempre foi minha primeira leitora, a mais severa, mas
também a mais carinhosa. Suas sugestões eram precisas. Matilde fazia uma leve marca a lápis
preto na margem da página, e sempre tinha razão.

Sua coragem nunca a deixou esmorecer, apoiando-me apesar das penúrias de toda espécie.
Mas também tive outros vínculos, profundos, com mulheres que cuidaram de mim com infinita
generosidade. Porque sempre precisei que me escorassem como a uma casa velha ou mal
construída.

Em seus anos finais, quando a vi abatida pela doença, é quando mais profundamente a amei. E
penso na valentia com que padeceu minha vida complicada, incerta, contraditória. Ao seu
lado passei momentos de perigo, de amor, de amargura, de pobreza, de desilusões políticas e
de tristíssimos distanciamentos, em que ela sempre esperava que o navio sacudido por
obscuras tempestades regressasse à calma, e eu voltasse a divisar o céu estrelado, esse
Cruzeiro do Sul que indicava novamente o rumo, o mesmo que tantas vezes, quando éramos
moços, contemplamos sentados em algum banco de praça. E muitos, muitíssimos anos antes,
o supremo mistério, recordo-a sussurrando para mim aqueles versos de Manrique:

como se passa a vida como se achega a morte tão calando...

Mario rodou seus primeiros e poéticos filmes, onde veio morar com Elena e onde nasceram
nossos netos Luciana, Mercedes e Guido. Onde vivemos a pobreza, mas também
acontecimentos fundamentais de nossa vida.

Separei os quadros que quero que fiquem como patrimônio da casa, e minhas primeiras
edições, junto com os livros de Matilde, suas poesias e seus contos inéditos. Quero que tudo
na casa fique tal qual está, com suas quebradelas e suas paredes meio descascadas. E
também o velho samovar da família russa de Matilde e a coleção Sur, que abrigou meus
primeiros passos na literatura.

Esta casa onde nasceu minha obra e onde morreu Matilde, com a velha araucária, a amoreira
e estes pinheiros centenários.

Hoje à tarde, enquanto eu brincava com Yasmín, a filhinha de Erika, chegou Luciana com seu
bebê de três meses, meu bisneto Ignacio, e me lembrei de quando Juan Sebastian era um
pinguinho de gente e ela tomava conta dele, sempre tão mãezinha.

Depois Mario veio me buscar e me levou para ouvir o coral que ele formou. Tem um grande
sentido musical e é, sem dúvida, um criador.

Nos últimos tempos voltei a me entusiasmar com a idéia de abrir este lugar onde vivemos
para as pessoas que têm me demonstrado sua devoção e seu amor, para aqueles que me
leram e estimularam. Sinto que, de certo modo, pertence a eles; e consola-me pensar que,
quando eu não estiver mais aqui, esta casa, sob os cuidados de Gladys, manterá suas portas
abertas. Ja pedi a Graciela Molinelli que faça o possível para cumprir meu desejo, e espero
que a cuidem, entre todos, as duas famílias e os grandes amigos que sempre nos
acompanharam.
Esta é a casa que Matilde e eu viemos habitar há quase sessenta anos, onde transcorreu a
infância dos nossos filhos, onde Recebo uma grande quantidade de cartas de rapazes que se
sentem à beira do abismo, vindas não só de nosso país, mas do mundo inteiro. Como a
daquele adolescente de dezessete anos que lera meus romances e me escreveu de uma
cidade do interior da França. Falava-me de Rimbaud em uma carta escrita à mão, com
tumultuoso desespero. Aterrou-me o pressentimento de que poderia chegar ao suicídio, pois
esse drama é universal. Os garotos me falam de suas tristezas, da vontade de morrer, contam-
me, também, como se aferram a Martin e a Hortensia Paz, porque os ajudam a resistir a esta
vida atroz e cruel.

Sempre me preocuparam esses jovens cujos olhos são destinados à beleza, mas também ao
infortúnio, pois existe ser mais desventurado que um sedento caçador de absolutos?

Em minha juventude, em várias ocasiões tive a tentação do suicídio, mas por fim me salvei ao
compreender o sofrimento de todos aqueles que se entristeceriam com a minha morte.
Sempre haverá alguém para quem nossa ausência será irreparável: uma mãe, um pai, um
irmão; qualquer ser, por mais distante que seja. Um amigo íntimo, até um cachorro basta.

Diego Curatella, que nos últimos anos vem trabalhando comigo, recorda-me o que diz Camus:
"Existe um único problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a
pena de ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia". E nos momentos em que
reflito sobre a vida, sobre este enigmático final, quando já não tenho forças para continuar
escrevendo, quando tudo me parece absurdo e inútil, penso que este livro, sobretudo este
livro, que ânimo poderia dar àqueles que desesperadamente me pedem ajuda? Diego lê para
mim importantes pensadores ou recorda-me versos que já esqueci; com sua formação
filosófica, convenceu-me de que devo terminar este livro pensando nos jovens que, em meio à
descrença, hoje mais do que nunca necessitam da palavra de seus escritores. Ele me lembrou
o que Bruno diz em um de meus romances: "Qualquer história das esperanças e dos
infortúnios de um único homem, de um simples rapaz anônimo, poderia abarcar a
humanidade inteira. Escrever sobre certos adolescentes, os seres que mais sofrem neste
mundo implacável, os mais merecedores de algo que ao mesmo tempo descreva seu drama e
o sentido de seus sofrimentos".

E então continuo este testemunho, ou epílogo, ou testamento espiritual, ou como queiram


chamá-lo, dedicado a esses rapazes e moças desnorteados, que se aproximam por vezes
timidamente ou, por vezes, como quem procura uma tábua no mar, depois de um naufrágio.
Pois acho que é apenas isto o que posso oferecerlhes: precários restos de madeira.
Detenho-me a observar a foto de um pequeno engraxate que, na cidade de Salta, veio
abraçar-me com grande emoção. Passo um bom tempo a observá-lo, como um desses antigos
ícones que nos falam de um Deus remoto mas oculto em algum lugar. No brilho de seus olhos
parece haver alguma coisa que o eleva acima deste mundo, onde tudo é horror e miséria. Esse
garotinho, em sua humildade de engraxate, mostra-me Deus. Um Deus em cuja fé nunca
consegui manter-me por inteiro, pois considero-me um espírito religioso, mas ao mesmo
tempo cheio de contradições, com instantes em que tendo a crer em atos demencialmente
milagrosos, e épocas em que volto a ser presa do pessimismo e da depressão. Talvez porque a
pessoa espera demais e sofre-freqüentes decepções; sobretudo nos momentos em que a vida
vai despojando-a daqueles que foram, como disse Cernuda: "uma pausa de amor entre a fuga
das coisas". Como manter a fé, como não duvidar, quando uma criança morre de fome ou, em
meio a grandes dores, de leucemia ou de meningite, ou quando um aposentado se enforca
porque está sozinho, velho, faminto e sem ninguém, como tem acontecido, onde está Deus?
Que resposta você deu a seu Filho, quando ele gritou aquela frase trágica? Não é lícito nesses
casos uma espécie de maniqueísmo? Assim tudo teria explicação, ao menos para os homens
comuns, não para os teólogos que escrevem milhares de páginas para justificar sua ausência.
Como diz Dostoiévski, Deus e o Demônio disputam a alma do homem, e o campo de batalha é
o coração desse desventurado. E se o combate for infinito? E se Deus não for poderoso o
bastante para vencer seu Adversário e sim, como dizem muitos, o Demônio já venceu e o
mantém acorrentado ou, o que seria mais perverso, ele domina o mundo e faz os ingênuos
acreditarem que é Deus para desprestigiá-lo - que horror! -, que sentido teria então a vida?

Muitos já questionaram a existência desse Deus bondoso, que, apesar disso, permite o
sofrimento de seres absolutamente inocentes. uma santa como Teresa de Lisieux teve dúvidas
até momentos antes de morrer; e, em pleno tormento, as irmãs ouviram-na dizer: "Até a alma
chega-me a blasfêmia". Von Balthasar diz que, enquanto houver uma pessoa sofrendo na
terra, a mera idéia do bem-estar celestial lhe causará uma irritação semelhante à de Ivan
Karamasov. Contudo, depois ele morre na fé mais inocente, absoluta, tal como Dostoiévski,
Kierkegaard e o endemoninhado Rimbaud, que em seu leito de morte suplica à irmã que lhe
administrem os sacramentos.

Segundo Simone Weil, essa espécie de mística blasfema, "o sofrimento é a superioridade do
homem sobre Deus. Foi necessária a Encarnação para que essa superioridade não fosse
escandalosa". E então, quando abandono esses raciocínios que sempre acabam por me
confundir, reconforta-me a imagem daquele Cristo que também sofreu a ausência do Pai. E
assim como Antonio Machado disse ter buscado a Deus em meio à névoa, em minha própria
busca encontrei, em algumas passagens das Confissões de santo Agostinho, uma porta
entreaberta, dando-nos o reflexo de uma luz. E, ao contemplar aquela escultura de Maria
Madalena, de Donatello, tão trágica e expressionista, eu me pergunto se é possível chegar à fé
sem esses atrozes e, aparentemente, incompreensíveis sofrimentos.
Não foi uma grande dor que fez nascer o Oscar Wilde que preferimos? Naquela comovente
carta final, ele recorda que, quando era levado da cadeia para os tribunais, no meio da
multidão, enquanto avançava algemado à frente de sua escolta, ao erguer a cabeça viu um
amigo saudá-lo tirando o chapéu. E diante da grave solenidade daquele gesto, a multidão
vociferante foi reduzida ao silêncio. Em sua carta escreve: "Onde há dor há um solo sagrado".
Essa experiência afastou-o para sempre de suas antigas extravagâncias, e nunca voltou a
freqüentar os salões de festa. A maior nobreza dos homens é a de erguer sua obra em meio à
devastação, sustentando-a incansavelmente, a meio caminho entre a agonia e a beleza.

EPÍLOGO

PACTO ENTRE DERROTADOS

Fracassamos sobre os bancos de areia do racionalismo, demos um passo para trás e voltemos
a tocar a rocha abrupta do mistério.

URS VON BALTHASAR

Falo com você e, através de você, com todos os garotos que me escrevem ou me param pela
rua, também com os que me olham de outras mesas de um café, que querem falar comigo e
não se atrevem.

Não quero morrer sem lhes dizer estas palavras. Tenho fé em vocês. Escrevi-lhes textos muito
duros, durante um longo tempo não sabia se voltaria a lhes falar do que esta acontecendo no
mundo. Do perigo que corremos todos os homens, ricos e pobres.

Isto é o que eles não sabem, os homens do poder. Não sabem que seus filhos também estão
nessa pobre situação.
Não podemos mergulhar na depressão, porque, de certo modo, é um luxo a que não podem
dar-se os pais das crianças que morrem de fome. E não é possível que nos tranquemos em
casa cercados de cada vez mais dispositivos de segurança.

Temos de nos abrir ao mundo. Não achar que o desastre está fora, mas que arde como uma
fogueira na própria sala de nossa casa. É a vida e nossa terra que estão em perigo.

Transcrevo-lhes uns versos de Hálderlin:

O fogo mesmo dos deuses dia e noite nos impele a seguir adiante.

Vem! Olhemos os espaços abertos, busquemos o que nos pertence, por mais longe que esteja.

Sim, jovens, deve-se encarar a vida do mundo como uma tarefa própria e sair a defendê-la. É
nossa missão.

Não se deve pensar que os governos vão cuidar disso. Os governos esqueceram, quase
poderíamos dizer que no mundo inteiro, que seu fim é promover o bem comum.

A solidariedade adquire então um lugar decisivo neste mundo acéfalo que exclui o diferente.
Quando nos responsabilizarmos pela dor do outro, nosso compromisso nos dará um sentido
que nos colocará acima da fatalidade da história.

Mas antes teremos de admitir que fracassamos. Do contrário, voltaremos a ser arrastados
pelos profetas da televisão, pelos que buscam a salvação na panacéia do
hiperdesenvolvimento. O consumo não é um substituto do paraíso.

A situação é muito grave e afeta a todos nós. Mas, mesmo assim, há quem se esforce em não
trair os nobres valores. Milhões de seres no mundo sobrevivem heroicamente na miséria. Eles
são os mártires.
Podemos vê-los descendo dos trens, dos ônibus, após desumanas jornadas de trabalho, ou
desolados quando não o têm. Podemos vê-los nas mulheres gastas aos trinta anos pelos filhos
e pela premência de trabalhar em troca de pagas miseráveis. Nos meninos de rua, nos velhos
que dormem nas galerias do metrô. Em todos os homens abandonados ao sofrimento e a sua
indigência.

Uma vez perguntaram a Pasolini por que ele tinha tanto interesse pela vida dos
marginalizados, como o protagonista de Mama Roma, e ele respondeu que o fazia porque
neles a vida se conserva sagrada em sua miséria.

Num arquivo em que coleciono papéis, recortes que me ajudam a viver, tenho uma fotografia
do terremoto que, anos atrás, destruiu Concepción, no Chile: uma pobre índia, que reergueu
precariamente seu barraco feito de chapas de zinco e papelão, está varrendo com uma velha
vassoura um trecho de terra batida diante de seu casebre. E ainda nos fazemos perguntas
teológicas! Quanto mais eloqüente é a imagem dessa pobre indiazinha que continua varrendo
sua casa e cuidando de seus filhos! Seres desse tipo revelam-nos o Absoluto de que tantas
vezes duvidamos, que se cumpre neles, pois, como disse Hólderlin, onde campa o perigo
cresce o que salva.

Ao longo da história, sempre que estivemos a ponto de sucumbir, salvamo-nos graças à


porção mais desvalida da humanidade. Tenhamos bem presentes, portanto, as palavras de
Maria Zambrano: "Não se passa do possível ao real, mas do impossível ao verdadeiro". Muitas
utopias foram futuras realidades.

São muitos os motivos, você dirá, poderia dizer, para descrer de tudo.

Os jovens como você, herdeiros de um abismo, vagam exilados numa terra que não lhes dá
abrigo. Nesse desarrimo existencial e metafísico, sofrem órfãos de céu e de teto. Compreendo
sua aflição, o desconcerto de pertencer a um tempo em que ruíram os muros, mas em que
ainda não se avistam novos horizontes. Falsos luminares pretendem cativar sua vontade
falando nas telas. Você deve achar que não existe nenhuma possibilidade de mudança quando
o valor da existência é menor do que o preço de um anúncio publicitário. O ceticismo agravou-
se por causa da crescente resignação com que assumimos a magnitude do desastre. A
banalidade com que se degradam os sentimentos mais nobres, degenerando o homem em
uma caricatura patética, em um ser irreconhecível em sua humanidade.
Eu também tenho muitas dúvidas, e por vezes chego a pensar se são válidos os argumentos
com que tentei encontrar um sentido para a existência. Reconforta-me saber que Kierkegaard
dizia que ter fé é a coragem de sustentar a dúvida. Eu oscilo entre o desespero e a esperança,
que é a que sempre prevalece, porque, senão, a humanidade teria desaparecido quase desde
o começo, pois são tantos os motivos para duvidar de tudo. Mas com a persistência desse
sentimento tão profundo quanto disparatado, desprovido de toda lógica - pobre do homem
que conta apenas com a razão! -, salvamo-nos, uma vez após outra, sobretudo graças às
mulheres; pois elas não apenas dão a vida, mas também são elas que preservam esta
enigmática espécie. Não por acaso, numa das culturas de sabedoria milenar, acreditava-se
que a alma de uma mulher que morria no parto era levada ao mesmo céu que a do guerreiro
tombado'em combate.

Por isso falo com você, no desejo não apenas de provocar, mas também de convencer.

Muitos questionam minha fé nos jovens, por considerá-los destrutivos ou apáticos. É natural
que em meio à catástrofe alguns procurem a fuga no consumo vertiginoso de drogas. Um
problema que os imbecis pretendem entender como caso de polícia, quando é resultado da
profunda crise espiritual do nosso tempo.

Eu reafirmo minha confiança em vocês. São muitos os que em meio à tempestade continuam
a lutar, oferecendo seu tempo e até a própria vida pelo outro. Nas ruas, nas prisões, nas
favelas, nos hospitais. Mostrando-nos que, nestes tempos de falso triunfalismo, a verdadeira
resistência é a que batalha por valores que se consideram perdidos. Durante minha viagem à
Albânia, conheci um rapaz chamado Walter, que tinha deixado sua casa na província de
Tucumán para ir tratar de doentes junto à congregação de madre Teresa de Calcutá. Com
quanta emoção o recordo. Sempre que vejo as terríveis notícias que nos chegam daquele
querido país, eu me pergunto onde ele estará, se acaso lerá estas palavras de
reconhecimento a seu nobre heroísmo.

São milhões os que estão resistindo, você mesmo pode constatá-lo ao ver esses homens e
mulheres que se levantam a altas horas da madrugada e saem para procurar um emprego,
trabalhando no que podem para alimentar seus filhos e sustentar honestamente a família, por
modesta que seja. Você já parou para pensar quantos em todo o país partilham esta fome por
dignidade e justiça?

Milhares de pessoas, apesar das derrotas e dos fracassos, continuam a se manifestar, tomando
as praças, decididos a libertar a verdade de seu longo confinamento. Em toda a parte há sinais
de que as pessoas começam a gritar: "Basta!". O mesmo acontece com o movimento
zapatista no México, e com todos os movimentos que nos alertam do perigo que corre o
futuro do planeta.

Temos de lembrar que existiu uma pessoa que derrubou o império mais poderoso do mundo
com uma cabra e uma roca simbólica. Uma saída possível é promover uma insurreição à
maneira de Gandhi, com jovens como você. Uma rebelião de braços caídos que derrube esse
modo de vida em que os bancos tomaram o lugar dos templos.

Essa rebelião de modo algum justifica que você fique numa torre, indiferente ao que acontece
ao seu redor. Gandhi advertiu que é uma mentira pretender ser não-violento e permanecer
passivo diante das injustiças sociais. Ao contrário, acho que é a partir de uma atitude
anárquico-cristã que teremos de encaminhar a vida.

Já não restam loucos, morreu aquele manchego, aquele estapafúrdio fantasma no deserto.
Todo o mundo está são, terrível, monstruosamente são.

Essa loucura, cuja ausência León Felipe lamenta, é um ato semelhante ao do estóico Guevara,
quando abandonou todas as comodidades e partiu para uma luta insana na selva boliviana,
doente de asma, já sem remédios para seu mal; para terminar assassinado por animais cruéis e
repugnantes. Que importa se ele estava enganado quanto ao materialismo dialético? Até isso
prova sua inocência, sua autenticidade. Lutava por aquele Homem Novo que agora urge-nos
resgatar dos escombros da história. Em sua carta final, diz aos pais: "Queridos velhos, sinto de
novo sob meus calcanhares as costelas de Rocinante, volto à estrada empunhando minha
lança"; e então sai em busca daquilo que Rilke chamaria sua morte própria. Essa é sua
grandeza, que alguns considerarão sua infantilidade, sua tolice; mas esses gestos de heroísmo
demencial são os que nos resgatam de tanta iniqüidade, pois não se pode viver sem heróis,
santos nem mártires. Como esses estudantes que na praça da Paz Celestial, em um horrível
massacre, morreram impondo-se ao implacável aço dos tanques. São eles os que nos indicam
os caminhos pelos quais a vida pode renascer.

Vivemos um tempo em que o futuro parece dilapidado. Mas se o perigo tornou-se nosso
destino comum, temos de responder perante aqueles que reclamam nosso cuidado.

Agora há pouco, vi pela televisão uma mulher que sorria com imenso e modesto amor.
Comoveu-me a ternura dessa mãe de Corrientes ou do Paraguai, que chorava de felicidade
junto a seus trigêmeos que acabavam de nascer em um miserável hospital, sem se abater ao
pensar que a eles, assim como a seus outros filhos, espera o desamparo de uma favela,
inundada nesse momento pelas águas do Paraná. Não será Deus que se manifesta nessas
mães? Por que haveria de se manifestar somente em poetas como são João da Cruz ou nas
sagradas pinturas de Rouault?

Se toda resistência parece absurda quando se pressente o fim, por que não parar para
meditar sobre esses santos? Por acaso eles não são uma amostra de que existe alguma coisa
do outro lado do abismo?

Não sabemos se, no fim do caminho, a vida aguarda como um mendigo que nos estenderá a
mão.

Essa fé demencial, ou milagrosa, deve-se justamente ao fato de termos chegado ao fundo do


poço. É necessário preservar os lugares, que existem até nas periferias das grandes cidades,
onde ainda se conservam os atributos do homem concreto de carne e osso.

Quando o mundo hiperdesenvolvido vier abaixo, com todos os seus siderantropos e sua
tecnologia, nas terras do exílio há de se resgatar o homem em sua unidade perdida. E quem
sabe, quando acordarmos deste sinistro pesadelo, quando um vazio de humanidade nos doer
no peito, então lembraremos que um dia fomos aquilo que disse René Char: "Seres do salto,
não do festim, seu epílogo".

Você me fala de sua agitação, de uma espécie de tremor que o sacudiu e ainda perdura,
depois de nossa conversa naquele café, ao me ouvir dizer estas palavras.

Você tem de me perdoar; apesar dos anos, não posso evitar ser descomedido naquilo que
considero fundamental.

Por outro lado, há tremores tão importantes! Porque precedem esse tipo de decisão que abala
os alicerces da nossa existência e, ainda que incompreendidos, terminam repercutindo no
destino dos demais. Os grandes criadores realizam suas obras sob tensões similares. Somente
o que se faz com paixão merece nosso afã, o resto não vale a pena.

Eu também quis fugir do mundo. Vocês me impediram que o fizesse, com suas cartas, com
suas palavras pelas ruas, com seu desamparo.
Proponho-lhes então, com a gravidade das palavras finais da vida, que nos abracemos em um
compromisso: saiamos para os espaços abertos, arrisquemo-nos uns pelos outros, esperemos,
ao lado de quem estende os braços, que uma nova onda da história nos erga. Talvez isso já
esteja acontecendo, de modo silencioso e subterrâneo, como os brotos que pulsam sob a
terra do inverno.

Uma coisa pela qual ainda vale a pena sofrer e morrer, uma comunhão entre homens, aquele
pacto entre derrotados. Uma só torre, sim, mas refulgente e indestrutível.

Em tempos sombrios ajudam-nos aqueles que souberam andar à noite. Leiam as cartas que
Miguel Hernández mandou da prisão onde por fim encontrou a morte:

Voltaremos a brindar por tudo o que se perde e se encontra: a liberdade, as correntes, a


alegria e esse carinho oculto que nos arrasta a procurar-nos por toda a terra.

Pensem sempre na nobreza desses homens que redimem a humanidade. Com sua morte
entregam-nos o valor supremo da vida, mostrando-nos que os obstáculos não interrompem a
história, lembram-nos de que o homem cabe apenas na utopia.

Só quem for capaz de encarnar a utopia estará qualificado para o combate decisivo, o de
recuperar o quanto de humanidade houvermos perdido.

ESTA OBRA FOI COMPOSTA PELA HELVÉTICA EDITORIAL EM ELECTRA E IMPRESSA PELA
GEOGRAFICA EM OFF-SET SOBRE PAPEL PÓLEN SOFT DA COMPANHIA SUZANO PARA A
EDITORA SCHWARCZ EM SETEMBRO DE 2000

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