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Agradecemos a todos os Orixds, Gos nossos antepassado: Que derramaram seu sangue na luta pela LIBERDADE, que continua et 4. € cyangupe greta bith, bith, bite 14 Yai la vai Viela,la Yai Viola,. tim. tim. tim, 14 vai viola.. quando a roda chega nessc ponto, os jogadorcs, os tocadores, os que estao esperando sua vez de jogar, os que esto assistindo, j4 cstéo profundamente cntregucs no transe da capocira. Os movimentos dos corpos acontecem sem um pensamento ¢ sem nenhum,esforco figico, Come-se os capociristas estivessem sendo movidos por alguina forga invisivcl. a misica c tao slida que pode ser tocada, no ar. % é Tem umn'senhor negro. barbudo. de fonfias tranca&dreadlocks. que pula, danga, treme, entra em éxtase religioso. ao mesmotempo-cin que joga no meio do corrido, frases revolucionarias, questionamentos politicos, mensagens de orgulho negro, fazendo os assistentes irem ao delirio, no ritmo do berimbau c do atabaque. Esse velho ¢ o Mestre Lua Rasta. Entao cle grita o Ié ¢ a roda para. O Mestre Ciro Lima avisa a todos os espectadores. meninos de rua, turistas, capociristas, cstudantes, idosos, namorados, familias a passcio. que aquele ¢ 0 Movimento Sotcropolitano de Capocira Angola. que veio da Africa c se iniciou aqui no exato momento em que os primeiros negros foram trazidos de la pra trabalharem com escravos, ¢ quc estao ali, ha 500 anos, resistindo contra principal do furismo na capital baiana, o Mestre Lua Rasta fala cntao, na sua linguagem de negro da periferia. chcia de expresses ¢ palavras que so cntendem aqueles que hutam| pra viver, ¢ crescem bem longe dos polos de cducagao c boas manciras. Ele fala ¢ todos} entendem, sobre a guerra no A feganistdo. sobre as minas na gucrra civil de Angola, sobre adesatencdo do povo negro com sua propria cultura, cxemplificando suas palavras com o} grande numero de curopcus que procuram as suas rodas. sobre prostitui¢ao. sobri historia do Brasil ¢ sobre diversos temas ligados ao cotidiano da grande maioria da populagao baiana. As vezes um sermao. as vezes um consclho, as vezes uma parabola, as| vezes um discurso politico dircto ¢ franco, sobre resistencia, luta ¢ resgate. sempre] pontuados por uma cocsao impressionante, ¢ uma determinagao em despertar as pessoas que ali estao, para a importancia de voltarmos 0 nosso ponto de vista pra nés mesmos, Entao a roda prossegue, sempre alegre, circense sem ser palhaga. bonita sem ser chamariz] de gringo. Alids, cles fazem sempre questao de frisar que aqucla roda ali nao esta pedindo dinheiro aninguém: : A importancia que tem, prum neguinho quc trabalha a semana toda, que cngole sapo todo] dia na busca do pao. que vive numa sociedade cm que nada se parece com cle, Scrffpre| mal-visto, sempre discriminado, que Ihe empurra com toda a forga pra as drogast parag crime, pra a violéncia sem diregao, chegar na sexta-feira no Terreiro ¢ ver a roda dd Angola, sagrada, saudavel, escutar aquelas idéias. dividir com as pessoas que estao ali, um momento de satisfagao ¢ orgulho. tendo sua cultura ¢ suas historias como centro ¢| longe de um processo de folclorizacio comercial, onde as pessoas se respcitam ¢ sel complementam, sé pode scr medida por aqucles que passam por isso!! E Mestre Lua ¢ uma historia! E Mestre Lua faz parte da historia! Historia parccida com al dc todos 0s afrodescendentes filhos da periferia pobre, historia que da voltas ¢ faz curvas| até 0 ponto cm que o homem sc encontra consigo mesmo e decide cncarar de frente a luta. [Buraco velho tem cobra dentro, c esse homem tem muito pra nos cnsinar. 28 de janeiro de 2002 Nossas Referéncias- Quando o Senhor nasccuc onde? Mestre Lua Rasta- Nasci cm Salvador, sou Soteropolitano. Nasci ali na Rua Miguel Torres, Ladcira Céncgo Percira. antiga rodoviaria, perto do Péla-Porco. Sou de 1950, 28 déjunho.Faco 52 esse ano. : NR-Escus pais? ML Minha mac cra de Salvador também, desse mesmo bairro, falccida. Uma familia de tradigdo negra, indigena. E meu pai. né, como cu sou filho de mac solteira, nao tenho nenhuma Iembranga de meu pai. Conheci quando cra muito pequeno. Entao cu nao tenho pai. meu pai foi minha mac. meus avés. Pra definir: mais um filho de mac solteira na vida. NRE scus avés moravam no mesmo bairro? ML - Mesmo bairro. Macatibas, antiga rodoviaria. Mcu avé. a0 mesmo tempo meu padrinho. se chamava José Gregorio Femandes, doquciro. Minha avo, Maria das Dores Fernandes, descendente de Angola. t NR Eo lugarcomocra? ML- Descendente de Angola como a maioria dos pretos da Bahia, né? Em todo o Brasil, ' mas principalmente na Bahia, que a maioria dos negros sao Bantos... Ea referencia... So que em relagdo aos costumes africanos ficou mais na periferia da Bahia essa coisa mare do rclacionamento africano. Ficou mais em Paripe, Periperi... Nos aqui cm Salvador, ja perdemos muito a relacao do afticano. Desde muito tempo, entao. a tinica referéncia que a gente tem do negro africano ¢ o Candomblé, a Capoeira de Angola. Mas assim. nos somos descendentes mesmo de africanos! NR- O pessoal de sua familia cra de Candomblé? ML- Nao tinha assim. nao cra“ de dentro” do Candomblé, mas tinha um relacionamento porque ia no Candombié. Eu me Iembro que em minha época de garoto cu ia cm Candomblé. Tinha uma rclagao. entendcu, com os Orixas. Em relacao aos costumes, era mais cozinhar na lenha. cozinhar na pancla de barro, mesmo tendo fogao. mesmo tendo esse gas de botijao. mas nds tinhamos aquela coisa de comer mesmo na lenha. ¢ isso era muito bom. ¢ muito tradicional. pra quem ja estava na cidade. manter essa coisa viva, né yelho. da alimentagao. Isso foi muito forte na minha familia. O Candomblé nao foi tio forte, ¢ mesmo no meu tempo ja tinha uina influéncia muito forte do sincretismo, do [catdlico. da coisa do cristianismo. Entao, na minha familia isso foi se extinguindo a cada dia. mas cu tenho 0 maior orgulho de ter nascido nessa familia de negros ¢ caboclos, catendeu velho? YR Eo que o Scnhor lembra da rua. como eraaconvivencia? ML Rapaz.crao maior barato. NR- A relacdo com scus irmaos, mac, as pessoas na rua... ML-Rapaz, 0 pobre... 0 bairro ¢ 0 maior barato! Eu me lembro, que. a brincadcira, a | amizade... Eu tenho as maiores lembrangas. A coisa ncgativa, pra mim como negroc pra qualquer um como nds, sendo filho de mae soltcira, no bairro. numa rua, numa escola, é duro!!! Altas discriminagées, na‘ minha propria familia, cntendeu? Hoje uma garota fica gravida com 13, 14 anos ¢ termina a mae assumindo. Em minha época ¢ jantes. na época de minha mac, ficar gravida sem sc casar.... Vocé ficassc certo que scu pai ia te botar na rua, entdo cu creio que minha mae sofreu altas discriminacocs, i porque vocé nao tinha pai. Eu me lembro que minha mac nao gostava muito, cla sbrigava,,quebrava 0 pau coniisso, fas. RN- Eclatrabalhava de... f1.- Lavadcira, minha mac cra lavadcira, dava tudo mesmo pra botar as criangas na escola, pra criar, cra paulcira, Entao, tinha aqucla coisa da infancia, do garotao, da praia, mas linha. essa discriminacio entendeu mano? Nos superavamos, cu superci, mas cu sei que pra velha foi duro, essa ondazaté vocé crescer. ter 18. 20 anos ¢ ir independéncia, mas até 14, 15 anos NR- Quantos irmaos cram? MLL- Fu tive duas irmas, hoje cu tenho lima irma viva, cramos trés. Ali na Barros Reis, estudei no Isidro Monteiro, no Barbalho, no Carnciro Ribeiro. nq Ladeira do Paiva, fora as cscolas particularcs, Particulares, quer dizer, essas escolazinhi derua NR- E-como foi essa saida do bairro pra cidade? [ML- Eu fui, assim, pra falar a real, apesar de ser muito traquino, muito travesso. cu ful criado com v6. tipo: - Criado com v6!!! Aquela viagem... Eu até me libertar dessa viaget de“ criado com vo" ... Eu nao conhecia Pclourinho, morava ali no Barbalho. mas ¢ nunca vinha no centro. ¢ pra mim também a cultura negra mesmo, tipo. nossos ancestrats mesmo, o que ficava mais esclarecido cra oC ‘andomble. Era catélico, co Candombl¢ tava ali forte. Na minha época cu ainda nao peguci essa coisa do cristéo, do crente. Eu lembr que era a maior discriminagao: - Fulano crente!!! Eram os que nunca se uniam. Ne com 0 catdlico, piorou ainda com 0 do Candomblé. Vocé era catdlico, essa coisa sociedade mesmo, vocé ¢ catdlico. mas ¢ cspirita!! Ele ¢ tudo... endo ¢ nada!! NR -Terimina sendo mais uma mascara! ML - E até vocé.se consgicntizar disso... Eu fui criado na ¢poca do pecado”. tudo é pec:ido! Chegar tarde é pecado: -Porra, meia-noite, ¢ pecado!!. Trauma pra crianca. 0 Pecado, criagao da propria igreja. Isso cra muito forte no meu tempo. Tanto que cu yim sair pra conhecer a Capocira muito tarde, porque até ai, ninguém tinha nunca mc falado da Capocira, meus pais. porque? Por causa da lavagem cerebral que o sistema ia nos negros. que capocirista é marginal. Mesmo sc 0 pai fossc pobre. fosse um doqueiro, fosse um carroccigo, cle nunca ia admitir que o filho dele fosse Capocira. Entao. cu vim de familia pobre, mas com os valores completamente alienados pela Spciedade. Eu tinha que cstudar!!! Principalmente sendo filho de mae soltcira, cu tinh qhe mostrar que cu era, cu tinha que superar tudo aquilo pra scr respcitado até na minha propria familia, meus proprios tios, que cram casados dircitinho. Eu cra tido camo o rebelde da familia. Entao, com quinze, dezesscis anos que cu comecci a trabalhar. * >O1_04_1967>>Crledo 0 Petido dos Penteras Negras.<< Foi na Industria de Calgados, ICA, na Barros Reis, ai que eu tive oportunidade de sair da firma, vir pro centro. Aqui no centro que eu vim descobriras coisas, jé tinha uma grana... NR-E estudava ainda? ML- Parei de estudar pra trabalhar, Eu estudei até o quinto ano primério, quinta série, ¢ ai eu nao tinha a menor consciéncia, em relagao a minha prépria cidadania, a minha propria negritude, a minha propria cultura, era totalmente alienado. Nem sei se existia Movimento Negro nessa época, era uma coisa mais assim: O negro no Brasil - Estudou? Legal! Nao estudou? Vai ser carroceiro, vai trabalhar na feira. Hoje eu vejo, mesmo quem estudow, ti na feira, e € melhor ta na feira do que ele ndo ter emprego. Até entrar no"mundo da Capoeira, porque a Capoeira que me libertou pra consciéncia de revolugao nesse periodo.... NR-Quando isso? ML- Rapaz, isso ai, 65, 70, por ai, que com dezesseis anos, eu ja fui pro Rio, eu ja era capoeirista. Fiquei no rio, na primeira etapa, até vinte anos, vinha e voltava, mas eumorava no Rio mesmo. Depois voltei, passei um tempo em Sao Paulo, nessa viagem mesmo, de Capoeira, € no final fui pra Europa, onde eu fiquei até trinta anos, e depois voltei e estou aqui... NR- O Senhor ta falando da época da ditadura. Quais foram os choques maiores, como foi sair do bairro pra cidade nessa época de ditadura, e sair logo pro Pelourinho? ML- Eu sai mesmo do bairro e vim logo pro Pelourinho. Fui ser aluno do Mestre Bimba, era aqui mesmo no Maciel, onde hoje é a academia do Mestre Bamba, Pelourinho, depois fui pro Belvedere da Sé, onde tinha o Mestre Caigara e o Mestre Canjiquinha, e eu fui ser aluno do Mestre Canjiquinha. Presenciei varias investidas de estudantes, e a policia, e 0 exército. Nao participei, mas vi varios confrontos com a Policia Militar. Eu tinha um primo da mesma idade, que era politico na época, e que foi preso um tempo. Eu presenciei tudo isso ai, mas num outro contexto, nao tive envolvimento. Eu nao tinha essa envergadura... de combate, essa coisa das greves, das manifestacoes. NR- Mas mesmo pra quem estavade fora desse processo, o que piorou, coma ditadura? ML- Nos éramos discriminados de varias maneiras! Porque tem essa fase militar da ditadura, mas a sociedade sempre foi uma ditadura! Nos sempre fomos oprimidos, independente do exército estar na rua. A ditadura continua hoje, nao mudou nada. Hoje é uma farsa, antes a galera ia pra rua mesmo: - Aumentou 0 6nibus! Quem no era de acordo, quebrava tudo, protestava, hoje nao tem protesto. Entio, ditadura sempre foi, nés sempre vivemos numa ditadura camuflada. Antes era mais direto, porque 0 poder nessa época tinha mais medo do comunismo, das rebelides. Eu vi 0 também! NR- Como foi esse primeiro contato coma Capoeira? ML- Eu tive esse primeiro contato com a Capoeira, foi realmente com o Mestre Popé, de Santo Amaro, foi quando eu vi pela primeira vez. Até ai nao tinha nenhuma informagao. la no Candomble, ia na Umbanda com minha mie. Ia ouvir 0 som, gostava de comer 0 Tango do Candomble. Eu era garoto, escutava o som do agogé, o som do atabaque, era uma coisa de moleque, ir no Candomblé. Nem pela coisa de querer ser Oga, de ser ‘ de dentro” do Candombié. Ja na curticaio, éramos totalmente inconscientes. Mas a coisa da Capoeira foi mais forte. Eu vi essa apresentacao do Maculelé de Santo Amaro, do Mestre Pops, isso ai bateu em mim muito forte, a coisa da cultura negra, que eu vi realmente, aqueles negros. Nunca tinha visto aquilo, nunca ninguém me falou do Maculelé. Entdo quando eu vi isso pela primeira vez, me deixou marcado, d'eu ficar interessado mesmo em saber o que era aquilo, que folguedo era aquele, com todos aqueles negros sem camisa, como guerreiros, >O5_04 1888>>Neosce Mestre Pestina<< Pen . Ai que cu fui me interessar. Isso passou, ¢ cu fiquei com essa coisa na cabega. Depois de um certo tempo, cu comecci a ouvir comentarios de parentes, sabe, que sc retinem nos domingos na casa da velha pra comer feijao, ¢ comegam a falar das micaretas. das brigas. Eu. garoto, escutava. Ai um dia rolou: - Rapaz, c aqucla briga... do cara que brigou coma ‘olta!!! Sabe a cscolta?,A escojta militar que fazia a ronda da policia. Um cara sozinho brigou com esses caras,todos ¢-detonou esses caras, c cu. porra, fiquei impressionado. como esse cara so7inho brigou com essa galcra toda ¢ sc deu bem, Daqui a pouco, um dos meus tios falou: - Ah-mas 0 cara cra capocirista. por isso que cle ganhou! Eu dissc - Porta. capocirista!!! Eu quis saber que barato cra esse. O que me levou foi isso mesmo. 0 relato de uma briga que houve. ¢ cu fiquei com aquilo. Quando cu comecci a trabalhar. que cu comecet a vir pro Pclourinho, cu saia do.trabalho cinco horas. cm vez de ir pra casa. cu passava direto ¢ vinha pro Centro Historico. Foi ai que cu vim conhecer o Mestre Pastinkg. na ¢poca, mas a Capocira que cu vino Mestre Pastinha, na época. cu nao tinha conscicneia da Capocira Historica, da Capocira do negro, de raiz. Porque cu com dezesscis anos. cu eta um moleque sapeca, um menino de rua, Nao de rua. mas de bairro, ¢ brigava por nada. Sabg como% crianga dessa idadc. briga por nada. briga por um baba. Os maiores chegam: querem acabar o baba. ai vocé chega. da pedrada. mete vidro. sacancia. Neguinho peea voce depois. quer bater. quebra no pau! Nao tem essa! Pra mim aprender Capocira ¢poca era pra me defender disso. Eu nem pensava ¢ nem passava pela minha cabcga a coisa do caraté, judd. que era coisa ja de elite. Quem fazia isso era filhinho de papai, negro nio tava 14 no jud6, tava na Capocira. Eu vi a Capocira malandrcada do Mestre Pastinha, ei nunea ia entender aquilo, cu queria cra a Capocira “pau” pra me defender, cu queria aquilo do cara que pegou dez ¢ batcu. Ai continuci cm minha pesquisa, até que um dia eu passti aqui por essa rua onde era 0 mestre Bimba, ¢ vejo 14, o berimbau comendo no centro.o pandciro caindo pra dentro, o atabaque prucutum, prucutum, prucutum, prucutum... Subi pra ver que cra. A academia do Mestre Bimba, c a galcra mesmo. nessa época que cu entrci no Mestre Bimba sé tinha os Ferabras. 0 finado Jorge de Onga. cra Airto. Bira Acordeon, Camisa Roxa. Ezequicl, Itapoan, Alegria. Entao Quando cu vi esses caras nesie jogo de vuco-vuco, cu achci que meu lugar cra ali: - Essa a Capoeira que cu quero: Pau! Nao tinha conhecimento ainda da Capocira Historica. da Capoeira de raiz, cu tava numa fase de violéncia. sempre teve. Hoje que agente fala: - Capocira Angola nao-violéncia,c Capocira Regional nao-violéncia, que antigamente a galcra aprendia pra brigar mesme! Nao viu o Mestre Jodo Pequeno dizer? Que na época que ele entrou cra a época dos “valentao™, que ele queria ser “valentdo” ¢ que a Capocira cra dos “valentao™. Eu cra muito mais novo, mas peguci essa Capocira dos “valentio”. o cara ia aprender pra sc defender. Com o tempo. 08 grupos folcléricos que cu participei. cu participei do Viva Bahia. que cra o grupo da Emilia Biancardi. ai cu aprendi também outras coisas. aprendi esse lado cultural da Capocira. pra viajar. apresentar. nao dava mais pra vocé estar numa de “pau’, tinha que’ procurar se ligar que a Capocira nessa época ja tinha um respaldo de viagem, de se aptesentar nos teatros. Mesmo com o grupo folclérico, que nao cra la cssas coisas a nivel de grana, de ascensao. de conseguir ganhar dinhciro com isso. Mas ja dava status: p6. nies, cu t6 no grupo tal, vou me apresentar no Teatro Vila Velha, no Castro Alves! Ai ja mudou essa concepeao de Capocira briga, marginal. Ai a Capocira comeca ja a vir num proceso cultural, num processo de consciéncia, que ai também ja vem os blocos afros. 3 consciéncia dos jovens, o Ilé Aiyé, o Olodum bem depois, mas ja nessa de valorizacao da cultura negra. ¢ isso ai foi muito bom. a gente foi abrindo essa coisa mais cultural. E dai pra cd, até hoje.a gente acrescenta novas descobertas cm relagdo a Capocira. nova consciéncia politica, que na época também a gente nao tinha essa consciéncia toda, a gente fazia as coisas na braba.na tora! 2 2 >07_04_2002>>E lencade 2 reviste “Nosses Referéncles’<< NR- Como foi o contato coma Capoeira Angola? ML- O contato com a Angola {oj j4 no Rio. Eu sai daqui numa historia de regional engajado num grupo do Rio. que era um grupo muito bom. o Senzala. NR- Entio 0 Senhor ja foi pro Rio, trabalhando com Capoeira? ML- Eu fui pro Rio. na real. com grupo folclérico. NR-Com quantos anos? ML - Dezoito anos. eu ja fur pro Rio com esse grupo Viva Bahia, tivemos varias apresentagdes. a iiltima delas no Teatro Municipal do Rio. que pra gente na época: - Porra. o Teatro Municipal!! Se presentar num grupo de Capoeira. da Bahia. pra mim seria hoje como ir pra Europa. tra uma consagracdo! Hoje ninguém quer ir pro Rio, Sao Paulo. quer ir logo pro Japio! Na época ir pro Rio foi o maximo! Ja viajava a pampa. apesar de agente ter consciéncia de que nao éramos muito remunerado: éramos estudantes. Entéo no Riv eu tive altos contatos com o pessoal do teatro. Jo: Celso Martinez, o idealizador do Teatro Oficina, Augusto Boal, que na época foi exilado, Amil Hadad. Entdo essa valera, ja me incentivava a parte do teatro, como eu ja tava envolvido com grupo folclorico, eu tive essa facilidade de participar de cursos. de oficinas, laboratorios. Teatro dos Oprimidos, Teatro Oficina, Teatro de rua. Ai eu ja comecei a dar aula de Capoeira. Por exemplo, eu conheci o José Celso Martinez numa oficina na Cinelindia. numa oficina de rua, entio ele jd me falou pra eu passar a Capos Pro corpo do teat Comecei também a ter acesso ao teatro. J.C. Martinez era teatro de vanguarda. Foi boin pra mim participar disso como capoeirista. que ja tinha essa visdo da Capoeira histirica NR- Ea Capoeira Angola? ML- A Capoeira Angola foi depr.is desse processo no Grupo Senzala. NR- Na volta pra Salvador? ML- Nao, la mesmo eu comece! a dar aula num lugar do Movimento Negro, um dos primeiros grupos do Movimen's Negro. Eu conheci o Mestre Roque. que era um angoleiro que dava aula nessa academia. Aj eu fui vivendo outra Capoeira, porque aqui na Bahia eu so tinha me ligado 11s Capoeira Regional. Fui conhecer também um outro tipo de Capoeira. que era a Cupneira do suburbio do Rio de Janeiro. que nem Capoeira Angola e nem Regions!. era mais uma Angola dura. Naturalmente essa coisa da Angola for vindo. foi vindo. Guando eu voltei a Bahia, eu ja... foi o proprio processo de consciéncia da negritude. iss que a Capoeira Angola traz entendeu? Ai, eu me vi Angoleiro!! Nao foi aquela cots de: - Aprendeu com fulano. com Beltrano! Porque aqui com Mestre Bimba eu teinei Regional. Com Mestre Canjiquinha ja rolava p-Angola e Regional. Canjiquinhe yao era Regional nem angoleiro nato, ele fazia uma Capoeira, que ele defendia. que ‘ apoeira era o berimbau. Se 0 berimbau tocasse um Jogo-de-dentro, vocé tinha que j,gar jogo-de-dentro. Sao Bento Grande. vocé tinha ave jozar Sao Bento Grande. € e-.¢ Sao Bento Grande. na verdade. era mais praticado pelo capoeirista regional, e era um ritmo mais rapido mesmo: dom; dim. dom, dom; dim: dom, dom; dim, dom. dom. §: esse mesmo ritmo nao tinha no Mestre Bimba! O So Bento Grande de Bimba ja er outra coisa, tam, tem; tam, tam. tem; tam; tem; tam, jtam, tem, ¢ o Sao Bento Grande de Canjiquinha e da Angola é 0 dim, dom, dom; dim, dom, dom. Essa coisa do toque ¢ muito complexa, entendeu velho? Vocé toca 0 Sdo Bento Grande da Angola. em Bimba ja é 0 contrario. O toque de Angola, dom, dim; dom. dim, na Regional ja tem outro nome, é Ave Maria! O toque de Capoeira muda muito, muitos mestres criaram também muitos ritmos proprios. Vocé vai ver o Panha- laranja-no-chao-tico-tico. Eu sempre escutei o panha-laranja-no-chao-tico-tico em toda de Angola. E o cara pegar 0 lenco, pegar a grana com a boca. Mas o mesmo ritmo, Que na Angola é o: ( canta) panha-laranja-no-chao-tico-tico-se-meu-amor-for-se emt eu-nao-fico. Entio é muito complexo. NR-Eo0 Senhor voltou pra Salvador quando? ML-Primeiso eu fui pra Europa, fui morar na Suiga, foi toda uma outra histéria Capoeira, tive um grupo também 14, que no era aquela coisa determinada, Angola Regional, era Capoeira, com eu sou até hoje, eu sou capoeirista. Hoje, de coracao eu s angoleiro, mas na minha época, hoje fica uma coisa muito na midia, né, dizer que angoleiro, 9 cara passa a vida toda sendo regional, mas ai faz umas aulas de Angola € s dizendo que ¢ Angola ¢ regional, entendeu. Eu sou capoeirista e sempre procurei, nur toda de Angola, me esfor¢ar ao maximo, com aquele angoleiro também, o capoeirista qu esta ali, mas eu nao sou angoleiro nato, com também nao sou regional. Eu vivi de tanta: todas de rua, eu vivi Mestre Valdemar, eu vivi Mestre Canjiquinha, eu vivi Mestre Caigaval eu vivi tre Traira, eu vivi tantos mestres na Capoeira, que o cara querer me dizer que ct sou angoleiro ou que eu sou regional... eu sou capocirista! Claro que de coragao e de raizt: mesmo dui sou Angola, mas nao vou sair por ai dizendo que eu sou angoleiro. Pra mim tantq faz, no sentido de que eu vejo que hoje isso é uma coisa puramente comercial. monopélio, o feudalismo: -Quem nao éangoleiro nao é ninguém! Eu nao defendo isso! NR-E 0 Senhor passou quanto tempo na Sui¢a? ML- Pé§sei cinco anos na Suica. NR- Trgbalhando com Capoeira? ML- balhando com Capoeira, fazendo cursos. Com percussdo, fazendo meus} instruggéntos, que eu tenho orgulho que onde eu fui eu fabriquei, e onde eu vou, alias at hoje, fh més, mais de um més, eu ja tenho que criar meus instrumentos, nem que seja de} ambujante na praia. Sempre foi assim! NR-Eessa volta pra Salvador, o Senhor ja veio direto pro Pelourinho mesmo? ML- Nao, essa volta pra Salvador eu voltei pra [tapuan, um lugar que na minha infancia eu sempre tive vontade de morar quando eu tivesse uma condi¢ao melhor de grana. Eu sempre} pensei em morar em lugares assim, tradicionais. Pra mim meu sonho era morar em Itapuan, Entao‘a coisa da Europa, pintou uma grana pra morar no lugar que era meu sonho, que eral Ttapuan. S6 que eu me decepcionei, quando eu voltei Itapuan ja estava totalmente! Babildnia, superpopulosa, muita gente, ja tinha esse problema de mesmo casa de pobre ter portdo, ter grade, sabe? Esses dias eu passando pela Liberdade, como € que pode essas| pesgoas viverem assim? Na cidade mesmo de Salvador, a casinha miudinha, mas ja tem| porto, vidro pra caralho, vocé vé que aqueles caras nao tém grana. Porra pra que isso? - Ah, 4nas se deixar roupa aqui neguinho rouba, se deixar um ténis a galera rouba! Entao eu| me decepcionei com isso, ai mudei. Eu consegui fazer uma economia na Europa ¢ nao ia} deixar que o dinheiro fosse todo de aluguel. Ai nés fomos pra ilha, acampamos na ilha e} estamos Id até hoje. Ai fiquei na ilha, ha vinte anos atras, um lugar legal pra morar, pra viver, onde eu t6 até hoje, mas ja t6 sendo cercado pela Telebahia celular, t6 na maior briga’ com eles e essa Babilénia que é produzida por outra Babilénia que € 0 Governo do Estado Ese lugar que eu moro ha vinte anos, que era o maior paraiso, cheio de macacos, cheio de cobras, de animais, hoje ta num periodo de derrubada total das matas, para os condominios| dos bardes, que as vezes nem sao barées, sao classe média mesmo, que a lavagem cerebral, diz que tem que morar em condominio fechado, com seguranga. E pra mim eu ja 6 procurando outro lugar, que o lugar que eu apostei que ia ser até o fim de minha vida ja nao € mais. Entao faz vinte anos que eu moro em Itaparica, e a ilha ta miando, miando, ficando cada vez menor, tio devastando. Nés nao temos um grupo ecolégico pra combater de frente mesmo, combater até com o proprio governo, com o IBAMA, com os érgaos de protecao da fauna, de protecdo a Mata Atlantica. ‘Tudo mentira, tudo corrupto. A minha vida atualmente aqui em Salvador, que é minha terra, em certas horas € uma decep¢do. Eu ver que a tendéncia mesmo é a banalizacio disso tudo. Vocé vé que a policia mesmo que nés pagamos, iludidos, né... Trabalhadores que pagamos nossos impostos a uma policia que devia nos proteger... Nés temos medo da policia! Entdo sinceramente:- Em Jah, Amén, a esperanca de Jah, da promessa, mas do homem eu nao espero mais nada, s6 guerra mesmo, a perseguicao, a prostituicao. Agora, nao me desanimo em relagao aos ensinamentos, do resgate pela cultura, creio que através da cultura podemos manifestar rebeldias, transformagdes mesmo. E vocé chegar com um trabalho de rua, contestar Pelourinho Dia-e-Noite, contestar IPAC, contestar a PMBA, que o Pelourinho foi tombado, Patriménio Historico Mundial. Patriménio do mundo, mas nao é dos baianos, porque o baiano cai é na vara! Da policia que tira a maior onda, que eles Protegem os estranhos, mas nds da terra que fazemos a cultura aqui, ndés estamos humilhados. Pelos orgaos como a Bahiatursa, a Emtursa, 0 IPAC. Tudo mentira, mentira, mentira, pra enganar 0 povo em promogdo de ACM,.do governo dele, totalmente arbitrario. E realmente eu vejo pra nos, mudarmos esse quadro... NR- Como foi esse convivio com os mestres, coisa que ja vai distante das novas geracée: ML- Rapaz essa vida dessa época, quem mantinha mesmo essa resisténcia, uma Tesisténcia até ingénua, eram os velhos mestres. Mas eles eram os nossos espelhos. Valdemar, Mestre Canjiquinha, Mestre Bimba, Mestre Bobo, esses caras eram nossos lideres, eram os caras que, porra, idolatrar no tem nada a ver, mas, agente acreditava neles!!! Canjiquinha era pra mim um herdi. Um capoeirista que participou de uma pade filmes. Vocé vé um filme como Barravento, O Pagador de Promessas, toda a parte teatral, da pantomima, de cultura, a galera da produgdo largava na mao dele, ele que dava o “tcham” mesmo da manifestagao popular para o filme. Foi o cara mais conceituado nessa linha. Mestre Caigara, outro cara também muito bom, na época que a Bahia tinha muito aquele misticismo. Até isso se perdeu, vocé acreditar no cara: - Mestre Caigara de Oxossi, porra o cara era de Oxossi, que na época era uma coisa tao forte, entendeu, Oxossi, o cara das matas. Era legal conviver com o Mestre Caigara, no dia-a-dia, sua maneira de ser. Era um cara totalmente radical, o Mestre Caicara, totalmente rebelde a sociedade, a0 sistema, ao sistema policial. Tudo isso era muito importante pra gente que hoje tem entre 45, 60 anos, resisténcia sabe? Resisténcia politica mesmo! Muita gente hoje diz: -Ah, mas os antigos mestres fazianvmuito 0 jogo do sistema. Nao, mas era diferente, hoje a gente é que faz 0 jogo do sistema, naquela época era o sistema que fazia 0 jogo deles, eles que insistiam, entendeu? Hoje pra gente conseguir um apoio pra realizar um evento que seja, nao rola! So rola pra quem ¢ da panelinha da Bahiatursa, do governo, dos érgaos culturais da Bahia. Hoje é bem mais facil, uma Orquestra A fro-Brasileira, que ¢ de Tania Simées, “que € do IPAC, que é do governo, sei la de quem, ter apoio pra qualquer coisa. Viu esse festival (Festival Bahiano de Cultura Popular) que teve ai agora? Quanto patrocinio, quanta coisa, mas tudo pra eles, deles pra eles. Mas se eu, vocé fizer algum trabalho, algum projeto, por melhor que seja, nés nado vamos ser inseridos “na programagao”! WR We AR A AE, NR- Ea Capoeira hoje? Ea roda do Terreiro de Jesus? ML- A Capoeira Angola na Bahia, no Brasil. mas principalmente na Bahia, passa por um processo muito delicado, que ¢ um processo de como os angoleiros foram sempre dis angoleiro ea Capoeira de Angola. Eu vejo uma massificagao. uma globalizagao também, criminados no passado. hoje ta tendo uma volta por cima da Capoeira, propicia ao da Angola, no sentido de que se nds vacilarmos vamos estar descaracterizando totalmente sta, A nosso movimento. porque a Capoeira Angola entrou num processo muito capital| maioria dos que estio fazendo Capoeira Angola estio mais ligados no capital, primeiramente. pra depois vir o processo cultural. libertario, libertador. que € 0 principal A galera ta mais preocupada com o corpo. E tipo assim: os angoleiros da antiga. que nao conseguiram passar pra essa midia, esse" mercado de trabalho” da Capoeira atualmente, Pos mais velhos, muitos se acham até assustados. foram usados. foram ralados demais. pra ‘40 se inserindo. Mas ta hoje deixar a Capoeira num processo onde os mais jovens hoje es faltando aos mais jovens a consciéncia libertadora, a consciéncia da cidadania. a consciéncia de contestar a discriminagao racial. Vocé vé que tem mais branco praticando a Capoeira Angola do que negros. NR- Como 0 senhor vé essa coisa do Europeu na cultura negra? A Capoeira ta entrando num processo que nio vai poder se manter sem o capital de estrangeiros? E isso é realmente um contato, owe mais uma vez um usufruto? ML- Nisso a gente vai ter que contar com a consciéncia do Mestre de Capoeira Angola atual, os mais jovens, porque pra os que ja estao numa certa idade. Jodo Pequeno. Joao Grande, apesar de que tém outros mestres que tem tanta bagagem quanto eles. mas que ndo sdio mais conhecidos. Eu. vocés conhecem. mas até mesmo as revistas especializadas em Capoeira. s6 usufruem. so ganham com a Eu vejo que esse embranquecimento da cultura afro-brasileira e um fato. NR - O senhor deve ter sofrido muita discriminagao na Suiga e aqui. tem consciéncia da dificuldade que nds temos pra entrar no mundo deles, mesmo como lavador de pratos. ¢ eles tém toda a facilidade pra se inserir aqui. Como o senhor vé is ML- Ta na cara que € aygrana! Solucionar isso € complicado, como acabei de falar: um angoleiro é presidente sei 14 0 qué duma associagdo de regional. ele também faz parte do conselho de Capoeira Angola, ele também ¢ padrinho do grupo tal, ele e angoleiro, diz que nao precisa de dinheiro, mas vende camisa Angola Mie. mas ele td envolvido em grupos de Capoeira Angola carentes que o mestre ndo tem uma grana pra bancar seu grupo. pra botar uma camisa, pra comprar instrumento, entdo ele ta ali: -Empresario!! Agora pergunte se esse cara joga Capoeira? Pergunte se esse cara toca berimbau? Se esse cara canta Capoeira? E uma zorra total, mas ele tem grana, e é branco! Esse é um dos exemplos. gora vamos partir pro europeu: O europeu, a cultura do europeu ja era!! Qual é a cultura do europeu? Guerra, misseis. grana, qual é a cultura dos Estados Unidos? Quem é que ta -mantendo essa coisa de, vamos dizer.assim: -A Capoeira veio da Africa, Veio da Africa pros paises mais pobres através dos negros escravizados, espalhados hoje na Martinica, espalhados em Guadalupe em todo o Caribe, no Brasil. Agora mesmo, na ila de Reunion. apareceu uma luta chamada Morangue, que até pouco tempo era proibida, e agora 0 FAR gue.-/urXo- ooml-2-Capocira Angola

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