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HILÁRIO FRANCO

JÚNIOR é professor do
Departamento de História
da FFLCH-USP e autor
de, entre outros, A Dança
dos Deuses – Futebol,
Sociedade e Cultura
(Companhia das Letras).

HILÁRIO FRANCO JÚNIOR

“[…] quem quiser se prender ao presente,


ao atual, não compreenderá o atual”
(Michelet, Le Peuple).

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Talvez todo país pareça um pouco enigmático aos

olhos de seus próprios cidadãos, mas em alguns o fenô-

meno é sem dúvida mais intenso. Nesses casos, é preciso

certo distanciamento físico e emocional do observador. No

tocante ao Brasil não poderia ser diferente, daí a impor-

tância que tiveram para alguns de seus maiores intérpretes Versão brasileira, revisada e
alargada, de texto publicado
longas experiências no exterior. Seguramente se aplica ao em Sincronie. Rivista Semestrale
di Letterature, Teatro e Sistemi
di Pensiero, 10, Roma, 2006,
nosso país o comentário de um poeta sobre o seu: “[…] pp. 105-26.

a Rússia, como tudo que é grande, só se vê bem a distân-

cia”1. Distância que deve ser também temporal, não apenas

espacial. Ora, as clássicas interpretações do Brasil partem

sempre do “fato” de ele ter sido “descoberto” em 1500,

no começo da “Idade Moderna”, sem considerar a longa

história que seus colonizadores europeus, permanentes ou


1 Ivan Kireevskij, Polnae Sobranie
circunstanciais, traziam consigo. A opção em examinar o Socinenij [1861], Ann Arbor,
Ardis, 1983, vol. I, p. 48.
Brasil a partir do nascimento, e não da gestação, limitou Sérgio Buarque de Holanda
passou dois anos na Alemanha
(1929-30) e dois na Itália
de certa forma aqueles valiosos diagnósticos da crise de (1953-54), Gilberto Freyre, três
entre Portugal e Estados Unidos
identidade que sempre nos acompanhou como nação2. De (1930-33), Caio Prado Júnior,
dois (1937-38) na França.
fato, toda personalidade coletiva é constituída, mais do 2 Balanço realizado por José Car-
los Reis, Identidades do Brasil:
que as individuais, por inúmeros fatores anteriores à sua de Varnhagem a FHC, Rio
de Janeiro, Fundação Getúlio
Vargas, 2000. Cômodo e
corporificação histórica. Negar-lhes cidadania analítica não competente conjunto de sínteses
daquelas obras está em: Luis
os elimina do modo de ser brasileiro e reduz o alcance da Dantas Mota (org.), Introdução
ao Brasil. Um Banquete no
Trópico, 2 volumes, São Paulo,
compreensão pretendida. Senac, 1999-2000.

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Bom exemplo desse procedimento é um se basear no auxílio recíproco e ser depois
daqueles grandes livros, talvez o maior de- acompanhado por festividades5. Sem negar
les, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de provável influência dos nativos nessa prá-
Holanda. Temos aí uma interpretação plena tica de trabalho coletivo (a etimologia da
de finesse e inteligência, que nos parece, palavra é possivelmente tupi), não se pode
contudo, incorrer naquela mesma distorção minimizar o fato de os colonos europeus
de perspectiva. E no entanto a metáfora que aqui chegavam conhecerem há séculos
“raízes” indica como objeto não a árvore tal costume. A economia senhorial da Idade
visível, o Brasil histórico conhecido, bem Média tornava necessária a associação dos
ou mal, por todos, e sim a parte oculta sob camponeses na realização de tarefas para
a terra e que determina as características as quais cada família isoladamente não
dessa árvore esfíngica. O grande historia- possuía os meios requeridos. Era o caso da
dor não levou na devida conta, a nosso ver, aradura, da colheita, da construção de mo-
sua própria metáfora. As raízes do Brasil radias. Estas e outras formas de cooperação
evidentemente antecedem o Brasil. Elas campesina ocorreram em toda a Europa me-
são anteriores a 1500. Elas encontram-se dieval6, inclusive em Portugal, onde ainda
no período que há muito se convencionou há poucas décadas podiam ser observadas,
chamar de Idade Média. sobretudo no Minho, no Trás-os-Montes e
É verdade que Sérgio Buarque percebe na Beira7, regiões de procedência de muitos
a mobilidade social portuguesa daquele colonizadores do Brasil.
período como geradora de uma burguesia Portanto, surpreende retrospectivamen-
mercantil que não precisou impor um sis- te que o estudioso tenha deixado de lado
3 Sérgio Buarque de Holanda,
Raízes do Brasil, pp. 36-7, tema de valores próprios para forjar sua elementos importantes para sua reflexão.
80-1 e 40.
identidade, antes, pelo contrário, adotou Ainda mais porque o objeto do livro, já
4 Idem, ibidem, pp. 44-7 e 95-
9. o modo de vida da velha aristocracia, que se notou com justeza, não era reconstituir
5 Idem, ibidem, p. 60.
portanto não desapareceu e, assim, “as linearmente a história brasileira, e sim exa-
formas de vida herdadas da Idade Média minar formas de vida social, de instituições
6 Monique Bourin e Robert Du-
rand, Vivre au Village au Moyen conservaram, em parte, seu prestígio anti- e de mentalidade que, nascidas no passado,
Age. Les Solidarités Paysannes
du 11e au 13e Siècles, Paris, go”. Entretanto, se ele vê no patriarcalismo ainda faziam parte da identidade nacional
Messidor, 1984; Robert Fossier, lusitano um dos traços fundadores da orga- do presente do historiador. Tratava-se, pois,
Villages et Villageois au Moyen
Âge, Paris, Christian, 1995; nização social brasileira e se reconhece que de examinar o tradicional, o arcaico8. Ora,
Robert Durand, Les Campagnes
Portugaises entre Douro et
a cultura nacional procede de Portugal por para os lusitanos dos Descobrimentos e
Tage aux XIIe et XIIIe Siècles, “tradição longa e viva”, partilhando com dos primeiros tempos da colonização, tra-
Paris, Centro Cultural Português,
1982, pp. 148-67, 196-8. a antiga metrópole uma “alma comum”3, dicional era toda herança vinda da Idade
7 Orlando Ribeiro, “Villages o caráter medieval desses fenômenos fica Média. Logo, como vamos sugerir, não
et Communautés Rurales au mais implícito do que revelado e o estudioso seria possível a Buarque de Holanda realizar
Portugal”, Biblos (Coimbra), 16,
1940, p. 413; Ernesto Veiga de perde assim a oportunidade de aprofundar as completamente seu projeto sem colocar no
Oliveira, “Trabalhos Colectivos
Gratuitos e Recíprocos em reflexões. Na mesma linha, ele recorta o tipo centro da cena a contribuição medieval.
Portugal e no Brasil”, Revista ideal do aventureiro lusitano sem associá- Por que, então, nosso maior historiador
de Antropologia (São Paulo), 3,
1955, pp. 21-43. A estrutura lo ao cruzado, de quem, contudo, procedia deu pequena atenção àquela época? Pro-
agrária coletivista seria muito
antiga, de origem celta, tendo-
sociologicamente e de quem herdara o es- vavelmente devido ao formato de ensaio
se mantido ao longo do tempo, pírito. Ou, outro exemplo, para explicar o sociológico do livro, à sua admiração pela
até hoje, devido às condições
geográficas montanhosas do contraste entre as colonizações portuguesa cultura renascentista, às circunstâncias
Norte português de acordo com e castelhana, uma rural, outra urbana, não históricas nas quais escreveu. Quanto ao
Orlando Ribeiro e Hermann Lau-
tensach, Geografia de Portugal. recorre ao essencial, a diferente história primeiro ponto, basta lembrar que poucos
O Povo Português, Lisboa, Sá da
Costa, 1989, vol. 3, pp. 631, urbana medieval nos dois reinos4. anos antes, durante sua estada em Berlim,
652 e 656. Estranha recusa ao legado medieval sofrera forte influência da sociologia alemã,
8 Brasílio Sallum Jr., “Sérgio ocorre em relação ao mutirão (costume testemunhada pelas cinco referências que
Buarque de Holanda. Raízes
do Brasil”, in Luis Dantas Mota usado por camponeses para derrubar matas, faz a Max Weber, mais do que a qualquer
(org.), Introdução ao Brasil. Um plantar, colher, construir casas e fiar algo- outro autor. Quanto ao segundo ponto, já
Banquete no Trópico, op. cit.,
vol. I, p. 238. dão), ao qual atribui origem indígena por se notou a atração do autor de Raízes do

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Brasil pelo Renascimento, a cujo modelo modernos presentes na colônia portuguesa
de civilização pretendia mostrar que o país desde os primeiros tempos. Mas justamente
estava filiado9. Talvez por isso ele remeta porque a supervalorização historiográfica
certas constatações diretamente à Antigüi- desses elementos impediu a percepção dos
dade Clássica10, saltando a intermediação elementos medievais, o presente ensaio
medieval que lhes deu tom próprio e exis- coloca a ênfase nas continuidades. Ou seja,
tência histórica para os colonos portugueses nos elementos históricos já ultrapassados
e seus descendentes. na metrópole, ou em via de o serem, porém
Quanto ao terceiro ponto, já se assina- introduzidos com vigor na colônia, daí
lou que um dos traços distintivos da obra terem sobrevivido à separação política e
de Sérgio Buarque em relação à de outros gerado o clima de arcaísmo ainda presente
“inventores” do Brasil foi justamente sua em muitas facetas do Brasil. Para que estas
visão do futuro naquele momento de acen- possam ser compreendidas, é preciso deixar
tuada transição econômica, social e política de lado o discurso imediatista que atribui
do país11. E com efeito, se considerarmos os problemas nacionais ao presente ou no
as datas não somente da primeira (1936), máximo a um passado recente, iludindo a
mas igualmente da segunda (1947) e da sociedade quanto à urgência de um esforço 9 Nello Avella, “Il Ritorno del
terceira e definitiva edição (1955) do livro, coletivo global e contínuo ao longo de algu- Maestro Cordiale”, na tradução
italiana do livro de Sérgio
e também o perfil intelectual consciente e mas gerações. A análise do que o Brasil é, Buarque, Radici del Brasile,
engajado de Sérgio Buarque, pode-se pensar e do por que o é, deve ser redimensionada. Florença, Giunti, 2000, pp.
21-2 e 26.
que o historiador não conseguiu escapar Nenhum diagnóstico – portanto, nenhum
10 Raízes do Brasil, pp. 32, 38,
aos condicionamentos que lhe impunham prognóstico – do Brasil será possível sem 81, 89-90, 95, 141, 201 (n.
3).
aqueles momentos-chave na trajetória considerar a herança medieval que ainda
11 Fernando Henrique Cardoso,
histórica recente do Brasil: Constituição age sobre nós. Dentro de nós. “Prefazione” à edição citada
de 1934, que atenuou o autoritarismo do A duplicidade do Brasil atual é evidente na nota 9, pp. 5-7.

Estado Novo, redemocratização do país em mesmo ao visitante desavisado: favelas ao 12 Diogo de Campos Moreno,
Jornada do Maranhão por
1946, suicídio de Vargas em 1954, eleição lado de edifícios imponentes, regiões atra- Ordem de S. Magestade Feita
presidencial livre no ano seguinte. sadas ao lado de outras avançadas, práticas o Anno de 1614, Lisboa,
Academia Real de Ciências,
De qualquer maneira, teria sido funda- sociais e culturais tradicionalistas ao lado 1812 (Collecção de Notícias
para a História e Geografia
mental levar em conta que a experiência de práticas contemporâneas. Definir tal si- das Nações Ultramarinas que
colonial moderna dos ibéricos de certa tuação é contudo controverso. Buarque de vivem nos domínios portu-
gueses, 1-IV), pp. 32-3, 58.
forma prolongou sua experiência colonial Holanda fala em, após a Abolição, um Brasil Também nas tentativas coloniais
medieval, com a conquista da América “americano” no Sul/Sudeste contraposto portuguesas na África, no
século XVI, mantinha-se o mesmo
aos pagãos indígenas correspondendo à ao Brasil ibérico do Norte/Nordeste. Um espírito cruzadístico e a mesma
intervenção de Santiago (cf.
reconquista da península aos “pagãos” sociólogo em “dois Brasis” separados “por Trovas do Bandarra, 80, ed.
mouros. O tradicional grito guerreiro desta, diferenças de idade”, um moderno, outro de Nantes de 1644, Lisboa,
Inapa/Academia Portuguesa
invocando Santiago, foi utilizado naquela, arcaico, que ele etiqueta como colonial. de História, 1989, p. 33).
por exemplo no Maranhão em princípios do Um etnólogo, em “terra de contrastes” na 13 Respectivamente, Raízes do Bra-
século XVII12. Nos dois casos, o processo qual “as épocas históricas encavalam-se sil, pp. 171-6; Jacques Lambert,
Os Dois Brasis, Rio de Janeiro,
não foi obra dos setores mais progressistas umas com as outras”. Um economista, em MEC, 1959; Roger Bastide,
Brésil, Terre des Contrastes,
da sociedade, embora estes tenham a partir “Belíndia”, isto é, país que mescla uma Paris, L’Harmattan, [1957]
de um segundo momento se beneficiado pequena área rica como a Bélgica e uma 1999, p. 16; Edmar Bacha,
“Belíndia”, in Opinião, 1974,
dele. Enquanto a colonização inglesa da imensa área pobre como a Índia. Um jorna- aproveitando Lambert (1959,
p. 105), para quem “no Brasil
América foi realizada por segmentos sociais lista, em diversidade estrutural, já que viajar reproduzem-se os contrastes do
“modernos”, gente que buscava novos hori- pelo Brasil é deslocamento no tempo, não mundo”, com certos aspectos
lembrando Los Angeles e Chi-
zontes, a colonização portuguesa foi obra de apenas no espaço. Um historiador, desen- cago e outros, a Índia e o Egito;
setores ainda “medievais”, que pretendiam volvendo a idéia anterior, em justaposição Euclides da Cunha, Os Sertões,
ed. Leopoldo M. Bernucci, São
reproduzir em outro palco, mais amplo e de épocas, a contemporânea das grandes Paulo, Ateliê, [1902] 2002,
pp. 71-249; Pedro Calmon,
rico, o enredo histórico anterior. cidades próximas ao litoral, a imperial das Espírito da Sociedade Colonial,
Isso não significa negar ou minimizar pequenas cidades do interior, a colonial das São Paulo, Nacional, 1934, p.
197 (idéia seguida por Bastide,
as rupturas, as novidades, os elementos aldeias, a neolítica das zonas indígenas13. pp. 8-9).

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Como se vê, a herança da Idade Média não mesmo aquele aparentemente menos nobre
foi levada em conta por nenhuma avaliação que crônicas, diplomas e peças arqueológi-
global da história nacional, tão em voga nas cas, deve ser analisado. Poucos estudiosos
primeiras décadas do século XX14. negariam atualmente que tanto o documento
Mesmo o grande salto posterior da histórico quanto o etnográfico ganham esse
historiografia nacional não evitou que se estatuto ao serem utilizados como indícios
continuasse a deixar de lado a contribuição explicativos das questões que lhe são co-
medieval na formação do Brasil. Talvez não locadas: as fontes não criam o historiador
somente por tradicionalismo cronológico, e o etnólogo, mas o inverso.
mas também – diante do ainda arraigado Esse material ampliado não revela, po-
preconceito em relação à Idade Média rém, por si só o objeto em questão. Ele deve
– por recusa inconsciente em aceitar nossas ser processado por um método adequado.
facetas medievais, em alimentar aquilo que Possibilidade interessante é o “método re-
Nelson Rodrigues chamou de “complexo gressivo” de Marc Bloch, que propugna ir
14 Curiosamente, essa recusa
de vira-latas […] a inferioridade em que o do mais ao menos conhecido, passar o filme
deu-se tanto por parte daqueles brasileiro se coloca, voluntariamente, em “em sentido inverso”, fazer constantes idas-
que exaltaram a colonização
ibérica (como Oliveira Vianna, face do resto do mundo”15. Daí ter sido e-vindas entre passado e presente. Outra
Populações Meridionais do um estudioso estrangeiro, o mexicano Luis possibilidade é a “antropologia histórica”,
Brasil, São Paulo, Nacional,
1920, ou Gilberto Freyre, Weckmann, que recentemente tratou – com cujas perspectivas cronológicas enfocam
Casa-grande e senzala, 31a
ed., Rio de Janeiro, Record, pouca repercussão, fato expressivo – da a longa duração, os fatos repetidos, o co-
[1933] 1996) quanto dos presença da Idade Média na vida brasileira, tidiano, a mentalidade; cujas perspectivas
que viram nela um parasitismo
econômico formador de elites mesmo tendo-a limitado ao período colo- sociológicas valorizam o grupo e nele a
retrógradas (Manoel Bonfim,
A América Latina. Males de
nial. De toda forma, ele relembrou que as dinâmica de subgrupos sexuais, etários,
Origem: o Parasitismo Social metrópoles ibéricas não conheceram um Re- funcionais; cujas perspectivas culturais
e Evolução, Rio de Janeiro, A
Noite, 1905). nascimento pleno que tenha representado, reavaliam o carismático (oficial e marginal)
15 Nelson Rodrigues, “Complexo como em outras partes da Europa, transição e a civilização material (técnicas, saberes,
de Vira-latas”, in À Sombra das da medievalidade para a modernidade. Mal corpo, alimentação, etc.)17. No cruzamento
Chuteiras Imortais. Crônicas de
Futebol, São Paulo, Companhia tocados pela cultura renascentista, Espanha e adaptação das duas propostas podemos
das Letras, [1958] 1993, p.
52. e Portugal continuaram a produzir, no sécu- pensar numa antropologia histórica retros-
16 Luis Weckmann, La Herencia
lo XVI, uma literatura cavaleiresca tardia, pectiva, isto é, que examine os temas da
Medieval del Brasil, México, escritos místicos e uma espécie de novos segunda na seqüência da primeira. Dessa
Fondo de Cultura Económica,
1993. Cf. também La Herencia monges-guerreiros, os jesuítas. Na América forma, pode-se esperar que a diacronia in-
Medieval de Mexico, México, ibérica, conclui ele, o outono da Idade Média vertida abra janelas para olhares sincrônicos
El Colegio de Mexico, 1984, 2
volumes. Mas, de forma geral, ocorreu apenas no século XVII16. que não se deixem enganar por aculturações
por motivos provavelmente
opostos, também os estudiosos Se essa constatação pode, em linhas recíprocas.
estrangeiros não levam em gerais, ser aceita em certos planos, não o Com esse olhar abrangente e ágil pode-
conta as raízes medievais na
formação do Brasil. Exemplo pode contudo em outros, especialmente mos, talvez, comprovar em certas manifes-
recente é Bartolomé Benassar e
Richard Marin, Histoire du Brésil,
no social, cultural, religioso e psicológico. tações da vida brasileira a permanência de
1500-2000, Paris, Fayard, Diversos elementos medievais continuaram uma Idade Média ainda mais longa do que
2000. Sobre as limitações
do Renascimento português, presentes nos tempos seguintes, e alguns aquela definida para a Europa por Jacques Le
ver José Sebastião da Silva até hoje. Mas, para captá-los, é necessário Goff. É preciso, contudo, estar atento para
Dias, Os Descobrimentos e a
Problemática Cultural do Século ampliar o campo temporal observado, o cor- distinguir duas situações de sentido diverso
XVI, Lisboa, Presença, 1973.
pus documental examinado, o instrumental embora próximas na aparência. Há deter-
17 Marc Bloch, Les Caractères
Originaux de l’Histoire Rural metodológico utilizado. Deve-se alargar a minados fenômenos da história brasileira
Française, Paris, Armand Co- atenção para a Europa medieval em geral e que se poderia estar tentado a classificar de
lin, [1931] 1976, vol. I, p.
XIV; Apologie pour l’Histoire Portugal em particular. Não basta, porém, medievais, mas que a rigor são realidades
ou Métier de l’Historien, ed.
Étienne Bloch, Paris, Armand
o cuidado do historiador em ressuscitar os antropológicas encontráveis em diferentes
Colin, [1942] 1993, pp. 96-7; fragmentos mortos do passado, é preciso épocas e sociedades. O analfabetismo ou
Jacques Le Goff, “L’Historien et
l’Homme Quotidien”, in Pour também um olhar de etnólogo sobre as a violência social, por exemplo, algumas
un Autre Moyen Age, Paris, manifestações vivas do presente que carrega vezes taxados de medievais, são-no apenas
Gallimard, [1972] 1977, pp.
335-48. aquela herança. Todo material disponível, por metáfora ou analogia. Outras caracte-

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rísticas brasileiras, pelo contrário, podem dernidade, e de regiões de modernidade
ser legitimamente chamadas de medievais com enclaves de medievalidade. É esse
por resultarem de uma continuidade histó- o contraste que chama atenção e explica
rica, explícita ou latente, de longa duração. a dinâmica histórica própria ao país. As
São frutos de nossas raízes medievais. Mas fortes oscilações na trajetória nacional
também é preciso considerar que alguns do século passado resultaram da difícil
traços “medievais” por metáfora ganham convivência entre aquelas concepções de
sentido mais literal em contextos global- mundos, cujas relações tornaram-se cada
mente medievais, caso dos dois exemplos vez mais difíceis com a vaga de imigração
acima citados. européia e asiática na passagem do século
Falamos, portanto, não propriamen- XIX para o XX e com os progressos da
te de uma Idade Média brasileira, e sim industrialização e da urbanização a partir
de um sistema de valores medievais no de meados do século XX. De toda forma, as
Brasil. Como Mário Martins percebeu, “a “estruturas fundamentais que persistem na
maneira medieval de ser e de sentir a sua sociedade européia do século IV ao XIX”19
mundividência e também o seu conteúdo são no essencial as mesmas que persistem
poético e social [prolongou-se] no nordeste no Brasil do século XVI ao XX.
brasileiro onde o poder central nem sempre
conseguiu impor-se, dando origem a uma
espécie de vida feudal, com a psicologia
correspondente”. Mas por pelo menos duas A SOCIEDADE SENHORIAL
razões seria simplista qualificar o Brasil
de hoje de medieval no Norte/Nordeste e No contexto de pretendidas reformas no
moderno no Sul/Sudeste. Do ponto de vista funcionalismo do Congresso, criticou-se
epistemológico, porque como aquele autor no começo de 2001 um deputado federal
pertinentemente observou, “a Idade Média que quando da contratação de assessores
não é um tempo, mas antes certo modo de tentou justificar a inclusão de familiares
ser e de estar no mundo”18. Ora, este modo argumentando que “eles não podem ser
de ser resulta de ritmos assimétricos de cada punidos [não sendo contratados] por
um dos níveis (modernamente chamados serem meus parentes”. Meses depois se
de político, institucional, econômico, so- debateu também a resistência do Judici-
cial, cultural, religioso, mental) do viver ário à reforma que impede a contratação
coletivo. Quer dizer, é possível um grupo de parentes até segundo grau. Mas não se
humano ter traços “medievais” no plano costuma levar em conta que essa não é
político, por exemplo, e “modernos” no apenas conduta pouco ética de segmentos
econômico. Do ponto de vista factual, fortemente corporativos: pesquisa do ins-
porque os colonos portugueses e seus des- tituto Vox Populi realizada em princípios
cendentes dispersaram-se pela maior parte de 2000 tinha revelado que, enquanto
do território brasileiro atual, embora com 59% dos entrevistados eram contrários à
intensidades diferentes conforme as épocas contratação de parentes por parte de parla-
18 Mário Martins, “A Sobrevivên-
e os locais, e também porque mais tarde a mentares, 46% não hesitariam em fazê-lo cia da Epopéia Carolíngia no
migração interna – que envolveu 10% da caso ocupassem cargos públicos20. Brasil”, in Estudos de Cultura
Medieval, Lisboa, Brotéria,
população total em 1950 – em especial no Temos aí uma versão nacional e atual 1983, vol. III, pp. 418 e
432.
sentido Norte-Sul, favoreceu numa fase de fenômeno bem analisado por Norbert
19 Le Goff, “Pour un Long Moyen
inicial a circulação do sistema de valores Elias: aquilo que do ponto de vista externo Age” [1983], in L’Imaginaire
medievais antes de este se enfraquecer numa é visto como corrupção é procedimento Médiéval, Paris, Gallimard,
1985, p. 10.
segunda fase diante das pressões da cultura lógico da práxis social em certo estágio
20 Cf. Veja, no 1639, 8/3/2000,
dominante na região de instalação. da formação do Estado, no qual o fato de p. 20.
Logo, melhor é definir o Brasil atual alguém galgar posição social de destaque 21 Norbert Elias, A Sociedade
como resultado da interação de regiões e não favorecer a parentela é considerado dos Indivíduos, Rio de Janeiro,
Jorge Zahar, [1988] 1994, p.
de medievalidade com enclaves de mo- atitude moralmente reprovável; é traição21. 148.

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Tal visão comum a políticos e cidadãos analogia antropomórfica era contudo bem
na passagem do século XX ao XXI não é anterior, tinha raízes medievais e ibéricas.
estruturalmente diferente da dos senhores No século XII, João de Salisbury afirmara
feudais servidos por parentes próximos. que no corpo social os agricultores repre-
Não deixa de ser curioso como a certidão sentavam os pés, aos quais “é especialmente
de nascimento do Brasil fecha-se com pe- necessária a atenção da cabeça […] já que
dido de ares nepotistas quando Pero Vaz de sem os pés nenhum corpo, por robusto que
Caminha pede ao rei que perdoe seu genro seja, poderá caminhar por suas próprias
que tinha sido degredado, o qual vai ser forças”. No século VII, uma lei definia o
no ano seguinte, com a morte do escrivão, rei como a cabeça que conduz os “súditos
nomeado para substituí-lo22. membros”26.
Trata-se, em última análise, da concep- O personalismo que governava as re-
ção de familia (ou mansio, “casa”), conjunto lações sociais medievais engendrou – e
de indivíduos unidos por laços variados de no Brasil ainda engendra – fraqueza das
solidariedade, concepção germânica que instituições e das normas impessoais e
submete o comportamento de cada um de gerais que devem comandar as sociedades
seus membros aos costumes da tribo. Aí, modernas e democráticas. “O período que
mais do que sociedade (Gesellschaft), existe assistiu ao florescimento das relações de
comunidade (Gemeinschaft). Tal noção, proteção e de subordinação pessoais […]
grosso modo, é a mesma no interior do foi igualmente marcado por um verdadeiro
Brasil de hoje. Neste, diz Carlos Rodrigues estreitamento dos laços de sangue: porque
Brandão, família é “a unidade de referência os tempos eram agitados e a autoridade
que torna qualquer pessoa um integrante pública não tinha vigor, o homem tomava
legítimo de uma parentela e da vizinhança consciência mais viva das suas ligações com
22 A Carta de Pero Vaz de de um bairro rural. Ninguém ofende a João, os pequenos grupos, fossem quais fossem,
Caminha, ed. Sílvio Castro,
Porto Alegre, L&PM, 1985, p. mas ‘ao filho de seu Vicente e dona Maria’ dos quais podia esperar algum socorro”.
73.
e, por extensão, ofende seus irmãos, ascen- Essa citação, que poderia se referir na his-
23 Carlos Rodrigues Brandão, dentes, filhos e outros parentes. A ofensa se tória do Brasil tanto à sociedade açucareira
O Trabalho de Saber. Cultura
Camponesa e Escola Rural, São volta contra todo o grupo doméstico, porque do século XVII quanto à cafeeira do XIX,
Paulo, FTD, 1990, p. 136.
aquele sobre quem ela recai só é uma pessoa fala no trecho que substituímos acima por
24 Raízes do Brasil, pp. 81-2;
José da Silva Lisboa, Princípios por ser de tal família”23. reticências em “o estado social que chama-
de Economia Política, Lisboa, No interior da fechada família de tipo mos feudalismo”27.
1804, pp. 39 e 42, citado
em Raízes do Brasil, p. 85. patriarcal, o poder do senhor é imenso sobre Nessa formação social havia certa indis-
25 André João Antonil, Cultura e a massa escrava, o grupo de agregados e os tinção entre coisa pública e coisa privada.
Opulência do Brasil por suas familiares mais próximos. A grande família, A privatização da primeira deu-se quando
Drogas e Minas, São Paulo,
Nacional, s/d, p. 54. medieval ou brasileira, deixa autoridade grandes detentores de terra apossaram-
26 Policraticus, V, 2, PL 199, quase ilimitada nas mãos do patriarca. No se de funções (militar, fiscal, judiciária,
col.540 cd; Lex Visigotorum,
II,1.3, ed. Karl Zuemer, MGH.
Brasil colonial, e mesmo depois, o pátrio monetária) que se tornaram patrimônio
Leges, vol.I, p. 47, linha 11 poder exercia-se até sobre a vida dos mem- de algumas famílias. É verdade que no
(subtita membra), idéia que na
mesma época ainda está pre- bros da família, sem que o poder público plano teórico a Idade Média conservou
sente em: Braulio de Saragoça, interviesse, lembra Sérgio Buarque. Esse os conceitos vindos do Estado romano da
“Epistola”, 5, in Epistolario de
San Braulio, ed. Luis Riesco quadro levou a se comparar a sociedade ao Antigüidade: publicus é o pertencente ao
Terrero, Sevilha, Universidad
de Sevilla, 1975, pp. 67-71. corpo humano encabeçado por um chefe de povo, à coletividade, é aquele que age em
27 Marc Bloch, La Société Féo- caráter patriarcal. Ainda no século XIX, um nome de todos, é aquilo que ocorre diante
dale, Paris, Albin Michel, erudito como o visconde de Cairu concebia de todos, abertamente; privatus é a esfera
[1939-1940] 1973, p. 207.
O paralelo com Portugal é o Estado como vasta família cujo patriarca do particular, do pessoal, do familiar, da-
estudado, sob outro enfoque
metodológico, mas com in-
é a “cabeça” do corpo social24. Na mesma quilo que ocorre em casa, secretamente. No
formações interessantes, por concepção tinha se inspirado o cronista plano prático, contudo, a sociedade feudal
Armando Castro, Portugal na
Europa do seu Tempo. História jesuíta do século XVII brasileiro, para embota a fronteira entre os conceitos.
Sócio-económica Medieval quem os escravos negros são “as mãos e Interpenetra-os. Nela tudo é privado e ao
Comparada, Lisboa, Seara
Nova, 1970. os pés dos senhores de engenho”25. Essa mesmo tempo tudo se torna público.

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Exatamente como no caso brasileiro, no generoso e bom é um dos constituintes
qual a coisa pública é vista não como perten- do seu mundo”31. Diante disso, não é de
cendo a todos, e sim como não pertencendo estranhar que nos dois locais tenha se su-
a ninguém. Ou melhor, como sendo de quem bestimado por séculos o espírito de rotina,
se apossa dela antes dos outros. A morali- de organização e de esforço contínuo. É o
dade da casa é diferente da moralidade da que comprova, no caso brasileiro, a epopéia
rua; o que é vedado no espaço privado é colonial das bandeiras, a loteria da minera-
permitido no público, e vice-versa28. Apesar ção e mesmo o ciclo açucareiro. Este, apesar
28 George Duby, “Poder Público,
de dedicados à produção voltada para o da aparência de empreendimento racional, Poder Privado”, in História
da Vida Privada. Da Europa
exterior, ao contrário de seus antecedentes foi ocupação aventureira do espaço, e “não Feudal à Renascença, trad.,
medievais, os engenhos lembravam na vida uma civilização tipicamente agrícola”32. A São Paulo, Companhia das
Letras, [1985] 1995, pp. 19-
cotidiana os senhorios feudais. Tanto uns exploração predatória da terra, decorrência 25; Roberto da Matta, A Casa
quanto outros eram organismos completos, da abundância de espaço e da pobreza de e a Rua. Espaço, Cidadania,
Mulher e Morte no Brasil, Rio de
quase auto-suficientes, que tinham capela, recursos tecnológicos, tinha claros antece- Janeiro, Rocco, [1984] 2000.
Exemplo recente, e significativo,
oficinas, horta, criação e tudo quanto se pre- dentes medievais. E continua a ser praticada, é a maior autoridade do país,
cisasse. Os engenhos de açúcar dos séculos em particular na Amazônia. o presidente da República,
Luís Inácio Lula da Silva, ter
XVI-XVII mantinham dezenas, em alguns Diante da impotência do Estado e da durante cerimônia na Usina
Hidrelétrica de Tucuruí jogado
casos centenas, de homens armados para dureza das condições de vida social, as ao chão, atrás da cadeira do
sua defesa contra selvagens ou corsários, relações pseudofamiliares – essência do governador do Pará, o invólucro
de um bombom que ganhara e
da mesma forma que os domínios rurais dos feudalismo – ainda têm força no Brasil atual. acabara de comer (O Estado
séculos IX-X para fazer frente aos ataques Neste, da mesma maneira que na Europa de S.Paulo, 26/11/2004, p.
A5).
dos “selvagens” (cruenti) normandos29 ou medieval, a sobrevivência dos indivíduos
29 Casa-grande e Senzala, p. 95;
dos piratas sarracenos, e da mesma forma depende muito da proteção de um grupo. Abbon de Saint-Germain des
Près, Bella Parisiaca Urbis, v.
ainda que os senhorios dos séculos XI-XII Em ambas as sociedades as corporações 178, ed.-trad. Henri Waquet,
contra os rivais locais. Os senhores de enge- tendem a se julgar acima das autoridades Paris, Belles Lettres, 1964, p.
28.
nho, por segurança e precaução, enterravam públicas, e eventualmente se opor a elas.
30 Casa-grande e Senzala, p.
nas suas casas jóias e ouro, assim como Na história brasileira o exemplo mais claro LX; Renée Doehaerd, Le Haut
tinham feito os senhores medievais até o é o do Exército, a “corporação” por exce- Moyen Âge. Economies et
Sociétés. Paris, PUF, 1971,
século X30. No Brasil tal situação não foi lência. Outro é o do Judiciário. Há poucos pp. 319-23.
apenas do Nordeste ou da época colonial, anos um ex-ministro da Justiça defendeu 31 Respectivamente, Duby, “Poder
Público, Poder Privado”, op. cit.,
sendo perceptível ainda nos séculos XVIII- um sistema especial de aposentadoria p. 31; Alfredo Macedo Gomes,
XIX em locais tão afastados entre si como para os juízes alegando que isso não seria Imaginário Social da Seca,
Recife, Massangana, 1998, p.
Maranhão e Rio de Janeiro. privilégio e sim “prerrogativa”, mais do 107. Pode-se mesmo perguntar
O fenômeno conhecido entre nós por que isso, “direito do povo em contemplar se, desse ponto de vista, a bolsa-
família distribuída atualmente
coronelismo nada mais é do que a versão sua magistratura”, função que é “sacrifi- não estabelece nos quadros
da democracia formal em vigor
nacional do clientelismo e do patronato que cado apostolado”33. No entanto, o mundo laços de fidelidade recíprocos
existiu na Europa medieval. Os “coronéis” corporativo brasileiro, como o da Europa entre os beneficiários (eleitores
contemplados) e o dispensador
são poderosos que através da distribuição medieval, não é homogêneo, apresenta forte (governo federal). Este não
representa para aqueles “o ideal
de favores constituem uma “família” no hierarquização intra e intercorporações, do rico generoso e bom”?
sentido feudal. Cada pai simbólico (corres- mesmo no seio do Estado34. Este, enquanto 32 Raízes do Brasil, p. 49.
pondente ao senior), protetor, dispensador e representante eqüidistante dos interesses de
33 Saulo Ramos, “Direito da
comandante, em troca de fidelidade entrega todos os cidadãos, é fraco. Mais do que um Magistratura, Privilégio do
Povo”, in Folha de S. Paulo,
a cada um de seus filhos adotivos (jovem, Estado, o que existe é um encavalgamento 16/9/1997, p. A2.
vassalus) bens e direitos para seu sustento. de corporações, legais e ilegais, ligeiramente 34 Em outubro de 1998, o Superior
Na Europa da Idade Média esses vínculos articuladas entre si. Tribunal de Justiça determinou
(desrespeitando procedimentos
recíprocos instauravam “uma confiança Embora desigual, ou exatamente por constitucionais) aumento salarial
pseudofilial”, permitiam a “assimilação da isso, a sociedade senhorial brasileira sig- dos juízes (desconsiderando a
realidade econômica nacional
functio, isto é, do serviço público à amiza- nifica forte possibilidade de mestiçagem, e mesmo a comparação com a
remuneração de seus pares em
de, ao reconhecimento do alimentado e à realidade do Portugal medieval que, com países do Primeiro Mundo). O
submissão do cliente”. No Brasil de hoje, elementos e proporções específicas, foi Supremo Tribunal Federal posi-
cionou-se contrário e abriu-se
para o sertanejo nordestino “o ideal do rico transferida para as terras do Novo Mundo. uma crise intracorporativa.

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Na metrópole a dominação muçulmana
tinha estabelecido relações inter-raciais
inicialmente difíceis, mas que com o tempo
35 José Mattoso, Identificação de
um País. Ensaio sobre as Ori- permitiram certo cruzamento, em particular
gens de Portugal, 1096-1325, entre escravas cristãs e senhores mouros.
Lisboa, Estampa, 1985, vol. I,
p. 251; António Henrique de Com a Reconquista cristã o quadro inverteu-
Oliveira Marques e João Alves
Dias, “A População Portuguesa
se e intensificou-se. De meados do século
nos Séculos XV e XVI”, in Biblos XI a meados do XIII cresceu tanto o número
(Coimbra), 70, 1994, p. 187.
de escravos mouros, sobretudo usados em
36 Oliveira Marques e Alves Dias,
op. cit., pp. 190-1; Maria José tarefas domésticas e artesanais, que pelo
Pimenta Ferro, Os Judeus em menos até o século XIV eles não devem
Portugal no Século XIV, Lisboa,
Centro de Estudos Históricos, ser considerados etnia e sim minoria reli-
1970; António Brásio, Os Pretos
em Portugal, Lisboa, Agência giosa, pois em termos raciais “portugueses
Geral das Colônias, 1944; cristãos e portugueses muçulmanos não se
Charles Verlinden, L’Esclavage
dans l’Europe Médiévale. Pen- diferenciavam”35.
insule Ibérique-France, Bruges,
De Tempel, 1955, pp. 550-1,
Completada a Reconquista de seu
561, 566-71, 615-29, 838. território em meados do século XIII, os
37 Vitorino Magalhães Godinho, portugueses não podiam continuar a se
Os Descobrimentos e a Econo-
mia Mundial, Lisboa, Presença, expandir na Península Ibérica, onde Castela
[1963-1971] 1983, vol. IV, consolidava seu domínio. Passaram então a
p. 161; Maurício Goulart, A
Escravidão Africana no Brasil ambicionar terras fora da Europa, e assim,
das Origens à Extinção do
Tráfico, São Paulo, Alfa-Omega, desde fins do século XIV, foi aumentando o
[1949] 1975, pp. 7-28. número de escravos obtidos em operações de
38 Casa-grande e Senzala, pp. corso, berberes, negros, europeus orientais,
5-10, 201-20; Raízes do Brasil,
pp. 53-5, 64. Goulart (op. cit., guanches (nativos das Canárias), além da
p. 262) calcula em 3.600.000 entrada de ciganos durante a segunda me-
o número de africanos introdu-
zidos no Brasil do século XVI a tade do século XV. Se a miscigenação com
meados do XIX.
judeus (talvez 3% da população em fins do
39 Pierre Toubert, Les Structures du
Latium Médiéval, Roma, École século XV) parece ter sido insignificante,
Française de Rome, 1973, 2 com os negros deu-se o contrário36. Entre
vols.; Miquel Barcelò e Pierre
Toubert, L’Incastellamento, Roma, 1441 e 1505 foram levados para Portugal
École Française de Rome/Es-
cuela Española de Historia y
cerca de 150 mil africanos, em Évora havia
Arqueologia en Roma, 1998. em 1466 tantos negros quanto brancos, na
40 Raízes do Brasil, pp. 146-51. Lisboa de 1535 viviam mais escravos que
41 É ilustrativa uma consulta à homens livres, no século XVI eles cons-
lista de candidatos a vereador
da maior cidade do país nas tituíam um quinto da população total37.
eleições municipais de 2004 e a Ou seja, os portugueses já eram mestiços
informalidade de suas alcunhas.
Vários nomes civis são usados ao chegarem à América, o que facilitou a
no diminutivo: Alfredinho, Car-
linhos Silva, Celinho, Chiquinho
mistura racial na colônia38.
Faria, Chiquinho Kumagai, Entretanto, como a origem da mestiça-
Claudinho, Dê, Edinho, Fla-
vinho, Joãozinho, Lôla, Luizinho, gem lusitana dera-se no quadro histórico da
Marinho, Netinho, Neuzinha, Reconquista, no qual prevalecera evidente-
Osvaldinho, Paulinho Pauli,
Paulinho Rodrigues, Paulinho mente a lei do mais forte, geradora de tensões
Sobral, Paulinho Varotti, Rubinho,
Soninha, Toninho, Toninho Alves, psicológicas e sociais, estas não deixaram
Toninho Campanha, Toninho de estar presentes na Conquista americana.
Francisco, Toninho Meireles,
Toninho Paiva, Toninho Souza. Assim a mestiçagem colonial não impediu
Outros no aumentativo: Cidão,
Cidão Oliveira, Cidão Tibúrcio,
o preconceito e o fosso entre a elite branca
Jorjão, Paulão Triguinoso, Zelão, e a massa não-branca. O resultado é que a
Zezão. Muitos aparecem de
forma condensada: Babu, Bel violência social e a fraqueza institucional,
Leme, Benê, Beto Camargo, que na Europa em torno do ano 1000 tinham
Beto Custório, Beto Ramos,
Chico Biasi, Chico Lopes, Chico gerado o fenômeno conhecido por encas-

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telamento39, no Brasil levaram os proprie-
tários fundiários a tomarem a proteção de
seus bens nas próprias mãos. No campo os
Neto, Cida, Cida Carvalho,
latifundiários coloniais e atuais contratam Cida Macedo, Cida Santos,
jagunços armados para impedir a invasão Dany, Deja, Gegê, Giba, Jura,
Lino, Miro Correia, Nene, Roni,
dos despossuídos. Nas grandes cidades o Tião Bezerra, Tião Farias, Tilla,
fenômeno é tardio (último quarto do século Tino, Tony Silva, Zé Maria, Zé
Miranda, Zé Wilson, Zoza. Em
XX) e assume formas atenuadas, mas não certos casos são antecedidos por
uma qualificação profissional:
Imagem deixa de existir. Os ricos das mansões e a Agente Valdir, Bispa Lenice, Bom-
alta classe média dos grandes apartamentos beiro Caicó, Capitão Cosme
modificada cercam-se de altos muros protegidos por
Lopes, Coronel Nogueira,
Delegado Arnaldo de Lima,
Doutor Minan, Dra. Dirce do
de pintura de grades, fios eletrificados, alarmes e, em Projeto Rondon, Enfermeira
pontos estratégicos, pequenas torres com Angélica, Engenheiro Ricardo
Paolo Veronese Teixeira, Irmão Anísio, Irmão
guardas muitas vezes armados. Francisco, Mestre Kim, Pai
representando O personalismo das relações gerou a so- Marcelo, Pastor Saulo Rodrigues,
Policial de Paula, Praça Clóvis,
Abraão ciabilidade que Sérgio Buarque de Holanda Professor Carlos, Prof. Munhoz
O Homem da Moto, Sargento
definiu como sendo a do “homem cordial”. Araújo, Sargento Nezinho-O
Quer dizer, comportamento na aparência Réco, Tenente Martan, etc. Em
outros são seguidos de indicativo
hospitaleiro, generoso, franco, caloroso, profissional: Afonso Camelô,
Betão do Lava Rápido, Chi-
que na verdade esconde emoções profundas quinho dos Correios, Cremilda
e revela dificuldade no estabelecimento de Taxista, Dinão Joalheiro, Juá da
Imobiliária, Luiz dos Livros, Pau-
relações sociais maduras. O brasileiro re- linho Nossa Caixa, Paulão da
siste à noção ritualista de vida, à civilidade Manutenção, Regina Prata – Tia
dos Mousses, Telles Cabeleireiro,
que implica certa coerção. A cordialidade Toninho do Jornal, Toninho do
Palácio, Zezinho Hospital São
brasileira é o oposto da polidez. Preferimos Paulo. Em outros incorporam
as formas de tratamento familiar, que deno- a origem geográfica: Alcides
Amazonas, Bahia, Bahia Santos,
tam intimidade, às de respeito, de reverên- Carlão da Saúde, Ceará do
PSDC, Manuel Pernambuco,
cia. Daí nosso hábito do uso exagerado do Maranhão, Mineirinho, Mu-
diminutivo, que pretende nos familiarizar rilo Ceará, Pino de Santana,
Sindi da Leste. Inúmeros são
com pessoas e objetos. A cordialidade seria, simplesmente apelidos pessoais
então, a transposição para o plano societário tornados públicos: Amarelo,
Azulão, Betinho Corinthiano,
da mesma sociabilidade praticada no âmbito Bigode, Biriba, Biro Biro, Bozo,
Brasilino de Presente, Canarinho,
da família patriarcal. Nessa análise, sem Cascavel Guerreiro, Cheron,
dúvida um dos pontos altos de seu livro40, Chico do PV, Chorinho da Vila,
Coelho da Toca do Coelho,
ele detecta o caráter medieval de hábito Concheta, Dona Iza, Farid Fura-
cão, Feijão Miranda, Garota da
bem brasileiro. A tendência à omissão do Lage, Gildo Capoeira, Gilmar
nome de família no tratamento social é do Prato, Girafa, Gisa Della
Maré, Guerreiro, Homem da
continuidade e intensificação de hábito da Cândida, Ivan O Terrível, Jacaré,
Idade Média, pois os sobrenomes surgiram Jaiminho Kixodó, Jegue Dente
de Ouro, Johnny Chocolate,
apenas a partir do século XII41. Jubileu, Kojak, Maninho, Maria
Helena A Força da Mulher,
Falta, contudo, notar a identidade me- Pampa, Pateta, Paulinho Esse
dieval das modalidades de tratamento social É O Caminho, Pé de Frango,
Pelé, Pezão, Pitoco, Polé, Por-
preferidas pelos brasileiros. Ao contrário do cina, Primo Preto, Purê, Quito
Formiga, Rose de Obá, Seu
que muitas vezes se pensa, o cristianismo Madrugada, Taça, Tia Fátima,
desde suas origens estimulou um clima Tia Jô, Tico, Tirrim, Toninho do
Bolo, Tureba, Ursão, Wadão
intimista entre mundo terreno e mundo Caminha, Zé do Caixão, Zé do
sagrado. Mesmo no Antigo Testamento, Povo, Zé Índio, Zoza. Material
etnográfico interessante, como
mais formalista, o salmista dirige-se a Deus se vê, que permitiria diferentes
considerações que não podemos
na segunda pessoa. Os cristãos adotaram a fazer aqui, e que não chega a
prática desde o início. Como na inscrição surpreender quando o presidente
da República é conhecido por
da base do arco triunfal da Basílica de São um íntimo “Lula”.

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Pedro, do começo do século IV, onde o
imperador oferece aquela igreja a Cristo e
A CULTURA ARCAIZANTE
seus apóstolos: “Porque sob tua direção o
mundo se levantou triunfante para o Céu,/ Existem planos culturais tão profun-
Constantino, vitorioso, fundou para ti esta dos, tão integrados na vida brasileira, que
igreja”42. Tratamento igual é recorrente no habitualmente sua origem medieval sequer
42 “QUOD DUCE TE MUNDUS Liber Ordinum, coletânea ibérica de orações é percebida. O mais importante deles é o
SURREXIT IN ASTRA TRIUM- do século V ao XI43. Na mais importante da língua. Se um cidadão português atual
PHANS/ HANC CONSTAN-
TINUS VICTOR TIBI CONDIDIT suma hagiográfica medieval, a Legenda encontra na língua falada no Brasil vocá-
AULAM” (cf. Ernst Diehl, Inscrip-
tiones Latinae Christianae Veteres, Áurea, de meados do século XIII, ocorre bulos e expressões em desuso, apesar do
Berlim, Weidmannos, 1925, vol. a mesma coisa. Em livro litúrgico ibérico sprachliche Ausgleichung em curso devido
I, no 1752, p. 340).
do século XV, a missa é chamada de ritual aos atuais meios de comunicação de massa,
43 Liber ordinum en usage
dans l’Eglise wisigothique et ad tuum altare44. é porque aquela última guarda inegáveis
mozarabe du cinquième au Nas nascentes línguas vernáculas a traços medievais. No plano sintático, o uso
onzième siècle (ed. Marius
Férotin, Paris, Firmin Didot, tendência foi a mesma. No francês, o tu brasileiro da próclise onde os portugueses
1904 – Monumenta Ecclesiae
Liturgica, 5), por exemplo, em (c.980) é anterior ao vous como singular de adotam a ênclise registra o estado da língua
nota de 1039, “tu es agnus dei, deferência (c.1050), o verbo “tratar-se por nos séculos XV-XVIII. No plano lexical,
qui tollis peccata mundi” (I, 4, p.
53), “Domine deus omnipotens, tu” surgiu em fins do século XIII (tutoiser, um levantamento recente revela, na fala
sanctifica huius aquam fontis
aduentum spiritus tui” (I, 15, p.
1280-1290; tutoyer, 1393), o “tratar-se de idosos analfabetos do interior de Mato
55), “omnipotens sempiterne por vous” no XIX (vouvoyer, 1834). No Grosso, Goiás, Minas Gerais e São Paulo,
deus, tue glorie pietatem” (XXXIII,
205, p. 93). De 1052, “in tu castelhano, entre o século XII e XIV, o formas do português dos séculos XIII-XVI
nomine deus omnipotens ei iesu vos de reverência ganhou valor de tú (que (por exemplo, esmolna, demudar, pessuir,
Christi filii tui domini nostri signo”
(I, 3-4, p. 69). acabaria por substituí-lo na Espanha e certas despois, preguntar, quaje, fige, mensonha,
44 Missale mixtum dictum mo- colônias) e foi nessa acepção familiar que etc.), levadas àqueles locais pelos bandei-
zarabes, II, 444, PL 85, col.
988 D. penetrou em outras colônias (como Argen- rantes. No plano prosódico, o português
45 Alain Rey, Dictionnaire Histo-
tina, Uruguai, Paraguai). No português, brasileiro mantém a situação de 1200-1350,
rique de la Langue Française, o “vós” singular (século XIII) foi sendo que sofreu poucas mudanças até o século
Paris, Le Robert, 1992-1993;
Joan Corominas, Diccionario gradativamente eliminado pelo “tu” e pos- XVI: por exemplo o final o pronunciado
Crítico Etimológico Castellano teriormente pelo “você” (1665). No Brasil, como u e o e como i, fato que se conser-
e Hispánico, Madri, Gre-
dos, 1983; Rafael Lapesa, o “tu” predomina nos extremos do país e o vou também no português de Açores e de
“Personas Gramaticales y
Tratamientos en Español”, “você” no restante, salvo no Nordeste onde áreas periféricas de Portugal. Enraizada
in Revista de la Universidad “vós” continua cotidiano e informal, com na América, a tradicional pronúncia das
de Madrid, 19, 1970, pp.
141-67; Mário Marroquim, A verbo na terceira pessoa do singular45. O sílabas pré-tônicas não desapareceu apesar
Língua do Nordeste, São Paulo,
Nacional, 1934, p. 120.
sentido respeitoso do latim senior (“o mais de essa ter sido a tendência em Portugal na
velho”) penetrou nos idiomas românicos e passagem do século XVIII ao XIX46.
46 João Alves Pereira Penha, Traços
Arcaicos do Português Popular gerou em francês sire (c.1050, depois, com Nada de estranho nesse quadro, pois é
do Brasil, Franca, Iguatemi,
1971; Gladstone Chaves de o possessivo, monsor, em 1297, monsieur, bem conhecido o fenômeno de os idiomas
Melo, A Língua do Brasil, 4a em 1314), em castelhano señor (1077), em transplantados serem mais conservadores
ed., Rio de Janeiro, Padrão,
1981; Heitor Megale (org.), italiano signore (1219) e apenas tardiamente do que os das suas regiões de origem.
Filologia Bandeirante, São
Paulo, Humanitas/Fapesp, em português “senhor” (século XIII). Quer Cícero já tinha chamado a atenção para
2000; Serafim da Silva Neto, dizer, as demais línguas românicas têm o fato de na sua época ouvir-se na Gália
História da Língua Portuguesa,
Rio de Janeiro, Livros de Portu- uma dupla lexical de consideração social palavras em desuso em Roma47. Ademais,
gal, [1952] 1970.
(vous/Monsieur, usted/señor, Lei/signore), a tendência arcaizante é própria da língua
47 Brutus, 46, 171, ed. Henrica o português somente uma palavra para isso portuguesa como um todo, porque o latim
Malcovati, Berlim, Teubner,
1970, p. 50, linhas 24-5. (senhor) e uma dupla para a familiaridade ibérico tinha sido menos evolutivo que o
48 Albert Carnoy, Le Latin d’Espagne (tu/você). Ou seja, por herança medieval o da Gália48 e o de Portugal mais resistente
d’après les Inscriptions: Étude
Linguistique, Hildesheim/Zuri-
Brasil guarda formas democráticas de trato a certas germanizações, como demonstra o
que/Nova York, Georg Olms, social no interior de sociedade senhorial, fato único entre os idiomas românicos de
[1906] 1983; Kurt Baldinger,
La Formación de los Domínios enquanto a França, por exemplo, preferiu nomear os dias da semana não a partir das
Lingüísticos en la Península formas aristocráticas de trato social no seio divindades pagãs (lunedì, lundi, lunes, “dia
Ibérica, Madri, Gredos, 1962,
pp. 87-101. de sociedade democrática. da Lua”, etc.) e sim de ordená-los com a

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palavra latina feria. Tal conservadorismo inegavelmente medievais, por isso aquela
reforçou-se no Brasil a partir de 1550 com literatura representa janela privilegiada
a chegada de lusitanos oriundos dos Açores sobre nossas raízes profundas.
e da Madeira, locais em que a colonização Da mesma forma que a literatura eu-
começada por volta de 1430 havia criado ropéia medieval, freqüentemente o cordel
devido ao isolamento um tipo de linguagem brasileiro associa cavaleiros e clérigos, quer
ainda mais arcaica, então transferida ao dizer, no ambiente nordestino, cangacei-
Brasil. Em suma, afirma Serafim da Silva ros e líderes messiânicos. Algumas vezes
Neto, “não será exagerado classificar a características dos dois tipos são reunidas
língua dos primeiros colonizadores como no mesmo personagem. No último quarto
pertencente ainda ao século anterior, isto do século XIII a tradução portuguesa de A
é, representando um sistema lingüístico Demanda do Santo Graal atribui forte traço
49 História da Língua Portuguesa,
muito antigo”49. messiânico a Galaad e clara supremacia do op. cit., p. 587.
Da mesma maneira e pela mesma razão sacerdócio da virtude sobre o sacerdócio 50 A Letra e a Voz. A “Literatura” Me-
que a européia medieval, a cultura brasi- oficial. Galaad foi o modelo de D. Nuno dieval, São Paulo, Companhia
das Letras, [1987] 1993.
leira está baseada na oralidade. De fato, Álvares Pereira, o construtor da nacionali-
51 Jerusa Pires Ferreira, Cavalaria
se ainda em 2006, segundo o IBGE, 9,6% dade portuguesa em fins do século XIV e em Cordel, São Paulo, Hucitec,
da população é analfabeta absoluta e os grande leitor das narrativas artúricas. Por 1979, p. 13.

analfabetos funcionais (pessoas incapazes isso, se Galaad é o “cavaleiro desejado”, for- 52 La Queste del Saint Graal, ed.
Albert Pauphilet, Paris, Honoré
de ler e escrever textos simples) constitu- te e puro, protetor de humildes e mulheres, Champion, 1980, pp. 7, 34,
77 et passim; João de Barros,
íam-se em 16,4% dos brancos, 27,5% dos Lampião é descrito como alguém que “não Lampião e Maria Bonita no
negros e 28,6% dos mestiços, essas cifras temia/ a ninguém no mundo inteiro […]/ Paraiso do Édem, Tentados por
Satanás, vv. 61-62, 73-76, s/c,
eram bem mais elevadas décadas antes. ele protegia ao pobre/ com todo prazer que s/ed., p. 3.
Entende-se assim o sucesso da radionove- tinha/ defendia uma criança/ uma velha, 53 Harvey L. Sharrer, “The Passing
la na primeira metade do século XX e da uma mocinha”52. of King Arthur to the Island of
Brasil in a Fifteenth-century Spa-
telenovela posteriormente. Essas literatu- A crença medieval de que o rei Artur nish Version of the Post-Vulgate
Roman du Graal”, in Romania
ras orais cumprem de forma eletrônica e não teria morrido e esperava escondido o (Paris), 92, 1971, pp. 65-74;
prolongada (duram meses) as tradicionais momento de voltar foi reatualizada e rein- Curt Nimuendaju Unkel, As Len-
das da Criação e Destruição do
funções da literatura de cordel (sociabili- tensificada em Portugal quando D. Sebastião Mundo como Fundamentos da
Religião dos Apapocuva-Gua-
zação de familiares e amigos reunidos em morreu na batalha de Alcácer Quibir, em rani, São Paulo, Hucitec/Edusp,
torno do rádio e atualmente da televisão; 1578, jogando Portugal em profunda crise 1987; Maria Isaura Pereira de
Queiroz, O Messianismo no
satisfação de necessidades psicológicas política, com perda da independência. O Brasil e no Mundo, São Paulo,
básicas através de arquétipos literários). messianismo sebastianista não era apenas Alfa-Ômega, 2a ed. 1977, pp.
217-41.
Elas são a performance definida por Paul popular, mas também erudito, como provam
54 Antonio Candido de Mello e
Zumthor para a literatura medieval50. o Vieira e os jesuítas que o difundiram na Souza, Formação da Literatura
Brasileira, São Paulo, Martins,
Todavia, o sucesso dos modernos colônia. O terreno era favorável para tanto 1959; Péricles da Silva Pinhei-
veículos de comunicação não excluiu da graças à tradição que identificava o local ro, Manifestações Literárias em
São Paulo na Época Colonial,
sociedade brasileira a literatura de cordel. de repouso de Artur como sendo a ilha São Paulo, Conselho Estadual
Embora tenha passado a ser impressa a Brasil e aos movimentos messiânicos indí- de Cultura, 1961; Alfredo Bosi,
História Concisa da Literatura
partir de fins do século XIX, ela conservou genas, daí o sebastianismo ter se mantido Brasileira, 2a ed., São Paulo,
Cultrix, 1975; Chico Viana e
sua intenção de oralidade, sendo lida em vivo no Nordeste pelo menos até o século Maurice Van Woensel, Poesia
voz alta para um público não-leitor. Daí ser XIX, como indicam os eventos da Cidade Medieval, Ontem e Hoje, João
Pessoa, Editora Universitária
literatura sempre arcaizante, na qual o poeta do Paraíso Terrestre, do Reino Encantado UFPB, 1998; Lênia Márcia
Mongelli, “Entre Onças e Bar-
popular, ao contrário do culto, é tão mais e de Canudos, todos baseados no mítico batões: as Maravilhas Caboclas
respeitado quanto menos original, quanto retorno do rei53. de José de Alencar”, in Signum
(São Paulo), 5, 2003, pp.
menos rebelde às formas e conteúdos tra- Também na literatura culta brasileira 195-232; Massaud Moisés,
dicionais. Por meio desse processo criativo a Idade Média esteve e está presente. Os “Vestígios da Idade Média na
Ficção Romântica Brasileira”,
que preserva valores já abandonados pela exemplos possíveis seriam vários 54. No in Ângela Vaz Leão e Vânia
O. Bittencourt (orgs.), Anais
sociedade global, ele realiza uma “crítica século XVII, a poesia do baiano Gregório do IV Encontro Internacional
a esta sociedade, mesmo sem o pretender de Matos é trovadoresca tanto na sua sátira de Estudos Medievais, Belo
Horizonte, Abrem/PUC-MG,
conscientemente”51. Ora, tais valores são quanto no seu misticismo, daí ser consi- 2003, pp. 59-73.

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derado o “Villon brasileiro”; a prosa do este assume diferentes nomes conforme as
padre Antônio Vieira expressa em vários circunstâncias, da mesma forma que santos,
momentos o milenarismo-messianismo papas e cavaleiros; o grande amigo e paixão
medieval prolongado no sebastianismo de Riobaldo, Diadorim, era mulher que
português (História do Futuro, 1649; Clavis vivia disfarçada de homem, fato revelado
Prophetorum, 1663). No século XVIII, mo- pelos preparativos para seus funerais, topos
delos medievais inspiraram algumas vezes da hagiografia medieval. Aquilo que levou
a cronística (caso do franciscano pernam- recentemente um estudioso a considerar
bucano Antônio de Santa Maria Jaboatão, Grande Sertão: Veredas como precursor
1695-1779), a genealogia (Pedro Pais Leme, da Internet – forma narrativa não-linear,
1714-77), a épica moralizante e plena de associativa, hipertextual, em rede – nada
maravilhoso cristão do agostiniano mineiro mais é na verdade do que um elemento
José de Santa Rita Durão (Caramuru, 1781). central do mundo medieval, o pensamento
No século XIX, a do maranhense Antônio analógico57.
Gonçalves Dias oscila algumas vezes entre Quanto às principais manifestações
o lírico (Sextilhas de Frei Antão, 1848) e a dionisíacas da cultura brasileira, o futebol e
gesta (I Juca-Pirama, 1851); a do mineiro o carnaval, a antropologia histórica retros-
Alphonsus de Guimarães está centrada pectiva pode mostrar que decorrem da visão
nos três “inimigos da alma” (diabo, carne, de mundo de uma sociedade fronteiriça e
mundo), como na obra dos eclesiásticos cruzadística como tinha sido desde suas
medievais; na produção do cearense José origens a de Portugal e a de sua extensão
de Alencar aparecem diversos elementos colonial. Predomina nela, de fato, o espírito
do imaginário medieval, sobretudo em O que prefere o risco e não o planejamento, que
Guarani (1857) e em O Sertanejo (1875). coloca a esperança de sucesso em um golpe
No século XX, o paulista Mário de An- de sorte e não em esforço continuado, que
drade não se isentou de elementos medievais valoriza atos de coragem e não de lucidez,
no seu Macunaíma (1928); nem o paraibano
Augusto dos Anjos no poema Barcarola
(1912) segue o subgênero poético medieval
que dá título à obra; ou o pernambucano
João Cabral de Melo Neto em Morte e Vida
Severina (1954-55), auto no modelo ibéri-
co medieval; ou ainda o paraibano Ariano
Suassuna, em seu “romance armorial” A
Pedra do Reino (1971), amplo painel de
55 Sobre este último autor, talvez o temas medievais55. Tampouco o mineiro
mais medievalizante de todos,
ver: Lígia Vassallo, O Sertão João Guimarães Rosa, cujo Grande Ser-
Medieval. Origens Européias tão: Veredas (1956) debaixo de sofisticada
do Teatro de Ariano Suassuna,
Rio de Janeiro, 1993; “Ariano criação literária reaproveita intensamente
Suassuna Entrevistado por Lênia
Márcia Mongelli”, in Signum,
elementos medievais. Em especial, já se
6, 2004, pp. 211-39. notou, da tradição carolíngia, que, além
56 Marilyse Meyer, “Tem Mouro na de motivos e temas, marca no romance a
Costa ou Carlos Magno ‘Reis’
do Congo”, in Caminhos do própria estrutura narrativa, centrada na idéia
Imaginário no Brasil, São Paulo, do combate entre mouros e cristãos56. Mas
Edusp, 1993, pp. 150-4.
não somente carolíngia. Há várias passagens
57 João Guimarães Rosa, Grande
Sertão: Veredas, São Paulo, de forte sabor medieval de outras procedên-
Abril, 1983; Willi Bolle,
Grandesertão.br, São Paulo,
cias: a travessia dos jagunços pelo vale da
Editora 34, 2004; Hilário Guararavacã do Guaicuí lembra uma estada
Franco Júnior, “Modelo e Ima-
gem. O Pensamento Analógico no Paraíso; eles vagam pelo deserto como
Medieval”, in Anais do IV En- exilados na Terra, daí a ausência do Pai,
contro Internacional de Estudos
Medievais, pp. 39-55. pois o herói e narrador, Riobaldo, é órfão;

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que considera sinal de inteligência enganar e passistas). É utopia de três dias com sua
o outro. Logo, não por acaso as palavras- falsa riqueza (fantasias de papel e pedras
chaves daquelas duas expressões culturais coloridas), sua ordem social efêmera (defi-
são “improvisação” e “ilusão”. nida pelo papel de cada indivíduo no desfile
Bem entendido, a origem do futebol tal de sua escola de samba), sua vida bem
qual o conhecemos hoje é recente, vem da compassada (o ritmo é critério fundamental
Inglaterra de fins do século XIX, porém entre as notas atribuídas ao desfile).
derivado de modalidades lúdico-esportivas Aliás, se o ritmo é talvez o traço mais
medievais das quais guardou certos traços marcante do futebol e do carnaval, é porque
de personalidade. Enquanto na maior parte embora essencial para todas as sociedades
da Europa aquele esporte está centrado no (“socialmente e individualmente o homem
espírito de concorrência capitalista e de é um animal rítmico”, notou Mauss) ele o
58 Hilário Franco Júnior, A Dança
fair-play protestante, no Brasil ele manifesta é ainda mais para as arcaicas, inclusive a dos Deuses. Futebol, Cultura,
traços de nossas raízes medievais. Aqui ele medieval (nas modernas há certa desritmi- Sociedade, São Paulo, Com-
panhia das Letras, 2007.
recebe a adesão que se conhece por permitir zação, constatou Michon)60. Com efeito, a
59 Jacques Heers, Festas de Loucos
ao indivíduo participar de uma corporação Europa daquela época não era átona, pelo e Carnavais, Lisboa, Publica-
ções Dom Quixote, [1983]
(equipe, torcida) que tenta superar outras contrário, cantava, escandia, ritmava, por 1987; Julio Caro Baroja, El
(no interior das regras com o drible, fora das razões estéticas e de memorização. Ela Carnaval, Análisis Histórico-
cultural, Madrid, Taurus, 1965;
regras com a simulação de faltas ou mesmo também dava lugar de destaque ao ritmo Roberto da Matta, Carnavais,
a violência). Por ser um jogo com o destino gestual, presente na liturgia, na linguagem Malandros e Heróis, Rio de
Janeiro, Zahar, 1979; Maria
baseado para alguns na esperança de que manual dos monges, nos torneios. O ritmo Isaura Pereira de Queiroz,
Carnaval Brasileiro: o Vivido e
uma situação favorável seja prolongada, cromático facilmente perceptível no futebol o Mito, São Paulo, Brasiliense,
para outros que uma situação difícil não e no carnaval é herança indígena, africana 1992; Harvey Gallaghen Cox,
The Feast of Fools. Essay on Fes-
perdurará, para outros ainda que o mais forte e geográfica (sol, mar, vegetação, fauna), tivity and Fantasy, Cambridge
(Mass.), Harvard University
não ganhará sempre. A deusa Fortuna, cara mas igualmente medieval61. Press, 1969;
aos pagãos antigos e também aos cristãos Parte mais evidente ainda do legado 60 M a r c e l M a u s s , M a n u e l
medievais, é instituição nacional: “não há medieval é outra manifestação festiva, a d’Ethnographie, Paris, Payot,
1947, p. 85; Pascal Michon,
bem que sempre dure, nem mal que nunca cavalhada62. A despeito das variantes lo- Rythmes, Pouvoir, Mondialisa-
acabe”, diz o conhecido provérbio. Porque cais, pode-se descrevê-la como simulacro tion, Paris, PUF, 2005, espe-
cialmente pp. 101-32, 413-
a história nacional é relativamente curta de batalha entre um grupo representando 59; Jean-Claude Schmitt, “Les
Rythmes de la Vie. L’Invention
para mostrar mudanças importantes no os cristãos e outro, os mouros. A encena- de l’Anniversaire”, in Annales.
destino coletivo, o futebol parece significar ção começa com os primeiros propondo Histoire. Sciences Sociales
(Paris), 62, 2007, pp. 793-
o melhor exemplo do equilíbrio necessário aos segundos a conversão, cuja recusa dá 838.
entre esperança e desesperança58. início à luta feita de gestos beligerantes e 61 A acentuada cromaticidade
O carnaval, por sua vez, remonta sua palavras desafiadoras, com música e danças medieval sugerida há muito
por Jacques Le Goff (La Civilisa-
genealogia à Festa dos Loucos, que na entremeadas, até que o confronto lúdico se tion de l’Occident Médiéval,
Paris, Arthaud, 1967, pp.
Europa dos últimos séculos medievais fun- encerra com a vitória dos cristãos. Não é 412-4), e comprovada por
cionava como exutório das tensões sociais secundário que estes estejam fantasiados Michel Pastoureau (Une Histoire
Symbolique du Moyen Age
ao temporariamente suspender barreiras de azul e os mouros (grupo muitas vezes Occidental, Paris, Seuil, 2004,
pp. 113-209), é amplamente
hierárquicas e interditos morais. No Brasil constituído de negros e mestiços) de ver- reconhecida hoje em dia, por
colonial, apesar de proibido, desde o século melho, isto é, de acordo com a oposição exemplo, por Xavier Dectot (L’Art
Roman en France, Paris, Musée
XVI, o Entrudo português cumpria papel cromática e valorativa entre a cor celeste e du Louvre, 2005, p. 116-25).
semelhante59. No Brasil atual, a despeito de marial e a cor infernal e satânica, “a cor do 62 Theo Brandão, “As Cavalha-
variantes regionais, o carnaval faz a mesma outro” na definição de Michel Pastoureau63. das de Alagoas”, in Revista
Brasileira de Folclore (Rio de
coisa por liberar abertamente a nudez, os Como toda rememoração, esta não era neu- Janeiro), 3, 1962, pp. 5-46;
Mário Gonçalves Viana, “As
gestos eróticos, os excessos alcoólicos. É tra, as velhas lutas entre mouros e cristãos Cavalhadas em Portugal e
mundo ao contrário por valorizar habili- serviam no contexto colonial de estímulo à no Brasil: Ensaio de História
Comparada”, in Boletim Cultural
dades populares (música, dança, fantasias, submissão e conversão de índios e negros, e (Lisboa), 75-78, 1971.
carros alegóricos), por colocar no centro no contexto atual reforçam a identidade co- 63 Michel Pastoureau, Une Histoire
da atenção social gente dos estratos sociais letiva, daí os “mouros” de um ano voltarem Symbolique du Moyen Age Oc-
cidental, Paris, Seuil, 2004, pp.
desfavorecidos (na função de compositores na festa seguinte como “cristãos”. 197-209.

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A modalidade musical considerada mais mesma época os muçulmanos introduziam
64 Jean-Paul Sarraute, “Trois Formes
d’Influence Portugaise dans la tipicamente brasileira – o samba –, embora na Hispânia o arroz. Era comum por toda
Musique Populaire d’Outre-
mer. Le Samba, la Morna et
seja quase sempre definida como criação do a Europa, de Portugal à Polônia, a couve,
le Mandó”, in Congresso In- século XIX a partir de elementos africanos, geralmente usada sob forma de sopa, se
ternacional de História dos
Descobrimentos. Resumo das Co- já foi vista como música de origem portu- possível com algum embutido (preparação
municações, Lisboa, Comissão guesa devido ao seu sistema harmônico e que com a batata americana viria a consti-
do V Centenário da morte do
Infante D. Henrique, 1960, p. tonal, aos instrumentos musicais europeus, tuir o moderno caldo-verde português). Ou
182.
à importância da improvisação, à possível seja, os ingredientes da feijoada eram bem
65 Ricardo J. D. Azevedo, Aben-
çoado e Danado do Samba, origem da síncope no 6/8 lusitano64. Um conhecidos desde a Idade Média. Destarte,
São Paulo, Universidade de dos instrumentos mais usados para obter não é absurdo, como hipótese, definir a fei-
São Paulo, 2004, tese de
doutoramento mimeografada, essa batida já era comum em Portugal de joada como prato estruturalmente medieval
vol. I, pp. 67-68 et passim;
fins da Idade Média, onde, de acordo com ao qual as regiões coloniais portuguesas
Paul Zumthor, A Letra e a Voz. A
“Literatura” Medieval, op. cit. Gil Vicente, havia “em cada casa pandeiro”. agregaram produtos regionais. Origem,
66 Um dos fundadores do con- Uma das grandes características do samba longevidade e facilidade de preparo que ex-
junto francês Fabulous Trobadors
define o Nordeste do Brasil fora do âmbito comercial é sua performance, plicariam, aliás, sua adoção pouco adequada
como “un conservatoire naturel a participação do público que transforma em clima tropical68. Essa possível origem
de très anciennes traditions
latines”, Le Point/Paris, no 2770, em obra coletiva a música, mesmo quando da nossa feijoada estaria confirmando as
2/8/2004, pp. 32-3.
de criação individual bem identificada, de raízes medievais do país pois, diz Claude
67 O Phaseolus vulgaris americano forma semelhante à que ocorria nas narra- Lévi-Strauss, as estruturas de uma região
acabou por substituir na Europa
o feijão antigo e medieval tivas medievais, acompanhadas ou não por são inconscientemente traduzidas pela sua
(phasiolus), de origem afri-
cana. No Alentejo muçulmano música65. Não é só o samba que parece ecoar cozinha69.
já se consumiam diferentes influências medievais. É interessante notar
espécies de feijão (Alfredo
Saramago, Para uma História que a revivificação da cultura occitana em
da Alimentação no Alentejo,
fins do século XX revelou similaridades
A RELIGIOSIDADE SINCRÉTICA E
Lisboa, Assírio e Alvim, 1997,
p. 110), da mesma forma que tanto entre o forró brasileiro e a canção
em outras regiões ibéricas (Lucie
Bolens, Agronomes Andalous du trovadoresca (ambos tocados com acordeão,
Moyen Age, Genebra, Droz,
1981, p. 130). É curioso
triângulo, violão e zabumba) quanto entre INFORMAL
como receitas medievais de as improvisações poéticas dos emboladores
carne de carneiro ensopada
eram chamadas de haricots nordestinos e as dos trovadores nas suas Ninguém que se interesse pelos fenôme-
mas não incluíam a leguminosa, tençons, formas estéticas que do Midi al- nos religiosos negaria a importância de ma-
talvez porque a palavra viesse
de aricoter, “cortar em pedaços cançaram a Galícia, daí Portugal e, através nifestações como as peregrinações a Apare-
pequenos”. Essa palavra pode,
por homofonia, ter dado àquela
deste, o Brasil66. cida do Norte e Juazeiro ou a impressionante
a acepção de “feijão” (Odile Enquanto a culinária do Norte brasileiro procissão do Círio de Nazaré, em Belém do
Redon, Françoise Sabban e Sil-
vano Serventi, La Gastronomie possui inegáveis traços indígenas e a do Nor- Pará. Mas talvez poucos associariam essas
au Moyen Age, Paris, Stock, deste claras raízes africanas, a de Minas não atuais expressões religiosas brasileiras a um
p. 133-4), mas também pode
ter havido associação entre a nega sua filiação portuguesa com abundante traço fundamental da mentalidade medie-
leguminosa e a carne picada
que a acompanhava. recurso à carne de porco e de galinha, ao fei- val, o contratualismo, ou seja, a troca de
68 Por isso outras áreas de colo- jão, à couve, ao ovo, à banha suína. Podemos serviços humanos por favores divinos70.
nização portuguesa têm, além mesmo perguntar se o prato nacional por E, no entanto, se as peregrinações estão
do Brasil, suas feijoadas locais,
que apresentam variação tanto excelência – a feijoada – não teria algumas em recuo na contemporaneidade européia
nas partes do porco utilizadas
e nos vegetais complementares
raízes medievais. Apesar de ele ter registro (excetuados os casos de Compostela, Fátima
(repolho, abóbora, banana- apenas no século XIX e de o feijão-preto e Lourdes, as duas primeiras ibéricas…) e
verde, inhame e batata no
Cabo Verde; nabo, cenoura ser de origem americana, desde o século mantêm-se fortes naqueles casos brasilei-
e cebola em Moçambique, XII a Europa conhecia diferentes prepara- ros, é exatamente pela relação inversa que
abóbora, maxixe e quiabo no
Nordeste brasileiro) quanto na ções cozidas de feijão (palavra atestada em as duas sociedades têm com suas origens
sua base (feijão-manteiga em
Cabo Verde, feijão-branco ou português desde o século XIII), ou outras medievais. A européia vê na Idade Média
vermelho em Moçambique e leguminosas67, com carne de porco, caso do uma etapa forte do seu passado, portanto
Macau, feijão-vermelho em Timor
Leste, feijão-fradinho em Goa). cassoulet tolosano, da fabada asturiana, do objeto de estudo legítimo e privilegiado,
69 Claude Lévi-Strauss, Mitológi- cocido montañés cantábrico, do feijões de mas não dado do seu presente. A brasileira
cas. O Cru e o Cozido, São Treviso veneziano, da feijoada trasmontana, vê com reticências a validade do estudo
Paulo, Brasiliense, [1964]
1991. do petit-salé (à base de ervilha) auvérnio. Na daquela época, recusando que esteja ligada

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a ela, porém vivencia-a muito mais do que instrumento foram os sermões, como os do
imagina, como estamos sugerindo. monge São Bonifácio no norte europeu alto-
É o caso do sincretismo religioso típico medieval e os do jesuíta José de Anchieta
do Brasil com sua mescla de catolicismo, na colônia portuguesa americana.
xamanismo indígena, crenças africanas e, A formação territorial portuguesa feita às
mais recentemente, religiões orientais e custas de terras reconquistadas aos muçul-
seitas evangélicas, que prolonga, com ou- manos foi uma longa Cruzada, transferida
tros componentes, a religiosidade sincrética para além-mar quando aquela primeira etapa
da Europa medieval. Assim como nesta completou-se em 1249. As expedições ao
70 Hilário Franco Júnior, A Idade
ocorrera uma cristianização do paganismo litoral africano que começaram em 1415 Média, Nascimento do Oci-
dente, São Paulo, Brasiliense,
clássico e uma paganização do cristianismo, receberam bula de Cruzada. A ocupação do 2006, pp. 150-4.
na colônia portuguesa houve cristianização Brasil teve inegáveis aspectos cruzadísticos
71 A carnavalização religiosa
dos negros e africanização do cristianismo. e evangelizadores. No relatório que apre- brasileira que os puristas criti-
cam não é produto de um
Cristianismo que era mais medieval que senta ao rei, Pero Vaz de Caminha parece desrespeito inato, é herança cul-
pós-tridentino devido ao isolamento do mais entusiasmado com as possibilidades tural. Embora o carnaval tenha
aparência anti-religiosa com
Brasil e ao caráter arcaico de sua população de conversão – os indígenas “não têm nem seu comportamento erótico,
alucinógeno, incontinente, não
e suas instituições71. Não por acaso já foram entendem crença alguma”, e por isso “se deixa de ser o “acontecimento
encontrados nas tradições populares brasi- farão cristãos e hão de crer na nossa santa religioso da raça” na definição
de Oswald de Andrade (“Mani-
leiras hábitos, comportamentos e crenças fé”, de acordo com a intenção do rei “que festo da Poesia Pau-Brasil”, in
presentes em Dante Alighieri. O Paraíso tanto deseja acrescentar à santa fé católica” Do Pau-Brasil à Antropofagia
e às Utopias, Rio de Janeiro,
hierárquico e feudal do poeta florentino – do que com as potencialidades materiais Civilização Brasileira/MEC,
[1924] 1972, p. 5).
corresponde à concepção que dele tinham da terra recém-alcançada: “o melhor fruto
72 Luís da Câmara Cascudo,
brasileiros entrevistados entre 1923 e 1945 que dela se pode tirar me parece que será Dante Alighieri e a Tradição
por Luís da Câmara Cascudo. Embora este salvar esta gente”73. Popular no Brasil, Natal, Funda-
ção José Augusto, [1963]
considere o homem psicologicamente regio- Segundo um estudioso do tema, uma 1979, p. 52; Superstição no
nal, parece que, como comentou Giuseppe das características do catolicismo brasileiro Brasil, Belo Horizonte/São
Paulo, Itatiaia/Edusp, 1985;
Cocchiara, “as tradições populares […] são colonial é ter sido “patriarcal”, ter estado Giuseppe Cocchiara, “Le Tra-
dizioni Popolari Sono Preistoria
no povo sempre pura história contempo- a serviço do senhor local, coerentemente Contemporanea?”, in Preistoria
rânea”. Daí por que existe larga faixa de com o quadro social de então. É verdade, e e Folklore, Palermo, Sellerio,
[1956] 1978, pp. 117-18;
encontro entre as superstições observadas exatamente por isso não se pode concordar Jean-Claude Schmitt, “Religion
Populaire et Culture Folklo-
pelo etnólogo brasileiro no Nordeste do que ele tenha sido “criação genuinamente rique”, in Annales ESC, 31,
século XX e aquelas da Europa medieval brasileira”74. Na Europa a Igreja esteve por 1976, pp. 945-6; História das
Superstições, Lisboa, Publica-
estudadas por Jean-Claude Schmitt72. longo tempo (888-1057) sob o domínio dos ções Europa-América, [1988]
Com efeito, campo cultural considerado senhores laicos, que podiam vender, doar ou 1997. Muitas das superstições
são fato antropológico, outras
do ponto de vista moderno como austero, a transmitir em herança as igrejas e mosteiros têm trajetória histórica clara,
vindas de Portugal medieval
religião foi na Europa medieval freqüente- erguidos em suas terras; podiam apropriar- intermediadas pelas ilhas atlân-
mente vivida de outra maneira, e no Brasil se das esmolas e dízimos; podiam nomear ticas: Luís da Silva Ribeiro,
“Superstições Comuns ao Brasil
de ontem e de hoje também. Aqui como lá, sacerdotes, cuja função desde o século e aos Açores”, in Boletim do
Instituto Histórico da Ilha Terceira
o poderio da Igreja e da religião institucio- VIII era atribuída a título de beneficium ou (Angra do Heroísmo), 6, 1948,
nalizada não corresponde à prática e aos feudo75. O “catolicismo patriarcal”, pros- pp. 124-40; Walter Spalding,
“Superstições Comuns ao Brasil
sentimentos religiosos. A origem disso pode segue aquele autor, estabeleceu na colônia e aos Açores”, in op. cit., pp.
estar no espírito e na estratégia de conversão uma espécie de sociedade de ordens. De 283-90.

dos nativos americanos, que não foi essen- novo a constatação é correta, mas não se 73 A Carta de Pero Vaz de
Caminha, op. cit., pp. 94 e
cialmente diferente dos da Alta Idade Média pode esquecer que a partir de longínquas 98.
quando da evangelização das populações origens indo-européias aquela tenha sido 74 Eduardo Hoonaert, Forma-
ção do Catolicismo Brasileiro,
européias pagãs. Nos dois casos recorreu-se a forma medieval de organização social, 1550-1800, Petrópolis, Vozes,
à aculturação forçada (batismos em massa, baseada em hierarquia tripartida de orato- 1978, pp. 66-74.

cristianização formal de divindades locais, res (eclesiásticos), bellatores (guerreiros) 75 Émile Amann e Auguste Dumas,
L’Église au Pouvoir des Laiques
etc.) e mesmo à pura violência contra os e laboratores (trabalhadores braçais). Por (888-1057), Paris, Bloud et
pagãos (germanos num caso, indígenas no fim, o mesmo estudioso destaca que o “ca- Gay, 1948 (Histoire de l’Église,
direção Augustin Fliche e Victor
outro). Em ambas as situações importante tolicismo patriarcal” escapava à legislação Martin, vol. 7).

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76 Ernst Benz, Descrição do Cris- clerical, facilitando o sincretismo religioso
tianismo, Petrópolis, Vozes,
1995, p. 201; Robert Ian e criando um “catolicismo popular” distinto
Moore, The Formation of a daquele. Mais uma vez, a base desse fenô-
Persecuting Society. Power
and Deviance in Western Eu- meno é nitidamente medieval. A fraqueza
rope, 950-1250, Oxford, Basil
Blackwell, 1987; Graciano,
institucional e certa indefinição dogmática
Decretum, p. II, C.23, q.8, que caracterizaram a Igreja até o século
c.38, PL 187, col.1199 c.
XI favoreceram a sobrevivência de uma
77 Sermão de Ano Novo de 1642,
citado por Charles Ralph Boxer, religiosidade cristã autônoma, à qual não
O Império Colonial Português, escapavam os próprios eclesiásticos.
Lisboa, Edições 70, [1969]
1977, p. 410. Somente a partir daquele momento a
78 Laura de Mello e Souza, plasticidade do cristianismo medieval foi
“Intolerância É Legado Colo- recuando diante da monarquização do papa-
nial”, in Folha de S. Paulo,
20/3/2000, Caderno Brasil, do, da dogmatização do pensamento, da li-
p. 9; Edward Peters, The Magi-
cian, the Witch and the Law, turgização da sensibilidade, da canonização
Hassocks, Harvester, 1978; dos santos, da erradicação das heresias. Se o
Maurice Kriegel, Les Juifs à la
Fin du Moyen Age dans l’Europe cristianismo tem “tendência à intolerância”,
Méditerranéenne, Paris, Ha-
chette, 1979; Jeffrey Richards,
esta claramente se acentuou desde o século
Sexo, Desvio e Danação. As XII, quando se estabeleceu que os hereges
Minorias na Idade Média, Rio
de Janeiro, Jorge Zahar, [1990] devem ser induzidos a aceitar a salvação
1993. mesmo contra sua vontade76. Para tanto
79 Hoonaert, Formação do Catoli- foi criada no sul francês a Inquisição, em
cismo Brasileiro, op. cit., pp.
31-58. 1229. Em 1252, em nome do bem da cole-
80 Hilário Franco Júnior, Peregrinos, tividade, ela recebe do papa autorização de
Monges e Guerreiros. Feudo-
clericalismo e Religiosidade em
praticar a tortura para identificar, localizar
Castela Medieval, São Paulo, e reprimir formas de pensamento diferentes
Hucitec, 1990, pp. 50-66,
170-2; A Idade Média, Nasci- da canônica. Introduzida em Portugal em
mento do Ocidente, op. cit., pp. 1547, subordinada à autoridade monárquica,
146-50; Francisco Márquez Vil-
lanueva, Santiago: Trayectoria a Inquisição chegou ao Brasil em fins do
de un Mito, Barcelona, Bel-
laterra, 2004, pp. 183-222. século XVI com a mesma função controla- de guerra santa e de santos guerreiros, caso
Ainda em 1725, o arcebispo dora das consciências e repressora de idéias de Santo Antônio, que, no nosso contexto,
de Goa, Inácio de Santa Teresa,
afirmou que “Deus escolheu de- não-oficiais. Toda diferença deveria ser tornou-se uma espécie de capitão-do-mato
liberadamente os portugueses
de entre todas as outras nações
anulada: Vieira sonhava com o momento em caçador de escravos foragidos79. Ora, esse
para governarem e reformarem que os portugueses poderiam banhar suas belicismo mental tinha sido um dos gran-
todo o mundo, com comando,
domínio e império, tanto puro espadas “no sangue dos hereges na Europa, des traços caracterizadores da psicologia
como mestiço, sobre todas as no sangue dos muçulmanos na África, no coletiva do homem medieval, que no caso
suas quatro partidas, e com
promessas infalíveis para a sangue dos pagãos na Ásia e na América”77. particular da Península Ibérica levara o
subjugação de todo o globo,
que será unificado e reduzido A atuação da Inquisição tanto na metrópole pacífico apóstolo Tiago a ser visto como
a um único império, do qual portuguesa quanto na colônia americana matamoros80. Mas o principal campo de
Portugal será a cabeça” (citado
por Boxer, O Império Colonial parece ter introduzido na psicologia cole- batalha deve ser na própria mente, contra
Português, op. cit., p. 412).
tiva uma “razão da força” que não deixaria pensamentos impuros, e no próprio corpo,
81 Jacopo de Varazze, Legenda de ser utilizada séculos depois em certos contra seus impulsos, daí a necessidade da
Áurea. Vidas de Santos, ed.
Theodor Graesse, trad. Hi- momentos da vida política dos dois países. mortificação, propugnada por muitos rela-
lário Franco Júnior, São Paulo,
Companhia das Letras, 2003, Como bem viu Laura de Mello e Souza, tos de cordel e sobretudo por uma espécie
48, 2, p. 298; 115, p. 683; na nossa história a intolerância é legado de suma catequista bastante difundida no
144, p. 840; Pe. Manoel
José Gonçalves Couto, Missão colonial, ao que é preciso acrescentar que Nordeste brasileiro no século XIX, a Mis-
Abreviada para Despertar os
Descuidados, Converter os Pec-
esta tinha, por sua vez, inegáveis origens são Abreviada. Para esta, prolongando o
cadores e Sustentar o Fructo das medievais78. contemptus mundi dos monges medievais,
Missões, Porto, Sebastião José
Pereira, 6a ed., [1859] 1868, O fato não está descolado, é claro, do ca- “ninguém se despreza como deve”81. É
III,1, p. 285; Additamento, 38,
tolicismo colonial que já foi definido como por esse aspecto penitencial que Antônio
pp. 140-3.
“messianismo guerreiro dos portugueses co- Conselheiro carregava consigo a Missão
82 Euclides da Cunha, Os Sertões,
p. 268. lonizadores”, religião penetrada pela idéia Abreviada82.

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A prática de roubar hóstias consagradas para Ao lado,
fazer amuletos foi comum tanto na Europa
imagem
medieval quanto no Brasil colonial85.
Outro claro medievalismo da vida modificada de
religiosa brasileira são os muitos santos retrato de Dom
populares, figuras reverenciadas pela popu-
lação mesmo sem terem recebido aprovação Sebastião
eclesiástica. O caso mais conhecido é o de
padre Cícero, fervorosamente cultuado no
Nordeste. Ele fez carreira política, ganhou
fama de milagreiro, mas sempre despertou
desconfiança das altas autoridades eclesiás-
ticas, que em 1893 cassaram-lhe as ordens
sacerdotais. Sua popularidade não diminuiu,
contudo, e após sua morte ergueu-se em
Juazeiro uma estátua dele com 27 metros
de altura (menor apenas que a do Cristo
Redentor do Rio de Janeiro), que atrai anual-
mente milhares de peregrinos. Santificações
espontâneas e laicas como essa haviam 83 Adalgisa Arantes Campos, A
Terceira Devoção do Setecentos
sido comuns na Europa até fins do século Mineiro: o Culto a São Miguel
e Almas, São Paulo, 1994,
XII, quando a Igreja passou a controlar e tese de doutorado defendida
definir os processos de canonização. Mesmo na Universidade de São Paulo,
exemplar mimeografado, pp.
depois, porém, novos objetos de culto conti- 261-2; Karl Bihlmeyer e Hermann
Tuechle, História da Igreja. Idade
nuaram a surgir, inclusive um cachorro que Média, São Paulo, Paulinas,
curava crianças86. Em Portugal o processo [1958] 1964, p. 246; António
Henrique de Oliveira Marques,
não foi diferente, pelo que sugere a crítica A Sociedade Medieval Portu-
do bispo Martinho de Braga no século VI, guesa, Lisboa, Sá da Costa,
[1964] 1971, p. 153.
Se em região menos tocada pelas culturas tanto que em 1640 uma imagem do sapa-
84 Adalgisa Arantes Campos, op.
africana e indígena como era a Minas Gerais teiro Gonçalo Eanes Bandarra, considerado cit., p. 255.
do século XVIII geralmente se comungava profeta da Restauração, tenha sido exposta 85 Oronzo Giordano, Religiosidad
Popular en la Alta Edad Media,
apenas na Quaresma, não se tratava de situ- num altar da Sé de Lisboa segundo o teste- Madri, Gredos, [1979] 1983,
ação nova, colonial, pois tinha sido comum munho do padre Vieira. p. 57; André Vauchez, La Spiri-
tualité du Moyen Age Occiden-
na Europa medieval como um todo, inclu- Na sua análise do homem cordial, tal, VIII-XIII Siécle, Paris, Seuil,
sive em Portugal, onde mesmo um devoto Buarque de Holanda aponta com razão [1975] 1994, pp. 18 e 171;
Oliveira Marques, A Sociedade
como Nuno Alvares comungava apenas a “intimidade quase desrespeitosa” que Medieval, p. 171; Adalgisa
Arantes Campos, op. cit., p.
quatro vezes ao ano83. Se “o mistério da se dirige aos santos, expressão de “uma 257; Laura de Mello e Souza,
transubstanciação sempre traz dificuldades religiosidade de superfície”. E reconhece O Diabo e a Terra de Santa
Cruz, São Paulo, Companhia
de compreensão” na Minas colonial84, era que tal procedimento vinha da Europa das Letras, 1987, pp. 220-6;
“Magia e Religiosidade Popular
porque desde a Idade Média a questão co- medieval87. Todavia não explora esse fato, em Minas no Século XVIII”, in
locava problemas. Ao contrário do conceito e assim deixa de lado um material que Norma e Conflito. Aspectos da
História de Minas no Século XVIII,
teológico da transubstanciação, elaborado poderia lançar luzes sobre a religiosidade Belo Horizonte, Editora UFMG,
em fins do século XI contra hereges espi- mais formal que espiritual do brasileiro. De 1999, pp. 200-4.

ritualistas, a maioria dos fiéis entendia a fato, pressionados por condições materiais 86 Michael Goodich, Vita Perfecta:
the Ideal of Sainthood in the
mudança de substância do pão em carne difíceis e impressionados pelas forças da na- Thirteenth Century, Stuttgart,
Anton Hiersemann, 1982; Jean-
de Deus como ato mágico do sacerdote. tureza, os homens da Idade Média tendiam Claude Schmitt, Le Saint Lévrier,
Eles queriam ver a hóstia no momento em a exteriorizar seus sentimentos religiosos. A Paris, Flammarion, 1979.

que ocorria o mistério divino, o que levou comunicação com o mundo divino dava-se 87 Raízes do Brasil, pp. 149-51.
Também Freyre (Casa-grande
no século XIII à generalização do rito de por meio de gestos, palavras, objetos, mais e Senzala, p. 39) atribuíra
elevação. Acreditava-se que olhar a hóstia do que através de reflexão e interiorização. ao patriarcalismo brasileiro
“perfeita intimidade com os
naquele momento trazia benefícios à saúde. Os santos eram respeitados não por suas santos”.

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88 Vauchez, La Spiritualité du virtudes, mas por seus poderes. Quando
Moyen Age, op. cit., pp. 60-
7, 169-75; Patrick J. Geary, um santo não atendia ao pedido do fiel era
“L’Humiliation des Saints”, in
ofendido, maltratado e punido. Usava-se
Annales. ESC, 34, 1979,
pp 27-42. Estudando uma seqüestrar imagens santas, mesmo de Cris-
região européia que ainda
guarda fortes tonalidades me- to, para coagir os poderes superiores. Em
dievais, Giuseppe Cocchiara Portugal não foi diferente do restante da
(“Soppravvivenze Folkloriche
nel Paganesimo Siciliano”, in Europa medieval, com tal prática tendo se
Preistoria e Folklore, Palermo,
Sellerio, [1964-1965] 1978, prolongado na longa duração histórica até,
p. 116), considera a punição pelo menos, meados do século XX, apesar
aos santos ato de fidúcia, afeto
e intimidade. Sobre Portugal, de combatida pelas Ordenações do Reino
Eugénio de Andréa da Cunha
de 1403 e pelas Constituições sinodais de
e Freitas, “Costumes e Tradições
do Século VI e da Actualidade”, Braga de 169788. Em toda a Europa da Idade
in Bracara Augusta (Braga), 8,
1957, pp. 300-2. Média, inclusive Portugal, restos de corpos
89 Patrick J. Geary, Furta Sacra. santos procurados por seu pretendido po-
Thefts of Relics in the Central der miraculoso eram comprados, trocados,
Middle Ages, Princeton, PUP,
1978. Em certas zonas de roubados, falsificados89.
Portugal na passagem do
século XIX ao XX os amuletos
Outra importante expressão da sensi-
protetores deviam ser achados bilidade coletiva, que, sem ser específica
ou roubados (cf. Augusto Goltz
de Carvalho, “Amuletos de da Europa medieval cristã, ali teve papel
Buarcos”, in Portugália, Porto, essencial, foi o messianismo milenarista.
1, 1903, pp. 347-9).
Assim, não é estranho que ao longo da
90 Devemos esta informação ao
nosso amigo e colega Flavio história luso-brasileira largas parcelas po-
de Campos, a quem agrade-
cemos.
pulacionais tenham aguardado a vinda de
91 Raul Manselli, “Il Sogno come
um Messias e a conseqüente instalação de
Premonizione, Consiglio e uma sociedade perfeita que anteciparia a
Predizione nella Tradizione
Medioevale”, in Túlio Gregory sociedade paradisíaca. A crença veterotes- ocorreu com Vieira e o padre Cícero.
(ed.), I Sogni nel Medioevo, tamentária em um Messias-rei, a tradição Como os profetas bíblicos, eles criticavam
Roma, Ateneo, 1985, pp. 219-
44; Paulo Alexandre E. Borges, mítica do retorno messiânico do rei Artur e orientavam os governantes, o rei de Por-
A Plenificação da História em
Padre António Vieira. Estudo e toda a atmosfera apocalíptica medieval tugal no primeiro caso, o governador do
sobre a Idéia de Quinto Império confluíram, em 1578, no desaparecimento Ceará no segundo91. No imaginário nordes-
na Defesa Perante o Tribunal do
Santo Ofício, Lisboa, Imprensa do rei D. Sebastião diante dos muçulmanos, tino, atestam muitos relatos de cordel, o
Nacional-Casa da Moeda,
o que fez dele a síntese das expectativas profeta e o Messias fundiram-se na figura
1995; Luís Filipe Silvério Lima,
Padre Vieira: Sonhos Proféticos, messiânicas portuguesas. Ele estaria, como do padre Cícero. Este é o próprio Cristo,
Profecias Oníricas, São Paulo,
Hucitec, 2004; Ralph Della Artur, em uma caverna ou em uma ilha que voltou ao mundo como um bebê que a
Cava, Milagre em Joaseiro, Rio esperando o momento de voltar e resgatar Virgem trocou com outro recém-nascido.
de Janeiro, Paz e Terra, 1976,
p. 26. a grandeza de seu povo. A sensibilidade Para os fiéis, Juazeiro é Jerusalém, o Ria-
92 Angélica Höffler, A Floresta e sebastianista não deixou, como se sabe, de cho Salgadinho é o bíblico Rio Jordão, a
a Salvação: Encantamento,
Aventura e Profecia na Literatura
ter desdobramentos na colônia americana, o Serra do Catolé, onde ele orava, é o Horto
Oral Nordestina, São Paulo, mais importante deles o movimento liderado das Oliveiras e “fica no centro do mundo”
PUC-SP, 1999, dissertação
de mestrado mimeografada, por Antônio Conselheiro em Canudos, no segundo um cantador que desloca assim
pp. 150-1, 159-62: o Horto interior da Bahia, e duramente reprimido para o Nordeste brasileiro o topos de
no “centro do mundo” é verso
do folheto de Miguel Paulo de em 1897. A força do fenômeno permaneceu Jerusalém “umbigo do mundo”. É nessa
Almeida, O Padre e a Virgem
Desejam Salvar o Mundo, p. no imaginário nordestino, tanto que pouco Jerusalém nordestina que se dará o Juízo
7 (citado à p. 159). Foi do antes da eleição presidencial de 1989, pelo Final, quando o santo reconduzirá seus
texto bíblico (“Deus realizou a
salvação no centro da Terra”: que se noticiou, quando o então candidato romeiros de volta ao Paraíso92.
“Deus autem rex noster ante
saecula, operatus est salutes in
Lula estava em Canudos distribuindo pão O espírito milenarista que alimentava
medio terrae”, Salmos LXXIII,12) e começou a chover, a população local viu nos medievais uma expectativa escatológica
que se desenvolveu a tradição
de que o local em que Cristo nele um novo Antônio Conselheiro90. latente, aflorada em datas simbólicas, ma-
morreu e ressuscitou seria o O profetismo bíblico e medieval fre- nifesta-se nessas mesmas circunstâncias no
umbigo do mundo redimido
(Cirilo de Jerusalém, Catache- qüentemente anunciava através de sonhos Brasil. Em fins de 1899, a proximidade do
sis, XIII,28, PG 33, col.805
o Messias e uma Nova Era, e o mesmo fim do século e a crença de que a passagem

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inauguração da etapa messiânica parece Ao lado,
ter sido sintetizada na máxima adotada
pelo Partido dos Trabalhadores após sua
escultura
vitória na eleição presidencial de 2002: “A de Antônio
esperança venceu o medo”.
Conselheiro

A PSICOLOGIA COLETIVA
CICLOTÍMICA
“Quando as glórias que gozei/ vou na
idéia revolver,/ sinto à força da saudade/ B). Para a Missão Abreviada
“este mundo brevemente há
meu triste pranto correr./ Os que já tive, de acabar” (I,11, p. 72).
doces momentos,/ são hoje a causa dos meus 93 Ronaldo R. F. Mourão, “Anúncio
tormentos.” Esta canção anônima brasileira do Fim do Mundo Causou
Mortes no Brasil”, in Folha
sintetiza bem um tema recorrente da sen- de S.Paulo, 23/3/1997,
Caderno Mais!, p. 5; Hilário
sibilidade lusitana desde o século XIII – a Franco Júnior, O Ano Mil, Tempo
saudade. Na música popular brasileira ela de Medo ou de Esperança?,
São Paulo, Companhia das
aparece em todos os gêneros e em todas as Letras, 1999, pp. 80-2.
épocas. Ela pode se referir a uma pessoa, 94 The Book of Enoch, 10,17-
a um tempo, a um espaço, a um fenômeno 19, trad. E. Isaac, in James
Hamilton Charlesworth, The
natural, a um objeto. Em todos os casos, “a Old Testament Pseupigrapha,
Londres, Darton, Longman &
saudade é dor pungente/ a saudade mata a Todd, 1983, vol. I, p. 18.
do cometa Biela marcava o fim do mundo gente”. Muitas vezes se pensou que senti- 95 Cf. Antonio Candido de Mello e
enlouqueceram algumas pessoas, houve mento tão forte e onipresente na psicologia Souza, Os Parceiros do Rio Bo-
nito, São Paulo, Duas Cidades,
pelo menos um suicídio e uma morte por lusitana resultara justamente da expansão 1971, p. 196. A imagem do
estado de choque. Um século depois, diante ultramarina, do afastamento da “pequena garfo fincado no animal está
inspirada, evidentemente, em:
da proximidade do fim do milênio, pessoas casa portuguesa” na conhecida metáfora Hans Sachs, “Das Schlawera-
ffenlandt”, vv. 37-41, ed.
se mataram no Piauí, presos foram libertados de Fernando Pessoa. Edmund Goetze, in Sämtliche
porque o mundo ia acabar93. Diante de suas Mas a palavra é de princípios do século Fabeln und Schwänke, Halle,
Max Niemeyer, 1893, p. 183
dificuldades concretas, tanto a sociedade XIII, revelando a tomada de consciência de (traduzido em Hilário Franco
medieval quanto a brasileira parecem se sentimento evidentemente anterior. Como Júnior, Cocanha. Várias Faces
de uma Utopia, São Paulo,
anestesiar com a imagem de um novo mundo Jean Starobinski observou com razão a Ateliê, 1998, p. 81).

messiânico. Para um apócrifo bíblico muito propósito de outro conceito, “o sentimento 96 Severino Borges, A Vinda do
Anti-Cristo e os Sinaes do Fim
popular na Idade Média, “nesses dias toda não é a palavra, mas não pode se dissemi- dos Tempos, p. 14 (citado por
a terra será cultivada com justiça; toda ela nar a não ser através de palavras. A história Höffler, op. cit., p. 158).

ficará cheia de árvores e de bênçãos. Nela dos sentimentos não pode por isso ser outra 97 “Le Concept de Nostalgie”, in
Diogène (Paris), 54, 1966, pp.
serão plantadas toda espécie de árvores coisa que a história das palavras pelas quais 92-3.
aprazíveis e de vides, […] cada semente a emoção se enuncia”97. Ora, a noção de 98 Ela era ali falada pelos muitos
produzirá mil”94. Para um homem simples saudade é algumas vezes aproximada da transpirenaicos que chegavam
como guerreiros da Recon-
do interior paulista no século XX, depois de “melancolia”, mas como esta palavra quista, eclesiásticos da Reforma
Gregoriana, monges de Cluny
do Anticristo um anjo de Deus descerá do existia há séculos em latim e desde 1176 em e depois de Cister, peregrinos
céu e “um boi assado vai correr a terra, de francês (língua bem conhecida no Portugal de Compostela, cortesãos da
primeira dinastia portuguesa
casa em casa, com um garfo e uma colher de então)98, dificilmente teriam surgido que era de origem francesa. O
fincados”95. Para um folheto de cordel, em português na mesma época soydade e período áureo do trovadorismo
lusitano (1245-80) corresponde
“daí por diante será/ um viver de sensatez/ melanconia se os termos se recobrissem. ao reinado de Afonso III, que,
acompanhado por muitos no-
não haverá mais misérias/ nem domínios Como este último designava, é sabido, um bres portugueses, anteriormente
de outros reis”96. Arraigada, essa crença estado psíquico negativo e indefinido, um vivera dez anos na corte do
rei da França e do conde de
na superação da fase apocalíptica com a desencanto em relação à vida (melas = negro, Borgonha.

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kholia = bile), aquele primeiro surgiu para notar que alguns anos antes de D. Denis,
indicar algo mais preciso. Talvez por isso, no começo da década de 1260, as Cantigas
ele é com freqüência confundido (sobretudo de Santa Maria usaram três vezes a palavra
por não-lusófonos) com nostalgia, palavra (grafada soidade duas vezes e soydade uma)
criada em 1688 pelo médico alsaciano Johan- na acepção de “desejo”104.
nes Hofer para designar nosograficamente Mas era possível sentir saudade do Éden,
a falta da terra natal (Heimweh)99. O étimo espaço não conhecido pessoalmente? Sim,
99 Dissertatio Medica de Nostalgia grego nostos, “retorno”, não deixa dúvida porque “cada homem é Adão”105. Dito de
oder Heimwehe, Bâle, 1678,
analisada por Fritz Ernst, Vom quanto ao seu sentido espacial: trata-se de outra forma, a saudade manifesta-se no indi-
Heimweh, Zurique, Fretz & Was- dor (algos) à espera do retorno. Por isso víduo, porém, é sentimento da espécie. Daí
muth, 1949, pp. 63-72. Sobre
a posterior história do conceito, mesmo o vocábulo foi rendido em francês a Europa medieval ter sido obcecada pelo
André Bolzinger, “Jalons pour
(nostalgie) no sentido de maladie du pays, e desejo de regresso ao Paraíso Perdido. Todo
une Histoire de la Nostalgie”,
in Bulletin de Psychologie (Paris), ganharia acepção igual em inglês (nostalgia). cristão se via neste mundo como “exilado”,
389, 1989, pp. 310-21.
Considerações psicanalíticas Porque tinha “saudade”, a língua portuguesa “estrangeiro”, alguém fora do seu lugar, em
sobre ele são feitas por Marie- demorou a incorporar “nostalgia” a seu léxico busca da “pátria celeste”. A idéia partiu do
Claude Lambotte, “Nostalgie”,
Enciclopedia Universalis, Paris, (1836), bem depois do francês (1759), do Antigo Testamento (incola ego sum in ter-
1995, vol. 16, pp. 472-4.
italiano (1764), do inglês (1770). ra), penetrou no Novo106 e atravessou toda
100 Cancioneiro da Ajuda, no
389, vv. 13 e 20, ed. Caro-
Saudade é, portanto, sentimento de falta, a Idade Média. Para Gregório Magno (540-
lina Michäelis de Vasconcelos, de ausência. Do quê? Aparentemente, da 604), autoridade extremamente reputada,
Lisboa, Imprensa Nacional/
Casa da Moeda, [1904] mesma forma que “nostalgia” quatro séculos “quando o primeiro pai do gênero humano
1990, vol. I, p. 765, linhas mais tarde, de um espaço amado e perdido: foi afastado das alegrias do Paraíso como
8717 e 8724.
“pero das terras averei soidade”, cantava decorrência de sua falta, ele veio à tristeza
101 Em 10.391 versos eles usaram
somente 1.200 palavras dife- Nuno Eanes Cerzeo na segunda metade do
rentes, conforme levantamento
de Carolina Michäelis de
século XIII. Mas, por sinédoque, essa perda
Vasconcelos (“Glossário”, in era também das pessoas que ali viviam: “eu
Cancioneiro da Ajuda, vol.
I, p. VIII). Essa estereotipia e das gentes algun sabor avia”, explicitava
despersonalização da lírica o mesmo trovador100. Ter saudade é estar
amorosa galego-portuguesa
são reconhecidas por todos distanciado do objeto de amor. Como na
os estudiosos e sintetizadas
por Giulio Lanciani (“Cantigas pluma dos trovadores medievais, o objeto
de Amor”, in Giulia Lanciani de amor é idealizado, estereotipado101, é
e Giuseppe Tavani (coords.),
Dicionário da Literatura Me- menos uma mulher concreta que o próprio
dieval Galega e Portuguesa,
Lisboa, Caminho, 1993, pp.
Amor, provavelmente também seria menos
136-7). uma terra conhecida do que a Terra por ex-
102 Cancioneiro da Biblioteca celência, o Éden. Essa hipótese é reforçada
Nacional, no 481, ed. Elza
Paxeco Machado e José Pedro pela comparação entre uma canção de D.
Machado, Lisboa, Revista de Denis, de fins do século XIII, na qual se dá
Portugal, 1952, vol. 3, pp.
94-5; Conto de Amaro, ed. a segunda ocorrência da palavra (soydade),
Elsa Maria Branco da Silva,
in Aires Augusto Nascimento, e uma hagiografia cujas particularidades
Navegação de S. Brandão lingüísticas levam a pensar que seria do
nas Fontes Portuguesas Medie-
vais, Lisboa, Colibri, 1998, século XIV ou anterior102. A canção fala na
pp. 243-81. A datação de
toda a obra trovadoresca
saudade de uma senhora que leva o trova-
do rei D. Dinis entre 1288 dor a rogar a Deus “que mh a leixe, se Lhi
e 1301 é de Michäelis de
Vasconcelos, Cancioneiro prouguer, ueer”, caso contrário ele pode
da Ajuda, vol. II, p. 603. “enssanceder ou moirer con pesar”, pois “se
A datação de o Conto de
Amaro é de Eugen Heinen, a non uyr, non posso uiuer”. A hagiografia,
Die Altportugiesische Amaro
– Legende, Kritish Ausgabe der por sua vez, diz que o santo tinha “grã de-
ältesten Fassung, Bamberg, sejo de veer o parayso terreall e que nuca
Schadel und Wehle, 1973,
pp. 44-7. folgava se nõ quando ouvya fallar e elle. E
103 Cancioneiro da Biblioteca em seu coraçõ senpre rrogava a Deus que
Nacional, no 481, vv. 6, 9, lhe demostrasse aquell lugar ante que ell
12, 18, 20; Conto de Amaro,
1, op. cit., p. 265. do mudo saysse”103. Também é interessante

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do exílio e da cegueira que sofremos […] e sem cobertura alguma. Não fazem o menor 104 Cantigas de Santa Maria,
ed. Walter Mettmann, Madri,
não foi mais capaz, como antes, de ver as caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas, Castalia, 1986, 48, 38; vol.
alegrias da pátria celeste”107. Um pensador e nisso são tão inocentes como quando I, p. 176; 67, 79; vol. I, p.
228; 379,11; vol. III, p.
do século IX faz eco e define a vida terrena mostram o rosto. […] Então se deitaram na 271.
como “perda da herança de nossa Pátria alcatifa, para dormir, sem nenhuma preocu- 105 Agostinho, Enarrationes in
Celeste, da qual nos encontramos por muito pação de cobrirem suas vergonhas […]. Ali Psalmos, 70, s. 2, 1, trad.
Vincenzo Tarulli, Roma, Città
tempo exilados”108. Um cronista monástico andavam entre eles três ou quatro moças, Nuova, 1990, p. 762.

anônimo do século XI afirma que “esta vida muito novas e muito gentis, com cabelos 106 Salmos, CXIX,19; 1 Pedro,
II,11; Hebreus, XI,13.
é peregrinação em terra estrangeira e não muito pretos e compridos, caídos pelas
107 Dialogues, IV,1, ed. Adalbert
na pátria, prisão de escravidão e não lar de espáduas, e suas vergonhas tão altas e tão de Vogue, trad. Paul Antin,
liberdade, exílio de catividade e não moradas cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, Paris, Cerf, 1980 (Sources
Chrétiennes, 265), p. 18,
da cidade e do reino celestes”109. O mesmo de as muito bem olharmos, não tínhamos linhas 1-5.
conceito é registrado por um divulgador nenhuma vergonha. […] E uma daquelas 108 Jonas de Orleans, De Insti-
bastante popular no século XII e um texto moças […] certamente era tão bem feita e tutione Laicalis, I, PL 106,
col.165 A.
oficial do papado no século XIII110. tão redonda, e sua vergonha – que ela não
109 Chronique ou Livre de Fonda-
É significativo que na primeira descrição tinha! – tão graciosa, que a muitas mulhe- tion du Monastère de Mouzon,
I,3, ed.trad. Michel Bur, Paris,
da terra recém-descoberta pelos europeus, res de nossa terra, vendo-lhes tais feições, CNRS, 1989, pp. 148-149,
Pero Vaz de Caminha tenha enfatizado tanto provocaria vergonha, por não terem as suas linhas 7-10. A origem da
imagem pode estar na tristeza
o caráter adâmico dos indígenas como a dela. […] Também andavam entre pelo desterro de Jerusalém e a
eles quatro ou cinco mulheres moças, nuas escravidão em Babilônia, can-
tada em Salmos, CXXXVII.
“[…] todos nus, sem coisa alguma que lhes como os homens, que não se apresentavam
110 Honório Augustodunensis,
cobrisse as suas vergonhas. […] Andam nus, mal [com] suas vergonhas tão nuas e com De Vita Claustrali, PL 172,
col.1247; Le Pontifical de la
tanta inocência descobertas, que não havia Curie Romaine au XIII Siècle,
nisso vergonha alguma”. XIX,20,1, ed. Michel Andrieu,
trad. Monique Goullet, Guy
Lobrichon e Eric Palazzo, Paris,
Não por acaso, além de dois degradados Cerf, 2004, pp. 196-7.

que a esquadra de Cabral deixou na nova 111 A Carta de Pero Vaz de


Caminha, op. cit., pp. 76,
terra, dois grumetes fugiram de noite para 78, 79, 81, 82, 86, 97.
aqui ficar111. Séculos depois, alguns folhetos 112 Dentre os cordéis, por exem-
plo: João Martins de Athayde,
de cordel pregam – como tinham feito os A Órfã Abandonada, s/c,
hereges adamitas em fins da Idade Média Filhos de José Bernardo da
Silva, s/d, p. 10; José Cor-
– a volta ao estado adâmico, para o qual a deiro, História do Reino da
habitação deve ser uma gruta, a vestimenta Pedra Azul, s/c, Manoel
Caboclo e Silva, 1978, pp. 8
os próprios cabelos, a alimentação apenas e 10. A recusa à alimentação
carnívora, sugerida também
vegetais112. pela Missão Abreviada (Ad-
É inegável que a identificação bíblica ditamento, Pratica 35, pp.
131-2), tinha sido idealizada
entre “exilado” e “estrangeiro” atravessou pela Alta Idade Média (Pierre
Bonnassie, “Consommation
os séculos. Sendo o exílio punição pelo d’Aliments Immonds et Can-
Pecado Original, portanto penitência, era nibalisme de Surviue dans
l’Occident du Haut Moyen
também “peregrinação longe do Senhor”113. Age”, in Annales.ESC, 44,
É essa dolorida distância – os textos são 1989, pp. 1.036-8) e prati-
cada por grupos hereges por
unânimes em afirmar que a maior limitação volta do ano 1000 (Hilário
Franco Júnior, “Les Abeilles
fora do Paraíso é o afastamento da beati- Hérétiques et le Puritanisme
tude divina – que fundia os conceitos de Millénariste Medieval”, in Le
Moyen Age, 111, 2005, pp.
“exilado”, “estrangeiro” e “peregrino” no 67-89).
de “solitário”. Aliás, é expressivo como nas 113 Assim aparece, por exemplo,
línguas românicas o adjetivo e o adjetivo nas bases da Idade Média,
em: Agostinho, Confissões,
substantivizado surgiram antes do subs- XI, 2, 4, trad. J. Oliveira
Santos e A. Ambrósio de
tantivo abstrato: solitaire/solitude (1190 e Pina, São Paulo, Abril, 1973,
1393), solitario/solitudine (1310 e 1518), p. 236. Mas, sobretudo,
em textos provenientes das
solitario/soledad (século XIII e XV), so- duas ordens religiosas mais

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litário/ solidão/solitude (respectivamente
século XIV, 1525 e século XVI). Por isso
importantes na formação
é bastante verossímil a antiga proposta
de Portugal. No século XI, que faz soidade derivar de solitate114. Em
Cluny, com: Raul Glaber,
Cronache dell’Anno Mille, todo caso, a consciência coletiva cristã
I, V, 26, ed.trad. Gugliemi medieval estava impregnada pela idéia do
Cavallo e Giovanni Orlandi,
Milão, Fondazione Lorenzo exílio terreno, desenvolvida, defendida e
Valla/Mondadori, 1998,
pp. 52-3. No século seguinte comunicada pelo clero em toda a Europa
Cister, com: Guilherme de ocidental, inclusive Portugal. Apesar de
Saint-Thierry, Le Miroir de la
Foi, I, 2, ed.trad. Jean-Marie nível intelectual globalmente inferior ao
Déchanet, Paris, Cerf, 1982
(Sources Chrétiennes, 301),
das regiões não fronteiriças da Europa,
p. 60. Portugal conhecia aquelas especulações
114 Michäelis de Vasconcelos, teológicas por intermédio dos religiosos
“Glossário”, pp. 86. Em
castelhano, soledad tem acep- transpirenaicos que ali se instalaram desde
ção de saudade desde a fins do século XI, sobretudo cluniacen-
segunda metade do século XVI
(cf. Corominas, Diccionario ses115. Não é sem importância notar que a
Etimológico, op. cit., vol. V,
p. 295).
primeira ocorrência de “saudade” talvez
115 Braço direito da Reforma
tenha se dado na pena de um trovador
Gregoriana e da imposição clerical, caso aceitemos a hipótese de
de um cristianismo mais rigo-
rista, a ordem monástica Carolina Michäelis de Vasconcelos, que
de Cluny, originária da vê no apelido Cerzeo uma derivação de
Borgonha, penetrou em ter-
ritório luso por Compostela cêrceo, isto é, circinus (“tonsurado”)116.
(cuja peregrinação ajudou
a organizar e estimular) e A segunda ocorrência foi com D. De-
acompanhou em 1096 o novo nis117, o rei-trovador que talvez tenha sido
conde portucalense, Henrique
da Borgonha, sobrinho do discípulo de Aymeric d’Ebrard, além de
abade Hugo de Cluny.
influenciado por Bertrand de Ventdorn e
116 Cancioneiro da Ajuda, vol. Jaufré Rudel.
II, pp. 550 e 622. Atual-
mente, contudo, prefere-se Colocados no extremo da Europa, diante
ver a designação do trovador
como derivada do topônimo da imensidão do oceano, de um lado, e dos
Cercio, comum na Galiza infiéis de outro, os portugueses tiveram tal-
(cf. António Resende de
Oliveira, “Nun’Eanes Cer- vez por isso a sensibilidade mais aguçada
zeo”, Dicionário da Literatura
Galego-portuguesa, op. cit.,
pela expectativa de sair da Finis terrae para
pp. 477-8). a Vera terrae. A figura medieval do homo
117 Cancioneiro da Biblioteca viator foi a partir do século XV encarnada
Nacional, no 542, vol. 3, p.
211. pelos portugueses, que correram mares e
118 Domingos Maurício, “A Carta terras para grandeza e riqueza do reino,
do Preste João das Índias e seu mas também para purgar a falta ancestral,
Reflexo nos Descobrimentos
do Infante D. Henrique”, in para cumprir o fado (palavra que significa-
Brotéria, 71, 1960, pp.
218-44; Geo Pistarino, “I Por-
tivamente surgiu naquela época) humano.
toghesi verso l’Asia del Prete Não é casual, nem deve ser explicado ex-
Gianni”, in Studi Medievali,
2, 1961, pp. 75-137; José clusivamente por motivos materiais, que
Pereira da Costa, “Socotorá em fins do século XV e começo do XVI
e o Domínio Português no
Oriente”, in Revista da Uni- dois diferentes monarcas lusitanos tenham
versidade de Coimbra, 23,
1973, pp. 323-71; Lima enviado emissários em busca do Império joânico do Oriente, quer dizer, limítrofe
de Freitas, “Considerações de Preste João. É expressivo que se as ao Paraíso e por contágio cheio de carac-
Portuguesas em Torno do Preste
João”, in Cavalaria Espiritual e circunstâncias da expansão marítima e dos terísticas paradisíacas119.
Conquista do Mundo, Lisboa,
Instituto Nacional de Investi-
interesses portugueses na África levaram, A saudade foi se enraizando de tal manei-
gação Científica, 1986, pp. no século XV, a identificar o Preste João ra na alma coletiva portuguesa, que apesar
117-39; Jean Delumeau, Mil
Anos de Felicidade. Uma com o imperador abissínio, os cronistas de Portugal ser o único lugar no mundo
História do Paraíso, São do século XVI negaram tal identificação118. onde esse povo de emigrantes sente-se em
Paulo, Companhia das Letras,
[1995] 1997, pp. 176-90. Continuou-se a sonhar com o império casa, mesmo aí “são tão estrangeiros como

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os portugueses para a vasta casa brasileira e Desenho
aqui ganhado intensidade na escala do país.
Este se tornou o país do futuro122, primeiro
representando
para a metrópole, depois para si mesmo, Américo
mas o amanhã tarda a chegar pela pressa em
Vespúcio no
alcançá-lo. O imediatismo dos portugueses
que viam na Reconquista e mais tarde na Brasil
sua colônia americana a possibilidade de
obtenção rápida de terras e salvação continua
presente no Brasil de princípios do século 119 A clássica edição de Fried-
XXI. O país não sabe esperar. O governo rich Zarncke (1879) está
traduzida em português: Carta
não investe a longo prazo, faz investimentos do Preste João das Índias,
de fachada que não trazem soluções reais, trad. Leonor Buescu, Lisboa,
Assírio & Alvim, 1998. A
apenas adiam problemas: um túnel ou viaduto melhor edição é Die Epistola
presbiteri Johannis lateinisch
feito em meses é preferido a novas linhas de und deutsch: Überlieferung,
metrô, que demandam anos; uma política Textgeschichte, Rezeption
und übertragungen im Mit-
monetária que gera falsas riquezas por curto telalter, ed. Bettina Wagner,
Tübingen, Niemeyer, 2000.
tempo é preferida a uma política educacio- Há uma cópia portuguesa, de
nal que gere capital humano de qualidade princípios do século XIII, dessa
carta: Biblioteca Nacional de
por gerações, a prática assistencialista que Lisboa, códice Alcobacense
remedia a situação de milhões de pessoas CCLVI/380, editada por
Domingos Maurício, “Ainda
é politicamente mais remuneradora do que a Carta do Preste João das
Índias”, in Brotéria, 71, 1961,
transformações de fundo. O cidadão comum pp. 285-303.
prefere pagar juros altíssimos e satisfazer de 120 Mitologia da Saudade, São
imediato certos desejos, mesmo hipotecando Paulo, Companhia das Le-
tras, 1999, pp. 11-12. Um
assim seu futuro. Como comentou Eduardo italiano anônimo que visitou
Lisboa algum tempo entre
Gianetti da Fonseca, o Brasil precisa fazer 1578 e 1580 definiu os
“a crítica da razão curta”123. Mas para isso portugueses como “sempre
tristes e melancólicos, não
é necessário superar a fase dos debates usando rir nem comer nem
realistas/nominalistas em que ainda nos beber com medo de que os
vejam” (Ritratto et Riuerso del
encontramos. E a ultrapassagem dela não se Regno di Portogallo, ed.trad.
António Henrique de Oliveira
dá apenas por voluntarismo. Ainda é forte o Marques, in Portugal Quinhen-
sentimento com que o Brasil foi construído tista, Lisboa, Quetzal, 1987,
pp. 240-1, cf. também 138-9,
e que parte de um passado imemorial (a 242-3).
perda, a Falta primordial) e empurra para 121 Marânus, ed. Jacinto do Prado
um porvir indefinido (porque de tonalidades Coelho, Lisboa, Bertrand,
s/d. (Obras Completas, 3),
milenaristas) que paralisa pela envergadura p. 303.
do empreendimento (a reconquista do Paraíso 122 A expressão ainda aparece
com freqüência na boca
Perdido). A demora em alcançar o futuro de políticos, empresários e
parece ser prolongamento da frustração cidadãos comuns, porém mais
por parte de estrangeiros do
de que a terra vista confessadamente nos que de brasileiros. Lembre-se
primeiros tempos como sendo o Paraíso do livro do austríaco radicado
no Brasil (e que aqui se matou),
logo se revelou bem diferente do sonho124. Stefen Zweig (Brasil, Terra do
Futuro, trad., Rio de Janeiro,
fora dele” porque “sua verdadeira pátria [é] A frustração no transplante de instituições, Guanabara, 1941).
a do sonho adormecido mas nunca extinto idéias, hábitos, para outra realidade física 123 “O Brasil Está Sempre com
no fundo do seu ser”, como bem percebeu levou ao sentimento difuso, bem percebido o Horizonte Muito Estreito”,
in O Estado de S.Paulo,
Eduardo Lourenço120. Essa pátria onírica por Sérgio Buarque, de que “somos ainda 12/12/2004, p. A8.
é que explica a definição de Teixeira de hoje desterrados em nossa terra”125. 124 Sérgio Buarque de Holanda,
Pascoaes, em 1911: “a Saudade é irmã da Dividido entre o desejo de acreditar na Visão do Paraíso, São Paulo,
Brasiliense/Publifolha, [1959]
Eternidade”121. Natural, portanto, que a ilusão herdada de que esta é terra paradisíaca 2000.
ausência edênica tenha se transferido com (à qual se atribui os arquétipos medievais de 125 Raízes do Brasil, p. 31.

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natureza rica, clima agradável, humanidade negativa (“numa terra radiosa vive um povo
gentil) e a constatação da dureza da realida- triste”), a de Gilberto Freyre positiva (“a
de imediata (secas no Nordeste, enchentes miscigenação que largamente se praticou
no Sul, violência social por toda parte), aqui corrigiu a distância social, [agiu] po-
o brasileiro desenvolveu – se é possível derosamente no sentido da democratização
sintetizar questão tão complexa e de tan- social no Brasil”)129.
tas nuanças regionais, grupais e temporais
– forte instabilidade emocional. Com muita • • •
freqüência oscilamos entre sentimentos
extremos, seja em relação a uma tarefa co- O próprio caráter de dependência em
tidiana, a um amor, a um time de futebol ou relação ao exterior, que tem marcado nossa
ao próprio país. Pouco antes de ganhar sua sociedade, prolonga – através de outros
primeira Copa do Mundo, o maior cronista instrumentos e conceitos – a situação de
esportivo nacional constatava que “o Brasil Portugal medieval. Como sugerimos em
vacila entre o pessimismo mais obtuso e a outro trabalho e Jérôme Baschet recente-
esperança mais frenética […] em todos os mente confirmou, a trajetória histórica dos
setores e, sobretudo, no futebol”126. Se nes- países ibéricos levou-os a ter um feudalis-
se campo aquela vitória inverteu o quadro mo atípico decorrente em grande parte da
– bom exemplo das bruscas modificações tardia influência transpirenaica. De fato,
de humor nacional – e desde então “com o a partir do século XI a “revolução feudal”
126 Nelson Rodrigues, “Complexo
de Vira-latas”, op. cit., p. brasileiro não há quem possa”, como dizia reorganizou a sociedade de além-Pireneus,
52.
o hino comemorativo à conquista da Copa permitindo o crescimento demográfico e
127 Bloch, La Société Féodale, op.
cit., pp. 116-7. Cf. também de 1958, em outros domínios a auto-imagem gerando uma dinâmica expansionista in-
Pierre Rousset, “Recherches nacional continua negativa. terna (arroteamentos, conquista das zonas
sur l’Emotivité à l’Epoque
Romane”, in Cahiers de Ci- Tal instabilidade emocional era típica da eslavas) e externa (Cruzadas no Oriente
vilisation Médiévale (Poitiers),
2, 1959, pp. 53-67.
Europa feudal, como Marc Bloch mostrou Médio, colônias comerciais italianas no
há mais de meio século127. Em Portugal, bom Império Bizantino e no Extremo Oriente).
128 Fernão Lopes, Crónica do Rei
D. Pedro I, ed. Giuliano Mac- exemplo é Pedro I (1357-67), que como rei Nesse contexto, os territórios ibéricos em
chi, trad. Jacqueline Steunou,
Paris, CNRS, 1985: “e el podia dar vazão a arroubos que nada indica grande parte ocupados pelos muçulma-
meesmo poinha em elles [mal- que fossem percebidos como condenáveis. nos revelaram-se atraentes a franceses,
feitores] maão quando viia
que confessar nom queriam, Aliás, se o cronista, que não disfarça sua alemães, ingleses e italianos. Através de
firindo-os cruellmente ataa que
confessavam” (cap.VI, p. 44,
simpatia pelo monarca, registrou tais im- peregrinos que se dirigiam a Composte-
linhas 21-22, p. 46, linha 1); pulsos extremados, é provavelmente porque la, de monges da ordem de Cluny que se
ameaçou de “cruees açoutes”
(p.46, linha 42) até o bispo sabia que seus leitores e ouvintes veriam no instalavam na Hispânia, de guerreiros que
do Porto (VII, p. 52, linhas rei uma espécie de microcosmo da sensibi- participavam na Reconquista e se casavam
32-33); mandou castrar um
servidor que dormira com a lidade nacional. Se, de um lado, ele punia com mulheres da nobreza local, o feudalis-
esposa do patrão (VIII, pp.
54-7), degolar dois ladrões pessoalmente os malfeitores e não hesitava mo transpirenaico penetrou na península.
e assassinos (VI, pp. 44-9), mesmo em torturá-los para obter confissão, Porém, marcado por dois traços que fizeram
queimar uma adúltera, enfor-
car um violador da própria de outro, adorava dançar e dar festas, e certa da versão ibérica algo diferente. De um
esposa (IX, p. 58), decapitar
quem prejudicara um lavrador,
feita, insone, convocou alguns músicos e lado, aquela penetração deu-se em meados
enforcar um corrupto (IX, p. saiu de madrugada bailando pelas ruas da do século XII, já na etapa feudoburguesa
60). Sobre seu lado festivo,
cap. XIV, p. 82. cidade128. No Brasil, essa alternância fácil da sociedade transpirenaica. De outro, a
129 Respectivamente, Retrato entre desespero e esperança pode ter sido organização feudal ibérica naturalmente
do Brasil. Ensaio sobre a acentuada (como causa? como efeito?) pela não foi simples transplante de modelo
Tristeza Brasileira, São Paulo,
Brasiliense, [1928] 1944, p. alta taxa de adesão declarada a alguma re- estrangeiro, e sim adaptação às condições
11; Casa-grande e Senzala,
p. L. ligião: conforme o Censo de 2002, apenas particulares daquelas regiões, marcadas
130 Franco Júnior, Peregrinos,
12,5 milhões no total de 170 milhões de pela longa luta antimuçulmana. O resultado
Monges e Guerreiros, op. brasileiros negavam ter uma religião. As foi, comparativamente ao além-Pireneus,
cit., pp. 189-263; Jérôme Bas-
chet, La Civilisation Féodale. próprias tentativas de entender o país não o surgimento de sociedades política e
De l’an Mil à la Colonisation escaparam a cores fortes. Separadas por socialmente arcaicas, demográfica e eco-
de l’Amérique, Paris, Aubier,
2004, pp. 274-7. apenas oito anos, a visão de Paulo Prado é nomicamente dependentes130.

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