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PIBIC/CNPq/UFRPE
PIC/UFRPE
1. IDENTIFICAÇÃO
ALUNO (A): Débora Almeida de Morais
CURSO: Licenciatura Plena em Letras Português/Espanhol
PROGRAMA: PIBIC
ORIENTADOR (A): Brenda Carlos de Andrade
DEPARTAMENTO/ÁREA: Departamento de Letras e Ciências
Humanas/Letras/Literaturas Estrangeiras Modernas
3. RESUMO DO RELATÓRIO
Os modelos conhecidos de nativos (incas) no Peru Colonial estão estreitamente
ligados, no contexto hispano-americano, a uma identidade predominantemente
masculina, branca e europeia. A visão do vencido é (quase) sempre deixada de lado,
permitindo que se atribuam rótulos oriundos de um pensamento estritamente ocidental,
que mascaram as muitas identidades marginais de nativos incas, identificáveis quando
se volta o olhar para as relações e negociações culturais. Considerando as imagens e
modelos do povo incaico construídas e plasmadas através de perspectivas nativas
identificáveis nas obras Comentarios Reales de los Incas, de Inca Garcilaso de la Vega,
e Nueva Corónica y Buen Gobierno, de Guamán Poma de Ayala, o propósito deste
plano de trabalho/desta pesquisa (cujos resultados estão expostos neste relatório), foi o
de desconstruir, a partir da leitura das obras supracitadas e dos textos teóricos auxiliares
indicados pela orientadora, esse modelo comum e mapear modelos possíveis,
desvinculando-se do padrão já conhecido e observando novas possibilidades a partir de
novos discursos. Para que isso ocorresse foram realizadas não somente a leitura do
corpus, mas de teóricos que se dividem em duas linhas, a que elucida os problemas de
conceito, imagens, identidades e produções culturais na América Latina, como
O’Gorman (2006) e Gruzinski (2001), e outra, que contribui para a reflexão crítica com
relação à questão de uma cultura inca, como Flores Galindo (2008), Manuel Burga
(2005) e Alfredo Cordiviola (2005). Com isso, a partir do trabalho de análise e
comparação realizado no decorrer de um ano de pesquisa, identifiquei dez modelos
possíveis, entre nativos, mestiços e criollo, que serão explicitados mais detalhadamente
neste relatório.
4. INTRODUÇÃO:
Quando se volta o olhar para o Peru Colonial, mais frequentemente nos
deparamos com um estereotipo de indígena criado a partir do ponto de vista do europeu,
ou seja, uma visão profundamente carregada de desvios em razão das barreiras culturais,
linguísticas, religiosas. Estes modelos de nativos (incas) estão estreitamente ligados ao
contexto hispano-americano, deixando de lado um ponto de vista primordial, que é a
visão dos vencidos, ou uma visão descentralizada do paradigma europeu dominante, que
surge quando miramos as relações e negociações culturais existentes durante o período
de colonização espanhola no Peru.
Considerando as imagens e modelos do povo incaico construídas e plasmadas
através de perspectivas nativas identificáveis nas obras Comentarios Reales de los
Incas, de Inca Garcilaso de la Vega, e Nueva Corónica y Buen Gobierno, de Guamán
Poma de Ayala, corpus da pesquisa, este trabalho construiu um mapa de modelos
possíveis, desvinculando-se do padrão já conhecido e observando novas possibilidades a
partir de novos discursos, que trazem em si a perspectiva religiosa, cultural, literária,
histórica, de organização social, desvinculadas do discurso homogêneo do “puro
europeu”.
Exatamente como coloca Alberto Flores Galindo em seu Buscando un Inca:
Identidad y utopía en los Andes, “en la memória, previamente, se reconstruyó el pasado
andino y se lo transformó para convertirlo en una alternativa al presente” (2008, p. 46),
este relatório foi elaborado, quer dizer, a partir das memórias de Guamán Poma de
Ayala, cujo objetivo, segundo Alfredo Cordiviola, não era o de “cantar a grandeza
passada dos incas” mas a de “explicar (e corrigir) o presente” (2005, p. 128) e Inca
Garcilaso de la Vega, para o qual “equilíbrio e harmonização do presente tinham sido
quase obsessões” que o fizeram observar “os ciclos da história andina com o neo-
platônico intuito de conjugar os opostos, mesmo que sejam inconciliáveis. Inspiração
permanente [...] para o movimento neo-inca” (CORDIVIOLA, 2010, p. 172).
Esses indivíduos que se encontravam em locais diferentes, mas semelhantes
(re)construíram um passado alternativo, uma visão dos vencidos que, como diz
Cordiviola (2005; 2010), mesmo carregada de influencia europeia – pois, durante a
leitura do corpus, se mostrou impossível a identificação de uma “pureza inca” –, ainda é
uma visão alternativa, que influencia diretamente no tipo de olhar que temos, hoje, da
história dos colonizados e colonizadores, do “descobrimento”, ou melhor, invenção da
América, como pontua O’Gorman ao dizer que “ese concepto [...] es el de una América
inventada, que no ya el de la vieja noción de una América descubierta” (2006, p. 54) e
no tipo de indivíduos que foram esses colonizados, mas também de alguma forma
colonizadores, quando percebemos que ambos os povos se mestiçaram, como pontua
Gonzalo Aguirre Beltrán ao dizer que
Dessa maneira, foi possível criar um mapa que em alguma medida sistematiza
esse passado alternativo reconstruído por Inca Garcilaso e Guamán Poma. No decorrer
do presente relatório, esse mapa será esmiuçado, apresentando mais detalhadamente
cada um dos modelos que o constituem.
5. OBJETIVOS
5.1 Geral
Analisar e comparar as obras Comentarios Reales, de Inca Garcilaso de
la Vega, e Nueva Corónica y Buen Gobierno, de Guman Poma de Ayala,
considerando as imagens e modelos dos nativos (incas) representados,
construídos e plasmados por ambas as obras.
5.2 Específicos
5.2.1. Cumpridos/em Curso1:
• Identificar e classificar alguns modelos e visões específicos dos
nativos/incas durante o período colonial hispano-americano;
• Delimitar em ambas as obras as apropriações e mudanças desses
modelos e visões dos nativos/incas na forma como aparecem
representados pelos autores;
• Buscar no corpus traços que apontem para a conformação da imagem
positiva e possível do nativo como modelo passível de ser inserido no
novo contexto cultural instituído pela colonização;
1 Compreendendo o corpus desta pesquisa como muito rico; a análise, a interpretação e a comparação entre o material
dificilmente se esgotaria no curso mínimo de um ano. Dessa maneira, considero os objetivos ainda em curso, uma vez
que percebo possível um maior aprofundamento e detalhamento das discussões levantadas a partir do plano de trabalho
dessa pesquisa e de outras discussões que foram surgindo à medida que a pesquisa se desenvolveu.
• Comparar os elementos encontrados nos dois textos considerando
semelhanças e diferenças a partir dos contextos de produção e
divulgação/leitura;
• Produzir e divulgar trabalhos científicos relativos à pesquisa.
6. METODOLOGIA
A abordagem adotada para este plano de trabalho segue por duas linhas teóricas,
uma dedicada aos problemas de conceitos, imagens, identidades e produções culturais
na América Latina, cujas primeiras leituras foram realizadas (em associação ao
fichamento e ao resumo) contemplando teóricos como O’Gorman (2006) e Gruzinski
(2001). Essas leituras foram solicitadas nas primeiras reuniões de orientação e
discutidas posteriormente para que existisse uma melhor compreensão dos objetivos da
presente pesquisa. Com a leitura dos teóricos dessa primeira abordagem, percebi que
ainda que a cultura ocidental tenha prevalecido, o que se vê, mesmo hoje, é uma cultura
construída sobre base ocidental, mas que se sustentou com alguns alicerces nativos.
Dessa maneira, são muitos modelos de incas passíveis de observação e os rótulos não
devem ser estanques para localizá-los.
A segunda linha teórica adotada foi importante para se fazer uma reflexão crítica
com relação à questão de uma cultura inca. Dela fazem parte os autores Manuel Burga
(2005), Alfredo Cordiviola (2010; 2005), Alberto Flores Galindo (2008) e Fernando
Aínsa (1998). Essa perspectiva contribuiu demasiado no que diz respeito a enxergar os
incas de maneira “desvinculada” do padrão europeu, quero dizer, conseguir separar, a
partir da leitura do corpus, a presença espanhola da presença indígena, bem como
reconhecer a intersecção entre ambos os povos.
Sendo assim, a metodologia foi essencialmente de pesquisa documental e
bibliográfica, a partir do momento em que se leu o corpus (que é constituído
essencialmente por documentos de registro de um período histórico específico que vai
desde a formação do império inca até a colonização espanhola e assimilação de uma
cultura pela outra) para a apreensão, compreensão e análise dos mesmos sem atentar
para fontes secundárias, que só se fizeram presentes na segunda parte da pesquisa, pós-
leitura integral do corpus.
O tratamento bibliográfico contribuiu para que houvesse uma maior
compreensão da leitura e problematização da análise e da comparação, registradas pela
produção de fichamentos dos textos. O uso de fontes secundárias nesta pesquisa foi
primordial para que se compreendessem e refletissem melhor os modelos nativos e
mestiços identificados e expostos neste relatório.
7. RESULTADOS E DISCUSSÃO
As personagens ou, mais especificamente, os modelos possíveis de nativos e
mestiços no Peru Colonial – identificados, no caso dessa pesquisa, mais especificamente
em Comentarios Reales de los Incas, de Inca Garcilaso de la Vega, e Nueva corónica y
buen gobierno, de Guamán Poma de Ayala, – se constroem com base em discursos que
buscam inscrever, como aponta Alfredo Cordiviola a história inca na “história cristã
(entendida como história universal) [...] para desse modo obter o reconhecimento para si
e para a cultura que representa” (2005, p. 127). Dessa maneira, todos os modelos que
puderam ser identificados nessa investigação estão carregados da influência cristã, e não
só dela, mas também da própria origem de Inca Garcilaso e de Guamán Poma, que
determina o olhar e registro de cada um sobre esse mundo pós-colonial em que viveram
como mestiços. Como escreve Flores Galindo “la imagen del inca y del Tahuantinsuyo
depende de los grupos o clases que las elaboran” (2008, p. 26).
Se por um lado Inca Garcilaso era mestiço, filho de um capitão espanhol e de
uma princesa inca, a linhagem de Guamán Poma é incerta, podendo-se apenas especular
sobre seus antepassados, ainda que ele próprio busque, em sua Nueva corónica y buen
gobierno, apresentar aqueles que seriam sua família, invariavelmente indivíduos
socialmente destacados, com grande influência nos dois mundos, o europeu e o
indígena. Como ressalta Burga ao dizer que “conocemos de Guaman Poma, salvo
pequeñas excepciones, lo que él quiso que se supiera de sí mismo” (BURGA, 2005, p.
272). Nos trechos da Nueva corónica podemos identificar as seguintes referências: “La
visita general de los indios tributarios de este reino compuesto de don Felipe de Ayala,
príncipe, autor de esta dicha corónica” (2005, II, p. 349) e “excelentísimo señor don
Martín Guaman Malque de Ayala, segunda persona de Topa Inga Yupanqui, su suegro, y
su visorrey de este reino, padre del autor, que reside en la província de los Andamarcas
de la corona real” (2005, II, p. 599).
A necessidade, tanto de Inca Garcilaso quanto de Guamán Poma de autorizarem
a própria voz narrativa, faz com que seja necessário interpretar com cautela o que
dizem, pois havia intencionalidade e destino para ambas as obras (o povo espanhol, no
caso de Comentarios Reales, e o rei espanhol Felipe III no caso de Nueva Corónica),
fazendo-se necessária uma modalização discursiva para esse destinatário leitor.
Como diz Flores Galindo sobre Inca Garcilaso de la Vega,
Y esto baste para lo que por ahora se puede decir de los indios de
aquella edad primera y gentilidad antigua, remitiéndome, en lo que no
se ha dicho tan cumplidamente como ello fue, a lo que cada uno
quisiere imaginar y añadir a las cosas dichas, que, por mucho que
alargue su imaginación, no llegará a imaginar cuán grandes fueron las
torpezas de aquella gentilidad, en fin, como de gente que no tuvo otra
guía ni maestro sino al demonio. Y así unos fueron en su vida,
costumbres, dioses y sacrifios, barbarísimos fuera de todo
encarecimiento. Otros hubo simplicísimos en toda cosa, como
animales mansos y aún más simples (DE LA VEGA, 1985, p. 35).
Guamán Poma de Ayala, por outro lado, enxerga as exceções de Inca Garcilaso
como uma regra. Para ele, os índios pré-incaicos são descendentes diretos de Noé, e
estão sempre presentes da história cristã, desde antes de Cristo, até durante e depois
dele. Dessa maneira, Guamán cria um modelo de índio pré-incaico que seria algo como
o modelo ideal de cristão, e traz esse modelo durante toda a Nueva Corónica,
comparando-os aos incas e depois aos espanhóis. O enaltecimento do cristianismo me
parece mais importante que a origem do cristão, seja ele índio ou espanhol, e Guamán
parece acreditar que esses primeiros índios são mais puros, ausentes do processo de
corrupção ocidental ou da “religião pagã” dos incas.
Acreditando nisso, Guamán assume o papel de tentar convencer os leitores
cristãos da cristandade indígena, e para isso descreve-os, não como Inca Garcilaso, mas
enaltecendo-os para o povo cristão espanhol, como no trecho:
Mira Cristiano lector, mira esta gente [...] que fueron a más con su ley
y ordenanzas antiguas de conocimiento de Dios y creador, aunque no
les fueron enseñados tenían los diez mandamientos y buena obra de
misericórdia y limosna y caridad entre ellos [...] jamás dejaban la ley y
de hacer sus oraciones al Dios del cielo, Pachacamac, y tenían su rey
cada pueblo de estos indios de Purunruna, jamás mezclaban de cosas
de idolatrías y mentiras ni lo había en este tiempo sino todo llano y
bien criados. Mira Cristiano lector, aprended de esta gente bárbara,
que aquella sombra de conocer al Criador no fue poça, y así procura
de mezclar com la ley de Dios para su santo servicio (AYALA, 2005,
p. 52).
Guamán Poma divide os índios pré-incaicos em três idades, este período seria
um período anterior a Jesus Cristo, o que torna os preceitos do cristianismo de alguma
forma enraizados, fortalecendo a idéia de que esses indígenas descendiam de Noé e,
portanto, faziam parte da história bíblica, a história linear cristã. Para mostrar a
cristandade dos índios pré-incaicos, Guamán Poma compara os primeiros nativos com
os incas e com os espanhóis, que são como três níveis de fidelidade aos preceitos
religiosos, sendo, quanto mais distante dos primeiros nativos, mais infiéis, como
Guamán constantemente tenta mostrar os espanhóis, como no trecho: “no fueron tan
codiciosos como los españoles, que se dejan matar por medio real, e irán al infierno por
la plata más los siervos” (AYALA, 2005, p. 57).
Aquele tempo, que é como Guamán Poma se refere ao tempo dos índios pré-
incaicos, é recuperado no início da Nueva Corónica, sempre sendo, de alguma forma,
comparados ao tempo de agora, ou, no caso, o tempo dos espanhóis, o período colonial.
Guamán lembra-se de “cómo en aquel tiempo había mucha justicia, es por la causa que
había un solo Dios y rey y justicia, que no como ahora hay muchos señores y justicias, y
muchos daños y reyes” (2005, p. 57), porque, diz, “los reyes de aquel tiempo fueron
cristianos, temieron a Dios y a su justicia, nunca tomaban sudor de persona ni sus
trabajos de los pobres índios en todo este reino” (2005, p. 59), garantindo que os nativos
pré-incaicos eram fiéis ao cristianismo e, mais, eram cristãos, embora usassem outros
nomes para se referir a Deus e tudo o mais que o envolve.
O início da corrupção desses primeiros nativos, para Guamán Poma, surge a
partir de uma terceira identidade indígena, o do inca destituído de cristandade, ou seja,
que chega para corromper os primeiros nativos com suas crenças pagãs – idéia não
compartilhada por Inca Garcilaso de la Vega, que descreve uma quarta identidade
indígena, inversa a apresentada por Guamán, como mostrarei mais adiante. O
surgimento desse novo modelo indígena é explicado através de uma espécie de lenda,
que é apresentada tanto por Inca Garcilaso quanto por Guamán Poma, havendo
disparidades a respeito do bem ou do mal que isso trouxe para o modelo pré-incaico de
índio.
Para Guamán Poma de Ayala, os primeiros incas, Manco Cápac e Mama Ocllo,
eram filho e mãe, numa tentativa de deslegitimar ou, no mínimo, “criminalizar”, as
vistas dos preceitos cristãos, a relação dos dois – para Inca Garcilaso, no entanto,
Manco Cápac e Mama Ocllo foram irmãos. Guamán se refere ao primeiro imperador
inca como não tendo “padre conocido, por eso le dijeron hijo del sol” (2005, p. 64),
enquanto Mama Ocllo “esta dicha mujer dicen que fue gran fingidora, idólatra,
hechicera, la cual hablaba con demonios del infierno y hacía cerimonias y hechicarias, y
así [...] engañó a los dichos indios” (2005, p. 64), de tal maneira que os incas teriam
surgido a partir do pecado e da maldade, sendo a culpa maiormente atribuída a Mama
Ocllo, que “governaba más que su marido Mango Cápac Inga toda la ciudad del Cuzco”
(2005, p. 96).
Inca Garcilaso, por outro lado, recupera o relato de seu tio, para o qual o Inca e a
Coya2 foram “como te he dicho, hermanos, hijos del Sol y de la Luna, nuestros padres”
(p. 41) e que como ele mesmo pôde conjeturar
del origen de este príncipe Manco Inca, que sus vasallos, por sus
grandezas, llamaron Maco Cápac, es que debió ser algún indio de
buen entendimiento, prudencia y consejo, y que alcanzó bien la mucha
simplicidad de aquellas naciones y vio la necesidad que tenían de
doctrina y enseñanza para la vida natural (DE LA VEGA, 1985, p. 56)
Mesmo que Inca Garcilaso não concordasse com a lenda da origem dos incas,
dizendo que “con astucia y sagacidad, para ser estimado, fingió aquella fábula, diciendo
que él y su mujer eran hijos del Sol, que venían del cielo y que su padre los enviaba para
que doctrinasen y hiciesen bien a aquellas gentes” (1985, p. 56), ele considerava esses
incas de boa índole, bons para os índios pré-incaicos, e assim busca aproximar a
adoração do deus Sol da religião cristã.
Retornando a Guamán Poma, é possível reconstruir essa identidade do inca
como indivíduo que deturpou a ordem cristã estabelecida pelos primeiros nativos. Se a
identidade que se identifica em Inca Garcilaso exalta os feitos dos incas, descrevendo-os
como um povo pacífico, constantemente comparados com os romanos (movimento que
Guamán também faz, mas comparano os pré-incaicos aos romanos), a identidade que se
identifica em Guamán Poma é o exato oposto.
Sobre suas conquistas, Guamán conta que “dicen que mató cien mil chilenos”
(AYALA, 2005, p. 125), a respeito de uma das conquistas. Inca Garcilaso, por outro
lado, já conta histórias de conquistas pacíficas, em que havia mandado expresso “que
em ninguna manera llegasen a rompimiento de batalla con los indios que no quisiesen
recudirse por bien, sino que, a imitación de sus pasados, los atrajesen por caricias y
beneficios, mostrándose em todo padres piadosos antes que capitales belicosos” (DE LA
VEGA, 1985, p. 101). É, mais uma vez, o retrato de opostos.
Guamán Poma ainda registra em sua Nueva Corónica que os incas faziam
“grandes sacrificios al sol, mucho oro y mucha plata y vajillas, que entierran quinientos
niños inocentes y niñas, los entierran parados, vivos, con sus vajillas de oro y de plata”
(2005, p. 192), sacrifícios que Inca Garcilaso atribuía somente aos índios pré-incaicos.
Da mesma maneira, Guamán diz “cómo todos los Ingas desde su antigua
comenzaron a idolatrar, y fueron a más idolatras los Ingas, y salieron muchos hechiceros
2
Nome que recebe a esposa principal do imperador inca, para distingui-la das outras mulheres que fazem
parte da família imperial.
y pontífices, y obispos y sacerdotes, otros buenos y otros falsos” (2005, p. 199),
enquanto Inca Garcilaso afirma que eram os espanhóis que “aplican otros muchos
dioses a los Incas por no saber dividir los tiempos y las idolatrías de aquella primera
edad y las de la segunda. Y tambíen por no saber la propiedad del lenguaje para saber
pedir y recibir la relación de los indios” (1985, p. 67), porque “en decir que el Dios de
los cristianos y el Pachacámac era todo uno, dijo verdad, porque la intención de aquellos
indios fue dar este nombre al sumo Dios, que da vida y ser al universo, como lo
significa el mismo nombre” (1985, p. 63), afirmando a polaridade entre uma identidade
e a outra, e o comum detimento sobre as questões religiosas, que marca a obra de ambos
os autores.
Para além dessa identidade que foge dos preceitos cristãos e por isso é criticada
por Guamán Poma, existe uma outra que ele mesmo constrói, como que uma exceção,
que se assemelha muito a essa identidade de incas pacíficos e semelhantes aos cristãos.
Essa, que seria uma quinta identidade indígena, seria a de um inca que não segue os
preceitos do cristianismo, mas que traz em si a bondade cristã e contribue para a
evolução do povo indígena. Para Guamán, os primeitos nativos são os donos por direito
das terras colonizadas pelos espanhóis, não por serem os primeiros, mas por estarem
mais próximos do que ele considera a pureza cristã, dos dois modelos de inca que se
pode identificar a partir da leitura de sua obra, um se distancia e o outro se aproxima,
sobretudo quando comparaos aos espanhóis, pois, antes deles, “no había tanto daño
como ahora, me parece había muchos cristianos” (AYALA, 2005, p. 256) e as mulheres
foram “muchas santas en este reino” (AYALA, 2005, p. 227), muitas corrompidas com a
chegada dos espanhóis.
Como diz Inca Garcilaso, “sospenso que el nombre está corrupto porque los
españoles corrompen todos los más que toman en la boca” (1985, p. 71) referindo-se a
questão linguística, mas aplicável a colonização espanhola, se observarmos desde o
ponto de vista de Guamán.
Parece-me apropriado observar a mudança que tem os incas de um momento
histórico para outro, da pré-colonização espanhola para o momento colonial. Para isso,
basta olhar as gravuras presentes em Nueva Corónica y Buen Gobierno. A título de
exemplificação para está primeira parte em que apresento os modelos de nativos,
destaco a gravura de Mama Ocllo (anexo 1),
Sobre ela, Guamán Poma diz que “dejó la ley del demonio muy entablado a
todos sus hijos y nietos y descendientes, pero fue muy amiga de los caballeros y demás
gentes […] le obedecieron y
respetaron en toda su vida porque
hacía milagros de los Anexo 1 demonios
nunca vista de hombres”
(2005, p. 97-98), distanciando-
a do que seria uma mulher cristã.
Detendo-se a imagem em
si, reconhecem-se características
de uma mulher de origem inca,
como os cabelos repartidos e
longos, tanto dela quanto de
suas criadas, o vestido, que é
preso com uma faixa ornamental na
cintura (outra característica
inca, tanto para mulheres
quanto para homens), a
maneira como se dispõe o
retrato de suas criadas, de perfil, também é uma característica do registro inca, no
entanto, a imagem de frente já advém dos espanhóis.
Após a colonização espanhola, com a mestiçagem cultural dos europeus com os
incas, outras identidades passam a ser identificáveis. Esses indivíduos ainda não podem
ser considerados mestiços, ainda que sua cultura não seja mais “pura”, mas tampouco
são aqueles mesmos incas de antes da chegada dos espanhóis, uma vez que as culturas
se interpenetraram.
Para Inca Garcilaso, os incas colonizados pelos espanhóis sofrem algo como um
“aprimoramento”, pois se já carregavam em si a bondade e a justiça cristã, agora entram
em contato com a religião propriamente dita, conhecendo-a e submetendo-se a ela, ao
perceberem-na superior a sua própria.
Guamán Poma de Ayala, por outro lado, vê a colonização espanhola não como
algo que trouxe a elevação inca ao cristianismo, mas sim o declínio, uma vez que os
espanhóis, cobiçosos, não traziam os preceitos religiosos, mas a exploração. Dessa
forma, os incas se corrompem e se inicia o processo de “extinção” da sociedade
indígena. Como Guamán Poma diz, ao se referir aos incas, “en tiempo de la conquista se
hicieron yanaconas3 de los dichos españoles y salteaban mucho más mejor, y robaban a
los pobres indios, y después de quedaron y se visitaron em las ciudades por yanaconas a
donde están al presente” (2005, p. 306), um sinal dessa corrupção ocasionada pela
chegada dos espanhóis.
Em outro trecho, Guamán afirma que os espanhóis “roban a los indios sus
haciendas y tierras y casas, y sementeras y pastos, y sus mujeres e hijas, por así casadas
o doncellas, todos paren ya mestizos y cholos; hay clérigo que tiene veinte hijos y no
hay remedio” (2005, p. 343), não só mostrando a corrupção dentro da própria igreja,
pois os clérigos mesmo não seguem as regras cristãs, mas também apresentando já um
outro modelo, de mestiço, que Guamán considerava como de “casta maldita”, enquanto
Inca Garcilaso afirma que “creyeron que eran hijos de su dios, los respetaron tanto que
los adoraron y les hicieron tan poca defensa” (1985, p. 256), contraponto também a
forte resistência que Guamán afirma que os incas tiveram para serem dominados.
Em outra gravura retirada do livro de Guamán Poma de Ayala (anexo 2), temos
também uma Coya, a última delas, chamada Chuquillanto, que
4
Espécie de manta.
medio verde oscuro, y su acxo de verde y lo del debajo de tocapu. De
puro bueno y alegre le contentaba a su marido aunque era emperrado,
y así duró pocos años (AYALA, 2005, p. 111)
Anexo 2
Uma representação
bastante diferente da dada a Mama
Ocllo, primeira Coya. Essa
representação, inclusive, pode
ser notada na gravura.
Enquanto Mama Ocllo aparece
com os cabelos repartidos,
longos e soltos, Chuquillanto
surge com a cabeça coberta por um
manto azul claro (como afirma
Guamán) que se assemelha ao
de Maria, mãe de Jesus, para
além da posição remetendo a
religiosidade cristã, de mãos
unidas. As vestimentas ainda são caracteristicamente indígenas, com o vestido e o tecido
amarrado na cintura, mas a influência da religião espanhola já é notável.
Quando a cultura espanhola penetra como que completamente a cultura inca, há
quase um apagamento da segunda, ou mesmo de ambas. Assim se identifica duas
identidades, mestiças, em que já não se é possível diferenciar o indígena do europeu,
como se, a partir da união de ambas as culturas, surgisse outra completamente nova, que
tende para o apagamento da cultura inca, em uma identidade, e uma mistura mais bem
equilibrada de nativo e estrangeiro. Quando se refere às mulheres incas desse período,
Guamán Poma diz, como no trecho abaixo, que são
E, como ainda afirma, são “fieles, jamás se han rebelado contra Dios ni contra su
Majestad los indios de este reino, es de la corona real todo el mundo” (AYALA, 2005, p.
672). Guamán ainda relembra ao leitor, em muitas passagens, a fidelidade do mestiço ao
cristianismo, (nativo) após sua conversão, enquanto os espanhóis não são fieis. Essa
mestiçagem, de caráter religioso (e em alguma medida cultural), não sofre críticas,
enquanto a mestiçagem, digamos, biológica, sanguínea, é duramente criticada por
Guamán Poma.
Anexo 3
Como se pode
observar no trecho: “y así
las dichas índias salen
bellacas como los dichos negros de corregidor, como se encomendero y de padre de la
doctrina en este reino, y no hay remédio. Y así se acaban los indios” (AYALA, 2005, p.
579), em que culpa a mestiçagem pela “extinção” dos incas.
Para Guamán Poma, “sólo los indios son propietarios legítimos que Dios plantó
en este reino [...] Y así por de Dios y de la justicia no hay propietario español en este
reino, aunque sea nacido en este reino, hijo de estranjero” (2005, p. 532), e por essa
razão se mostra tão contrário a mestiçagem de índios e espanhóis, ou índios e qualquer
outro grupo racial, como é o caso com os negros no trecho anterior.
Para além dessas identidades nativas e mestiças, existe uma última identidade
que Guamán Poma chama de criollo, que seriam, segundo ele,
Anexo 4
Em uma comparação
com as gravuras anteriores, é
possível notar uma grande
diferença entre esses criollos
e os índios. Mudança que
Guamán Poma observa
precisamente no trecho
traen otro traje los indios en este tiempo, que la de antes, de los
primeiros indios Uari Uiracocha runa, traían swu vetido de hoja de
árbol, y de Uari runa traían su hábito de pellejo sobado, Purun runa
traían su hábito como mujer y como hombre, Auca runa comenzó
policía y galas, Incap runa traen más galas, y e en esta vida mucho
más policía y vestidos en toda cristiandad del mundo (AYALA, 2015,
p. 707).
8. CRONOGRAMA DE EXECUÇÃO
Divulgação de resultados X X X
parciais em eventos científicos
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em suma, após a conclusão de um ano de pesquisa, posso dizer que os
modelos possíveis da(s) identidade(s) inca(s) (bem como do(s) indivíduo(s)
mestiço(s)) identificados são, ainda que próximos – e semelhantes, em alguma
medida –, distintos. Distintos porque, quando volto o olhar para Inca Garcilaso
de la Vega, tenho em minhas mãos o registro de um mestiço da realeza inca com
o colonizador espanhol, um mestiço que esteve estreitamente ligado a uma
história do povo inca profundamente influenciada por quem a contou: a nobreza.
É preciso, durante toda a leitura, manter-se consciente de que mesmo o registro
de um mestiço não é o registro fatídico dos acontecimentos, que nunca poderão
ser recuperados em sua integralidade.
Quando tomo Felipe Guamán Poma de Ayala e sua extensa carta, tenho
também o registro de outro mestiço, porém sob uma ótica distante da de Inca
Garcilaso, uma vez que Guamán se prende aos que seriam os povos incas
menores, ou seja, aqueles que não pertencem à realeza. É quase como se
observássemos duas tribos distintas, pois existem muitas contradições entre um e
outro autor, que fazem como que um percurso antagônico. Enquanto Guamán
Poma exalta ao cristianismo dos índios pré-incaicos e, à medida que se
aproximam do tempo dos espanhóis passa a criticar a deturpação desses
preceitos religiosos, Inca Garcilaso reconhece nos índios pré-incaicos bárbaros,
pagãos, seres em muito inferiores aos incas e aos espanhóis (espanhóis que
trazem para os incas o cristianismo).
Apesar das contradições, é possível também observar fortes semelhanças
entre um e outro registro, não somente da cultura, dos costumes, das artes dos
incas, mas também no tipo de influência que receberam ambos os autores,
sobretudo da religião católica, que é presença forte e frequente durante todos os
registros, influenciando no tipo de visão que os autores tinham sobre os povos
incas. A religião é sempre presente, e é preciso ter isso sempre em mente na hora
de fazer o mapeamento das identidades possíveis.
Nesse tempo em que ocorreram as leituras, as análises, as comparações e
a produção do relatório final, fui capaz de identificar, como se pode ver na seção
de resultados e discussão, dez identidades indígenas e/ou mestiças (“e/ou”
quando pensamos no caso do criollo), mas que, definitivamente, não são
absolutamente conclusivas, pois acredito que podem (e precisam) ser mais
esmiuçadas, mais esclarecidas, de tal maneira que provavelmente surgiriam (e
surgirão) outras imagens, outras identidades, exatamente como acontece com o
nosso mundo de hoje.
10. BIBLIOGRAFIA
AYALA, Guaman Poma de. Nueva corónica y buen gobierno. México: Fondo de
Cultura Económica, 2005.
GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
Excetuando o último mês da pesquisa, em que foi preciso substituir-me por outra
bolsista em razão da minha seleção para uma bolsa de intercâmbio, não foram
encontradas dificuldades que afetassem significativamente o andamento do trabalho. As
atividades e o relatório final foram produzidos em sua integralidade, mesmo com o
intercâmbio. A apresentação do trabalho final, no entanto, precisará ser feita pela
bolsista substituta, uma vez que na data prevista estarei realizando o intercâmbio.