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JÚNIOR é professor do
Departamento de História
da FFLCH-USP e autor
de, entre outros, A Dança
dos Deuses – Futebol,
Sociedade e Cultura
(Companhia das Letras).
tância que tiveram para alguns de seus maiores intérpretes Versão brasileira, revisada e
alargada, de texto publicado
longas experiências no exterior. Seguramente se aplica ao em Sincronie. Rivista Semestrale
di Letterature, Teatro e Sistemi
di Pensiero, 10, Roma, 2006,
nosso país o comentário de um poeta sobre o seu: “[…] pp. 105-26.
Estado Novo, redemocratização do país em mesmo ao visitante desavisado: favelas ao 12 Diogo de Campos Moreno,
Jornada do Maranhão por
1946, suicídio de Vargas em 1954, eleição lado de edifícios imponentes, regiões atra- Ordem de S. Magestade Feita
presidencial livre no ano seguinte. sadas ao lado de outras avançadas, práticas o Anno de 1614, Lisboa,
Academia Real de Ciências,
De qualquer maneira, teria sido funda- sociais e culturais tradicionalistas ao lado 1812 (Collecção de Notícias
para a História e Geografia
mental levar em conta que a experiência de práticas contemporâneas. Definir tal si- das Nações Ultramarinas que
colonial moderna dos ibéricos de certa tuação é contudo controverso. Buarque de vivem nos domínios portu-
gueses, 1-IV), pp. 32-3, 58.
forma prolongou sua experiência colonial Holanda fala em, após a Abolição, um Brasil Também nas tentativas coloniais
medieval, com a conquista da América “americano” no Sul/Sudeste contraposto portuguesas na África, no
século XVI, mantinha-se o mesmo
aos pagãos indígenas correspondendo à ao Brasil ibérico do Norte/Nordeste. Um espírito cruzadístico e a mesma
intervenção de Santiago (cf.
reconquista da península aos “pagãos” sociólogo em “dois Brasis” separados “por Trovas do Bandarra, 80, ed.
mouros. O tradicional grito guerreiro desta, diferenças de idade”, um moderno, outro de Nantes de 1644, Lisboa,
Inapa/Academia Portuguesa
invocando Santiago, foi utilizado naquela, arcaico, que ele etiqueta como colonial. de História, 1989, p. 33).
por exemplo no Maranhão em princípios do Um etnólogo, em “terra de contrastes” na 13 Respectivamente, Raízes do Bra-
século XVII12. Nos dois casos, o processo qual “as épocas históricas encavalam-se sil, pp. 171-6; Jacques Lambert,
Os Dois Brasis, Rio de Janeiro,
não foi obra dos setores mais progressistas umas com as outras”. Um economista, em MEC, 1959; Roger Bastide,
Brésil, Terre des Contrastes,
da sociedade, embora estes tenham a partir “Belíndia”, isto é, país que mescla uma Paris, L’Harmattan, [1957]
de um segundo momento se beneficiado pequena área rica como a Bélgica e uma 1999, p. 16; Edmar Bacha,
“Belíndia”, in Opinião, 1974,
dele. Enquanto a colonização inglesa da imensa área pobre como a Índia. Um jorna- aproveitando Lambert (1959,
p. 105), para quem “no Brasil
América foi realizada por segmentos sociais lista, em diversidade estrutural, já que viajar reproduzem-se os contrastes do
“modernos”, gente que buscava novos hori- pelo Brasil é deslocamento no tempo, não mundo”, com certos aspectos
lembrando Los Angeles e Chi-
zontes, a colonização portuguesa foi obra de apenas no espaço. Um historiador, desen- cago e outros, a Índia e o Egito;
setores ainda “medievais”, que pretendiam volvendo a idéia anterior, em justaposição Euclides da Cunha, Os Sertões,
ed. Leopoldo M. Bernucci, São
reproduzir em outro palco, mais amplo e de épocas, a contemporânea das grandes Paulo, Ateliê, [1902] 2002,
pp. 71-249; Pedro Calmon,
rico, o enredo histórico anterior. cidades próximas ao litoral, a imperial das Espírito da Sociedade Colonial,
Isso não significa negar ou minimizar pequenas cidades do interior, a colonial das São Paulo, Nacional, 1934, p.
197 (idéia seguida por Bastide,
as rupturas, as novidades, os elementos aldeias, a neolítica das zonas indígenas13. pp. 8-9).
analfabetos funcionais (pessoas incapazes isso, se Galaad é o “cavaleiro desejado”, for- 52 La Queste del Saint Graal, ed.
Albert Pauphilet, Paris, Honoré
de ler e escrever textos simples) constitu- te e puro, protetor de humildes e mulheres, Champion, 1980, pp. 7, 34,
77 et passim; João de Barros,
íam-se em 16,4% dos brancos, 27,5% dos Lampião é descrito como alguém que “não Lampião e Maria Bonita no
negros e 28,6% dos mestiços, essas cifras temia/ a ninguém no mundo inteiro […]/ Paraiso do Édem, Tentados por
Satanás, vv. 61-62, 73-76, s/c,
eram bem mais elevadas décadas antes. ele protegia ao pobre/ com todo prazer que s/ed., p. 3.
Entende-se assim o sucesso da radionove- tinha/ defendia uma criança/ uma velha, 53 Harvey L. Sharrer, “The Passing
la na primeira metade do século XX e da uma mocinha”52. of King Arthur to the Island of
Brasil in a Fifteenth-century Spa-
telenovela posteriormente. Essas literatu- A crença medieval de que o rei Artur nish Version of the Post-Vulgate
Roman du Graal”, in Romania
ras orais cumprem de forma eletrônica e não teria morrido e esperava escondido o (Paris), 92, 1971, pp. 65-74;
prolongada (duram meses) as tradicionais momento de voltar foi reatualizada e rein- Curt Nimuendaju Unkel, As Len-
das da Criação e Destruição do
funções da literatura de cordel (sociabili- tensificada em Portugal quando D. Sebastião Mundo como Fundamentos da
Religião dos Apapocuva-Gua-
zação de familiares e amigos reunidos em morreu na batalha de Alcácer Quibir, em rani, São Paulo, Hucitec/Edusp,
torno do rádio e atualmente da televisão; 1578, jogando Portugal em profunda crise 1987; Maria Isaura Pereira de
Queiroz, O Messianismo no
satisfação de necessidades psicológicas política, com perda da independência. O Brasil e no Mundo, São Paulo,
básicas através de arquétipos literários). messianismo sebastianista não era apenas Alfa-Ômega, 2a ed. 1977, pp.
217-41.
Elas são a performance definida por Paul popular, mas também erudito, como provam
54 Antonio Candido de Mello e
Zumthor para a literatura medieval50. o Vieira e os jesuítas que o difundiram na Souza, Formação da Literatura
Brasileira, São Paulo, Martins,
Todavia, o sucesso dos modernos colônia. O terreno era favorável para tanto 1959; Péricles da Silva Pinhei-
veículos de comunicação não excluiu da graças à tradição que identificava o local ro, Manifestações Literárias em
São Paulo na Época Colonial,
sociedade brasileira a literatura de cordel. de repouso de Artur como sendo a ilha São Paulo, Conselho Estadual
Embora tenha passado a ser impressa a Brasil e aos movimentos messiânicos indí- de Cultura, 1961; Alfredo Bosi,
História Concisa da Literatura
partir de fins do século XIX, ela conservou genas, daí o sebastianismo ter se mantido Brasileira, 2a ed., São Paulo,
Cultrix, 1975; Chico Viana e
sua intenção de oralidade, sendo lida em vivo no Nordeste pelo menos até o século Maurice Van Woensel, Poesia
voz alta para um público não-leitor. Daí ser XIX, como indicam os eventos da Cidade Medieval, Ontem e Hoje, João
Pessoa, Editora Universitária
literatura sempre arcaizante, na qual o poeta do Paraíso Terrestre, do Reino Encantado UFPB, 1998; Lênia Márcia
Mongelli, “Entre Onças e Bar-
popular, ao contrário do culto, é tão mais e de Canudos, todos baseados no mítico batões: as Maravilhas Caboclas
respeitado quanto menos original, quanto retorno do rei53. de José de Alencar”, in Signum
(São Paulo), 5, 2003, pp.
menos rebelde às formas e conteúdos tra- Também na literatura culta brasileira 195-232; Massaud Moisés,
dicionais. Por meio desse processo criativo a Idade Média esteve e está presente. Os “Vestígios da Idade Média na
Ficção Romântica Brasileira”,
que preserva valores já abandonados pela exemplos possíveis seriam vários 54. No in Ângela Vaz Leão e Vânia
O. Bittencourt (orgs.), Anais
sociedade global, ele realiza uma “crítica século XVII, a poesia do baiano Gregório do IV Encontro Internacional
a esta sociedade, mesmo sem o pretender de Matos é trovadoresca tanto na sua sátira de Estudos Medievais, Belo
Horizonte, Abrem/PUC-MG,
conscientemente”51. Ora, tais valores são quanto no seu misticismo, daí ser consi- 2003, pp. 59-73.
dos nativos americanos, que não foi essen- novo a constatação é correta, mas não se 73 A Carta de Pero Vaz de
Caminha, op. cit., pp. 94 e
cialmente diferente dos da Alta Idade Média pode esquecer que a partir de longínquas 98.
quando da evangelização das populações origens indo-européias aquela tenha sido 74 Eduardo Hoonaert, Forma-
ção do Catolicismo Brasileiro,
européias pagãs. Nos dois casos recorreu-se a forma medieval de organização social, 1550-1800, Petrópolis, Vozes,
à aculturação forçada (batismos em massa, baseada em hierarquia tripartida de orato- 1978, pp. 66-74.
cristianização formal de divindades locais, res (eclesiásticos), bellatores (guerreiros) 75 Émile Amann e Auguste Dumas,
L’Église au Pouvoir des Laiques
etc.) e mesmo à pura violência contra os e laboratores (trabalhadores braçais). Por (888-1057), Paris, Bloud et
pagãos (germanos num caso, indígenas no fim, o mesmo estudioso destaca que o “ca- Gay, 1948 (Histoire de l’Église,
direção Augustin Fliche e Victor
outro). Em ambas as situações importante tolicismo patriarcal” escapava à legislação Martin, vol. 7).
ritualistas, a maioria dos fiéis entendia a fato, pressionados por condições materiais 86 Michael Goodich, Vita Perfecta:
the Ideal of Sainthood in the
mudança de substância do pão em carne difíceis e impressionados pelas forças da na- Thirteenth Century, Stuttgart,
Anton Hiersemann, 1982; Jean-
de Deus como ato mágico do sacerdote. tureza, os homens da Idade Média tendiam Claude Schmitt, Le Saint Lévrier,
Eles queriam ver a hóstia no momento em a exteriorizar seus sentimentos religiosos. A Paris, Flammarion, 1979.
que ocorria o mistério divino, o que levou comunicação com o mundo divino dava-se 87 Raízes do Brasil, pp. 149-51.
Também Freyre (Casa-grande
no século XIII à generalização do rito de por meio de gestos, palavras, objetos, mais e Senzala, p. 39) atribuíra
elevação. Acreditava-se que olhar a hóstia do que através de reflexão e interiorização. ao patriarcalismo brasileiro
“perfeita intimidade com os
naquele momento trazia benefícios à saúde. Os santos eram respeitados não por suas santos”.
A PSICOLOGIA COLETIVA
CICLOTÍMICA
“Quando as glórias que gozei/ vou na
idéia revolver,/ sinto à força da saudade/ B). Para a Missão Abreviada
“este mundo brevemente há
meu triste pranto correr./ Os que já tive, de acabar” (I,11, p. 72).
doces momentos,/ são hoje a causa dos meus 93 Ronaldo R. F. Mourão, “Anúncio
tormentos.” Esta canção anônima brasileira do Fim do Mundo Causou
Mortes no Brasil”, in Folha
sintetiza bem um tema recorrente da sen- de S.Paulo, 23/3/1997,
Caderno Mais!, p. 5; Hilário
sibilidade lusitana desde o século XIII – a Franco Júnior, O Ano Mil, Tempo
saudade. Na música popular brasileira ela de Medo ou de Esperança?,
São Paulo, Companhia das
aparece em todos os gêneros e em todas as Letras, 1999, pp. 80-2.
épocas. Ela pode se referir a uma pessoa, 94 The Book of Enoch, 10,17-
a um tempo, a um espaço, a um fenômeno 19, trad. E. Isaac, in James
Hamilton Charlesworth, The
natural, a um objeto. Em todos os casos, “a Old Testament Pseupigrapha,
Londres, Darton, Longman &
saudade é dor pungente/ a saudade mata a Todd, 1983, vol. I, p. 18.
do cometa Biela marcava o fim do mundo gente”. Muitas vezes se pensou que senti- 95 Cf. Antonio Candido de Mello e
enlouqueceram algumas pessoas, houve mento tão forte e onipresente na psicologia Souza, Os Parceiros do Rio Bo-
nito, São Paulo, Duas Cidades,
pelo menos um suicídio e uma morte por lusitana resultara justamente da expansão 1971, p. 196. A imagem do
estado de choque. Um século depois, diante ultramarina, do afastamento da “pequena garfo fincado no animal está
inspirada, evidentemente, em:
da proximidade do fim do milênio, pessoas casa portuguesa” na conhecida metáfora Hans Sachs, “Das Schlawera-
ffenlandt”, vv. 37-41, ed.
se mataram no Piauí, presos foram libertados de Fernando Pessoa. Edmund Goetze, in Sämtliche
porque o mundo ia acabar93. Diante de suas Mas a palavra é de princípios do século Fabeln und Schwänke, Halle,
Max Niemeyer, 1893, p. 183
dificuldades concretas, tanto a sociedade XIII, revelando a tomada de consciência de (traduzido em Hilário Franco
medieval quanto a brasileira parecem se sentimento evidentemente anterior. Como Júnior, Cocanha. Várias Faces
de uma Utopia, São Paulo,
anestesiar com a imagem de um novo mundo Jean Starobinski observou com razão a Ateliê, 1998, p. 81).
messiânico. Para um apócrifo bíblico muito propósito de outro conceito, “o sentimento 96 Severino Borges, A Vinda do
Anti-Cristo e os Sinaes do Fim
popular na Idade Média, “nesses dias toda não é a palavra, mas não pode se dissemi- dos Tempos, p. 14 (citado por
a terra será cultivada com justiça; toda ela nar a não ser através de palavras. A história Höffler, op. cit., p. 158).
ficará cheia de árvores e de bênçãos. Nela dos sentimentos não pode por isso ser outra 97 “Le Concept de Nostalgie”, in
Diogène (Paris), 54, 1966, pp.
serão plantadas toda espécie de árvores coisa que a história das palavras pelas quais 92-3.
aprazíveis e de vides, […] cada semente a emoção se enuncia”97. Ora, a noção de 98 Ela era ali falada pelos muitos
produzirá mil”94. Para um homem simples saudade é algumas vezes aproximada da transpirenaicos que chegavam
como guerreiros da Recon-
do interior paulista no século XX, depois de “melancolia”, mas como esta palavra quista, eclesiásticos da Reforma
Gregoriana, monges de Cluny
do Anticristo um anjo de Deus descerá do existia há séculos em latim e desde 1176 em e depois de Cister, peregrinos
céu e “um boi assado vai correr a terra, de francês (língua bem conhecida no Portugal de Compostela, cortesãos da
primeira dinastia portuguesa
casa em casa, com um garfo e uma colher de então)98, dificilmente teriam surgido que era de origem francesa. O
fincados”95. Para um folheto de cordel, em português na mesma época soydade e período áureo do trovadorismo
lusitano (1245-80) corresponde
“daí por diante será/ um viver de sensatez/ melanconia se os termos se recobrissem. ao reinado de Afonso III, que,
acompanhado por muitos no-
não haverá mais misérias/ nem domínios Como este último designava, é sabido, um bres portugueses, anteriormente
de outros reis”96. Arraigada, essa crença estado psíquico negativo e indefinido, um vivera dez anos na corte do
rei da França e do conde de
na superação da fase apocalíptica com a desencanto em relação à vida (melas = negro, Borgonha.
anônimo do século XI afirma que “esta vida muito novas e muito gentis, com cabelos 106 Salmos, CXIX,19; 1 Pedro,
II,11; Hebreus, XI,13.
é peregrinação em terra estrangeira e não muito pretos e compridos, caídos pelas
107 Dialogues, IV,1, ed. Adalbert
na pátria, prisão de escravidão e não lar de espáduas, e suas vergonhas tão altas e tão de Vogue, trad. Paul Antin,
liberdade, exílio de catividade e não moradas cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, Paris, Cerf, 1980 (Sources
Chrétiennes, 265), p. 18,
da cidade e do reino celestes”109. O mesmo de as muito bem olharmos, não tínhamos linhas 1-5.
conceito é registrado por um divulgador nenhuma vergonha. […] E uma daquelas 108 Jonas de Orleans, De Insti-
bastante popular no século XII e um texto moças […] certamente era tão bem feita e tutione Laicalis, I, PL 106,
col.165 A.
oficial do papado no século XIII110. tão redonda, e sua vergonha – que ela não
109 Chronique ou Livre de Fonda-
É significativo que na primeira descrição tinha! – tão graciosa, que a muitas mulhe- tion du Monastère de Mouzon,
I,3, ed.trad. Michel Bur, Paris,
da terra recém-descoberta pelos europeus, res de nossa terra, vendo-lhes tais feições, CNRS, 1989, pp. 148-149,
Pero Vaz de Caminha tenha enfatizado tanto provocaria vergonha, por não terem as suas linhas 7-10. A origem da
imagem pode estar na tristeza
o caráter adâmico dos indígenas como a dela. […] Também andavam entre pelo desterro de Jerusalém e a
eles quatro ou cinco mulheres moças, nuas escravidão em Babilônia, can-
tada em Salmos, CXXXVII.
“[…] todos nus, sem coisa alguma que lhes como os homens, que não se apresentavam
110 Honório Augustodunensis,
cobrisse as suas vergonhas. […] Andam nus, mal [com] suas vergonhas tão nuas e com De Vita Claustrali, PL 172,
col.1247; Le Pontifical de la
tanta inocência descobertas, que não havia Curie Romaine au XIII Siècle,
nisso vergonha alguma”. XIX,20,1, ed. Michel Andrieu,
trad. Monique Goullet, Guy
Lobrichon e Eric Palazzo, Paris,
Não por acaso, além de dois degradados Cerf, 2004, pp. 196-7.